Imprimir acórdão
Processo nº 583/2007
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. A. vem reclamar da decisão sumária de fls. 274 e segs., que decidiu não
conhecer do objecto do recurso de constitucionalidade por aquele interposto do
acórdão do Tribunal da Relação do Porto de fls. 248 e segs., pelo facto de o
recorrente não ter suscitado durante o processo, como devia, uma questão de
inconstitucionalidade normativa.
Pode ler-se na fundamentação da decisão ora reclamada:
3. O Tribunal da Relação do Porto admitiu (fls. 270 dos autos) o recurso de
constitucionalidade que foi interposto por A. do acórdão proferido pela 1ª
Secção Criminal daquele mesmo tribunal.
Porém, e nos termos do nº 2 do artigo 76º da Lei nº 28/82 (Lei do Tribunal
Constitucional) tal recurso não deveria ter sido admitido.
Com efeito, o requerimento por meio do qual o referido recurso é interposto não
satisfaz os requisitos do artigo 75º‑A da Lei do Tribunal Constitucional. O
recorrente (fls. 268 dos autos) não identifica a norma cuja
inconstitucionalidade (ou ilegalidade) pretende que o Tribunal aprecie; não
indica qual a norma ou princípio constitucional (ou legal) que considera ter
sido violado; não menciona a peça processual em que foi suscitada a questão de
inconstitucionalidade ou ilegalidade.
E nem se diga que, perante a falta de todas estas indicações – razoavelmente
exigidas pelos nºs 1 e 2 do artigo 75º‑A, porque necessárias para a delimitação
do âmbito dos poderes cognitivos do Tribunal Constitucional –, deveria o juiz
convidar o requerente a prestá‑las, nos termos dos nºs 5 e 6 do mesmo artigo.
É que, no caso, não faltam só os requisitos específicos do requerimento do
recurso de constitucionalidade. Para além deles faltam os próprios pressupostos
do recurso, tal como os configura a Constituição (artigo 277º, nº 1, e artigo
280º, nº 1) e a Lei do Tribunal Constitucional (artigo 70º).
Diz o recorrente que interpôs o recurso de constitucionalidade ao abrigo da
alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Sem razão o
diz. Pressuposto deste tipo de recurso é, como se sabe, que a decisão recorrida
tenha feito efectiva aplicação de normas cuja inconstitucionalidade tenha sido
suscitada, pelo recorrente, durante o processo. Assim é por o recurso de
constitucionalidade, em direito português, incidir apenas sobre normas (artigos
277º, nº 1 e 280º, nº 1, da CRP) e nunca sobre decisões, nomeadamente judiciais.
Ora sucede que A. procurou interpor um recurso de constitucionalidade, não
incidente sobre normas, mas directamente respeitante a decisão judicial em si
mesma considerada. Ao fazê‑lo, o recorrente agiu como se o Tribunal
Constitucional fosse uma instância de amparo: as conclusões de motivação do seu
recurso para o Tribunal da Relação do Porto (fls. 204 verso a 207 verso) bem o
demonstram. Aí, suscitada é a inconstitucionalidade da própria decisão judicial
que o condenara por um crime de condução de veículo em estado de embriaguez
(fls. 206 verso dos autos):
A sentença, na parte recorrida, viola os arts. 9º nº 1, 61º al. b), 71º, 119º
al. c), d), e), 283º nº 3 al. c), 311º nº 1 e 3, 359º e 379º do Código de
Processo Penal e o art. 32º nº 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa
e não a inconstitucionalidade de qualquer norma que tal decisão tenha aplicado
(o facto de, no pedido de aclaração do acórdão do Tribunal de Relação, aparecer
de algum modo formulada a questão de inconstitucionalidade da norma é
irrelevante; como bem se sabe, os incidentes pós‑decisórios não são meios
idóneos para suscitar a questão de constitucionalidade, que deve logicamente ser
invocada em momento em que o tribunal a quo ainda possa conhecer da questão
(Acórdão nº 490/98, disponível em www.tribunalconstitucional.pt e demais
jurisprudência aí citada).
Como o Tribunal Constitucional não pode conhecer da inconstitucionalidade de
decisões judiciais – visto que não existe, em direito português, o que em outros
ordenamentos se designa por “recurso de amparo” ou “queixa constitucional” –
profere‑se, para este caso, Decisão Sumária ao abrigo do nº 1 do artigo 78º‑A da
Lei do Tribunal Constitucional, por se entender que, nele, não pode o Tribunal
conhecer do objecto do recurso.
2. O reclamante diz o seguinte na sua reclamação:
2. CRÍTICA DA DECISÃO RECLAMADA
Salvo o devido respeito por opinião contrária, o reclamante entende que se
encontram preenchidos os pressupostos do recurso de constitucionalidade e, como
tal, dever-se-ia lançar mão do disposto no art° 75°-A n.° 5 e 6 da LTC, como se
irá demonstrar.
Antes de mais começar-se-á por dizer que o requerimento de interposição de
recurso do reclamante está, efectivamente, incompleto, pelo que se deveria fazer
uso do disposto no art° 75°-A n.° 5 da LTC.
De facto, é entendimento do reclamante que, não só o presente recurso não
pretendeu recorrer ao Tribunal Constitucional como instância de amparo de uma
decisão judicial em si mesma considerada – porquanto se encontram preenchidos
“os próprios pressupostos do recurso” –, como deveria também o recorrente ter
sido convidado a aperfeiçoar o seu requerimento de interposição de recurso nos
termos do disposto no n.° 5 e 6 do artigo 75°-A da Lei 2 8/82.
Na decisão reclamada diz-se que no recurso interposto para o Tribunal da Relação
do Porto, o recorrente não suscitou de forma processualmente correcta nenhuma
questão de inconstitucionalidade.
No entanto, não deveria deixar de ser feito o convite ao aperfeiçoamento
previsto no n.° 5 e 6 do artigo 75°-A da Lei 28/82, mormente por imperativo
legal, e porque seria indicado pelo recorrente a norma legal concreta que se
entende violadora da Lei Fundamental, por não se encontrar esta somente arguida
na aclaração requerida ao Tribunal da Relação do Porto, conforme resulta da
fundamentação da decisão sumária.
Tal convite deveria estender-se às várias situações nas quais pode o
requerimento de recurso apresentado ser deficiente, ainda que por imperícia do
defensor.
Tal entendimento, atento o direito de defesa do arguido, veio a postular-se
também nos processos contra ordenacionais instaurados nos termos do D.L. n.°
433/82 (Cfr. Ac TC 320/02 in D.R. de 7/10/2002), o que acentua a importância que
um sistema processual justo atribui a todo e qualquer arguido a que se imponha
uma pena, sanção acessória, multa ou coima.
Deveria então o arguido ter sido convidado a aperfeiçoar o seu requerimento de
interposição de recurso, onde indicaria a norma que expressamente arguiu de
inconstitucional no entendimento dado pelo tribunal recorrido.
Com efeito, para a interposição de um recurso de constitucionalidade nos termos
da alínea b) do n.° 1 do artigo 70° da Lei do Tribunal Constitucional, tal lei
prevê 3 requisitos:
a) Suscitação durante o processo de uma inconstitucionalidade normativa;
b) Aplicação dessa norma com o sentido alegadamente constitucional, como
critério de decisão da causa;
e) Esgotamento prévio dos recursos ordinários.
Assim, dos 3 requisitos impostos pela lei do Tribunal Constitucional, a
suscitação durante o processo de uma inconstitucionalidade normativa é condição
sine qua non para que se possa verificar o pressuposto da aplicação dessa mesma
norma com o sentido alegadamente inconstitucional como critério de decisão da
causa.
Sendo que indubitavelmente neste caso se encontram esgotadas as possibilidades
de interposição de recurso ordinário.
Vem a presente decisão sumária que ora se reclama fundamentar a improcedência do
recurso, porquanto entende não ter sido suscitada durante o processo uma
inconstitucionalidade normativa.
Ora, o recorrente interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto contendo
motivação e conclusões.
Assim, na motivação apresentada o recorrente explanou todas as razões de direito
que entendia constituírem uma interpretação das disposições legais aplicáveis
num sentido inconstitucional.
No entanto, o recorrente aceita que nas conclusões do recurso a invocação da
inconstitucionalidade venha deficientemente formulada.
Apesar disso, dos V pontos nos quais o recorrente estruturou o seu recurso, no
ponto I, II e III debruçou-se sobre a inconstitucionalidade da decisão recorrida
porquanto enfermava de uma interpretação não conforme com a Lei Fundamental por
violação do princípio das garantias de defesa e do contraditório, sendo que dos
outros dois pontos em que estruturou o recurso, o IV se debruçou sobre a
temática da medida da pena – matéria na qual o recorrente viu parcialmente
procedente o seu recurso – e o V, constituído pelas obrigatórias conclusões.
Entende-se na decisão sumária que só na aclaração do acórdão proferido pelo
Tribunal da Relação do Porto o recorrente suscitou a inconstitucionalidade da
interpretação do artigo 283° n.° 3 alínea c) do CPP no sentido de que a acusação
não necessita de conter as sanções acessórias em que o arguido pode ser
condenado, afrontando tal entendimento o princípio das garantias de defesa e do
contraditório previstas no art. 32° n.° 1 e 5 da CRP.
Sobre a questão de constitucionalidade, disse-se na motivação e conclusões do
recurso o seguinte:
O recorrente iniciou a motivação do seu recurso, precisamente com a questão da
obrigatoriedade de indicação na acusação de todas as disposições legais
aplicáveis: “Dispõe o art. 283°, no seu n.º 3 alínea c), que da acusação deve
constar, sob pena de nulidade, a indicação das disposições legais aplicáveis aos
factos que resultaram suficientes e indiciariamente demonstrados no inquérito.”
Seguidamente, concretizou o exposto sobre a obrigatoriedade da acusação conter
todas as disposições legais aplicáveis, ao delimitar a situação ao caso em
análise,
“Acontece que da acusação de fls. 51 e 52 dos autos nenhuma referência é feita à
pena acessória de inibição de conduzir, nem ao art. 69° do Código Penal, que
prevê precisamente a aplicação, por crime de condução de veículo em estado de
embriaguez, de tal pena.”
No ponto II da motivação, o recorrente, na sequência do exposto no ponto I, –
que se configura como que uma introdução ao debatido nos pontos II e III –
pugnou pela procedência do vício da inexistência da sentença na parte em que
condena o reclamante na pena acessória e se assim não se entendesse, pela sua
nulidade:
“Com a admissão da acusação fica definitivamente fixado o objecto do processo, e
fixa-se nos precisos moldes em que ele é definido na acusação. (Cfr. Ac. TRP de
12-01-2005, in www.dgsi.pt)”
“Assim sendo, não havendo na acusação qualquer referência à pena acessória de
inibição de conduzir, nem à norma que a prevê – art. 69° do Código Penal – a
aplicação daquela norma extravasa o domínio do objecto do presente processo.”
“Não fazendo parte daquele objecto, a sua concreta aplicação encontra-se fora do
alcance dos poderes de cognição do tribunal a quo “.
“O tribunal a quo ao condenar o recorrente em 4 meses de inibição de conduzir
violou o princípio sententia debet esse conformis libello.
Na decorrência da estrutura acusatória do nosso Processo Penal é efectiva e
definitivamente a acusação que define o thema decidendum do processo. É ela que
delimita os poderes de cognição do tribunal, efeito a que Figueiredo Dias
apelida de vinculação temática do tribunal. (Figueiredo Dias, Direito Processual
Penal, vol. I, pág. 145)”
“O Ministério Público ao não fazer referência ao art. 69° do Código Penal, não
chamou para o objecto do processo a consciência da ilicitude, por parte do
recorrente, dos factos relativamente à sanção aplicável por força daquela
disposição legal.
Não podendo o tribunal recorrido aferir da ilicitude dos factos face à pena
acessória de inibição de conduzir, não pode aquele aplicá-la.
Ao fazê-lo, a sentença recorrida, na parte em que condena o recorrente a 4 meses
de inibição de conduzir é INEXISTENTE.”
Seguindo de perto Germano Marques da Silva, in ob. cit., vol. II, pág. 92/93,
podemos seguramente dizer que “A categoria da inexistência afasta-se do
princípio geral da tipicidade das nulidades e de igual princípio geral da sua
sanção”, porquanto “É bem de ver que seria tecnicamente inconcebível, para além
de profundamente iníquo, deixar sem tutela vícios do acto mais graves do que os
que a lei prevê como constituindo nulidades.”
“Assim, “A sentença é inexistente quando condena o arguido que não tenha sido
acusado ou por facto que não constitua objecto do processo.”
“Mas mesmo que assim não se entenda, sempre a violação do objecto do processo
tem de configurar uma nulidade insanável.”
Arguidos os vícios de inexistência ou nulidade da sentença recorrida, o
recorrente continuou o desenvolvimento da sua motivação, de acordo com uma
graduação lógica, que partindo das nulidades processuais, culminou na arguição
da violação da Lei Fundamental.
Aliás, logo na primeira consideração do ponto III da motivação expôs o arguido:
“A sentença, na parte recorrida, viola um outro princípio basilar do Processo
Penal – princípio do contraditório.
Decorre dos arts. 32º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa e 61º alínea
b) do Código de Processo Penal como garantia de defesa de qualquer arguido o
direito a exercer o contraditório.”
E de imediato indicou o arguido a violação concreta que se pretendeu arguir
expondo que “Nada se dizendo na acusação deduzida quanto à aplicação ao
recorrente, por via do crime que lhe foi imputado, da pena acessória de inibição
de conduzir, nem mesmo se fazendo referência ao art. 69° do Código Penal, não
podia o recorrente defender-se quanto à aplicação e medida daquela”.
Concluindo por referir que a sentença, na parte recorrida “(..) ofende tal
basilar princípio da nossa ordem jurídica.”
Nas conclusões 25ª a 28ª, expendeu o recorrente considerações bastantes sobre a
ofensa dos princípios fundamentais das garantias de defesa e do contraditório:
“25ª Decorre dos arts. 32°, n.° 5 da Constituição da República Portuguesa e 61º
alínea b) do Código de Processo Penal, enquanto garantia de defesa de qualquer
arguido, o direito a exercer o contraditório.
26ª Também sob o argumento da garantia do exercício do direito ao contraditório
se impõe a delimitação, na acusação, dos factos e crimes imputados a um arguido,
para que este se possa defender (cfr. Ac. TRP de 12-01-2005, in www.dgsi.pt).
27ª Nada se dizendo na acusação deduzida quanto à aplicação ao recorrente, por
via do crime que lhe foi imputado, da pena acessória de inibição de conduzir,
nem mesmo se fazendo referência ao art. 69° do Código Penal, não podia o
recorrente defender-se quanto a tal sanção.
28ª Mais uma razão para a sentença, na parte recorrida, ser julgada INEXISTENTE
pois que ofende tal basilar princípio da nossa ordem jurídica”.
Não se pode esquecer que, como se defende nos Acórdãos do Tribunal
Constitucional n°s 248/90 e 17/97 (publicados, respectivamente, no D.R. 2ª
série, de 23/01/1991 e de 30/04/1997), “No domínio dos processos de fiscalização
concreta de constitucionalidade, ao contrário do que acontece em sede de
fiscalização abstracta, não é possível dissociar-se a norma ou normas postas em
causa, da própria relação jurídica substancial a que foi ou foram aplicadas, nem
tão pouco das circunstâncias objectivas em que essa aplicação ocorreu. E isto é
assim porque será a partir da norma concretamente aplicada que se há-de formar o
juízo deste Tribunal sobre a eventual invalidade constitucional da referida
norma.”
Ora, entende o reclamante que o ónus de formular a questão da
inconstitucionalidade nas instâncias tem como ratio a possibilidade do
conhecimento dessa questão de inconstitucionalidade por essas mesmas instâncias,
ou seja, o Tribunal Constitucional deve ser uma 2ª instância em matéria de
conhecimento de questões de inconstitucionalidade.
E se assim é, pela leitura do acórdão recorrido, claramente se constata que o
tribunal recorrido se debruça sobre a questão da inconstitucionalidade arguida.
Com efeito, se dúvidas restassem, no requerimento de aclaração tendo a mesma
questão sido colocada, a Relação veio a proferir novo acórdão no qual se diz
claramente: “Quanto à questão subjacente ao primeiro esclarecimento solicitado,
consideramos que o acórdão é suficientemente claro.”
Ora, se assim é ainda que o recorrente não tenha colocado correctamente a
questão de constitucionalidade, certo é que o tribunal recorrido da mesma
conheceu, pelo que a ratio legis do ónus de suscitar a questão de
constitucionalidade foi cumprida: o tribunal recorrido conheceu da questão, tal
como reafirmou no acórdão que recaiu sobre o pedido de aclaração.
De facto, como se disse, o acórdão recorrido pronunciou-se quanto à
inconstitucionalidade arguida se bem que de forma sucinta como se transcreve:
“De qualquer modo, resulta de tudo quanto atrás se referiu que a omissão de
referência na acusação à sanção acessória de inibição de conduzir e à norma que
a prevê – artigo 69°, n.° 1, alínea a) – em nada viola o principio do
contraditório previsto no artigo 35 n.° 5 da Constituição (..)”
Aliás, foi na esteira desta breve referência à violação da Lei Fundamental que o
recorrente requereu a aclaração acórdão, introduzindo com maior ênfase a questão
já levantada nas motivações de recurso, ou seja: a de a acusação não fazer
referência alguma à aplicação de uma sanção acessória.
E este entendimento não pode ser rebatido sob uma análise estritamente
formalista, porquanto:
a) Ao longo de todo o recurso interposto, o recorrente citou o acórdão do
Tribunal da Relação do Porto que, em decisão sobre situação semelhante, julgou
inconstitucional por violação do principio do contraditório a interpretação do
artigo 283º n.° 3 al. c) do CPP no sentido de não impor que a acusação
contivesse a menção à aplicação de uma sanção acessória (cfr. Ac. TRP de
12-01-2005, in www.dgsi.pt)
b) O acórdão recorrido pronunciou-se clara e especificamente sobre a questão de
constitucionalidade alegada.
E se tal não bastasse, é entendimento deste tribunal, que “Afirmar que uma
norma, na interpretação que lhe foi dada por qualquer tribunal afronta a lei
fundamental, vale como arguição de inconstitucionalidade e é, assim, fundamento
de recurso (Ac. 33/88)”, sendo que este entendimento constitui jurisprudência
firme do Tribunal Constitucional (neste sentido, o Acórdão do Tribunal
Constitucional de 07/02/1996, in B.M.J. n° 454, pg. 275 e o Acórdão do Tribunal
Constitucional de 29/10/1997, in B.M.J. n° 470, pg. 140).
Daí que, o recurso interposto deveria ter sido admitido, pronunciando-se este
Tribunal sobre se a interpretação do disposto no artigo 283° n.° 3 alínea c) do
Código de Processo Penal, no sentido de que na acusação pode ser omitida a
aplicabilidade de uma sanção acessória ao arguido, deve ser tida por
inconstitucional por violação do artigo 32º n.° 1 e n.° 5 da Constituição da
República Portuguesa.
O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional respondeu
pela seguinte forma à reclamação:
1°
A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2°
Na verdade, a argumentação do reclamante em nada abala os fundamentos da decisão
reclamada, quanto à evidente inverificação dos pressupostos do recurso: não
tendo o recorrente suscitado, durante o processo e em termos processualmente
adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, é evidente que
carece de legitimidade para interpor o recurso tipificado na alínea b) do n° 1
do artigo 70° da Lei do Tribunal Constitucional.
Cumpre apreciar e decidir.
II
Fundamentos
3. Adianta-se desde já que a presente reclamação não pode obter provimento,
pois não abala os fundamentos em que se baseou a decisão reclamada.
Não relevam, desde logo, as considerações do reclamante relativas ao
preenchimento dos pressupostos de um recurso de fiscalização concreta de
constitucionalidade fundado no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal
Constitucional. Com efeito, este Tribunal tem salientado, em aplicação do
disposto no artigo 72.º, n.º 2, da mesma Lei, que incumbe ao recorrente o ónus
de suscitar a inconstitucionalidade durante o processo de modo
procedimentalmente adequado, “o que exige que, ao suscitar-se uma questão de
inconstitucionalidade, se deixe claro qual o preceito legal cuja legitimidade
constitucional se questiona, ou, no caso de se questionar certa interpretação de
uma dada norma, qual o sentido ou a dimensão normativa do preceito que se tem
por violador da lei fundamental” – assim o Acórdão n.º 199/88 (publicado no
Diário da República, II Série, de 28 de Março de 1989).
É, pois, sobre o recorrente que incumbe o ónus de definir a norma ou dimensão
normativa cuja constitucionalidade pretende ver apreciada, não sendo ao Tribunal
Constitucional que compete averiguar essa norma – como parece pretender o
recorrente, ao afirmar, a fls. 285 verso da presente reclamação, que “(a)o longo
de todo o recurso interposto, o recorrente citou o acórdão do Tribunal da
Relação do Porto que, em decisão sobre situação semelhante, julgou
inconstitucional por violação do princípio do contraditório a interpretação do
artigo 283.º n.º 3 al. c) do CPP no sentido de não impor que a acusação
contivesse a menção à aplicação de uma sanção acessória (cfr. Ac. TRP de
12-01-2005, in www.dgsi.pt)”.
Na presente reclamação afirma-se também que “(o) acórdão recorrido pronunciou-se
clara e especificamente sobre a questão de constitucionalidade alegada.”
Todavia, verifica-se que, nos termos do já citado artigo 72.º, n.º 2, da Lei do
Tribunal Constitucional, os “recursos previstos nas alíneas b) e f) do n.º 1 do
artigo 70.º só podem ser interpostos pela parte que haja suscitado a questão da
inconstitucionalidade ou da ilegalidade de modo processualmente adequado perante
o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a
dela conhecer”. Trata-se, como indica a própria epígrafe deste artigo 72.º, de
uma regra relativa à “legitimidade para recorrer” – e não à recorribilidade da
decisão –, pelo que é necessário que a exigência de suscitação tenha sido
cumprida pela parte que vem a interpor o recurso de constitucionalidade. A
exigência legal, para que se verifique a legitimidade para recorrer para o
Tribunal Constitucional, é no sentido de que a parte recorrente haja suscitado a
questão da inconstitucionalidade normativa de modo processualmente adequado
perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida (e em termos de este estar
obrigado a dela conhecer).
Reitera‑se, assim, a conclusão essencial sustentada pela Decisão Sumária
reclamada: neste caso, não faltou só o cumprimento dos requisitos do recurso de
constitucionalidade; o que nele faltou foi a própria perfeição dos pressupostos
do recurso.
Ao caso não é, pois, aplicável o nº 5 do artigo 75º‑A da Lei do Tribunal
Constitucional.
É que o ‘convite’ ao aperfeiçoamento a que se refere o preceito não deve ser
feito (artigo 137º do Código de Processo Civil, ex vi do artigo 69º da Lei do
Tribunal Constitucional) quando não estão preenchidos, no caso, os próprios
pressupostos do recurso.
III
Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação e condenar
o reclamante em custas, com 20 unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 11 de Julho de 2007
Maria Lúcia Amaral
Carlos Fernandes Cadilha
Gil Galvão