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Processo n.º 748/07
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. A., inconformado com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que,
confirmando a decisão da Relação do Porto, julgou a acção declarativa por ele
proposta improcedente, pediu a reforma do mesmo, alegando, no que ora releva, o
seguinte:
“ […]
A posição tomada no acórdão não levou em conta disposições constitucionais, em
que aquele princípio se funda, nomeadamente o disposto nos seguintes artigos da
Constituição:
1°. o princípio da dignidade da pessoa humana, poder donde decorre o princípio
ou poder de autodeterminação ou auto-governo da pessoa, que impede a sua
objectivação ou coisificação.
26°. 1 – o direito à capacidade civil, corolário do princípio da
autodeterminação pessoal, que impede que se subordine uma pessoa a um contrato
que não quis celebrar.
O douto acórdão recorrido, ao não reconhecer os corolários da violação ao
princípio da liberdade contratual, que é emanação dos princípios da dignidade da
pessoa humana e do seu direito à capacidade cível, é um acto inconstitucional
(cf., Marcelo Rebelo de Sousa, O Acto Inconstitucional, págs. 316. segts.)
Assim, e no seguimento do entendimento daquele Ilustre Constitucionalista, ao
não levar na melhor conta aqueles princípios constitucionais, e os seus
princípios os corolários legais, o douto acórdão recorrido não cumpriu o
disposto no art°. 202°. 1 e 2 da Constituição, nem terá interpretado as normas
em que sustenta a decisão no princípio da aplicação da lei em conformidade com a
Constituição.
Termos em que, face à obscuridade ou ambiguidade invocada, a contradição, e
inconstitucionalidade invocadas, deverá o douto acórdão proferido ser
reformado.”
Em resposta, o Exmo. Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça negou a
pretensão do Reclamante, dizendo, nomeadamente,
“[…]
Por outro lado, a questão da inconstitucionalidade daquela interpretação por
violação do princípio da liberdade contratual, consagrado naquele art. 405° do
C.C., também não foi suscitada anteriormente – e devia tê-lo sido se o A.
entendia que tal interpretação feita desde a 1ª decisão violava a constituição.
[…]”
2. Mais uma vez insatisfeito, veio o ora Reclamante interpor recurso para o
Tribunal Constitucional, o qual não foi admitido por despacho de 25 de Maio de
2007 proferido pelo Exmo. Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça com
fundamento no facto de a suscitação da questão de constitucionalidade ter
ocorrido apenas em sede de reclamação da decisão final, não constituindo esta
“meio processual adequado a tal conhecimento, certo que o recorrente não pode
invocar em seu beneficio a existência de decisão surpresa.”
3. Vem agora A. reclamar do despacho de não admissão invocando os seguintes
fundamentos:
“[…].
3. Com ressalva do muito respeito devido, afigura-se ao RECLAMANTE que aquele
ALTO TRIBUNAL não tem razão.
4. E não terá razão porque:
a) Na esteira do Prof. Marcelo Rebelo de Sousa, o Recorrente pôs em causa a
constitucionalidade do acórdão de que reclamou (cf. Autor cit., págs. 316 e
segts. do Acto Inconstitucional);
b) Foi a interpretação feita pelo STJ que o Reclamante pôs em causa, a qual, no
seu modesto entender não foi feita em conformidade com a Constituição.
5. Tendo-se em conta o exposto, o Reclamante não podia invocar a
inconstitucionalidade de um acórdão antes de proferido nem invocar a
desconformidade com a Constituição de uma interpretação ainda não feita.
Termos em que o recurso deverá ser admitido.”
O Representante do Ministério Público neste Tribunal Constitucional
pronunciou-se no sentido de a presente reclamação carecer manifestamente de
fundamento por não ter sido formulada qualquer questão de constitucionalidade
normativa, imputando o Reclamante a inconstitucionalidade directamente ao
Acórdão recorrido.
Dispensados os vistos por se entender que a questão a resolver é simples, cumpre
apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Em sede de reclamação sobre não admissão do recurso de constitucionalidade
interposto compete a este Tribunal, mais do que apreciar a correcção do despacho
de não admissão do mesmo, verificar se se encontram satisfeitos os respectivos
pressupostos de modo a que o mesmo possa ser conhecido. Como se escreveu no
Acórdão n.º 178/95, publicado no Diário da República, II Série, de 21 de Junho
de 1995, “destinam-se as reclamações sobre não admissão dos recursos intentados
para o Tribunal Constitucional a verificar a eventual preterição da devida
reapreciação, pelo Tribunal Constitucional, de uma questão de
constitucionalidade, em sede de recurso de constitucionalidade. Mais do que
apreciar a fundamentação do despacho de indeferimento do recurso, há, pois, que
verificar o preenchimento dos requisitos de recurso de constitucionalidade que
se pretendeu interpor.”
Vejamos então se nos autos se encontram preenchidos os pressupostos do recurso
de constitucionalidade de modo a ajuizar se houve ou não, de facto, preterição
de pronúncia devida deste Tribunal Constitucional.
5. O conhecimento de recurso interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea
b) da Lei do Tribunal Constitucional pressupõe a suscitação, pelo interessado,
de inconstitucionalidade de uma norma (ou segmento normativo) durante o
processo, constituindo tal norma o fundamento (ratio decidendi) da decisão
recorrida, bem como o prévio esgotamento dos recursos ordinários.
No que concerne ao momento processual em que ocorreu a suscitação da questão de
constitucionalidade, é o próprio Reclamante a referir, no requerimento de
interposição de recurso, que “as inconstitucionalidades foram arguidas no
requerimento de reclamação do acórdão recorrido”.
Ora, como resulta dos artigos 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição, e 70.º,
n.º 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional, a questão de
constitucionalidade deve ser suscitada durante o processo.
Esta expressão tem sido objecto de jurisprudência pacífica e reiterada deste
Tribunal, entendendo-se a suscitação em sentido funcional, de modo a que o
tribunal recorrido ainda possa conhecer da mesma antes de esgotado o respectivo
poder jurisdicional o que sucede, precisamente, em regra, com a prolação da
sentença, nos termos do artigo 666.º, n.º 1, do Código de Processo Civil
(confiram-se, a título de exemplo, os Acórdãos n.ºs 62/85, 90/85, e 450/87,
publicados, respectivamente, no Diário da República, II Série, de 31 de Maio de
1985 e 11 de Julho de 1985, e nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 10.º
volume, pp. 573 e seguintes).
Assim, a reclamação do acórdão recorrido já não constitui momento adequado para
proceder à suscitação de inconstitucionalidade para efeitos de conhecimento do
recurso de constitucionalidade intentado, não ocorrendo nos autos nenhuma
situação de excepcionalidade que pudesse tornar inexigível ao
Reclamante-Recorrente o cumprimento de tal ónus processual.
6. Mas, mesmo que se admitisse que a suscitação da constitucionalidade efectuada
em requerimento de reclamação de acórdão constituía um modo adequado e atempado
de cumprir tal requisito – o que apenas se concebe para efeitos meramente
argumentativos – o certo é que, ainda assim, o presente recurso nunca poderia
ter sido admitido.
De facto a inconstitucionalidade é imputada ao Acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça, isto é, à decisão judicial propriamente dita, e não a uma determinada
norma jurídica. Ora, não configurando o recurso de constitucionalidade, em
qualquer uma das suas modalidades, uma espécie de “amparo constitucional”, o
objecto do mesmo apenas poderá incidir sobre a apreciação, às luz das regras
jurídico-constitucionais, de um juízo normativo efectuado pelo tribunal
recorrido. Com efeito, o nosso sistema de fiscalização de normas jurídicas não
permite que se indague da constitucionalidade da decisão judicial, sendo apenas
sindicáveis as normas (ou interpretações normativas) que configurem a ratio
decidendi do litígio.
O Reclamante é muito claro quando pede que seja declarada a
“inconstitucionalidade do acórdão proferido” não invocando, em momento algum do
processo, qualquer questão de constitucionalidade de qualquer norma (ou uma sua
dimensão interpretativa) de forma a adequadamente convocar a pronúncia do
Tribunal Constitucional ao abrigo do recurso previsto no citado artigo 70.º, n.º
1, alínea b) – limita-se a afrontar a decisão recorrida, imputando-lhe o vício
de inconstitucionalidade.
III – Decisão
Pelo exposto, acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional,
em indeferir a presente reclamação.
Custas pelo Recorrente, fixando o imposto de justiça em 20 UCs, sem prejuízo de
beneficiar de apoio judiciário na modalidade de dispensa total de taxa de
justiça e demais encargos com o processo.
Lisboa, 26 de Setembro de 2007
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos