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Processo n.º 396/06
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa, em
que são Recorrentes o Ministério Público e a Fazenda Pública e Recorrido A. foi
interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na
alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional (L.T.C.), da decisão daquele Tribunal de 03
de Fevereiro de 2006.
2. Por despacho do Chefe de Serviço de Finanças, de 21 de Maio de 1996,
decidiu-se prosseguir com a reversão da execução fiscal contra o ora recorrido,
na qualidade de responsável subsidiário o qual foi citado nos termos dos artigos
246.º do Código de Processo Tributário e 23.º da Lei Geral Tributária.
Deduzida oposição pelo ora Recorrente foi proferido o despacho de fls. 146 e
seguintes, no sentido de “as partes alegarem o que tiverem por conveniente”
sobre a questão de saber se a “reversão pode efectivar-se por efeito de um mero
acto administrativo”, atendendo ao disposto nos artigos 2.º, 13.º, 111.º, 202.º
e 212.º e 20.º e 268.º nº 4, todos da Constituição da República Portuguesa
(C.R.P).
O Ministério Público e a Fazenda Pública pronunciaram-se no sentido de
improcedência da questão de inconstitucionalidade.
3. A sentença recorrida julgou procedente a oposição deduzida, anulando o
despacho de reversão em causa e extinguindo a execução contra o oponente,
decidindo pela seguinte forma a “questão prévia da inconstitucionalidade da
reversão”:
“No caso sub judice, o ora oponente defende que seja julgada procedente a
oposição, por provada, e, em consequência, seja declarada extinta a execução em
relação ao oponente, por se entender que o oponente é parte ilegítima pois não
figura no respectivo título nem é responsável pelo pagamento das dívidas
exequendas.
Quanto à questão prévia da inconstitucionalidade da reversão:
1) A fls. 146-147 dos autos, suscitou-se a questão de, sabendo-se que a execução
decorreu de despacho do Chefe de Serviço de Finanças/Administração Tributária
(vd. fl. 45 dos autos), se apurar se a reversão de que o oponente foi objecto
pode efectivar-se por meio de um mero acto administrativo. Note-se que não se
suscitou qualquer questão quanto à constitucionalidade da responsabilidade
subsidiária dos gerentes e administradores, mas antes quanto à conformidade dos
preceitos que autorizaram a reversão por despacho do Chefe do Serviço de
Finanças (AT) com os princípios constitucionais que garantem: a separação de
poderes; a competência dos Tribunais; a tutela jurisdicional efectiva; o direito
de defesa; e a igualdade de tratamento (tendo presente, p. ex., no direito
privado, o regime aplicável em acções de responsabilidade, e, no direito
público, a competência judicial em casos como os do direito de regresso: vd., p.
ex., Ac. STA de 2/2/1995, Proc. 035151).
Em causa estão os seguintes normativos constitucionais: os artigos 2. ° (Estado
de Direito Democrático), 13.° (Igualdade de tratamento), 111.º (Separação de
poderes); 202.° e 212.° (Competência dos Tribunais), e 20. ° e 268. °, n.º 4
(Tutela jurisdicional efectiva e direito de defesa).
Como se trata de questão que ainda não tinha sido levantada nos autos, as partes
foram convidadas a alegarem o que tivessem por conveniente sobre a mesma (vd.
fl. 147 dos presentes autos).
2) No caso dos autos, a reversão foi efectuada ao abrigo dos artigos 43.°, al.
g) (‘Instaurar os processos de execução fiscal e realizar os actos a eles
respeitantes, salvo o que se dispõe no n.º 2 do artigo 237.°’), 239.°, n.º 2 [‘o
chamamento à execução dos responsáveis subsidiários depende da verificação de
qualquer das seguintes circunstâncias: a) Inexistência de bens penhoráveis do
devedor e seus sucessores; b) Insuficiência do património do devedor para a
satisfação da dívida exequenda e acrescido.’], 13.° (n.º 1: ‘os administradores,
gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de
administração nas empresas e sociedades de responsabilidade limitada são
subsidiariamente responsáveis em relação àquelas e solidariamente entre si por
todas as contribuições e impostos relativos ao período de exercício do seu
cargo, salvo se provarem que não foi por culpa sua que o património da empresa
ou sociedade de responsabilidade limitada se tornou insuficiente para a
satisfação dos créditos fiscais.’) e 246.° (n.º 1: ‘quando a execução reverta
contra responsáveis subsidiários, o chefe de repartição de finanças mandá-los-á
citar todos, depois de obtida informação no processo sobre as quantias por que
respondem.’), todos do CPT (vd. fl. 45 dos autos).
3) Pelas razões que em seguida se expõem, entendo que estes artigos são
inconstitucionais, ao permitirem que o Chefe da Repartição de Finanças decida da
reversão, o que configura clara violação da esfera reservada de competência
judicial, e, por sua vez, a violação: a) do princípio da separação de poderes
(art. 111º CRP) e da competência dos Tribunais (art. 202.° e 212.° CRP); b) do
princípio da tutela jurisdicional efectiva (art. 20.° e 268.°, n.º 4, CRP) e do
direito de defesa (art. 20.° CRP); e c) do princípio da igualdade (art. 13º
CRP).
4) Tendo em consideração o regime legal donde deriva a competência do Chefe da
Repartição de Finanças para efectuar a reversão, verifica-se que, ao tempo do
CPCI, a competência do mesmo decorria do respectivo art. 16.° (se preenchidos os
requisitos constantes do art. 146.°), e que, no âmbito do CPT, a referida
competência decorria dos mencionados artigos 43.°, al. g), 239 °, n.º 2, 13. ° e
246 ° do CPT, que se consideram inconstitucionais.
5) Com efeito, consideram-se, desde logo, inconstitucionais, porque não parece
que se possa afirmar que a reversão pode efectivar-se por meio de mero acto
administrativo. Decorre, aliás, de diversa jurisprudência, o entendimento de que
o despacho de reversão tem a natureza de uma condenação no pagamento de um
montante por responsabilidade extra-contratual — neste sentido, vd., v.g., os
seguintes arestos: ‘1 - A responsabilidade subsidiária dos gerentes e
administradores das sociedades de responsabilidade limitada tem natureza
extracontratual.’ (Ac. TCAN de 31/3/2005, Proc. 00144/04); ‘Sendo as normas
delimitadoras da responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes de
sociedades relativas a responsabilidade extracontratual não pode deixar de se
lhe aplicar a lei vigente no momento em que ocorre o facto gerador da
responsabilidade.’ (Ac. STA de 27/4/2005, Proc. 0576/04); ‘1 - A
responsabilidade subsidiária a que se refere o Dec-Lei 68/87 e o art. 78 do Cód.
Soc. Comerciais tem natureza delitual ou extracontratual.’ (Ac. STA de
17/12/1997, Proc. 022075).
6) Estamos, assim, perante uma situação que a doutrina administrativa
tradicional chamaria de usurpação de poder (vd., sobre este conceito, J. J.
Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada,
3. Ed. Revista, 1993, p. 792). Isto porque, ainda que o acto ora sindicado seja
autorizado por lei, fica claramente levantada a questão da conformidade dos
preceitos que autorizaram a reversão por despacho do Chefe do Serviço de
Finanças com os diversos princípios constitucionais que garantem: a) a separação
de poderes e a competência dos Tribunais; b) a tutela jurisdicional efectiva e o
direito de defesa; e c) a igualdade de tratamento.
7) Por outro lado, não parecem existir dúvidas sobre a caracterização da
reversão como uma ‘ocorrência extraordinária que perturba o movimento normal do
processo’ (José Alberto dos Reis). Assim sendo, este ‘incidente’ deve ser
conhecido, em primeira linha, pelo órgão jurisdicional competente. A este
respeito, vd. o seguinte aresto: ‘como refere Jorge de Sousa, em anotação a este
artigo [art. 151. ° CPPT ≈ art. 237. °, n.º 2, CPT], as matérias cujo
conhecimento é atribuído no n.º 1 deste artigo aos tribunais tributários são as
que exigem uma decisão de carácter jurisdicional. Assim, devem ser conhecidos
pelo tribunal os incidentes que exijam uma decisão de carácter jurisdicional,
considerando-se incidente, no dizer do Prof. José Alberto dos Reis, ‘uma
ocorrência extraordinária que perturba o movimento normal do processo.’ (Ac. STA
de 8/6/2005, Proc. 01244/04).
8) O despacho de reversão ora em causa não configura, pois, uma simples entrada
de novos sujeitos processuais, já de si contrária ao princípio da estabilidade
da instância (vd. art. 268.° CPC), ele configura uma verdadeira acção de
condenação com base em responsabilidade extra-contratual (como nota Jorge Lopes
de Sousa, em CPPT Anotado, 4 Ed., 2003, p. 697, ‘a responsabilidade subsidiária
não visa apenas a defesa directa dos interesses patrimoniais da administração
tributária, mas tem ínsita uma ideia sancionatória’); o título executivo inicial
serve apenas para determinar o montante da responsabilidade. Verifica-se, deste
modo, que, por via da reversão, temos não só novos sujeitos, como também novos
fundamentos que alteram completamente a natureza da execução: esta passa de
execução com base em dívida tributária para uma execução com base em
responsabilidade extracontratual.
9) Na aparente simplicidade do despacho de reversão, o Chefe de Serviço profere
uma condenação no pagamento de uma quantia determinada com fundamento em
responsabilidade extra-contratual. Ora a apreciação desta responsabilidade
exige, pela sua natureza e pelas suas consequências, até para o cônjuge, uma
protecção judicial de 1º grau. No mesmo sentido, vd. a fundamentação para um
caso relativo a custas, perfeitamente transponível para o processo sub judice:
‘IV — A decisão condenatória ou absolutória em custas consubstancia em si mesma
uma «decisão jurisdicional» porque implica a determinação do respectivo
responsável e, eventualmente, a repartição dessa responsabilidade por uma
pluralidade de partes.’ (Acórdão do Tribunal Constitucional de 6/6/1990,
Processo 88-0224).
10) Conclui-se, assim, que a reversão constitui acto situado na esfera de
competência da função jurisdicional. Note-se, aliás, que o STA tem entendido, de
forma pacífica, que apenas é constitucionalmente admissível a atribuição à AT da
prática de actos de natureza não jurisdicional no processo de execução fiscal —
assim, vd., p. ex.: ‘nos processos de execução fiscal, a administração fiscal
tributária apenas poderá praticar actos materialmente administrativos
estando-lhe vedada a prática de actos formal ou materialmente jurisdicionais,
tal como decorre do art. 103. ° n.º 1 da LGT, pois «O processo de execução
fiscal tem natureza judicial, sem prejuízo da participação dos órgãos da
administração Tributária nos actos que não tenham natureza jurisdicional», assim
se revelando clara a opção do legislador. Nestes processos, a intervenção da
Administração Tributária está, pois, confinada à participação na realização do
seu escopo judicial mas sem qualquer intervenção ou ingerência em sede de poder
ou função jurisdicional. Daí que, embora reconhecida à execução fiscal a
natureza judicial, o legislador da Lei Geral Tributária tenha sentido
necessidade de expressamente limitar a actividade da administração tributária
aos actos que, por natureza, não assumam ou revistam natureza de actos
jurisdicionais.’ (Ac. STA de 26/1/2005, Proc. 01890/03).
11) No mesmo sentido, vd., p. ex., o seguinte aresto: ‘I - O art. 103.° da LGT
atribui ao processo de execução fiscal natureza judicial, sem prejuízo da
participação dos órgãos da administração tributária nos actos que não tenham
natureza jurisdicional, sendo garantido aos interessados o direito de reclamação
para o Juiz de execução fiscal dos actos materialmente administrativos
praticados por órgãos da administração tributária, nos termos do número
anterior. II - Este normativo revela uma opção clara do legislador pela natureza
do processo de execução fiscal como processo judicial, como processo que decorre
debaixo de um apertado controlo de legalidade do tribunal e em que a intervenção
da administração tributária está conformada como de simples participação na
realização do seu escopo judicial.’ (Ac. TCAS de 16/12/2004, Proc. 00370/04).
12) A respeito do vício de usurpação de poder em que pode incorrer a AF, vd. o
seguinte aresto: ‘I - O vício de usurpação de poder «consiste na prática, por um
órgão da Administração, de acto incluído nas atribuições do poder legislativo ou
judicial». Reconduz-se à violação do princípio da separação de poderes,
constituindo, no fundo, uma forma de incompetência agravada. [...]. O vício de
usurpação de poder «consiste na prática, por um órgão da Administração, de acto
incluído nas atribuições do poder legislativo ou judicial» (Freitas do Amaral,
in Direito Administrativo, vol. II, pág. 295). Reconduz-se à violação do
princípio da separação de poderes, constituindo, no fundo, uma forma de
incompetência agravada. O que está em causa, no caso sub judice, é a violação da
função jurisdicional, reservada aos tribunais (artigo 202.° da CRP). De acordo
com pacífica doutrina e jurisprudência, a função jurisdicional consiste «na
actividade da resolução, com imparcialidade, à luz do direito constituído, dos
conflitos de interesses ou litígios de natureza pública ou privada», enquanto
que a função administrativa consiste «na realização, pelo Estado, do interesse
de satisfação das necessidades colectivas através da prestação de bens e
serviços» (cfr., por todos, o Parecer do Conselho Consultivo da
Procuradoria-Geral da República n.º 12/92, de 30/3/92 e os acórdãos deste STA de
13/3/2003 e de 23/3/2003, proferidos nos recursos nºs 35 590 (Pleno) e 1 280/02,
respectivamente).’ (Ac. STA de 29/4/2003, Proc. 043/03). Sobre o referido vício,
vd. ainda o Ac. STA de 3/6/2003 (Proc. 045851).
13) Quanto à mencionada violação do direito de defesa, esta concretiza-se a
vários níveis, dado que ao oponente são coarctadas possibilidades de defesa como
as de:
ạ) Provocar a intervenção de terceiros responsáveis solidários, como se prevê
nos artigos 325. ° e ss. do CPC, maxime art. 329. °;
β) Discutir a concorrência de culpas (vd. art. 570. ° Código Civil),
nomeadamente em casos em que a inércia da administração, deixando arrastar as
diligências necessárias para cobrança de dívidas ao devedor original, teve como
consequência facilitar o desaparecimento do património;
γ) Indeferimento liminar (a respeito desta última possibilidade de defesa,
convirá salientar que a sua limitação afecta o direito à segurança e à paz
jurídica ínsito na sua noção de Estado de Direito, e que se traduz em o cidadão
não ser incomodado na sua vida jurídica por processos infundamentados ou mesmo
absurdos — o que só se consegue evitar pelo controlo judicial, em primeira
linha, através do indeferimento liminar das pretensões que sejam manifestamente
inviáveis).
O indeferimento liminar é, recorde-se, um elemento de protecção dos cidadãos
pelo Juiz, que o defende da litigância persecutória e aleatória. Como se sabe,
todo o processo judicial implica, para o demandado, custos, ónus, riscos,
despesas, mesmo nos casos em que o demandante não tem quaisquer probabilidades
de sucesso — assim, o poder/dever do Juiz de indeferir liminarmente (vd. art.
234.°-A, n.º 1, CPC) constitui uma garantia de segurança e de paz jurídica para
o cidadão de que este só será chamado a responder em juízo em litígios
razoavelmente fundamentados. A reversão realizada por despacho administrativo
priva o cidadão desta garantia judicial de primeira linha.
Não parece, por outro lado, que se possa afirmar que a possibilidade de dedução
de oposição à execução garante ao oponente a defesa necessária e, portanto, um
satisfatório controlo judicial do acto ora em causa. Com efeito, haverá que
distinguir a exigência constitucional de uma primeira decisão jurisdicional —
dado que a reversão é um acto que exige um prévio controlo judicial da
legalidade —, da mera possibilidade, ex post, de recurso do acto administrativo
ora sindicado.
14) Convirá ainda lembrar que a exigência constitucional da apreciação judicial
em primeira linha, abarca, naturalmente, casos como os da privação de liberdade,
e outros que impliquem violação ou privação de direitos, liberdades e garantias
pessoais (vd., p. ex., n.º 5 do art. 20.° da CRP), mas também outros casos em
que se configure a lesão de direitos ou interesses legalmente protegidos (vd.
n.º 1 do art. 20.° e n.º 4 do art. 268.° CRP).
É certo que a garantia das vias de recurso (que podemos designar por protecção
judicial de 2º grau) assegura aos cidadãos que os Tribunais terão a última
palavra a dizer sobre as decisões da Administração. Situações, há, porém, em que
a efectiva protecção jurídica e a importância dos direitos dos cidadãos em causa
exigem que não apenas a última decisão mas logo a primeira (a primeira palavra)
caiba ao Juiz (o que podemos designar por protecção judicial de primeiro grau) e
não à Administração. Não basta, nestes casos, a garantia geral da existência de
vias de recurso.
A doutrina alemã utiliza, nesta matéria, o conceito de ‘Richtervorbehalt’, que
podemos traduzir por reserva de Juiz. Para além dos casos expressamente
previstos na Constituição, entende-se que o Juiz deve ser chamado a intervir em
primeiro lugar no interesse de uma protecção jurídica efectiva e para evitar o
risco de uma ausência de rectidão. Na formulação dada por Manfred Wolf, in
Gerichtsverfassungsrecht aller Verfahrenszweige, p. 5: ‘[...] é de reconhecer ao
Juiz a competência da primeira palavra, quando, no interesse de uma efectiva
protecção jurídica, devem ser evitados riscos quanto à rectidão
[Richtigkeitsrisiken] e, por isso, o Juiz que oferece garantias de rectidão
[Richtigkeitsgarantien] inerentes à «jurisdictio» deve ser chamado a intervir
tão cedo quanto possível.’
15) Note-se, também, o reconhecimento daquela exigência em vários casos
particulares de densificação do conceito de Estado de Direito, como os casos do
sigilo bancário (art. 63.°-B, n.º 7, da LGT e art. 146.°-C do CPPT), ou das
providências cautelares de natureza judicial como o arresto (art. 159.°
CPT/138.° CPPT e art. 406.°, n.º 2, CPC) e o arrolamento (art. 162.° CPT/art.
141.° CPPT e art. 424.° CPC).
Repare-se, ainda, a respeito das acima referidas providências cautelares, que o
Juiz ordena, nesses casos, o arresto ou o arrolamento se, respectivamente,
entender que existe ‘uma probabilidade séria de que os patrimónios dos titulares
de bens que servem de garantia de cobrança de créditos tributários [...]
diminuam de valor a ponto de se tornarem insuficientes para cobrança de créditos
tributários’ ou ‘se adquirir a convicção de que sem eles o interesse da Fazenda
Pública na conservação dos bens ou documentos corre sério risco (art. 423.°, n.º
2, do CPC)’ (Jorge Lopes de Sousa, CPPT Anotado, 4ª Ed., 2003, pp. 602 e 610,
respectivamente).
Por maioria de razão, tem de reconhecer-se que a reversão, porque representa
algo muito mais grave do que as supra referidas providências, requer, em 1º
grau, a intervenção do Juiz.
16) Também no domínio do direito público, o exercício do direito de regresso do
Estado para exigir de um funcionário o pagamento de uma quantia — que o Estado
foi obrigado a pagar por culpa do funcionário — só pode ser exercido através dos
Tribunais.
O Estado não pode, por acto administrativo, fazer funcionar o direito de
regresso contra o funcionário e emitir um título executivo contra ele. Necessita
obter a sua condenação em Tribunal. Lembrando o citado Ac. STA de 2/2/1995,
Proc. 035151: ‘O TAC é o competente para conhecer da execução de uma sentença
desse Tribunal, que condenou, em acção de regresso, um funcionário a pagar ao
Estado determinada quantia que este teve de liquidar aos lesados, conforme fora
condenado em anterior acção, em situação de responsabilidade civil
extracontratual decorrente de conduta do Réu ora executado, solidariamente com
ele.’ As mesmas razões de Direito Constitucional se impõem no caso da
responsabilidade subsidiária dos gerentes.
17) Como já se referiu, a participação do responsável subsidiário equivale a uma
alteração dos fundamentos da própria execução, pelo que o simples recurso à
oposição coloca-o numa situação de desvantagem, configurando, assim, uma clara
violação: a) do princípio da tutela jurisdicional efectiva (art. 20.° e 268.°,
n.º 4, CRP) e do direito de defesa (art. 20.° CRP); e b) do princípio da
igualdade (art. 13.° CRP) de tratamento em sede de responsabilidade
extra-contratual.
18) Note-se, por último, que a referida desvantagem é visível não só em matéria
de direito de defesa, como acima se indicou, mas também em matéria de igualdade
de tratamento, se se tiver em conta: a) no direito privado, o regime aplicável
em acções de responsabilidade; b) no direito público, a competência judicial
afirmada em casos como os do direito de regresso (como se verificou no Ac. STA
de 2/2/1995, Proc. 035151), e ainda em Acórdãos do Tribunal Constitucional
relativos a condenações em custas, de que já se fez menção.
19) Verifica-se, pelo que ficou dito, que os artºs. 43º, al. g), 239.°, n.º 2,
13.° e 246.° do CPT e 13.° do Decreto-Lei n.º 103/80, de 9/5 — ao abrigo dos
quais a reversão foi proferida pelo Chefe de Repartição de Finanças —, são
inconstitucionais por violação, pelas razões supra expostas, dos seguintes
artigos da Constituição: art. 13.° (princípio da igualdade), art. 111.º
(princípio da separação de poderes), artigos 202.° e 212.° (competência dos
Tribunais), artigos 20.° e 268.°, n.º 4 (princípio da tutela jurisdicional
efectiva e direito de defesa), pelo que a sua aplicação deve ser recusada pelo
Juiz (vd. art. 204 ° da CRP).
Conclui-se, assim, que o despacho de reversão se fundamenta em disposições que
violam as normas constitucionais citadas, pelo que deve o mesmo ser anulado (vd.
art. 3º, n.º 3, e art. 204.° da CRP).
Pelo exposto, julga-se a presente oposição procedente, anulando-se o despacho de
reversão em causa e extinguindo-se a execução contra o oponente.”
4. O Ministério Público interpôs recurso desta decisão para o Tribunal
Constitucional, ‘porquanto [o Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa], por
considerar inconstitucionais as normas constantes dos artigos 43º alínea g),
239º nº2 e 246º do C.P.T e 13º do Decreto-lei nº 103/80, de 9 de Maio, não as
aplicou, já que se encontrariam em colisão com os artigos 13º, 111º, 202º e
212º, 20º e 268º da C.R.P.”
A Fazenda Pública veio entretanto, a fls. 177, interpor recurso per saltum para
a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, nos
termos dos artigos 280.º a 282.º do CPPT.
Veio, entretanto, posteriormente, a fls. 181 “rectificar” este requerimento e
por invocar a recusa de aplicação das normas dos artigos 43.º alínea g), 239.º,
n.º2 e 246.º do C.P.T e 13.º do Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio, por
alegadamente, violarem os artigos 13.º, 111.º, 202.º, 212.º e 20.º e 268.º, n.º
4 da C.R.P, interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do
disposto nos artigos 70.º, nº 1, alínea a) e 72.º, n.º 1, alínea b) da L.T.C.
Por decisão sumária de fls. 187, o então Juiz Conselheiro Relator considerou
intempestivo o recurso da Fazenda Nacional, pelo que nos termos do artigo 78.º-
A, n.º 1 da L.T.C. decidiu não tomar conhecimento do objecto do mesmo.
5. Notificado para alegar, o Exmo. Magistrado do Ministério Público veio juntar
aos autos a sua alegação, concluindo pela seguinte forma:
“1° Pelas razões expostas no Acórdão n° 160/07, não são inconstitucionais as
normas constantes dos artigos 43° g), 239°, n° 2 e 246° do Código de Processo
Tributário, enquanto permitem operar a reversão contra responsáveis subsidiários
por dívidas fiscais por decisão administrativa.
2° O regime que constava do artigo 13° do Decreto Lei n° 103/80, relativo aos
aspectos procedimentais ou adjectivos de efectivação da responsabilidade
solidária dos gerentes pelas dívidas à segurança social das respectivas
sociedades, consubstanciada na figura da reversão, com ampla possibilidade de
dedução de oposição, através da qual se questionem os pressupostos substanciais
de tal responsabilidade dos gerentes, não afronta o direito de acesso à justiça.
3º Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
6. Notificado para alegar, o recorrido não respondeu.
Decidindo:
II. Fundamentos
7. De harmonia com a decisão recorrida, os artigos 43.º, alínea g), 239.º n.º 2,
13.º e 246.º, n.º1 do Código de Processo Tributário e 23.º, n.º 1 da Lei Geral
Tributária, na parte em que permitem que, por despacho do Chefe de Serviço das
Finanças, se efective a reversão no processo de execução fiscal contra
responsáveis subsidiários por dívidas fiscais, não respeitam os princípios
constitucionais da separação de poderes (artigo 111.º da Constituição) e da
competência dos Tribunais (artigos 202.º e 212.º, ambos da Constituição).
Isto porque a “reversão constitui acto situado na esfera de competência da
função jurisdicional”, uma vez que, “na aparente simplicidade do despacho de
reversão, o Chefe de Serviço profere uma condenação no pagamento de uma quantia
determinada com fundamento em responsabilidade extra contratual”.
A questão é, pois, a de saber se aquela norma viola ou não o princípio de que
compete aos Tribunais o exercício da função jurisdicional e, consequentemente, a
proibição de tal função poder ser atribuída a outros órgãos.
Face ao teor da decisão recorrida resulta, também que os artigos 43.º, alínea
g), 239.º, n.º 2, 13.º e 246.º, n.º1 do Código de Processo Tributário e 23.º,
n.º1 da Lei Geral Tributária, na parte em que permitem que, por despacho do
Chefe de Serviço de Finanças, se efectiva a reversão no processo de execução
fiscal contra responsáveis subsidiários por dívidas fiscais, violam o direito de
defesa e o princípio da tutela jurisdicional efectiva, consagrados nos artigos
20.º e 268.º, n.º 4 da Constituição da República.
8. Ora, sobre estas questões pronunciou-se já o Plenário deste Tribunal
Constitucional, no Acórdão n.º 160/07 de 6 de Março de 2007, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt, pelo que os fundamentos desta decisão do Plenário
são inteiramente transponíveis para a situação em apreço.
Pelo que se passa a transcrever essa fundamentação:
“3.1. A norma que é objecto de apreciação insere-se num modelo de repartição de
competências entre os tribunais tributários e os serviços da administração
fiscal, no que se refere à cobrança coerciva realizada através do processo de
execução fiscal, regulado nos artigos 233.º e ss. do CPT e 103.º da LGT: ao
tribunal tributário de 1ª instância da área onde correr a execução compete
decidir os incidentes, os embargos, a oposição, a verificação e graduação de
créditos e a anulação da venda, bem como os recursos referidos no artigo 355.º,
para além de lhe competir conhecer de todas as questões relativas à legitimidade
dos responsáveis subsidiários, incluindo a culpa das pessoas referidas nos
artigos 12.º e 13.º (artigo 237.º, nºs 2 e 3, do CPT e 103.º, n.º 1, da LGT);
aos serviços da administração fiscal cabe, ressalvado o que se dispõe
expressamente quanto à competência do tribunal tributário, instaurar os
processos de execução fiscal e realizar os actos a eles respeitantes (artigo
43.º, alínea g), do CPT e 103.º, n.º 1, da LGT).
Sobre aquele modelo e, especificamente, sobre a conformidade constitucional das
normas que estabelecem a repartição de competências que o caracteriza,
nomeadamente à luz do consagrado no artigo 202.º (Função jurisdicional) da CRP,
pode ler-se no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 331/92 (Diário da
República, II Série, de 14 de Novembro de 1992) que:
«Na realidade, ainda que se aceite que o processo de execução fiscal, tal como é
gizado no C.P.T., assumiu, como o epitetou o despacho recorrido, uma «natureza
administrativa», o que é certo é que nele se consagra que compete ao tribunal
tributário de 1ª instância (cfr. artigos 237º, números 2 e 3, e 355º) da área
onde correr a execução decidir os incidentes, embargos, oposição, verificação e
graduação de créditos, questões relativas à legitimidade dos responsáveis
subsidiários, incluindo a culpa dos titulares de estabelecimento individual de
responsabilidade limitada ou dos administradores, gerentes, pessoas que exerçam
funções de administração, membros dos órgãos de fiscalização e revisores
oficiais de contas das empresas e sociedades de responsabilidade limitada, e
recursos das decisões proferidas pelos chefes das repartições de finanças e
outras autoridades da administração fiscal que afectem os direitos e interesses
legítimos dos executados.
Portanto, no novo ordenamento adjectivo tributário, diríamos, com Lima Guerreiro
e Dias Mateus (Código de Processo Tributário, 274), que a competência meramente
administrativa foi confiada às autoridades fiscais, sendo reservada aos
tribunais tributários a decisão de 'questões de julgamento nitidamente
jurisdicionais'.
Dizem estes comentadores (loc. cit) que '[e] sta solução [a de ser confiada às
repartições de finanças a prática de funções administrativas e aos tribunais
tributários de 1ª instância a decisão de questões jurisdicionais] não contradiz
a competência atribuída pelo E.T.A.F. aos tribunais tributários de 1ª instância,
já que esta se exerce apenas nas questões jurisdicionais em caso de litígio
entre exequente e executado,...', pelo que, concluem eles, se restituiu 'a todos
os tribunais tributários de 1ª instância a sua verdadeira vocação - julgar'
(cfr. a anotação 6ª ao artº 237º e as anotações ao artº 355º do C.P.T. efectuada
por A. José de Sousa e José S. Paixão no cit. Código de Processo Tributário
Comentado e Anotado, pags. 436 e 723 e 724).
Daí que se conclua que, tendo em atenção as funções que estão reservadas aos
tribunais tributários de 1ª instância pelo C.P.T., funções essas que, como é
claro, também serão desempenhadas pelos Tribunais Tributários de 1ª Instância de
Lisboa e Porto, a par de outras que também lhes compete exercer por força da
norma em apreço, não fica despojado o cerne ou núcleo essencial da missão que a
Constituição confiou aos órgãos de soberania tribunais, e agora por referência
aos dois aludidos tribunais tributários (cfr., sobre a função jurisdicional,
Jorge Miranda, A Constituição de 1976 - Formação, Estrutura e Princípios
Fundamentais, 476 e 479, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da
República Portuguesa Anotada, 2ª edição, 2º vol., 311 e 312, Afonso Queiró,
Lições de Direito Administrativo, 1976, 41 e segs. e A função administrativa,
estudo publicado na Revista de Direito e Estudos Sociais, XXIV ano, 31,
Castanheira Neves, O Instituto dos Assentos e a Função Jurídica dos Supremos
Tribunais, 435 e segs., Pierre Moor, Droit Administratif, vol. 1º, Berna, 1988,
4 e segs., Gomes Canotilho, ob. cit., 767 e segs., e Acórdãos deste Tribunal
números 71/84 - Acórdãos do Tribunal Constitucional, 4º vol., 185 e segs., 72/82
- Diário da República, 2ª Série, de 10 de Janeiro de 1985, 104/85 - Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 5º vol., 633 e segs., 178/86 - Diário da República, 1ª
Série, de 23 de Junho de 1986, e 443/91 - Diário da República, 2ª Série,
Suplemento ao nº 78, de 2 de Abril de 1992)».
Mais recentemente, no mesmo sentido, pode ler-se no Acórdão do Tribunal
Constitucional n.º 80/2003 (Diário da República, II Série, de 21 de Março de
2003) que:
«Como é consabido, o processo de execução fiscal não é mais do que um processo
cujo escopo jurídico é o de realizar coercivamente o direito de crédito de que
goza o credor tributário, em regra, antes constitutivamente verificado - na
acepção de estar corporizado em um título formal que expressa ou declara o valor
da dívida tributária - através de um acto administrativo-tributário, dotado de
imperatividade ou de autotutela jurídicas - o acto de liquidação - , fazendo-o
valer sem uma prévia verificação judicial da sua legalidade.
Como processo que é, o processo de execução fiscal é constituído por uma série
encadeada de actos que estão funcionalmente orientados para atingir o seu fim
específico: o da cobrança da dívida tributária e o seu pagamento ao credor
tributário (…).
No domínio do Código de Processo Tributário, a que se referem as normas cuja
constitucionalidade se questiona - sendo certo que já lhe sucedeu o Código de
Procedimento e de Processo Tributário, que foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º
433/99, de 26 de Outubro, onde as questões poderão ser postas nos mesmos termos
- , o desenvolvimento e encadeamento desses actos constava dos artigos 233º e
ss..
(…) [A] nossa lei fundamental não obriga a que todos os actos em que se
desenrola o processo de execução fiscal devam ser obrigatoriamente praticados
pelo juiz, pese embora a jurisprudência fiscal e, hoje, abertamente a Lei Geral
Tributária (art.º 103º n.º 1), aprovada pelo Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de
Outubro atribuam ao processo de execução fiscal ‘natureza judicial’.
O que a Constituição da República garante (art.º 103.º, n.º 3) é que ‘ninguém
pode ser obrigado a pagar impostos... cuja liquidação e cobrança se não façam
nos termos da lei’, nela se compreendendo, evidentemente, tanto a cobrança
voluntária, como a coerciva. Os actos de cobrança têm, pois, de fazer-se a
coberto da lei.
Mas dessa exigência constitucional não resulta que os actos que integram o
processo de execução fiscal hajam de ser sempre praticados por um juiz.
Ao incluir-se este tipo de processo entre os processos de natureza judicial,
apenas se pretende afirmar que os conflitos de interesses que dentro dele se
suscitem – mesmo que sejam emergentes, não só da actuação das partes ou até de
terceiros no processo, como também de qualquer decisão que nele seja tomada pela
administração fiscal, relativamente aos actos para cuja prática a lei lhe
atribui competência –, serão sindicados, no próprio processo, sempre pelo juiz
tributário.
Sendo assim, a prática dos actos do processo de execução fiscal, de natureza não
jurisdicional, bem pode ser confiada, segundo os próprios termos daquele art.
103.º, n.º 3 da Constituição à administração fiscal. Daí a razão de ser da
ressalva feita no referido art.º 103º, n.º 2 da Lei Geral Tributária [o processo
de execução fiscal tem natureza judicial,] sem prejuízo da participação dos
órgãos da administração tributária nos actos que não tenham natureza
jurisdicional'. Daí também, igualmente, a salvaguarda estabelecida na segunda
parte da acima transcrita alínea g) do art.º 43º do CPT.
Na verdade, as matérias que este preceito ressalva não podem deixar, segundo a
concepção constitucional da função jurisdicional - que de seguida se precisará -
, de ser tidas, por natureza, como abarcadas por ela: a decisão dos incidentes
(como o da incompetência do tribunal); dos embargos de terceiro; da oposição à
execução; da verificação e graduação de créditos (pelo menos quando contestada,
já que se poderá discutir essa sua qualificação quando inexistir qualquer
controvérsia sobre a sua existência e a ordem da sua chamada para pagamento); da
anulação da venda e dos recursos das decisões proferidas pelo chefe de
repartição de finanças e outras autoridades da administração fiscal que afectem
os direitos e interesses legítimos do executado (ou de outros interessados no
processo)».
3.2. Nos presentes autos o que importa, então, decidir é se o despacho do Chefe
de Serviço de Finanças que reverte a execução fiscal contra responsáveis
subsidiários por dívidas fiscais – um dos actos respeitante ao processo de
execução fiscal que a lei não inclui expressamente na competência do tribunal
tributário (artigo 237.º, n.º 2, do CPT) – tem ou não natureza jurisdicional.
O Tribunal Constitucional já se pronunciou, nos Acórdãos nºs 152/2002 (Diário da
República, II Série, de 31 de Maio de 2002) e 80/2003, pela conformidade
constitucional das normas que atribuem aos serviços da administração fiscal
competência para instaurar o processo de execução fiscal mediante despacho a
lavrar no ou nos respectivos títulos executivos, para efectuar o respectivo
registo e para ordenar a citação do executado (artigo 272.º, n.º 1, do CPT),
tendo em conta o consagrado nos artigos 111.º (Separação e interdependência),
202.º (Função jurisdicional) e 212.º (Tribunais Administrativos e Fiscais) da
CRP.
Decidiu no sentido da não inconstitucionalidade das normas que atribuem àqueles
serviços competência para a prática daqueles actos, a partir do critério de
distinção entre função jurisdicional e função administrativa que este Tribunal
tem seguido de forma reiterada. Sobre este critério, é de reter a seguinte
passagem do Acórdão n.º 80/2003:
‘A problemática da definição da função jurisdicional e do seu confronto com as
restantes funções do Estado - mas mormente da função administrativa - tem sido,
por referência a tais preceitos, objecto de uma larga discussão, quer na
doutrina, quer na jurisprudência.
Na doutrina, A. Rodrigues Queiró procurou distingui-las a partir de um critério
teleológico. Segundo escreveu, «essencial, para que se fale de um acto
jurisdicional, parece-nos ser, para já, que um agente estadual tenha que
resolver de acordo com o direito «uma questão jurídica», entendendo-se por tal
um conflito de pretensões entre duas ou mais pessoas, ou uma controvérsia sobre
a verificação em concreto de uma ofensa ou violação da ordem jurídica.’
E noutro passo precisava: ‘Ao cabo e ao resto, o quid specificum do acto
jurisdicional reside em que ele não pressupõe, mas é necessariamente praticado
para resolver uma questão de direito. Se, ao tomar-se uma decisão, a partir de
uma decisão de facto traduzida numa «questão de direito» (na violação do direito
objectivo ou na ofensa de um direito subjectivo), se actua por força da lei,
para se conseguir a produção de um resultado prático diferente da paz jurídica
decorrente da resolução dessa «questão de direito», então não estaremos perante
um acto jurisdicional: estaremos, sim, perante um acto administrativo’(cfr.
Lições de Direito Administrativo, vol. I, 1976, pp. 43, 44 e 51, e «A Função
Administrativa», Separata da Revista de Direito e de Estudos Sociais, XXIV (nºs
1, 2 e 3), Coimbra, 1977, pp. 30-31).
O critério teleológico é igualmente o seguido por R. Ehrhardt Soares quando
afirma que, na actividade administrativa, a resolução do conflito de interesses
(da «questão de direito») é orientada por uma perspectiva de interesse público -
justamente, do interesse público específico que a norma expressa.
Também este Tribunal Constitucional tem uma abundante jurisprudência sobre o
conceito da função jurisdicional e da função administrativa (cfr., entre muitos,
e só no tomo 31º dos Acórdãos do Tribunal Constitucional, os Acórdãos n.os
225/95, 226/95, 269/95, 375/95).
Assim, no Acórdão n.º 452/95 (cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional, 31º vol,
pp. 181), que teve de se pronunciar sobre um dos casos de zona de fronteira,
acentuou-se:
«A função jurisdicional consubstancia-se, assim, numa 'composição de conflitos
de interesses', levada a cabo por um órgão independente e imparcial, de harmonia
com a lei ou com critérios por ela definidos, tendo como fim específico a
realização do direito e da justiça (cfr. o Acórdão deste Tribunal n.º 182/90,
publicado no Diário da República, II Série, de 11 de Setembro de 1990). Aquela
função estadual diz respeito a matérias em relação às quais os tribunais têm de
ter não apenas a última palavra, mas logo a primeira palavra (cfr. Acórdãos
deste Tribunal n.os 98/88 e 211/90, o primeiro publicado no Diário da República,
II Série, de 22 de Agosto de 1988, e o segundo nos Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 16º vol., pp. 575 e ss.). A função administrativa é, ao invés,
uma actividade que, partindo de uma situação de facto traduzida numa 'questão de
direito', visa a prossecução do interesse público que a lei põe a cargo da
administração e não a paz jurídica que decorre da resolução dessa questão. Daí
que, na actividade administrativa, a primeira palavra deva caber à
administração, cabendo aos tribunais a última e definitiva palavra, de acordo
com a garantia constitucional do recurso contencioso, condensada no art.º 268.º,
n.º 4, da Lei Fundamental».
Mas outras formulações poderão ser colhidas na jurisprudência deste Tribunal.
Assim, no Acórdão n.º 104/85, publicado no Diário da República, II Série, de 2
de Agosto, de 1985, afirmou-se:
«A separação real entre a função jurisdicional e a função administrativa passa
pelo campo dos interesses em jogo: enquanto a jurisdição resolve litígios em que
os interesses em confronto são apenas os das partes, a Administração, embora na
presença de interesses alheios, realiza o interesse público. Na primeira
hipótese a decisão situa-se num plano distinto do dos interesses em conflito. Na
segunda hipótese verifica-se uma osmose entre o caso resolvido e o interesse
público”.
3.3. Reiterando o entendimento de que a função jurisdicional se consubstancia
numa composição de conflitos de interesses, levada a cabo por um órgão
independente e imparcial, de harmonia com a lei ou com critérios por ela
definidos, tendo como fim específico a realização do direito e da justiça, é de
concluir que o poder que os artigos 13.º, 43.º, alínea g), 239.º, nº 2, 246.º,
nº 1, do CPT e 23.º da LGT conferem ao Chefe de Serviço de Finanças para
reverter o processo de execução fiscal contra responsáveis subsidiários por
dívidas fiscais não se traduz no exercício da função jurisdicional.
Com efeito, no despacho através do qual é revertida a execução fiscal contra
tais responsáveis não se vislumbra uma qualquer composição de interesses
conflituantes, uma qualquer resolução de um conflito que oponha o credor
tributário (ou o contribuinte directo) àquele que é chamado à execução, que
tenha como fim específico a realização do direito e da justiça. O que ocorre é
uma ampliação do âmbito subjectivo da execução, por força de lei (artigos 13.º e
239.º, n.º 2, do CPT e 24.º da LGT), relativamente a alguém que também é sujeito
passivo da relação tributária, vinculado ao cumprimento da prestação tributária
(artigo 18.º, n.º 3, da LGT), se não houver bens penhoráveis do devedor e seus
sucessores ou se o património do devedor for insuficiente para a satisfação da
dívida exequenda e acrescido.
Apesar de a execução fiscal reverter contra pessoa distinta da que figura no
título executivo como devedor e de relativamente a ela não ocorrerem os
pressupostos do facto tributário, mas sim os pressupostos da responsabilidade
(sobre isto, cf. Ana Paula Dourado, “Substituição e responsabilidade
tributária”, Ciência e Técnica Fiscal, 1998, 391, p. 50 e ss.), estamos perante
um acto respeitante ao processo de execução fiscal que visa, exclusivamente, a
prossecução do interesse público da “defesa patrimonial do Fisco”. De resto, a
extensão da obrigação de cumprimento da prestação tributária, a pessoas diversas
do contribuinte directo, tem em vista “reforçar a garantia do cumprimento da
obrigação fiscal em certos casos em que é ou pode tornar-se problemático ou
impossível fazer àquele [ao contribuinte directo] a sua cobrança”,
independentemente de também lhe poder ser associada uma ideia sancionatória
(Cardoso da Costa, Curso de Direito Fiscal, Almedina, 1972, p. 299 e s. O autor
afirma, mesmo, que o responsável subsidiário se encontra “em regra na posição
como que de um fiador legal”, p. 301).
Não obstante a circunstância de não haver no acto em causa qualquer composição
de interesses conflituantes – diferentemente da situação apreciada no Acórdão do
Tribunal Constitucional n.º 182/90, Diário da República, II Série, de 11 de
Setembro de 1990, citado pela decisão recorrida – ser, por si só, significativa
de que o Chefe de Serviço de Finanças não “profere uma condenação no pagamento
de uma quantia determinada com fundamento em responsabilidade extra contratual”,
sempre se acrescentará que é demonstrativa disso mesmo a possibilidade de
deduzir oposição (cf. infra ponto 4.). Caso em que terá lugar, então sim, uma
composição de conflitos de interesses, levada a cabo por um órgão independente e
imparcial, de harmonia com a lei ou com critérios por ela definidos, tendo como
fim específico a realização do direito e da justiça (cf. artigo 237.º, nºs 2 e
3, do CPT).
3.4. Tendo presente que a execução fiscal revertida contra responsáveis
subsidiários, por despacho do Chefe de Serviço de Finanças, tem por base um
título executivo extrajudicial (artigos 235.º, 248.º e 249.º do CPT), é ainda de
referir que o Tribunal Constitucional tem entendido que as normas que permitem a
criação de um título executivo extrajudicial não ofendem o princípio da “reserva
de juiz”: se, por um lado, se tem concluído que tal actividade não se traduz no
exercício de poderes característicos da função jurisdicional; por outro, tem-se
destacado que quem figura como devedor em tal título executivo poderá sempre
lançar mão de fundamentos que lhe seria lícito deduzir como defesa no processo
de declaração, momento em que ocorrerá, então, a “resolução do conflito por um
órgão independente e imparcial, de harmonia com normas ou critérios legais
pré-existentes – e tudo com vista à realização do direito e da justiça” (cf.
Acórdãos nºs 760/95, 761/95 e 376/96, Diário da República, II Série, de 2 de
Fevereiro e 12 de Julho de 1996, relativamente às certidões de dívida emanadas
das instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde, e
Acórdãos nºs 394/95, Diário da República, II Série, de 15 de Novembro de 1995, e
398/95, não publicado, no que diz respeito à aposição pelo secretário judicial
de fórmula executória no requerimento de injunção. Cf., ainda, mais
recentemente, Acórdão nº 669/2005, Diário da República, II Série, de 2 de
Fevereiro de 2006).
4. (…) Ainda que a argumentação constante da decisão recorrida assente,
fundamentalmente, na qualificação – já recusada – do acto de reversão da
execução fiscal contra aqueles responsáveis como acto materialmente
jurisdicional, retirando daí a necessidade do que é designado por protecção
judicial de primeiro grau, sempre se dirá que a norma que é objecto de
apreciação não viola o direito de defesa e o princípio da tutela jurisdicional
efectiva.
Por um lado, o despacho que reverte a execução fiscal é, obrigatoriamente,
precedido de audição do responsável subsidiário (artigos 23.º, n.º 4, primeira
parte, e 60.º da LGT); por outro, o responsável subsidiário pode sempre deduzir
oposição à execução, cuja decisão é da competência de um tribunal, com
fundamento na ausência dos pressupostos da responsabilidade subsidiária (artigos
237.º, nºs 2 e 3, e 286.º, n.º 1, alínea b), parte final, do CPT) – “uma
mini-acção declarativa enxertada no processo de execução fiscal” (Casalta
Nabais, Direito Fiscal, Almedina, 2006, p. 339, reportando-se ao direito
vigente). Devendo anotar-se, ainda, que aquele despacho e a subsequente citação
do responsável subsidiário inclui declaração fundamentada dos pressupostos e da
extensão da reversão (artigos 246.º, n.º 1, do CPT e 23.º, nºs 1 e 4, parte
final, da LGT).
5. De acordo com a sentença recorrida, os artigos 43.º, alínea g), 239.º, n.º 2,
13.º e 246.º, n.º 1, do Código de Processo Tributário e 23.º, n.º 1, da Lei
Geral Tributária, na parte em que permitem que, por despacho do Chefe de Serviço
de Finanças, se efective a reversão no processo de execução fiscal contra
responsáveis subsidiários por dívidas fiscais, violam, ainda, o princípio da
igualdade, contido no artigo 13.º da CRP.
Mais uma vez, a aplicação da norma em causa é recusada com fundamento na
qualificação do acto de reversão como acto materialmente jurisdicional, o que
permite a comparação, designadamente, com a norma que foi objecto de apreciação
no já mencionado Acórdão n.º 182/90, que decidiu no sentido de julgar
inconstitucional a norma constante do terceiro parágrafo da alínea b) do mapa I
anexo ao Decreto-Lei nº 376/87, de 11 de Dezembro, na parte em que confere aos
secretários judiciais competência para «proferir todas as decisões sobre matéria
de custas», com o sentido que lhe foi dado pelo juiz a quo, por violação dos
artigos 168.º, n.º 1, alínea q), 205.º e 206.º da Constituição. Apesar disso,
deve notar-se que não se vê como é que o acto de reversão da execução fiscal
contra responsáveis subsidiários por dívidas fiscais, nos termos legalmente
previstos, pode contender com as dimensões que o princípio da igualdade convoca:
a proibição do arbítrio; a proibição de discriminação; e a obrigação de
diferenciação (cf., entre outros, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º
96/2005, Diário da República, II Série, de 31 de Março).”
9. Resta, apenas, a circunstância de a decisão recorrida ter recusado aplicar a
norma constante do artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio, o que
poderia na linha do despacho de fls. 189 e seguintes do, então, Conselheiro
Relator deste Tribunal, levar a afrontar a questão da constitucionalidade do
regime substantivo de responsabilidade solidária dos gerentes, aí prevista,
designadamente enquanto se trate de mera responsabilidade civil objectiva ou,
pelo menos, assente numa presunção inilidível de culpa pela gerência.
Não obstante venha o Tribunal Constitucional entendendo que tal regime não
ofende nenhuma norma ou preceito constitucional, (vide o Acórdão n.º 576/99,
publicado no Diário da República, II Série, de 21 de Fevereiro de 2000, e os
Acórdãos n.ºs 577/99 e 44/01, inéditos, disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt), com, no entanto, algumas posições dissonantes,
conforme se pode verificar nos votos de vencido expressos, o certo é que, na
situação ora em apreço, a dimensão normativa desaplicada na sentença recorrida
se situa no âmbito de uma dimensão exclusivamente procedimental, ligada aos
pressupostos adjectivos que condicionam a reversão por decisão administrativa e
não aos requisitos substantivos da figura da reversão.
Com efeito, analisando a decisão recorrida, constata-se que a eventual lesão do
direito de defesa aparece contextualizada com os fundamentos atinentes à
tramitação processual, sem que seja mencionada a temática da natureza
substantiva da responsabilidade civil imputada ao gerente pelas dívidas da
sociedade.
Nestes termos, pelas razões transcritas supra, sendo certo que a aludida
dimensão normativa é de natureza meramente adjectiva ou procedimental,
conexionado com a forma como no processo o gerente pode explicitar a sua defesa,
não se mostra violado qualquer preceito constitucional, designadamente o direito
de acesso à justiça a que se refere o artigo 20.º da Constituição da República
Portuguesa.
Assim, contrariamente ao decidido pelo Tribunal recorrido, é de concluir que os
artigos 43.º, alínea g), 239.º, n.º 2, 13.º e 246.º, n.º 1 do Código de Processo
Tributário e 23.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária, e artigo 13.º do Decreto-Lei
n.º 103/80, de 9 de Maio, na parte em que permitem que, por despacho do Chefe de
Serviço de Finanças, se efective a reversão no processo de execução fiscal
contra responsáveis subsidiários por dívidas fiscais, não violam os preceitos e
normas constitucionais, designadamente os artigos 13.º, 20.º, 111.º, 202.º,
212.º, 268.º, n.º4 da Constituição.
III – Decisão
Pelo exposto, acordam, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional, conceder
provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, determinando a reforma
da decisão recorrida em conformidade com o decidido quanto à questão da
inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 10 de Julho de 2007
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos