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Processo n.º 33/07
1.ª Secção
Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
I.
Relatório:
1.
A. foi condenada no Tribunal de Vila Nova de Famalicão pela prática dos crimes
de auxílio à imigração ilegal, previsto e punido no artigo 134.º-A do
Decreto-Lei n.º 244/98 de 8 de Agosto e de lenocínio, na forma continuada,
previsto e punido no artigo 170º n.º 2 do Código Penal. Recorreu do acórdão
condenatório para a Relação do Porto e, na motivação do recurso, suscitou, para
além do mais, as seguintes questões de constitucionalidade:
– a autorização legislativa concedida pelo Lei n.º 22/2002 de 21 de Agosto não
habilitava o Governo a criminalizar o favorecimento à permanência ilegal de
cidadãos estrangeiros, pelo que o Decreto-Lei n.º 34/2003 de 25 de Fevereiro,
nesta parte, e ao dar nova redacção ao artigo 134º-A n.º 2 do Decreto-Lei n.º
244/98, seria organicamente inconstitucional por violação do artigo 165º n.º 1
alínea c) da Constituição;
– entendendo-se que a Lei de Autorização dava cobertura àquela alteração, então
a inconstitucionalidade residiria na própria Lei n.º 22/2002, porque a mesma não
definia, com o necessário rigor, o sentido da autorização legislativa, o que
seria violador do artigo 165º n.º 2 da Constituição;
– ao considerar como crime de auxílio à entrada em Portugal de cidadãs
brasileiras sem visto e com propósito de exercerem a prostituição, o tribunal
faria uma interpretação analógica das disposições contidas nos artigos 13º n.ºs
1 e 2 alínea b), 134º-A n.ºs 1 e 2 e 136º n.º 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 244/98, o
que seria inconstitucional por violação do artigo 29º n.º 1 da Constituição da
República Portuguesa.
– o artigo 170º n.º 1 do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º
65/98 de 2 de Setembro, enferma de inconstitucionalidade material por violação
do artigo 18º n.º 2 da Constituição.
1.1.
Por acórdão de 15 de Fevereiro de 2006 a Relação concedeu,
aliás, parcial provimento ao recurso, mas não julgou procedente qualquer uma das
questões de inconstitucionalidade referidas pelo recorrente.
No que agora interessa, disse:
“ (…)
B.
a) Sustenta a recorrente a inconstitucionalidade orgânica da Lei de Autorização
nº 22/2002, de 21 de Agosto, por ofensa da reserva relativa de competência
legislativa da Assembleia da República, logo, do art. 165º, nº 1, al. c), da
Constituição da República Portuguesa, na medida em que a aludida Lei não tinha o
sentido nem a extensão de autorizar o governo a incriminar o auxílio à
permanência ilegal de estrangeiros em território nacional.
Vejamos se lhe assiste razão:
O texto original do art. 134º do DL nº 244/98, de 8 de Agosto, dispunha o
seguinte:
1 - Quem favorecer ou facilitar, por qualquer forma, a entrada irregular de
cidadão estrangeiro em território nacional será punido com prisão até três anos.
2 - Se o agente praticar as condutas referidas no número anterior com intenção
lucrativa, a prisão será de 1 a 4 anos.
3 - A tentativa é punível.
Entretanto, na sequência de Parecer do Parlamento Europeu, o Conselho da União
Europeia adoptou a Directiva nº 2002/90/CE, de 28 de Novembro de 2002, relativa
à definição do auxílio à entrada, ao trânsito e à residência irregulares, cujo
art. 1º, na parte que agora interessa considerar, prevê que
1. Os Estados-Membros devem adoptar sanções adequadas:
(…)
b) Contra quem, com fins lucrativos, auxilie intencionalmente uma pessoa que não
seja nacional de um Estado-Membro a permanecer no território de um
Estado-Membro, em infracção da legislação aplicável nesse Estado em matéria de
residência de estrangeiros.
Sem expressamente referir esta directiva, mas tendo-a presente, como claramente
decorre do âmbito da autorização legislativa, a Assembleia da República
autorizou o Governo a alterar o regime de entrada, permanência, saída e
afastamento de cidadãos estrangeiros em território nacional, através da Lei nº
22/2002, de 21 de Agosto.
O art. 1º deste diploma, sob a epígrafe objecto, dispõe que
É concedida ao Governo autorização para alterar o regime de entrada,
permanência, saída e afastamento de cidadãos estrangeiros em território
nacional.
Por seu turno, o art. 2º, estabelecendo o sentido e extensão da autorização
legislativa, dispõe, além do mais, o seguinte:
A presente lei de autorização tem como sentido e extensão autorizar o Governo a:
(…)
o) aperfeiçoar o regime sancionatório das infracções criminais associadas ao
fenómeno da imigração ilegal, criando novos tipos criminais, designadamente no
sentido de criminalizar o trânsito ilegal de cidadãos estrangeiros em território
nacional e agravar as medidas das penas aplicáveis.
(…)
O alcance e sentido da autorização legislativa deverá ser encontrado através da
análise do diploma de autorização no seu conjunto, avaliando as diversas normas
em que aquele se decompõe numa perspectiva dinâmica, em interacção entre si.
Na tese sustentada pela recorrente, a incriminação do auxílio à permanência
ilegal de estrangeiros em território nacional excede o âmbito da Lei de
autorização legislativa.
Colhe-se, no entanto, desde logo no art. 1º da Lei nº 22/2002, que a finalidade
da autorização legislativa foi também a de permitir ao Governo alterar o regime
de permanência de cidadãos estrangeiros em território nacional.
Por seu turno, a al. o) do art. 2º afasta qualquer dúvida relativamente à
intenção da Assembleia da República, de autorizar a criminalização do trânsito
ilegal de cidadãos estrangeiros, ao prever a criação de “…novos tipos criminais,
designadamente no sentido de criminalizar o trânsito ilegal de cidadãos
estrangeiros em território nacional…”.
O trânsito (substantivo) - acto de transitar (verbo) - tem subjacente a noção de
“estar em movimento”, ou de “passagem”. E nessa medida o trânsito a que alude
aquela norma é essencialmente o trânsito de cidadãos estrangeiros a caminho do
país de destino (passagem).
O art. 134º do DL nº 244/98, de 8 de Agosto, não distinguia entre entrada,
permanência e trânsito, o que não significa, no entanto, que a “permanência” e o
“trânsito” ilegais de cidadãos estrangeiros fossem indiferentes. Simplesmente,
eram apenas puníveis como decorrência necessária da “entrada” irregular, pois
que - afirmação quase tautológica - só haveria permanência ou trânsito irregular
de estrangeiros em Portugal após a respectiva entrada no território nacional.
Como se referiu supra, a Directiva nº 2002/90/CE advertiu os Estados-Membros
para a necessidade de criminalização do auxílio à permanência ilegal.
A Lei nº 22/2002 autorizou o Governo a alterar o regime de permanência de
cidadãos estrangeiros em Portugal, assim como o autorizou a aperfeiçoar o regime
sancionatório das infracções criminais associadas ao fenómeno da imigração
ilegal, encontrando aqui manifesto cabimento a criminalização do auxílio à
permanência ilegal.
No uso desta autorização legislativa, veio a ser publicado o DL nº 34/2003, de
25 de Fevereiro, que aditou ao DL nº 244/98 o art. 134º-A, (para o qual
transitou, com alterações, a disciplina anteriormente constante do art. 134º),
com a seguinte redacção:
1 - Quem favorecer ou facilitar, por qualquer forma, a entrada ou o trânsito
ilegais de cidadão estrangeiro em território nacional é punido com prisão até
três anos.
2 - Quem favorecer ou facilitar, por qualquer forma, a entrada, a permanência ou
o trânsito ilegais de cidadão estrangeiro em território nacional, com intenção
lucrativa, é punido com pena de prisão de 1 a 4 anos.
3 - A tentativa é punível.
4 - As penas aplicáveis às entidades referidas no nº 1 do art. 134º são as de
multa, cujos limites mínimo e máximo são elevados ao dobro, ou de interdição do
exercício da actividade de um a cinco anos.
Conforme expressamente consta dos respectivos preâmbulo e art. 1º, o diploma em
questão procedeu à transposição para o direito interno do disposto na Directiva
2002/90/CE, do Conselho, de 28 de Novembro, relativa à definição do auxílio à
entrada, ao trânsito e à residência irregulares, e na decisão quadro, do
Conselho, de 28 de Novembro de 2002, relativa ao reforço do quadro penal para a
prevenção do auxílio à entrada, ao trânsito e à residência irregulares.
Assim, porque abrangida pela autorização legislativa a criminalização do auxílio
à permanência ilegal de cidadãos estrangeiros em território nacional, nos termos
supra expostos, não se mostra ferida de inconstitucionalidade orgânica.
b) Por outro lado, não são absolutamente correctas as afirmações, expendidas
pela recorrente, de que as cidadãs brasileiras identificadas nos factos provados
não necessitavam de qualquer visto para entrar em Portugal, estando abrangidas
pela excepção da al. b) do nº 3 do art. 13º do DL nº 244/98, ou que a regra, no
que diz respeito aos brasileiros, é a permissão da sua entrada em território
português.
O Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta entre a República Portuguesa e a
República Federativa do Brasil, aprovado pela Resolução da Assembleia da
República nº 83/2000, de 14 de Dezembro, não liberalizou totalmente a entrada de
cidadãos brasileiros em Portugal, eliminando, relativamente a eles, qualquer
controle ou limitação.
Na verdade, dispõe o respectivo art. 7º, nº 1, que
Os titulares de passaportes comuns válidos de Portugal ou do Brasil que desejem
entrar em território da outra parte contratante para fins culturais,
empresariais, jornalísticos ou turísticos, por períodos de até 90 dias, são
isentos de visto.
Ou seja, apenas constitui regra a permissão de entrada em território português
aos brasileiros que aqui se desloquem no âmbito das previsões legalmente
estabelecidas no referido Tratado. Interpretar a última norma transcrita como
autorizando a entrada em Portugal, sem qualquer controle ou limitação, de
cidadãos de nacionalidade brasileira, significaria atribuir-lhe um alcance que
ela manifestamente não tem - nem nunca esteve na intenção das Partes
Contratantes - esvaziando-a de sentido útil.
E na verdade, as cidadãs brasileiras identificadas nos factos provados não
vieram para Portugal para quaisquer fins culturais, empresariais, jornalísticos
ou turísticos; vieram para se dedicarem à prostituição, finalidade não abrangida
pela norma citada, pelo que se não poderá afirmar, sem manifesta subversão do
sentido da lei, que ao abrigo daquela disposição legal estavam autorizadas a
entrar em Portugal sem visto.
Nem se diga, por outro lado, que esta interpretação implica extensão analógica
das disposições contidas nos arts. 13º, nºs 1 e 2, al. b), 134º-A, nºs 1 e 2, e
136º, nºs 1 e 2, do DL nº 244/98.
A recorrente “desconstruiu” habilmente a norma do art. 7º, nº 1, do Tratado para
retirar esta conclusão. Conclusão que não colhe, no entanto, uma vez que a
desnecessidade ou dispensa do visto para entrada no território nacional se afere
em função da finalidade visada com a entrada no país, isto é, afere-se a priori.
É o que claramente resulta da lei:
Os titulares de passaportes comuns válidos de Portugal ou do Brasil que desejem
entrar em território da outra parte contratante para fins culturais,
empresariais, jornalísticos ou turísticos, por períodos de até 90 dias, são
isentos de visto (sublinhados nossos).
As cidadãs brasileiras cuja entrada em Portugal a recorrente promoveu tinham a
prévia intenção de aqui se dedicarem à prostituição.
Como este fito não se inclui em qualquer das finalidades previstas na lei como
fundamento da isenção de visto, não estavam dispensadas de obter visto para
entrar em Portugal; visto esse que, se porventura requeressem denunciando a
verdadeira intenção da entrada, não lhes seria, certamente, concedido.
Ou seja, a entrada em Portugal dessas cidadãs brasileiras foi ilegal e para
concluir por esta forma não há que fazer qualquer interpretação analógica da
lei, mas apenas que a interpretar com o sentido útil que esta oferece ao
intérprete.
Esta interpretação não viola, pois, o art. 29º da Constituição da República
Portuguesa, pelo que também esta arguição de inconstitucionalidade não encontra
suporte.
(…)
D.
Apreciemos de seguida a questão da apontada inconstitucionalidade do art. 170º,
nº 1, do Código Penal.
Como a própria recorrente reconhece, a jurisprudência dominante considera que a
norma em apreço incorpora bens jurídicos merecedores de tutela criminal e, nessa
medida, não ofende a constituição.
Cita, não obstante, em prol da tese por si sustentada, as posições assumidas por
Figueiredo Dias e por Costa Andrade/Maria João Antunes.
As longas transcrições constantes da douta motivação do recurso espelham as
correntes académicas em debate e a esse respeito não haverá muito a acrescentar.
De todo o modo, remetendo para as posições explanadas na motivação do recurso,
no que a elas concerne, e cientes de que argumentos há a favor das duas teses em
confronto, tomaremos posição sobre a querela de fundo, mas não sem antes
chamarmos à colação outro académico ilustre, porventura mais preocupado com a
essência do direito do que com as suas manifestações concretas e pontuais.
Escreve Castanheira Neves “… o direito seja em parte chamado à solução de
conflitos de interesses dando preferência a uns e sacrificando (relativa e
imediatamente) outros. E não pode negar-se, também por outro lado, que estes
interesses se encontram muitas vezes já aferidos, no seu valor relativo, pela
escala de valores que informa o contexto socio-cultural e moral daquela
sociedade real em que os interesses são afirmados. Poderíamos então dizer que
esta escala de valores nos oferece o primeiro critério, a primeira aproximação
do princípio da justiça.
(…)
Ordem social justa terá de ser, assim, aquela que se constitua pela convivência
de homens mutuamente justificados na fruição de certos valores e no
prosseguimento de particulares interesses.
(…)
Só no intercâmbio existencial com os outros (na comunicação) - no cultivo dos
valores que só ele permite, no desenvolvimento de potencialidades pessoais que
só ele suscita e estimula, no enriquecimento moral e cultural que provém a cada
um das disponibilidades morais e culturais dos outros, na afirmação e
robustecimento da personalidade que só a dialéctica “eu” e “tu” determina - o
ser autónomo e pessoal vem à sua epifania, só aí e por aí ele pode ser um “eu”
próprio …”
(…)
…pelo que anularíamos pura e simplesmente a legitimidade do acesso a esse
património se não concorrêssemos para os outros com as nossas possibilidades e
contributos pessoais. E da comunidade, enquanto condição ontológica, infere-se,
funda-se também aí, um princípio ou exigência de co-responsabilidade (moral ou
humana em geral) - nós somos responsáveis pelo ser dos outros, e os outros são
responsáveis pelo nosso ser”.
Serve a transcrição que antecede para introduzir a afirmação de que rejeitamos
as teses que acentuam o pendor moralista da norma e invocam a necessidade de
absoluta separação entre a moral e o direito, para encontrar nesse argumento a
vertente de inconstitucionalidade, posto que reconhecemos que o edifício do
direito, enquanto modo de regulamentação da organização social, assenta, todo
ele, num património ético e moral construído ao longo da história da humanidade,
evidenciando conceitos hoje reconhecidamente irrenunciáveis, por inerentes à
própria ideia de civilização. Muitas das normas penais hoje postergadas pela
generalidade dos sistemas jurídicos radicam historicamente na ética e na moral,
reflexo dos conceitos fundamentais do “bem” e do “mal”. Princípios tão
simplesmente intuíveis como a proibição de matar ou de furtar, são, afinal, a
expressão normativa de valores que antes de erigidos à categoria de lei em
sociedades já evoluídas, foram simples expressão ética imposta pela necessidade
de convívio pacífico entre os membros das sociedades mais primitivas.
Posto isto, regressando ao fio condutor da questão, transcreveremos parte do
texto do Acórdão do TC nº 144/2004, de 10 de Março (aliás, já abundantemente
citado nos autos), sem inovar, mas expurgando-o das abundantes citações que o
acompanham.
Aí se diz que “…é amplamente aceite que o Direito e a Moral, embora a partir de
perspectivas diferentes, fazem parte de uma unidade mais vasta.
Assim, tanto quem procure em valores morais a legitimação do Direito, como quem
acentue a distinção entre Moral e Direito, reconhecerá, inevitavelmente, que
existem bens e valores que participam das duas ordens normativas. Mesmo as
posições mais favoráveis à autonomia do Direito não negam que possam existir
valores morais tutelados também pelo Direito, segundo a lógica deste e, por
força dos seus critérios. Porém, questão prévia a tal problemática e decisiva no
presente caso, é a de saber se a norma do artigo 170º, nº 1, do Código Penal
apenas protege valores que nada tenham a ver com direitos e bens consagrados
constitucionalmente, não susceptíveis de protecção pelo Direito, segundo a
Constituição portuguesa.
Ora, a resposta a esta última questão é negativa, na medida em que subjacente à
norma do artigo 170º, nº 1, está inevitavelmente uma perspectiva fundamentada na
História, na Cultura e nas análises sobre a Sociedade segundo a qual as
situações de prostituição relativamente às quais existe um aproveitamento
económico por terceiros são situações cujo significado é o da exploração da
pessoa prostituída. Tal perspectiva não resulta de preconceitos morais mas do
reconhecimento de que uma Ordem Jurídica orientada por valores de Justiça e
assente na dignidade da pessoa humana não deve ser mobilizada para garantir,
enquanto expressão de liberdade de acção, situações e actividades cujo
“princípio” seja o de que uma pessoa, numa qualquer dimensão (seja a
intelectual, seja a física, seja a sexual), possa ser utilizada como puro
instrumento ou meio ao serviço de outrem. A isto nos impele, desde logo, o
artigo 1º da Constituição, ao fundamentar o Estado Português na igual dignidade
da pessoa humana. E é nesta linha de orientação que Portugal ratificou a
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as
Mulheres (Lei nº 23/80, em D.R., I Série, de 26 de Julho de 1980), bem como, em
1991 a Convenção para a Supressão do Tráfico de Pessoas e de Exploração da
Prostituição de Outrem (D.R., I Série, de 10 de Outubro de 1991).
Os argumentos que antecedem evidenciam, a nosso ver, a constitucionalidade do nº
1 do art. 170º do Código Penal, pelo que passaremos de imediato à questão
seguinte.
2.
Depois de tentar, sem êxito, impugnar este aresto no Supremo Tribunal de
Justiça, a arguida recorreu para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea
b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro (LTC), pretendendo
ver apreciadas as questões de inconstitucionalidade suscitadas no recurso que
interpôs para a Relação da decisão condenatória da 1ª instância.
2.1.
Neste Tribunal apresentou alegação que concluiu do seguinte modo:
“1. A alteração introduzida no DL 244/98 pelo DL 34/2003 relativa ao auxílio à
permanência ilegal de estrangeiros em território nacional não respeitou a Lei de
Autorização nº 22/2002, de 21 de Agosto, cuja alínea o) do art. 2º não tinha o
sentido nem a extensão de autorizar o Governo a incriminar esse tipo de actos.
2. Daqui resulta que o nº 2 do art. 134º-A do DL 244/98, de 8 de Agosto, na
redacção do DL 34/2003, de 25 de Fevereiro, está ferido de inconstitucionalidade
orgânica por ofensa do disposto na al. c) do nº 1 do art. 165º CRP.
3. Caso se entenda que a incriminação inovadora do auxílio à permanência ilegal
está coberta pela fórmula não taxativa da citada alínea o), interpretada como
apenas exemplificativa da criação de novos tipos criminais, nem por isso deixa
de ofender a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da
República, uma vez que, assim interpretada, a norma da al. o) do art. 2º da Lei
nº 22/2002, de 21 de Agosto, não respeita a exigência de definir com rigor o
sentido da autorização concedida ao Governo e será ela própria inconstitucional,
por violação do comando contido no nº 2 do artº 165º CRP, como deve ser
declarado.
4. A interpretação, que vingou nas instâncias, que considera crime o auxílio à
entrada em Portugal de cidadãs brasileiras, sem visto e com o propósito de
exercerem a prostituição, implica a extensão analógica das disposições contidas
nos arts 13º, n.ºs 1 e 2, al. b), 134º-A, n.ºs 1 e 2, e 136º, n.ºs 1 e 2, do DL
244/98, de 8 de Agosto, na redacção resultante do DL 34/2003, de 25 de
Fevereiro, sendo essas normas, assim interpretadas, inconstitucionais, por
ofensa do art. 29º CRP.
5. O art. 170º, n.º 1, do Código Penal, com a redacção da Lei nº 65/98, de 2 de
Setembro, é inconstitucional, por ofensa do disposto no nº 2 do art. 18º da
CRP.”
2.2.
Por seu turno, o representante do Ministério Público neste Tribunal
contra-alegou, concluindo:
“1º
Quer a norma do artigo 134º-A do Decreto-Lei nº 34/2003, de 25 de Fevereiro, ao
introduzir alterações e aditamentos ao Decreto-Lei nº 244/98, de 8 de Agosto, em
matéria de favorecimento à permanência ilegal de cidadãos estrangeiros, quer a
norma da alínea o) do artigo 2º da respectiva Lei de autorização legislativa nº
22/02, de 21 de Agosto, estão em conformidade com a Constituição, não violando
qualquer dos seus preceitos, designadamente o artigo 165º, nº i, alínea e) e n.º
2.
2º
A norma do artigo 170º, nº 1 do Código Penal, relativo ao crime de lenocínio,
não viola o disposto no artigo 18º, nº2 da Constituição.
3º
Por não configurar uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa,
não deve o Tribunal Constitucional conhecer da matéria alegadamente violadora do
artigo 29º da Lei Fundamental.
4º
Termos em que não deverá proceder o presente recurso”.
2.3.
O relator determinou, em 2 de Maio de 2007, que a recorrente fosse convidada a
responder à questão prévia suscitada pelo Ministério Público quanto ao não
conhecimento do recurso na parte relativa à inconstitucionalidade dos artigos
13º n.ºs 1 e 2 alínea b), 134º n.ºs 1 e 2 e 136º n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º
244/98, por violação do artigo 29º da Constituição da República (ex vi artigos
3º n.º 3, 704º n.º 2 e 702º n.º2 todos do Código de Processo Civil).
Todavia, a recorrente não apresentou resposta.
Cumpre apreciar e decidir.
II.
Fundamentação:
3.
Comecemos pela referida questão prévia suscitada pelo
Ministério Público na sua contra-alegação, à qual, como se disse, a arguida não
deu resposta.
Defende a recorrente que a interpretação do Tribunal recorrido
que considera crime o auxílio à entrada em Portugal de cidadãs brasileiras, sem
visto e com o propósito de exercerem a prostituição, implica a aplicação por
extensão analógica das disposições contidas nos artigos 13º n.ºs 1 e 2, alínea
b), 134º-A n.ºs 1 e 2 e 136º n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 244/98 de 8 de
Agosto, na redacção resultante do Decreto-Lei n.º 34/2003 de 25 de Fevereiro,
resultado que acarretaria a inconstitucionalidade da dita interpretação, por
ofensa do disposto no artigo 29º da Constituição.
A verdade, porém, é que não ocorreu a situação de aplicação
analógica da norma penal que a recorrente censura.
Sustenta a recorrente que a aplicação ao seu caso das normas contidas no
Decreto-Lei n.º 244/98 de 8 de Agosto que considera crime o auxílio à entrada em
Portugal de cidadãs brasileiras, sem visto, com o propósito de exercerem a
prostituição, é inconstitucional, por ofensa ao disposto no artigo 29º n.º 1 da
Constituição da República.
Vejamos o que estabelecem as normas que regem esta matéria –
artigos 13º, n.ºs 1 e 2 alínea b); 134º n.ºs 1 e 2 e 136º n.º 1 e 2 do
Decreto-Lei n.º 244/98 de 8 de Agosto.
Artigo 13.º
(Visto de entrada)
1 - Para a entrada em território nacional devem igualmente os estrangeiros ser
titulares de visto válido e adequado à finalidade da deslocação concedido nos
termos do presente diploma ou pelas competentes autoridades dos Estados Partes
na Convenção de Aplicação.
2 – O visto habilita o seu titular a apresentar-se num posto de fronteira e a
solicitar a entrada no país.
3 – Podem, no entanto, entrar no país sem visto:
a) (…)
b) Os estrangeiros que beneficiem do referido regime nos termos de instrumentos
internacionais de que Portugal seja parte.
Artigo 134.º
(Auxílio à imigração ilegal)
1 – Quem favorecer ou facilitar, por qualquer forma, a entrada irregular de
cidadão estrangeiro em território nacional será punido com prisão até 3 anos.
2 – Se o agente praticar as condutas referidas no número anterior com intenção
lucrativa a prisão será de 1 a 4 anos.
3 – A tentativa é punível.
Artigo 136.º
(Entrada e permanência ilegal)
1 – Considera-se ilegal a entrada de estrangeiros em território português em
violação do disposto nos artigos 9.º, 10.º, 12.º, 13.º e 25.º, n.ºs 1 e 2.
2 – Considera-se ilegal a permanência de estrangeiros em território português
quando esta não tenha sido autorizada de harmonia com o disposto no presente
diploma ou na lei reguladora do direito de asilo.
A única norma que, de entre as reguladoras da situação em
apreço, poderia permitir a entrada sem visto no território nacional de cidadãos
estrangeiros, para que tal facto não fosse crime, é a da alínea b) do n.º 3 do
artigo 13º. Todavia, o instrumento internacional que rege, neste capítulo, as
relações entre os dois países é o Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta,
aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º 83/2000 de 14 de
Dezembro, que, no que a este particular diz respeito, dispõe:
Artigo 7.º
1 – Os titulares de passaportes comuns válidos de Portugal ou do Brasil que
desejem entrar no território da outra parte Contratante para fins culturais,
empresariais, jornalísticos ou turísticos, por período de até 90 dias, são
isentos de visto.
2 – (…).
Tendo em conta este quadro legal, considerou a decisão
recorrida que, ao conjugar o disposto nos vários preceitos aplicáveis, a
interpretação dita analógica das normas supra transcritas defendida pela
recorrente não ocorreu. Com efeito, diz a decisão:
“(…) Nem se diga, por outro lado, que esta interpretação
implica extensão analógica das disposições contidas nos arts. 13º, nºs 1 e 2,
al. b), 134º-A, nºs 1 e 2, e 136º, nºs 1 e 2, do DL nº 244/98.
A recorrente “desconstruiu” habilmente a norma do art. 7º, nº 1, do Tratado para
retirar esta conclusão. Conclusão que não colhe, no entanto, uma vez que a
desnecessidade ou dispensa do visto para entrada no território nacional se afere
em função da finalidade visada com a entrada no país, isto é, afere-se a priori.
É o que claramente resulta da lei:
Os titulares de passaportes comuns válidos de Portugal ou do Brasil que desejem
entrar em território da outra parte contratante para fins culturais,
empresariais, jornalísticos ou turísticos, por períodos de até 90 dias, são
isentos de visto (sublinhados nossos).
As cidadãs brasileiras cuja entrada em Portugal a recorrente promoveu tinham a
prévia intenção de aqui se dedicarem à prostituição.
Como este fito não se inclui em qualquer das finalidades previstas na lei como
fundamento da isenção de visto, não estavam dispensadas de obter visto para
entrar em Portugal; visto esse que, se porventura requeressem denunciando a
verdadeira intenção da entrada, não lhes seria, certamente, concedido.
Ou seja, a entrada em Portugal dessas cidadãs brasileiras foi ilegal e para
concluir por esta forma não há que fazer qualquer interpretação analógica da
lei, mas apenas que a interpretar com o sentido útil que esta oferece ao
intérprete.”
A decisão recorrida subsumiu a situação fáctica dada como
provada ao teor literal da norma: efectivamente, é o teor do disposto no artigo
7º do Tratado que mais directamente impõe que as cidadãs em causa necessitem de
visto, acarretando o incumprimento do aí estatuído – uma vez que foi dado como
provado que as cidadãs não se encontravam em Portugal para fins culturais,
empresariais, jornalísticos ou turísticos – a tipificação prevista no artigo
134º-A n.º 2 do Decreto-Lei n.º 244/98 de 8 de Agosto. E tal censura penal não
decorre de qualquer interpretação analógica das referidas normas para que nelas
se enquadre a conduta ilícita empreendida.
Como bem referiu o representante do Ministério Público junto deste Tribunal,
“se, na verdade, em algumas situações é difícil distinguir entre interpretação,
processo interpretativo e decisão (...), no caso dos autos parece-nos claro que,
na verdade, o que a recorrente questiona é a própria decisão enquanto aí se
entende que é exigível visto às cidadãs brasileiras que entram no país para se
dedicarem à prostituição”.
A questão posta não é, pois, uma questão de constitucionalidade normativa,
susceptível de ser conhecida pelo Tribunal Constitucional, pois não está em
causa, directa e imediatamente, a interpretação de quaisquer normas com conteúdo
penal.
Em face do exposto, o Tribunal decide não conhecer desta parte do recurso.
4.
Quanto à questão de inconstitucionalidade suscitada a
propósito do artigo 170º do Código Penal, na redacção da Lei n.º 65/98 de 2 de
Setembro, por violação do artigo 18º n.º 2 da Constituição, interessa aqui
essencialmente recordar a jurisprudência deste Tribunal sobre o assunto. Com
efeito, o Tribunal Constitucional já teve ocasião de se pronunciar quanto à
tipificação do crime de lenocínio nos Acórdãos n.ºs 144/2004, 196/2004, 303/2004
e 170/2006 (o primeiro e o terceiro publicados, respectivamente, no Diário da
República, II Série, de 19 de Abril de 2004 e 20 de Julho de 2004 e, os outros,
disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Reafirma-se, no presente aresto, a jurisprudência que deles resulta:
“(…)
“Não se concebe, assim, uma mera protecção de sentimentalismos ou de uma ordem
moral convencional particular ou mesmo dominante, que não esteja relacionada,
intrinsecamente, com os valores da liberdade e da integridade moral das pessoas
que se prostituem, valores esses protegidos pelo Direito enquanto aspectos de
uma convivência social orientada por deveres de protecção para com pessoas em
estado de carência social. A intervenção do Direito Penal neste domínio tem,
portanto, um significado diferente de uma mera tutela jurídica de uma
perspectiva moral, sem correspondência necessária com valores essenciais do
Direito e com as suas finalidades específicas num Estado de Direito. O
significado que é assumido pelo legislador penal é, antes, o da protecção da
liberdade e de uma “autonomia para a dignidade” das pessoas que se prostituem.
Não está, consequentemente, em causa qualquer aspecto de liberdade de
consciência que seja tutelado pelo artigo 41º, nº 1, da Constituição, pois a
liberdade de consciência não integra uma dimensão de liberdade de se aproveitar
das carências alheias ou de lucrar com a utilização da sexualidade alheia. Por
outro lado, nesta perspectiva, é irrelevante que a prostituição não seja
proibida. Na realidade, ainda que se entenda que a prostituição possa ser, num
certo sentido, uma expressão da livre disponibilidade da sexualidade individual,
o certo é que o aproveitamento económico por terceiros não deixa de poder
exprimir já uma interferência, que comporta riscos intoleráveis, dados os
contextos sociais da prostituição, na autonomia e liberdade do agente que se
prostitui (colocando‑o em perigo), na medida em que corresponda à utilização de
uma dimensão especificamente íntima do outro não para os fins dele próprio, mas
para fins de terceiros.
7. Por outro lado, que uma certa “actividade profissional” que tenha por
objecto a específica negação deste tipo de valores seja proibida (neste caso,
incriminada) não ofende, de modo algum, a Constituição. A liberdade de exercício
de profissão ou de actividade económica tem obviamente, como limites e
enquadramento, valores e direitos directamente associados à protecção da
autonomia e da dignidade de outro ser humano (artigos 471º, nº 1 e 61º, nº 1, da
Constituição). Por isso estão particularmente condicionadas, como objecto de
trabalho ou de empresa, actividades que possam afectar a vida, a saúde e a
integridade moral dos cidadãos [artigo 59º, nº 1, alíneas b) e c) ou nº 2,
alínea c), da Constituição]. Não está assim, de todo em causa a violação do
artigo 47º, nº 1, da Constituição. Nem também tem relevância impeditiva desta
conclusão a aceitação de perspectivas como a que aflora no pronunciamento do
Tribunal de Justiça das Comunidades (Sentença de 20 de Novembro de 2001,
Processo nº 268/99), segundo a qual a prostituição pode ser encarada como
actividade económica na qualidade de trabalho autónomo (cf., em sentido crítico,
aliás, Massimo Luciani, “Il lavoro autonomo de la prostituta”, em Quaderni
Costituzionali, anno XXII, nº 2, Giugno 2002, p. 398 e ss.). Com efeito, aí
apenas se considerou que a permissão de actividade das pessoas que se prostituem
nos Estados membros da Comunidade impede uma discriminação quanto à autorização
de permanência num Estado da União Europeia, daí não decorrendo qualquer
consequência para a licitude das actividades de favorecimento à prostituição.
8. As considerações antecedentes não implicam, obviamente, que haja um dever
constitucional de incriminar as condutas previstas no artigo 170º, nº 1, do
Código Penal. Corresponde, porém, a citada incriminação a uma opção de política
criminal (note‑se que tal opção, quanto às suas fronteiras, é passível de
discussão no plano de opções de política criminal – veja‑se Anabela Rodrigues,
Comentário Conimbricense, I, 1999, p. 518 e ss.), justificada, sobretudo, pela
normal associação entre as condutas que são designadas como lenocínio e a
exploração da necessidade económica e social, das pessoas que se dedicam à
prostituição, fazendo desta um modo de subsistência. O facto de a disposição
legal não exigir, expressamente, como elemento do tipo uma concreta relação de
exploração não significa que a prevenção desta não seja a motivação fundamental
da incriminação a partir do qual o aproveitamento económico da prostituição de
quem fomente, favoreça ou facilite a mesma exprima, tipicamente, um modo social
de exploração de uma situação de carência e desprotecção social.
Tal opção tem o sentido de evitar já o risco de tais situações de exploração,
risco considerado elevado e não aceitável, e é justificada pela prevenção dessas
situações, concluindo‑se pelos estudos empíricos que tal risco é elevado e
existe, efectivamente, no nosso país, na medida em que as situações de
prostituição estão associadas a carências sociais elevadas (sobre a realidade
sociológica da prostituição cf., por exemplo, Almiro Simões Rodrigues,
“Prostituição: – Que conceito? – Que realidade?”, em Infância e Juventude,
Revista da Direcção‑geral dos Serviços Tutelares de Menores, nº 2, 1984, p. 7 e
ss., e José Martins Barra da Costa e Lurdes Barata Alves, Prostituição 2001 ...,
ob.cit., supra) não é tal opção inadequada ou desproporcional ao fim de proteger
bens jurídicos pessoais relacionados com a autonomia e a liberdade. Ancora‑se
esta solução legal num ponto de vista que tem ainda amparo num princípio de
ofensividade, à luz de um entendimento compatível com o Estado de Direito
democrático, nos termos do qual se verificaria uma opção de política criminal
baseada numa certa percepção do dano ou do perigo de certo dano associada à
violação de deveres para com outrem – deveres de não aproveitamento e exploração
económica de pessoas em estado de carência social.
(…)
O entendimento subjacente à lei penal radica, em suma, na protecção por meios
penais contra a necessidade de utilizar a sexualidade como modo de subsistência,
protecção directamente fundada no princípio da dignidade da pessoa humana (…)”.
A jurisprudência deste Tribunal considera, assim, que a norma em apreço
incorpora bens jurídicos merecedores de tutela criminal, não ofendendo, nessa
medida, a Constituição.
Nada mais haverá a acrescentar quanto ao juízo proferido na decisão recorrida,
concluindo-se, de novo, pela não inconstitucionalidade do disposto no artigo
170º do Código Penal.
5.
Resta, pois, analisar duas questões de inconstitucionalidade,
ambas relacionadas com a autorização legislativa concedida.
5.1.
Comecemos pela questão centrada na Lei de Autorização Legislativa n.º 22/2002 de
21 de Agosto.
Resulta da leitura do diploma em análise que o Governo pretendeu, entre outras
coisas, revogar o regime das autorizações de permanência, por forma a impor que
a permanência em território nacional passe a depender da concessão de vistos e
de autorizações de residência.
Diz a recorrente que a lei de autorização é inconstitucional, por violação do
artigo 165º n.º 2 da Constituição, por não ter definido o sentido da autorização
concedida ao Governo para legislar.
Como já se viu, a recorrente chega à inconstitucionalidade da referida Lei com
base no entendimento de que, versando sobre matéria de processo criminal, o
legislador age na área de competência reservada da Assembleia da República –
165º, n.º 2 da CRP –, pelo que o Governo só podia editar tal norma munido de
prévia autorização legislativa que definisse o sentido, duração e extensão da
autorização legislativa, o que no caso não ocorreria: o poder executivo só terá
competência para legislar em matéria de tipificação de crimes se, para tal,
estiver autorizado pela Assembleia da República – artigo 165º n.º 1 alínea c) da
Constituição.
Mas, o simples confronto literal dos artigos 1.º (“É concedido ao Governo
autorização para alterar o regime de entrada, permanência, saída e afastamento
de cidadãos estrangeiros em território nacional”) e 2.º, alínea o) (“A presente
lei de autorização tem como sentido e extensão autorizar o Governo a: (…) d)
disciplinara concessão de vistos, aperfeiçoando os mecanismos de controlo da sua
emissão; (…) o) aperfeiçoar o regime sancionatório das infracções criminais
associadas ao fenómeno da imigração ilegal, criando novos tipo criminais,
designadamente no sentido de criminalizar o trânsito ilegal de cidadãos
estrangeiros em território nacional e agravar as medidas das penas aplicáveis
(…) da referida lei de autorização revelam que ao Governo foi explicitamente
conferido o encargo de legislar sobre a matéria em apreço, designadamente
através da fórmula “autorizado a rever” – cfr. a propósito os Acórdãos n.ºs
48/84 e 461/87 (Diário da República, 2ª Série, de 10 de Junho de 1984 e Iª
Série, de 15 de Janeiro de 1988, respectivamente).
Na verdade, se o 'conteúdo essencial da lei de autorização' terá que integrar
os elementos objecto, sentido, extensão e duração da autorização, o certo é que
não pode exigir-se que este conteúdo exprima exaustivamente os elementos típicos
da nova disciplina, caso em que nenhum espaço restaria ao Governo para adoptar
as soluções que se lhe afigurassem adequadas.
É assim que a jurisprudência deste Tribunal tem delineado as exigências quanto
ao sentido da autorização legislativa, por referência aos “princípios” e à
“disciplina jurídica básica” que deve nortear as alterações a introduzir no
ordenamento jurídico – ver, nomeadamente, os Acórdãos do Tribunal Constitucional
n.ºs 213/95; 302/95; 257/97 (publicados no Diário da República, II Série, de 26
de Junho de 1995; de 29 de Julho de 1995; de 2 de Outubro de 1997).
Resulta do texto da Lei n.º 22/2002 de 21 de Agosto, nomeadamente dos seus
artigos 1º e 2º alínea o), que a mesma concedeu ao Governo autorização para,
aperfeiçoando o regime sancionatório até aí vigente, criminalizar as condutas
associadas ao fenómeno crescente da imigração ilegal.
Não restam, pois, dúvidas, que a lei de autorização concedida
para a edição do Decreto-Lei n.º 34/2003, de 25 de Fevereiro é válida, pois nela
é definido, claramente, o sentido e extensão da autorização que nela se contém,
ou seja, aí se encontram condensados os princípios fundamentais a seguir pelo
Governo na definição dos critérios de delimitação substanciais indispensáveis à
respectiva concretização legislativa, não sendo a mesma, por conseguinte, ao
contrário do que defende a recorrente, inconstitucional.
5.2.
Cabe, por último, a apreciação da alegada
inconstitucionalidade orgânica da norma contida no n.º 2 do artigo 134º-A do
Decreto-Lei n.º 244/98 de 8 de Agosto, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei
n.º 34/2003 de 25 de Fevereiro, ao abrigo da autorização contida na Lei n.º
22/2002 de 21 de Agosto.
Alega a ora recorrente que o n.º 2 do artigo 134º-A do Decreto-Lei n.º 244/98 de
8 de Agosto, na redacção do Decreto-Lei n.º 34/2003 de 25 de Fevereiro, está
ferido de inconstitucionalidade orgânica por ofensa do disposto na alínea c) do
n.º 1 do artigo 165º da Constituição.
Sendo a matéria de definição dos tipos criminais da competência legislativa da
Assembleia da República e, tendo-se concluído supra, pela validade
constitucional da Lei de autorização emitida, importará, para dilucidar a
presente questão de constitucionalidade, averiguar se ao emitir o Decreto-Lei
n.º 34/2003 de 25 de Fevereiro visando uma melhor disciplina jurídica do
fenómeno global e complexo da imigração, o Governo legislou dentro dos limites
pré-definidos por aquela.
Da história do diploma, cabe realçar, como bem acentuou o Ministério Público
junto deste Tribunal, que “(…) A Lei nº 22/2002 teve na sua origem na Proposta
de Lei nº 10/IX, podendo ver-se pela exposição de motivos que pretendia
consagrar um regime sancionatório criminal mais adequado a prevenir e reprimir
os actos ilícitos relacionados com a imigração clandestina e com a exploração da
mão-de-obra dos estrangeiros em situação não regularizada, dizendo-se no
articulado (artigo 2º, alínea o)) que se visa aperfeiçoar o regime sancionatório
das infracções criminais associadas ao fenómeno da imigração ilegal, criando
novos tipos criminais e agravando as medidas das penas aplicáveis (Diário da
Assembleia da República, II Série, nº 13/IX/1, de 16 de Junho de 2002).
Constata-se assim, que em relação à redacção final constante da Lei foi
acrescentado: “designadamente no sentido de criminalizar o trânsito ilegal de
cidadão estrangeiro em território nacional”.
Esta nova formulação surgiu durante o processo legislativo, constando já do
Relatório da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e
Garantias (Diário da Assembleia da República, II Série A, nº 21/IX/1, de 13 de
Julho de 2002)
Durante a discussão da Proposta esta matéria mostrou-se consensual e as poucas
intervenções que tiveram lugar foram no sentido de concordância com o que o
Governo propunha (Diário da Assembleia da República, I Série, nº 26/IX/1, de 29
de Junho de 2002). (…)”
O Governo editou pois, o Decreto-Lei nº 34/2003, onde no
preâmbulo, além de se referir sensivelmente nos mesmos termos aquilo que
constava na exposição de motivos da Proposta de Lei, se acrescenta que se
procede à transposição para o direito interno do previsto na Directiva nº
2002/50/CE, do Conselho de 28 de Novembro, relativo à definição do auxílio à
entrada, ao trânsito e à residência irregulares e na decisão quadro do Conselho
de 28 de Novembro de 2002, relativo ao reforço do quadro penal para prevenção do
auxílio à entrada ao trânsito e à residência irregulares (…)”.
5.3.
O artigo 1.º da referida directiva tem a seguinte redacção:
“1. Os Estados-Membros devem adoptar sanções adequadas: (…)
b) Contra quem com fins lucrativos, auxilie intencionalmente uma pessoa que não
sendo nacional do Estado-Membro a permanecer no território de um Estado-Membro,
em infracção da legislação aplicável nesse Estado em matéria de residência de
estrangeiros.”
Com o Decreto-Lei n.º 34/2003 de 25 de Fevereiro, o artigo 134º-A do Decreto-Lei
n.º 244/98 de 8 de Agosto passou a ter a seguinte redacção:
Artigo 134.º
(Auxílio à imigração ilegal)
1 – (…)
2 – Quem favorecer ou facilitar, por qualquer forma, a entrada, a permanência ou
o trânsito ilegais de cidadãos estrangeiros em território nacional, com
intenção lucrativa, é punido com pena de prisão de 1 a 4 anos.
(…)”
Ora, com esta alteração, o favorecimento à entrada, permanência e ou trânsito de
cidadãos estrangeiros, feito ilegalmente, é punido criminalmente. Ou seja, em
virtude da alteração introduzida pelo Governo, o favorecimento à permanência –
que é o que está em causa nos presentes autos – passou a integrar o tipo de
crime de auxílio à imigração ilegal contido no (novo) artigo 134º-A.
Torna-se assim claro que o sentido da autorização legislativa
concedida foi o de criar um programa legislativo mais severo para este tipo de
criminalidade, com agravação das já existentes e adopção de novas incriminações.
Na verdade, este artigo, substancialmente, visou uma real «judicialização» das
condutas ilegais relacionadas com a imigração – mormente com a conduta em apreço
–, tendo o Governo procedido à definição de novos tipos criminais para dar
expressão a um programa que traduz a necessidade de controle e solução, pelos
Estados, do crescente fenómeno migratório ilegal. Ora, a criminalização
do favorecimento à permanência enquadra-se perfeitamente na ideia de combate a
este tipo de criminalidade, resultando num real aperfeiçoamento do regime
sancionatório até então em vigor.
Diz a recorrente que “Caso se entenda que a incriminação inovadora do auxílio à
permanência ilegal está coberta pela fórmula não taxativa da citada alínea o),
interpretada como apenas exemplificativa da criação de novos tipos criminais,
nem por isso deixa de ofender a reserva relativa de competência legislativa da
Assembleia da República, uma vez que, assim interpretada, a norma da al. o) do
art. 2º da Lei nº 22/2002, de 21 de Agosto, não respeita a exigência de definir
com rigor o sentido da autorização concedida ao Governo e será ela própria
inconstitucional, por violação do comando contido no nº 2 do artº 165º CRP, como
deve ser declarado.
Mas se é certo que a lei de autorização emprega a expressão designadamente
[“designadamente no sentido de criminalizar o trânsito], só aparentemente ela
traduz uma fórmula aberta, não taxativa, de enumerar as situações a
criminalizar. A expressão designadamente conjugada com a expressa referência às
situações constantes da autorização legal, fornece ao Governo credencial
parlamentar bastante para editar o tipo criminal em apreço.
Aliás, como salientou o Ministério Público, “mal se compreenderia que o
legislador criminalizasse o favorecimento do simples trânsito e não o fizesse em
relação à permanência (…), pois a criminalização operada pelo legislador do
auxílio à permanência ilegal em território nacional – tal qual como empreendida
no caso sub judicio – se configura como um aperfeiçoamento de um tipo de crime
já existente no artigo 134º do anterior Decreto-Lei n.º 244/98 de 8 de Agosto,
passando a integrar o tipo de crime de auxílio à imigração ilegal – no novo
corpo do artigo 134º-A – certas condutas (nomeadamente, o auxílio à permanência)
que o não eram até aqui.
Não resulta, pois, que esta interpretação das normas contidas na lei de
autorização legislativa n.º 22/2002 de 21 de Agosto, nomeadamente a que resulta
da alínea o) do seu artigo 2º, que permitiu a edição do n.º 2 do artigo 134º-A
do Decreto-Lei n.º 34/2003 de 25 de Fevereiro, seja violadora do disposto no n.º
2 do artigo 165º da Lei Fundamental.
III.
Decisão
Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao
recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta.
Lisboa, 10 de Julho de 2007
Carlos Pamplona de Oliveira
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Maria João Antunes (votei vencida, nos termos da declaração junta, quanto à
questão de inconstitucionalidade reportada ao artigo 170.º do Código Penal)
Rui Manuel Moura Ramos
Declaração de voto
Votei vencida por entender que o artigo 170º, nº 1, do Código Penal, na redacção
dada pela Lei nº 65/98, de 2 de Setembro, é inconstitucional, por violação do
artigo 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
A Lei nº 65/98 alterou a estrutura típica do crime de Lenocínio, previsto no
artigo 170º do Código Penal, eliminando a exigência típica da “exploração duma
situação de abandono ou necessidade”, ao arrepio de uma evolução legislativa, em
matéria de crimes sexuais, que se inscreve num paradigma de intervenção mínima
do direito penal, o ramo do direito que afecta, mais directamente, o direito à
liberdade (artigo 27º, nºs 1 e 2, da CRP). Num paradigma em que a intervenção é
apenas a necessária para a tutela de bens jurídicos (não da moral), que não
obtêm protecção suficiente e adequada através de outros meios de política
social.
Com eliminação daquela exigência típica, o legislador incrimina comportamentos
para além dos que ofendem o bem jurídico da liberdade sexual, relativamente aos
quais não pode ser afirmada a necessidade de restrição do direito à liberdade,
enquanto direito necessariamente implicado na punição (artigos 18º, nº 2, e 27º,
nºs 1 e 2, da CRP).
Como se escreveu no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 211/95 (Diário da
República, II Série, de 24 de Junho de 1995) “o que justifica a inclusão de
certas situações no direito penal é a subordinação a uma lógica de estrita
necessidade das restrições de direitos e interesses que decorrem da aplicação de
penas públicas (artigo 18º, nº 2, da Constituição). E é também ainda a
censurabilidade imanente de certas condutas, isto é, prévia à normativação
jurídica, que as torna aptas a um juízo de censura pessoal.
Em suma, é, desde logo, a exigência de dignidade punitiva prévia das condutas,
enquanto expressão de uma elevada gravidade ética e merecimento de culpa (artigo
1º da Constituição, do qual decorre a protecção da essencial dignidade da pessoa
humana), que se exprime no princípio constitucional da necessidade das penas (e
não só da subsidiariedade do direito penal e da máxima restrição das penas que
pressupõem apenas, em sentido estrito, a ineficácia de outro meio jurídico”
(cf., ainda, no sentido de o artigo 18º, nº 2, ser critério para aferir da
legitimidade constitucional das incriminações, os Acórdãos nºs 634/93, 650/93,
Diário da República, II Série, de 31 de Março de 1994, e 958/96, Diário da
República, II Série, de 19 de Dezembro de 1996).
Maria João Antunes