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Processo n.º 416/07
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. A. e B., inconformados com o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que,
negando provimento aos recursos interpostos do Acórdão da 3ª Vara Criminal de
Lisboa, os condenou, respectivamente, nas penas de sete e seis anos de prisão,
interpuseram recursos para o Supremo Tribunal de Justiça.
Nesse Tribunal, por Acórdão de 4 de Outubro de 2006, foi-lhes concedido parcial
provimento, tendo sido condenados, respectivamente, nas penas de 5 e 4 anos de
prisão.
Mais uma vez inconformados com o decidido, interpuseram recurso para o Tribunal
Constitucional.
Segundo o requerimento de interposição do recurso, o Recorrente A. pretende ver
apreciadas as seguintes questões de inconstitucionalidade:
“[…] [d]a norma do artigo 412°, n.º 3, alínea b) e n.º 4, do Código de Processo
Penal, com a interpretação com que foi aplicada na decisão recorrida, ou seja,
de que a falta de indicação da referencia aos suportes técnicos com indicações
da cassete e localização nesta de depoimentos gravados, implica o não
conhecimento do recurso de impugnação da matéria de facto, sem que ao recorrente
lhe tenha sido dada oportunidade de suprir tal deficiência, mesmo que o
recorrente tenha cumprido as exigências do artigo 412°, n° 3, alínea b) daquele
diploma. (…)
O douto acórdão interpretou os artigos 118°, n° 3. 126°, n° 1 e 2, 188°. n° 1 e
3 e 189° todos do Código de Processo Penal, com o sentido de que, as
determinações previstas nos n° 1 e 3 do artigo 188º, constituem em caso de
violação, uma mera nulidade sanável, e não, uma proibição de prova, por estarem
em causa normas constitucionais referentes aos direitos, liberdades e
garantias.”
Por seu turno o Recorrente B. afirma no seu requerimento:
“ […] 3. De facto, na perspectiva do recorrente, ‘destinar à venda’ não preenche
nenhuma das acções previstas no artigo 21º do Decreto-Lei n.º l5/93 de 2.01,
pelo que não poderão as instâncias, perante tal factualidade, imputar ao ora
recorrente a prática do crime de tráfico de estupefacientes.
4. Nem se podia considerar, como considerou o Tribunal recorrido, que o
recorrente, deteve quaisquer dessas substâncias.
5. Ao fazê-lo violaram o princípio da tipicidade, plasmado no artigo 1°. n° 1 do
Código Penal sendo tal interpretação do artigo 21° do Decreto–Lei n.º 15/93
claramente violadora dos dispositivos constitucionais vertidos nos artigos 27.º
n.º 2 e 29°. nºs 1 e 3 da Constituição da República Portuguesa.
6. Por outro lado, no seu requerimento de 22.01.07, o ora recorrente, questionou
a constitucionalidade da interpretação feita pelo Supremo Tribunal de Justiça da
alínea d) do n.° 2 do artigo 72° do Código Penal segundo a qual não será de
aplicar a atenuante especial a que alude a citada disposição legal a crimes de
natureza grave, como o caso do tráfico de estupefacientes.
7. Sendo que o Supremo Tribunal de Justiça reiterou e sustentou a conformidade
legal e constitucional de tal interpretação.
8. Ora, na perspectiva do recorrente tal entendimento é também claramente
violador do princípio da tipicidade consagrado nos citados artigos 27.° n.º 2 e
29°, nºs 1 e 3 ambos da Constituição da República Portuguesa. (…)
12. Finalmente, o recorrente insurgiu-se, ainda, nos recursos por si interpostos
contra o facto de terem sido valoradas escutas relativas a conversas entre
pessoas alheias ao inquérito e em clara violação do seu direito à reserva de
intimidade da vida privada, consagrada nos artigos 26°, n.° 1, e 34°, n° 1 e 4
da Constituição da República Portuguesa.
13. Pelo que as escutas, em seu entender não poderiam deixar de ser consideradas
nulas e de nenhum valor, nos termos do preceituado no n.° 8 do artigo 32.° da
Lei Fundamental.
14. Sobre tal questão pronunciou-se o acórdão recorrido no sentido de considerar
lícita a utilização de tais escutas, uma vez que se trataria, em seu entender,
de um meio de prova não absolutamente proibido. [...].”
2. Notificados para alegar, concluíram os Recorrentes nos seguintes termos:
a) A.
“1- O douto acórdão recorrido, admitiu que o recorrente tenha especificado as
provas que impõem decisão diversa da recorrida e o postos concretos de facto que
considerava incorrectamente julgados, mas, como não fez referencia aos suportes
sonoros, tal configura uma deficiência substancial.
2- O recorrente cumpriu todos os requisitos previstos no n°3 do art. 412°,
especificando as provas que impunham decisão diversa, os pontos concretos da
matéria provada e de que modo tal desiderato seria alcançado.
3- O tribunal dispunha ainda da transcrição integral da prova gravada em
julgamento.
4- Este circunstancialismo não pode significar uma deficiência substancial do
recurso de facto.
5- A falta de uma simples referencia formal ao numero da cassete ou ao lado onde
foi gravado determinado depoimento (quando estas informações constam da acta de
julgamento), implica, simplesmente a frustração do direito de recurso em matéria
de facto, contende necessariamente com o direito de defesa do arguido afrontando
o principio da proporcionalidade.
6- A escuta telefónica envolve sempre uma intromissão na área dos direitos
fundamentais dos cidadãos, devendo, em consequência, o julgador interpretar
restritivamente as normas relativas a este meio de obtenção de prova.
7- A C.R.P. consagra de forma autónoma o direito à palavra (art. 26°) e a
inviolabilidade das telecomunicações (art. 34º), conferindo-lhes o valor de
direitos fundamentais, a coberto da força jurídica que lhes empresta o regime
privilegiado do art. 18°.
8- Têm aqui aplicação os princípios da necessidade e da proporcionalidade, no
que toca à restrição destes direitos.
9- Pelo que, prescindir da importância dos valores, direitos e interesses em
causa, para qualificar como nulidade sanável, a consequência da sua violação, é
configurar o processo penal com injusto, não equitativo, e, como tal, lesivo dos
direitos de defesa do arguido garantidos pelo artigo 32° n.º 1 da CRP.”
b) B.
“1. A interpretação do art. 21. ° n.º 1 do DL 15/93, de 22 de Janeiro, feita
pelo tribunal recorrido, segundo a qual a matéria de facto dada como provada,
mormente nos pontos 5 a 9 da matéria apurada, consubstancia a detenção ilícita
de estupefacientes, prevista e punida pela mencionada norma, é inconstitucional,
por violar os princípios da legalidade, tipicidade e da proibição do recurso à
analogia, consagrados nos artigos 1.º nºs 1 e 3 do CP e 27. ° n.º 2 e 29. ° nºs
1 e 3, ambos da CRP.
2. Com efeito, a expressão ‘ilicitamente detiver’ constante do citado art. 21. °
n.º 1 não pode ser interpretada no sentido de que a mera disponibilidade de
determinada substância estupefaciente é suficiente para que se mostre preenchido
o aludido tipo legal de crime.
3. A entender-se de outra forma, estar-se-ia a permitir que alguém pudesse ser
sancionado pela prática do aludido crime, mesmo que nenhum acto concreto por si
fosse praticado relativamente à substância em causa.
4. O que violaria os aludidos princípios da legalidade e da tipicidade e até o
princípio da culpa, que constituem traves mestras do nosso ordenamento
jurídico-penal.
5. É, igualmente, inconstitucional, por violação dos referidos princípios da
legalidade e tipicidade, a interpretação do disposto no art. 72. ° nºs 1 e 2 d)
do Código Penal, segundo a qual a gravidade do tipo de crime pode justificar a
não aplicação da atenuante especial aí prevista.
6. Pois que tal interpretação conflituaria com a delimitação da responsabilidade
criminal do agente, a qual só pode emanar de lei expressa e anterior.
7. Assim, é a referida interpretação contrária com os referidos princípios,
consagrados nos artigos 27. ° n.º 2 e 29. ° nºs 1 e 3, ambos da CRP.
8. O tribunal recorrido procedeu, ainda, a uma interpretação desconforme à
Constituição da República Portuguesa do regime legal que disciplina a
admissibilidade dos meios de prova – art. 126. ° nºs 1 e 3 do CPP.
9. Pois que os artigos 26. ° n.º 1, 32. ° n.º 8 e 34. ° nºs 1 e 4, ambos da CRP,
não permitem que sejam utilizadas como prova conversas escutadas estabelecidas
entre pessoas alheias ao processo.
10. Tais provas, para além de absolutamente proibidas, padecem de vício
insusceptível de sanação, por contenderem directamente com o direito à
intimidade da vida privada das pessoas escutadas.”
3. O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal, nas suas
contra-alegações, considerou não estarem reunidos os respectivos pressupostos
processuais e daí não poder o Tribunal Constitucional conhecer dos recursos
interpostos.
Só o Recorrente A. veio responder às questões prévias levantadas pelo Ministério
Público, nos seguintes termos:
“Primeira questão.
Salvo o devido respeito, o que o arguido fez foi alegar a inconstitucionalidade
desta norma com a interpretação dada pela decisão recorrida.
E se a decisão recorrida, em vez de referir a alínea b), indica a alínea c), tal
decorre de evidente lapso de escrita.
Com efeito, toda a argumentação do douto acórdão recorrido, segue o recurso do
arguido, estando sempre em causa, a indicação dos suportes técnicos por
referência aos pontos de facto impugnados.
Então, para nós, e ressalvado o devido respeito, não faz sentido o arguido
corrigir a sua alegação de inconstitucionalidade perante um mero lapso de
escrita, tendo o acórdão recorrido, aplicado explícita e implicitamente a norma
sempre suscitada pelo recorrente.
Salvo o devido respeito, a questão da constitucionalidade, foi colocada durante
o processo, de forma clara para que o tribunal recorrido possa saber que tem
aquela questão para resolver. E resolveu-a de acordo com a norma suscitada pelo
recorrente.
Assim, o tribunal recorrido, formou sobre a norma suscitada pelo recorrente, e
efectivamente aplicada, um juízo de constitucionalidade.
Segunda questão.
O acórdão da Relação, interpretou a norma em causa, com o critério normativo que
o recorrente colocou perante o STJ e TC.
E é de toda a argumentação apresentada, que o arguido apresenta a sua tese, e
conclui pela inconstitucionalidade da associação de qualquer invalidade do art.
188° do CPP, ao regime da nulidade sanável, em vez de se considerar uma
proibição de prova.
E o STJ, no acórdão agora recorrido, decidiu da seguinte forma:
Num plano doutrinário, o meio proibido de prova é uma prescrição de um limite à
descoberta da verdade, uma barreira colocada à determinação dos factos que
constituem o objecto do processo, por razões múltiplas, consagradas nos art.
126° n°3 do CPP, 32° n°8 e 34° n°4 da CRP, onde se não inclui a inobservância do
ritualismo enunciado no art. 188° do CPP.
O arguido teve acesso ao material transcrito, dispôs de tempo para invocar a
anomalia eventualmente ocorrida, nos termos do art. 188° n°3, do CPP, versão
originária, a que corresponde o seu n°5, nas redacções trazidas pela lei
n°59/98, de 25/8 d Dec. Lei n°320-C/2000, de 15/12, tempo que deixou
transcorrer, sendo inoportuno, agora, invocar a preterição do direito
constitucional de defesa, nos termos dos art°s 32° n°1 e 34°. Da CRP, cujo
exercício, por culpa sua, deixou escapar.
Daqui, logo resulta, que o acórdão recorrido compreendeu bem a questão da
constitucionalidade que lhe foi colocada, dela decidindo, interpretando a norma
impugnada com um critério normativo que julgamos inconstitucional.
Cumpriu-se pois todos os requisitos para o recurso de inconstitucionalidade.
Por fim, e sempre com o devido respeito, nada impede o Tribunal Constitucional
de apreciar a norma numa dimensão mais ou menos extensa do que aquela que vem
delimitada pelo recorrente. Todas as questões que vieram agora a ser decididas
pelo acórdão recorrido, estiveram sempre em discussão nestes autos.
Nestes termos e nos demais de direito, devem as questões prévias levantadas pelo
M°P, serem julgadas improcedentes.”
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
1.º Delimitação do objecto dos recursos
4.1 Recurso interposto pelo Arguido A.;
Questões suscitadas:
a) Inconstitucionalidade da norma do artigo 412.º, n.º 3, alínea b) e n.º 4
do Código de Processo Penal.
b) Cumprimento defeituoso das formalidades das operações de intercepção de
comunicações referidas nos n.ºs 1 e 3 do artigo 188.º do Código de Processo
Penal.
4.2.- Recurso interposto pelo arguido B.;
Questões suscitadas:
a) Não se poder imputar ao recorrente a prática de crime de tráfico de
estupefacientes, pois que a factualidade imputada não tipifica o tipo legal do
crime – violação do princípio da tipicidade;
b) O facto de não ter sido atenuada especialmente a pena ao recorrente, nos
termos do artigo 72.º, n.º 2 do Código Penal, por se ter considerado da
gravidade do ilícito, assim se violando o mesmo princípio constante do artigo
29.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa – princípio da tipicidade.
c) Terem sido valoradas escutas telefónicas relativamente a conversas
ocorridas entre pessoas alheias ao inquérito, em violação do seu direito à
reserva de intimidade da vida privada, consagrada nos artigos 26.º, n.º 1, e
34.º, nºs. 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa.
O Exmo. Procurador Geral Adjunto, na sua contra alegação levanta a questão da
inadmissibilidade dos recursos.
Há, assim, que previamente decidir sobre a existência de qualquer tipo de
questão prévia que obste ao conhecimento do mérito dos recursos interpostos
relativamente às várias questões suscitadas.
5. Vejamos primeiramente o recurso interposto pelo Recorrente A.:
5.1. No âmbito do mesmo, vem o Recorrente arguir a inconstitucionalidade do
artigo 412.º, n.º 3, alínea b) e n.º 4, do Código de Processo Penal, na
interpretação segundo a qual a falta de referência aos suportes técnicos com a
indicação da cassete e localização nesta de depoimentos gravados, implica o não
conhecimento do recurso de impugnação da matéria de facto, sem que ao recorrente
tenha sido dada oportunidade de suprir tal deficiência, mesmo que o mesmo
recorrente tenha cumprido as exigências do artigo 412.º, n.º 3, alínea b)
daquele diploma.
É sabido que constitui pressuposto de conhecimento dos recursos interpostos ao
abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional a
suscitação, de modo atempado (i.e. durante o processo) e processualmente
adequado, de questão de constitucionalidade referida a determinada norma,
segmento normativo ou uma sua interpretação, a qual tenha constituído o
fundamento (ratio decidendi) da decisão recorrida. Significa isto portanto que a
questão de constitucionalidade há-de ter sido arguida durante o processo em
termos tais que tenha sido possível à instância recorrida dela se aperceber e
sobre a mesma se pronunciar, em consonância com a arquitectura
jurídico-constitucional do sistema português de fiscalização concreta da
constitucionalidade, nos termos do qual o Tribunal Constitucional intervém
apenas em sede de recurso, o que pressupõe, portanto, a prévia pronúncia do
tribunal a quo.
No caso em apreço verifica-se, contudo, que o Tribunal da Relação, não obstante
ter reconhecido que as conclusões da motivação do recurso deduzidas pelo ora
Recorrente não obedeceriam aos requisitos legais e que tal facto justificaria a
rejeição do mesmo recurso, o certo é que assim não decidiu, tendo antes
apreciado o objecto do recurso.
No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça a aludida asserção do Recorrente veio
a merecer a seguinte afirmação:
“[…] O Tribunal da Relação – fls. 5566 – convidou o recorrente a formular novas
conclusões de recurso, por desnecessariamente extensas, mas o arguido
desprezando o convite, sob pena de rejeição, reclamou para a conferência,
acabando por se conhecer do recurso, anota o acórdão recorrido a fls. 5913; o
Exm.° Procurador Geral-Adjunto na Relação, na sua contramotivação, defende que o
arguido ao impugnar a matéria de facto seleccionou os que reputa incorrectamente
provados (n.°s 1 , 2 , 5 , 7 , 9 e 10 ), mas absteve-se de referenciar os
suportes técnicos recolhendo os elementos de prova impondo decisão diversa da
acolhida, nos termos do art.° 412.° n.°s l e3 c) e 4, do CPP.
Enquanto requisito estruturante de recurso sobre a matéria de facto, de
enunciação muito clara, sempre que se pretenda impugnar a matéria de facto, sob
pena de rejeição, cominação legal expressa, que nada assume de excessiva ou
desproporcionada, ónus de cumprimento inteiramente à mão do arguido, brigando
até, ostensivamente, com o princípio da igualdade de armas se possibilitada a
sua correcção apenas ao arguido, inserindo-se numa linha programática de fazer
do recurso instrumento sério de remédio para decisão errada, no evidente
objectivo de se evitar dilatar o conhecimento do recurso por tribunal superior,
por isso se devendo ser firme quando a exigência é peremptória e mais ainda
observa a filosofia própria de um ‘due process of law’, visto não poder abdicar
-se de regras, onde toda a falência ritológica se colmata, em nome de um direito
de defesa que não é inconciliável com exigências formais, com implicações
substantivas.
‘Não pode, pois, concluir-se que os princípios constitucionais do acesso ao
direito e do direito ao recurso em matéria penal impliquem que ao recorrente
tivesse sido facultada oportunidade para aperfeiçoar, em termos substanciais, a
motivação do recurso deduzido quanto à matéria de facto, quando este não
especificou as provas que impunham decisão diversa da recorrida, fazendo-o por
referência aos suportes técnicos (...)’decidiu-se no Ac. n.° 140/2004, do TC, de
10.3.2004, P.° n.° 566/03.’
E pese embora o acórdão da Relação se não ter pronunciado sobre essa omissão
dela não devem extrair-se consequências porque nada aproveitariam ao arguido,
que não pode beneficiar de defeito a que deu causa na elaboração de uma peça –
chave da sua defesa.
Mantém-se intocada a matéria de facto fixada. É a ilação incontornável.”
Não obstante a decisão do Supremo Tribunal de Justiça, acabada de citar, o certo
é que, por ausência do respectivo pressuposto, não poderá conhecer-se do objecto
do recurso mencionado.
Com efeito, ao decidir do recurso da matéria de facto, não obstante existirem as
anomalias detectadas com a ausência de identificação da cassete, o certo é que a
Relação não deu aplicação ao inciso constante do artigo 412.º, n.º 3, alínea b)
do Código de Processo Penal.
No entanto, como parece depreender-se da transcrição supra, a decisão do Supremo
Tribunal de Justiça aplicou a norma do artigo 412.º, n.º 3, alínea b) e n.º 4 do
Código de Processo Penal e, como bem assinala o Ministério Público nas suas
contra-alegações, com a interpretação que vem impugnada pelo Recorrente.
Levanta-se então o problema de saber se a questão de constitucionalidade foi ou
não arguida durante o processo.
O Tribunal Constitucional tem-se pronunciado amiúde no sentido de, em certos
casos-limite, não ser exigível a arguição durante o processo de tal questão
nomeadamente quando não fosse possível ao interessado antever a possibilidade de
aplicação de norma ou dimensão interpretativa ao caso concreto. São as situações
em que o Recorrente não teve “oportunidade processual” para arguir a questão
antes que tivesse esgotado o poder jurisdicional do Tribunal recorrido por não
lhe ser, de todo, exigível a antecipação ou juízo de prognose de tal decisão na
dimensão normativa que pretende impugnar.
De igual modo, também o Tribunal Constitucional se tem pronunciado no sentido de
que “cabe às partes considerar antecipadamente as várias hipóteses de
interpretação razoáveis das normas em questão e suscitar antecipadamente as
inconstitucionalidades daí decorrentes antes de ser proferida a decisão (…)”
(cfr. Acórdão n.º 489/94, publicado no Diário da República, II Série, de 16 de
Dezembro de 1994).
Ora, na situação em apreço, o Ministério Público junto do Tribunal da Relação,
na resposta apresentada às alegações do Recorrente, sustentou que
“(…) constata-se que o recorrente não faz qualquer referência aos suportes
técnicos para a alegada imputação da matéria de facto, como impõe o artigo
412.º, n.ºs 1 e 3, alínea c) e 4 do Código de Processo Penal. Ora, sendo assim,
era possível a rejeição do recurso nessa parte – nesse sentido, acórdão do
Tribunal Constitucional nº 140/04 (…)” (fls. 6113).
Assim sendo, o Recorrente sabia desde logo, após a devida notificação do
conteúdo desta resposta, nos termos do artigo 413.º, n.º 2 do Código de Processo
Penal, que tal interpretação existia e poderia vir a ser acolhida pelo Supremo
Tribunal de Justiça. Não lhe assistiria, portanto, a faculdade de alegar falta
de oportunidade processual para suscitação atempada da questão de
constitucionalidade na medida que o poderia ter feito, quer mediante
requerimento ao processo quer em sede de alegações perante aquele Tribunal.
Nestes termos, é obvio que, considerando o disposto no artigo 72.º, n.ºs 1 e 2
da Lei do Tribunal Constitucional, o Recorrente não detinha a faculdade de
levantar a questão de constitucionalidade acabada de referenciar, pois que se
havia já esgotado o poder jurisdicional do Tribunal a quo.
Não se verifica, consequentemente, um dos pressupostos para a admissibilidade do
recurso, não podendo, assim, nesta parte, dele se tomar conhecimento.
5.2. De seguida, invoca o Recorrente que a interpretação dos artigos 118.º, n.º
3, 126.º, n.ºs 1, 2 e 3, 188.º, n.ºs 1 e 3 e 189.º, todos do Código do Processo
Penal, no sentido de que a falta de cumprimento das determinações previstas no
artigo 188.º, n.ºs 1 e 3 do artigo 188.º daquele Código constitui uma nulidade
sanável (e não uma proibição de prova) é inconstitucional, por violação dos
artigos 18.º, 32.º, n.º 1 e 34.º, n.ºs 1 e 4 da Constituição.
No entanto, no momento em que, durante o processo, tal questão é suscitada pelo
Recorrente – motivação do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça
–não logrou proceder, como lhe competia, à formulação ou enunciação de uma
questão de inconstitucionalidade normativa. Com efeito, o Recorrente limita-se a
discorrer sobre proibições de prova e nulidades e o não cumprimento do disposto
nos artigos 188.º e 189.º do Código de Processo Penal.
Como bem assinala o Exmo. Procurador Geral Adjunto nas suas contra-alegações, a
única argumentação tendente à suscitação genérica de questão de
constitucionalidade ocorre quando, a dado passo, o Recorrente afirma que
“significa isto que o direito processual português associa as proibições de
prova à figura e ao regime das nulidades, em cumprimento do disposto do art.º
32º, nº 8 da CRP.”
Esta afirmação não pode, no entanto, bastar para se dar por cumprido o ónus de
suscitação de questão de constitucionalidade normativa de modo processualmente
adequado (cfr. artigo 72.º, n.º 2 da Lei do Tribunal Constitucional).
O que o Recorrente pretendeu, com efeito, foi contrariar que se estivesse
perante uma nulidade sanável, considerando, antes, tratar-se de uma proibição de
prova.
Limitando-se, portanto, a questionar a interpretação e aplicação do direito aos
factos operada pela decisão recorrida não invocou, em momento algum, durante o
processo, uma questão de constitucionalidade normativa de modo a que o Tribunal
a quo dela se apercebesse e tivesse oportunidade de apreciar. A enunciação de
tal quaestio apenas ocorre no requerimento de interposição do presente recurso
não podendo, por conseguinte, aproveitar ao Recorrente para efeitos de
cumprimento dos ónus processuais atinentes aos pressupostos de conhecimento do
presente meio impugnatório.
Desta sorte, também o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão recorrido, não
interpretou a posição do Recorrente como sendo da imputação de uma
inconstitucionalidade normativa, antes a interpretando em sede de direito
processual penal.
Não tendo sido, pois, adequadamente suscitada durante o processo qualquer
questão de inconstitucionalidade normativa não pode, assim, este Tribunal, nesta
parte, conhecer do objecto do recurso.
6. Relativamente ao recurso interposto pelo Recorrente B.:
6.1 No que se reporta ao recurso interposto pelo Recorrente B., constata-se que,
desde logo, vem colocada a questão que se prende com a sua condenação pelo crime
de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º n.º 1, do
Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
O Recorrente, no entanto, ao invés de suscitar ou arguir problemática de
constitucionalidade normativa limita-se a imputar ao Acórdão recorrido o facto
de o mesmo ter, em sua perspectiva, considerado erradamente preenchido o aludido
tipo legal de crime. Imputando, assim, à decisão recorrida o facto de ter sido
violado o princípio da tipicidade, em violação dos artigos 27.º, n.º 2 e 29.º,
n.ºs 1 e 3 da Constituição, facilmente se constata que é a decisão que é objecto
da sua reacção e não a norma incriminadora.
Não estamos, pois, perante uma inconstitucionalidade normativa, não sendo, assim
possível, a este Tribunal conhecer do objecto do recurso.
6.2. Em segundo lugar, o Recorrente coloca em causa a constitucionalidade da
norma do artigo 72.º, n.º 2, alínea d) do Código Penal (atenuação especial da
pena).
Na decisão recorrida, o Supremo Tribunal de Justiça, apesar de ter diminuído a
pena, não a atenuou especialmente, já que entendeu que a relevância de um longo
período de tempo, mantendo o agente boa conduta, não dispensava que tivesse de
ocorrer uma diminuição acentuada de ilicitude, culpa e necessidade da pena
(artigo 72.º, n.º 1 do mesmo Código).
O Supremo Tribunal de Justiça interpretou a norma no sentido de que o decurso do
tempo e o bom comportamento do arguido não implicam que a pena tenha de ser, de
forma automática, especialmente atenuada.
O Recorrente pretende que seja apreciada a questão da inconstitucionalidade da
norma interpretada como não sendo aplicável aos crimes graves como o tráfico de
estupefacientes.
Com efeito, entende que “as circunstâncias atenuativas especiais constituem
eventos delimitadores do tipo de crime, reduzindo a moldura penal abstractamente
aplicável à conduta do agente. Por tal motivo, a verificação, ponderação e
aplicação de tais circunstâncias também deve reger-se pelas mesmas exigências
que presidem à tarefa de subsumir os factos ao tipo legal incriminatório. O
mesmo é dizer, que não podem tais eventos ser afastados por uma interpretação do
julgador, por mais compreensível que a norma fosse” (fls. 6356).
Chama à colação as disposições conjugadas dos artigos 27.º, n.º 2 e 29.º, nºs 1
e 3 da Constituição da República Portuguesa por, na sua perspectiva, tal
interpretação violar – ao não atenuar especialmente a pena, reitera-se – os
princípios da legalidade e tipicidade.
Assim, nesta parte, vem impugnada pelo Recorrente a interpretação do artigo
72.º, n.º 2 alínea d) do Código Penal alegadamente efectuada pelo Supremo
Tribunal de Justiça no sentido da qual, em crimes de grande danosidade social,
tal como o tráfico de estupefacientes, não poderia o decurso de tempo relevar
para efeitos de atenuação especial da pena.
Vejamos.
Pressuposto essencial para que o Tribunal Constitucional possa conhecer do
recurso interposto é que o Tribunal a quo tenha aplicado a norma com o sentido
ou interpretação reputada, pelo interessado, de inconstitucional. O que se
conclui, portanto, é que a dimensão normativa do artigo 72.º, n.º 2, alínea d)
que o Recorrente vem contestar – como não sendo “de aplicar a atenuante especial
a que alude a citada disposição legal a crimes de natureza grave, como é o caso
do tráfico de estupefacientes” – não coincide com a interpretação que o Tribunal
recorrido efectuou daquela norma.
Com efeito, o Supremo Tribunal de Justiça interpretou o artigo 72.º, n.ºs 1 e 2,
alínea d), do Código Penal no sentido de que a verificação das circunstâncias
elencadas nesta alínea não implica automaticamente a atenuação especial da pena,
carecendo sempre o n.º 2 de ser lido em conjugação com o n.º 1 daquela norma.
Significa isto, portanto, que, nos termos da interpretação operada por aquele
Tribunal, a disposição do n.º 2, alínea d) não dispensa o preenchimento dos
pressupostos previstos no n.º 1 do artigo 70.º – diminuição de forma acentuada
da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena – para que o
tribunal atenue especialmente a pena.
Na sequência de pedido de reforma deduzido pelo Recorrente, o Supremo Tribunal
de Justiça veio esclarecer que
“[…] não deixou de reputar implícito um longo lapso de tempo sobre os factos mas
fez relevar a sua força atenuativo-especial, não de uma forma automática, antes,
e ainda, de, pela sua verificação, derivar a redução, de forma acentuada, da
culpa, ilicitude ou necessidade da pena. (…) E, em consonância, teve como
correcto afirmar que o tráfico de droga é de tal modo socialmente gravoso, a
ordem de grandeza da violação de valores tão ofensiva, e, por isso, tão
condenável, que o decurso do tempo não leva, sem mais, ao ‘esquecimento as suas
nefastas consequências, suposta na atenuação, reduzindo-a ao mundo do quase
axiologicamente neutro’, escreveu-se a fls. 63 do acórdão reclamado, mas em
consequência associou-lhe, aí, a consequência da atenuante de carácter geral.”
Sustenta o Ministério Público nas suas contra-alegações que não existirá aqui
uma
“identidade absoluta, uma sobreposição total, entre a interpretação normativa
levada a cabo pelo Supremo e a invocada pelo recorrente, podendo, eventualmente,
ver-se nesta o afloramento de um dos aspectos da concretização do critério
definido por aquele Tribunal.”
Com efeito, e como esclareceu o Supremo Tribunal de Justiça, o decurso do tempo
não foi valorado para os efeitos de atenuação especial da pena, tendo antes sido
tido em momento distinto, em sede de determinação da medida da pena, para efeito
de atenuante de carácter geral, nos termos do artigo 71.º, n.º 2 do Código
Penal.
Assim, tendo por não verificados os pressupostos do artigo 72.º, n.º 1, foram
aquelas circunstâncias valoradas para efeitos diversos pelo que, não existindo,
nesta parte, coincidência entre a interpretação efectuada pela decisão recorrida
e a que vem impugnada pelo Recorrente, não se verifica aqui aquele pressuposto
processual de que depende o conhecimento do recurso.
Assim, também neste cenário não poderia o recurso ser objecto de conhecimento.
6.3. Finalmente, vem o Recorrente invocar um incorrecto cumprimento do disposto
no artigo 188.º do Código de Processo Penal, nomeadamente por ter ocorrido um
deficiente acompanhamento e selecção de conversas escutadas pelo órgão de
polícia criminal.
Em particular, o Recorrente insurge-se contra o facto de terem sido valoradas
escutas relativas a conversas entre pessoas alheias ao inquérito e em clara
violação do seu direito à reserva da intimidade da vida privada, consagrada nos
artigos 26.º, n.º 1 e 34.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
Assim, em seu entender, tais escutas deveriam ter sido consideradas nulas e de
nenhum valor.
No entanto, nem na motivação do recurso interposto do Acórdão da Relação nem no
requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, o
Recorrente especificou a norma ou normas cuja interpretação reputava ferida de
inconstitucionalidade. O que se vislumbra como mais próximo de um juízo de
inconstitucionalidade normativa, relativamente a esta matéria, vem a ocorrer
apenas em sede de alegações, escrevendo o Recorrente que “(…) a interpretação
feita pela instância recorrida do regime legal que disciplina a admissibilidade
dos meios de prova – art.º 126.º, n.ºs 1 e 3 do CPP – contraria o disposto nos
citados art.ºs 26.º n.º 1, 32.º n.º 8 e 34.º n.ºs 1 e 4, ambos da CRP.”
Independentemente do facto de se entender tal suscitação como tendo sido
efectuada em moldes processualmente adequados – o que parece muito discutível –
o certo é que o que consta desse requerimento não pode relevar para efeitos de
preenchimento dos pressupostos atinentes ao conhecimento do recurso de
fiscalização concreta.
Não pode, também, conhecer-se, neste segmento, por falta de pressupostos, do
objecto do recurso.
III – Decisão
Atento o exposto, por falta de pressupostos acordam, na 1.ª Secção do Tribunal
Constitucional, em não conhecer o objecto dos recursos interpostos.
Custas pelos Recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em (12) UC.
Lisboa, 31 de Outubro de 2007
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos