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Processo n.º 659/07
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam na 1.ª Secção, do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. A. foi condenada pelo 3.º Juízo do Tribunal de Tomar como autora material de
quatro crimes de falsificação de documentos, p.p. pelo artigo 256.º, n.º 1,
alínea c) e n.º 4 do Código Penal, e quatro crimes de peculato, p.p. pelo artigo
375.º n.º 1 do mesmo Código, na pena única de três anos de prisão cuja execução
ficou suspensa por quatro anos. A arguida interpôs recurso de tal decisão para o
Tribunal da Relação de Coimbra o qual veio a ser rejeitado por manifesta
improcedência.
Não se conformando, interpôs então novo recurso para o Supremo Tribunal de
Justiça tendo igualmente interposto recurso para este Tribunal Constitucional e
declarado, na motivação daquela primeira impugnação, o seguinte:
“A Recorrente declara que desiste do recurso de fiscalização concreta de
constitucionalidade interposto para o Tribunal Constitucional, caso o recurso,
ora apresentado, seja admitido por esta elevada instância jurisdicional.”
Por acórdão de 26 de Abril de 2007, o Supremo Tribunal de Justiça rejeitou o
recurso interposto por o mesmo ser inadmissível ao abrigo do disposto no artigo
400.º, n.º 1, alínea f) do Código de Processo Penal.
2. A arguida interpôs então, desta decisão, recurso de constitucionalidade ao
abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b) da Lei do Tribunal
Constitucional, para apreciação do artigo 420.º, n.º 1 do Código de Processo
Penal, na interpretação efectuada pelo acórdão recorrido, nos seguintes termos:
“[…];
2. Considerando os pressupostos do recurso fundando na alínea b) do n.° 1 do
artigo 70.° da LOFPTC, pretende-se ver apreciada a constitucionalidade da
interpretação normativa que o acórdão recorrido fez do artigo 420.° n.° 1, do
Código de Processo Penal (CPP);
3. O sentido normativo subjacente ao modo como os artigos 420° n.° 1, do CPP foi
interpretado e aplicado na decisão decorrida pode ser genericamente formulado
adquirindo, consequentemente, dimensão normativa -, nos termos seguintes:
considerou o acórdão recorrido, ao abrigo da chamada ‘dupla conforme’, que não é
admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações, que
rejeitaram o recurso da decisão da 1ª instância por ‘manifesta improcedência’.
Ou seja, o acórdão recorrido perfilhou o entendimento de que a rejeição do
recurso (por inadmissibilidade) configura, para todos os efeitos legais, uma
decisão confirmativa da decisão condenatória da primeira instância.
4. Entende a ora Recorrente que o sentido interpretativo supra-exposto, que
subjaz, no caso vertente, ao art. 420°, n.° 1 do CPP, viola o direito
fundamental ao recurso, consagrado no artigo 32.°, n.° 1 da Constituição da
República Portuguesa (CRP). Com efeito, deverá ser considerada inconstitucional
a norma do n.° 1 do art.° 420.° do CPP, quando interpretada como no acórdão
recorrido, no sentido da confirmação da manifesta improcedência do recurso
(‘dupla conforme’), como causa de rejeição do mesmo, sem que tenha havido o
necessário escrutínio fundamentado no texto da matéria provada por parte do
Tribunal dos vícios indicados no art. 410°, n.° 2 do CPP, os quais são de
conhecimento oficioso (Ac. do Plenário das secções criminais do STJ de 19 de
Outubro de 1995, proc. n.° 46 580/3a, in D.R:, 1-A Série, de 28/12/95), sendo
certo que, no caso ‘sub judice’, expurgada a matéria de facto provada dos juízos
de valor nela contidos, evidencia-se que a mesma é manifestamente insuficiente
para a decisão da causa. Nestas situações em que não foi cumprido o dever de
escrutínio oficioso dos vícios referidos no art.° 410°, n.° 2 do CPP, carece de
justificação constitucional o recurso à chamada ‘dupla conforme’, sob pena de
ser violado o direito fundamental ao recurso, consagrado no artigo 32.°, n.° 1
da CRP.
5. A Recorrente não teve oportunidade de suscitar, de forma precisa e clara, a
inconstitucionalidade deste sentido interpretativo no recurso que interpôs para
o Supremo Tribunal de Justiça da decisão de rejeição do recurso do Tribunal da
Relação de Coimbra, porquanto o entendimento inconstitucional do art. 420°, n.°
1 do CPP e do recurso à ‘dupla conforme’ que aqui se destaca somente surgiu na
decisão recorrida (aliás, se assim não fosse, não haveria sequer ‘dupla
conforme’).”
O recurso para o Tribunal Constitucional não foi admitido pelo Exmo. Conselheiro
do Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do despacho que se passa a
transcrever:
“A decisão em causa transitou em julgado em 14.5.2007.
Assim não admito o recurso.”
3. Vem agora a arguida reclamar de tal decisão de não admissão do recurso, com
os seguintes fundamentos:
“1. O despacho em causa não admitiu o recurso de constitucionalidade interposto
pela Recorrente, com fundamento no facto de, alegadamente, o Acórdão recorrido
ter transitado em julgado no dia 14.05.2007.
2. Salvo o devido respeito, não se pode acompanhar este entendimento do despacho
referenciado em epígrafe.
3. Com efeito, o recurso de constitucionalidade a que o despacho negou
admissibilidade foi interposto no seguimento do recurso ordinário interposto
pela Recorrente para o Supremo Tribunal de Justiça não ter sido admitido com
fundamento em irrecorribilidade da decisão.
4. Que o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no processo em
epígrafe, que se fundamentou, efectivamente, na irrecorribilidade da decisão da
Relação, pode ser demonstrado a partir dos seus próprios termos (Doc. n.° 2, que
se junta).
5. Na verdade, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, logo após discorrer
sobre a alínea f) do n.° 1 do artigo 400.° do Código de Processo Penal
(parágrafos 2°, 3.° e 4.° de fls. 8 do mesmo), refere:
‘Cai pois, o presente caso no âmbito de aplicação daquela alínea, assim se
afastando a regra geral do art. 399. °(recorribilidade)
Ora, dispõe a primeira parte do n.° 2 do art. 414.° do CPP que o recurso não é
admitido quando a decisão for irrecorrível.
Por outro lado, o despacho que admitiu o recurso na relação não vincula este
Supremo Tribunal de Justiça (n.° 3 do art. 414.° do CPP)
3. Pelo exposto, acordam os juízes da (5a) Secção Criminal do Supremo Tribunal
de Justiça, em rejeitar o presente recurso por inadmissível’.
6. Ora, num cenário como este, dispõe o artigo 75°, n.° 2 da Lei n.° 28/82, de
15 de Novembro (LOFPTC), na redacção dada pela Lei n.° 85/89, de 7 de Setembro,
e pela Lei n.° 13-A/98, de 26 de Fevereiro, que ‘interposto recurso ordinário,
mesmo que para uniformização de jurisprudência, que não seja admitido com
fundamento em irrecorribilidade da decisão, o prazo para recorrer para o
Tribunal Constitucional conta-se do momento em que se torna definitiva a decisão
que não admite recurso’.
7. Nestes termos, tendo em conta que a Recorrente foi notificada do Acórdão do
Supremo Tribunal de Justiça que não admitiu o seu recurso ordinário no dia
04.05.2007 (Doc. 2), há que contar o prazo legal para que aquela decisão se
tornasse definitiva, dentro do qual poderia a Recorrente, designadamente,
suscitar nulidades do Acórdão.
8. Tal prazo, no entendimento geral, é de 10 dias (artigo 105°, n.° 1 do Código
de Processo Penal), contados a partir da notificação do Acórdão.
9. No caso em apreço, isso significa que a decisão do Supremo Tribunal de
Justiça se tornou definitiva ou transitou em julgado no dia 14 de Maio.
10. Assim, em conformidade com o disposto no art. 75 n.° 2 da LOFPTC, o prazo de
10 dias de recurso para o Tribunal Constitucional findou apenas no dia 24 de
Maio.
11. Ora, o recurso sub judice foi interposto em 21 de Maio por fax (Doc. 3, que
se junta), tendo o original dado entrada no Tribunal no dia seguinte (Doc. 4,
que se junta);
12. Pelo que o presente recurso é tempestivo, até no entendimento de alguma
doutrina que no caso da decisão não admitir recurso ordinário, defende que o
prazo para arguir nulidades é o do artigo 309°, n.° 2 do Código de Processo
Penal (8 dias).
Nestes termos, requer a V. Exa. que se digne revogar o despacho sob reclamação e
admita o presente recurso, fazendo o mesmo subir, com o efeito próprio,
seguindo-se os demais termos legais.”
Em 6 de Junho de 2007, o Exmo. Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de
Justiça exarou o seguinte despacho:
“Temos para nós que a disposição do nº 2 do artigo 75º da LOFTC se aplica à
decisão de não admissão dos recursos que não à rejeição do recurso pelo Tribunal
ad quem por irrecorribilidade.
A reclamação do despacho que indeferia o requerimento de interposição de recurso
cabe para o Tribunal Constitucional – artigo 76º nº4 da LOFTC e não para o
Presidente deste Tribunal. Remeta ao TC”
Na sequência do mesmo veio a Reclamante, dizer o seguinte:
“1. Veio o Senhor Conselheiro Relator do tribunal recorrido invocar no seu acima
referido e, aliás, douto despacho, decerto para fundamentar a não admissão do
recurso de constitucionalidade interposto nos autos, que ‘a disposição do n.° 2
do art. 75.° da LOFTC se aplica à decisão de não admissão dos recursos que não à
rejeição de recurso pelo Tribunal ad quem por irrecorribilidade’.
2. Refere, pois, o Senhor Conselheiro Relator que o prazo de 10 dias constante
do art.° 75.° n.° 2 da Lei n.° 28/82, supra indicada, se aplica, apenas, aos
casos de não admissão do recurso e não nos casos de rejeição do recurso por
irrecorribilidade.
3. Ora, entende a Recorrente que a leitura que o Exmo. Conselheiro Relator do
tribunal recorrido fez do n.° 2 do art. 75.° da LOFTC, deveria tê-lo levado a
uma decisão de admissão do recurso de constitucionalidade, porquanto não se
compreende que o regime do n.° 2 do art. 75.° da LOFTC se aplique a decisões de
não admissão de recursos e não à rejeição do recurso por irrecorribilidade.
4. Tal como desenvolveu a reclamante na sua reclamação e agora se acentua, a
decisão recorrida foi, efectivamente, uma decisão de não admissão do recurso por
irrecorribilidade, conforme se demonstrou no ponto 5. da reclamação.
5. É certo que a decisão do Acórdão do STJ contém o termo ‘rejeição’, porém,
logo limitado e qualificado pela expressão ‘por inadmissibilidade’, a qual, como
evidencia o contexto do acórdão, radica na irrecorribilidade.
6. Portanto, o recurso foi rejeitado apenas porque é inadmissível, ou seja,
porque não pode ser admitido e por irrecorribilidade.
7. Na verdade, a fundamentação da decisão do acórdão do STJ toda ela se refere à
não admissibilidade do recurso por irrecorribilidade (parágrafos 2.° a 6.° de
fls. 8 do Acórdão do STJ), concluindo-se no parágrafo 6°: ‘ora dispõe a primeira
parte do n.° 2 do art.° 414.° do CPP que o recurso não é admitido quando a
decisão for irrecorrível!’, irrecorribilidade assente, para o caso dos autos, no
parágrafo 7.° e 8.° de fls. 8 do Acórdão: ‘cai pois o presente caso no âmbito de
aplicação daquela alínea, assim se afastando a regra geral do art.° 399.°
(recorribilidade).’
8. A alínea a que se refere o ultimo trecho do Acórdão transcrito é a alínea f)
do nº 1 do artigo 400º do CPP como se retira dos parágrafos 2º e 3º de fls. 8 do
Acórdão.
9. Parece, pois, à Reclamante, sem margem para dúvida, que o recurso para o STJ
não foi admitido com fundamento na irrecorribilidade da decisão, pelo que é
aplicável ao respectivo recurso para o Tribunal Constitucional a disposição do
n.° 2 do art.° 75.° da citada Lei 28/82, de 15.11.”
O Representante do Ministério Público neste Tribunal Constitucional
pronunciou-se no sentido da inadmissibilidade do recurso por a respectiva
questão de constitucionalidade não ter sido suscitada atempadamente, i.e.,
durante o processo.
Dispensados os vistos por se entender que a questão a resolver é simples, cumpre
apreciar e decidir.
II – Fundamentos
5. Compete ao Tribunal Constitucional, em sede de reclamação sobre não admissão
de recurso de constitucionalidade intentado interpor, mais do que apreciar a
correcção do despacho de não admissão do mesmo, verificar se se encontram
preenchidos os respectivos pressupostos. Com efeito, e como se escreveu no
Acórdão n.º 178/95, publicado no Diário da República, II Série, de 21 de Junho
de 1995, “destinam-se as reclamações sobre não admissão dos recursos intentados
para o Tribunal Constitucional a verificar a eventual preterição da devida
reapreciação, pelo Tribunal Constitucional, de uma questão de
constitucionalidade, em sede de recurso de constitucionalidade. Mais do que
apreciar a fundamentação do despacho de indeferimento do recurso, há, pois, que
verificar o preenchimento dos requisitos de recurso de constitucionalidade que
se pretendeu interpor.”
Vejamos, então, se se encontravam preenchidos os pressupostos do recurso de
constitucionalidade de forma a ajuizar se houve ou não, de facto, preterição de
conhecimento devido pelo Tribunal Constitucional da questão de
constitucionalidade controvertida.
6. O conhecimento de recurso interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea
b) da Lei do Tribunal Constitucional pressupõe a suscitação, pelo interessado,
de inconstitucionalidade de uma norma (ou segmento normativo) durante o
processo, constituindo tal norma o fundamento (ratio decidendi) da decisão
recorrida, bem como o prévio esgotamento dos recursos ordinários.
Intenta a Reclamante ver apreciada a constitucionalidade do artigo 420.º, n.º 1
do Código de Processo Penal. É essa a norma que surge identificada no
requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade o qual, de acordo
com o tem vindo a ser ampla e reiteradamente sustentado pelo Tribunal
Constitucional, define o objecto do recurso, não sendo possível, posteriormente,
proceder-se à ampliação do mesmo em sede de alegações (vejam-se, por exemplo, os
Acórdãos n.ºs 89/2004 e 512/2006 e, publicados, respectivamente, no Diário da
República, II Série, de 1 de Abril de 2004 e 23 de Fevereiro de 2007, e 286/2000
e 645/2004, ambos inéditos, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Fixado o âmbito do recurso de constitucionalidade nos termos do requerimento de
interposição do mesmo, e face ao teor da decisão que se pretende impugnar,
verifica-se, no entanto, que a questão suscitada pela ora Reclamante não
contende com o fundamento daquela.
Como resulta claramente da argumentação expendida no requerimento de
interposição do recurso, o que a Reclamante pretendeu impugnar foi a
interpretação efectuada pelo Tribunal a quo do artigo 400.º, n.º 1, alínea f) do
Código de Processo Penal, no sentido de considerar o Acórdão da Relação que
rejeitou o recurso por manifesta improcedência como confirmatório da decisão
proferida em 1.ª instância o que implica, por conseguinte, a irrecorribilidade
de tal decisão nos termos daquele preceito, por verificação da “dupla conforme”.
Ora, como se referiu, para que se possa conhecer do recurso de
constitucionalidade previsto na citada alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º, é
necessário que a norma ou normas indicadas na formulação da questão de
constitucionalidade tenham sido aplicadas como ratio decidendi pela decisão
recorrida. Atendendo ao carácter instrumental do recurso de fiscalização
concreta da constitucionalidade, o Tribunal Constitucional só pode conhecer de
questões de constitucionalidade cuja apreciação se revista de utilidade ou
efeito prático no caso concreto.
O fundamento da decisão do Supremo Tribunal de Justiça que a Reclamante pretende
atacar mercê do recurso interposto, reside, no entanto, na interpretação
efectuada por aquele Tribunal do artigo 400.º, n.º 1, alínea f) e não no artigo
420.º, n.º 1 do mesmo Código de Processo Penal.
Não foi a interpretação ou aplicação deste artigo 420.º, n.º 1 que constituiu a
razão de decidir do acórdão impugnado. Com efeito, a ratio decidendi do mesmo
assenta na interpretação e aplicação da norma contida no artigo 400.º, n.º 1,
alínea f), no sentido já enunciado – tem-se como decisão confirmatória da
Relação aquela que rejeita o recurso interposto de decisão condenatória da 1.ª
instância por manifestamente improcedente.
A irrecorribilidade fundamentante de decisão de inadmissibilidade, no caso em
apreço, apenas poderia assentar na norma contida no artigo 400.º, n.º 1, alínea
f) e não na constante do artigo 420.º, n.º 1. A convocação deste último preceito
normativo apenas poderia ocorrer enquanto obter dictum na medida em que,
dispondo o mesmo que “o recurso é rejeitado sempre que for manifesta a sua
improcedência ou que se verifique causa que devia ter determinado a sua não a
não admissão nos termos do artigo 414.º, n.º 2”, e dispondo este “o recurso não
é admitido quando a decisão for irrecorrível (…)”, daquele não resulta a
irrecorribilidade do acórdão da Relação. Tal irrecorribilidade assenta, apenas,
no artigo 400.º, n.º 1, alínea f) do Código de Processo Penal cuja
inconstitucionalidade não é suscitada não podendo o Tribunal Constitucional,
oficiosamente, alargar o âmbito do recurso.
A ratio decidendi do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça resulta, aliás, de
forma clara, do texto da própria decisão onde se pode ler, a dada altura, o
seguinte trecho: “(…) importa assim, no método que é imposto pelos dispositivos
do CPP invocados, indagar se no caso sujeito não é admissível recurso,
socorrendo-nos, em primeira linha, do art. 400.º do CPP. E verifica-se, então,
que não é admissível recurso, além do mais, de acórdãos condenatórios
proferidos, em recurso, pelas Relações, que confirmem decisão de primeira
instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não
superior a 8 anos, mesmo em caso de concurso de infracções [n.º 1, al. f)]. (…)
Cai, pois, o presente recurso no âmbito de aplicação daquela alínea, assim se
afastando a regra geral do art. 399.º (recorribilidade). Ora, dispõe a primeira
parte do n.º 2 do art. 414.º do CPP que o recurso não é admitido quando a
decisão for irrecorrível.” (sublinhado nosso)
Em nada aproveitaria, por conseguinte, à Reclamante uma decisão que postulasse o
juízo de inconstitucionalidade por ela recortado relativamente à norma do artigo
420.º, n.º 1 do Código de Processo Penal pois que a mesma não presidiu à decisão
de rejeição do recurso por inadmissibilidade proferida pelo Supremo Tribunal de
Justiça que a mesma pretende atacar, daí não decorrendo, por conseguinte,
qualquer consequência útil para os autos em que se insere a questão de
constitucionalidade suscitada.
Falha, portanto, o pressuposto atinente ao reflexo nos autos da utilidade da
questão de constitucionalidade formulada na medida em que a norma impugnada não
constituiu a ratio decidendi da decisão recorrida.
Supondo, no entanto, que a Reclamante havia atacado o fundamento da decisão
recorrida – o que se concebe agora para efeitos meramente argumentativos – ainda
assim não poderia o recurso ser objecto de conhecimento o que igualmente
implicaria a improcedência da presente reclamação.
Com efeito, na esteira da enunciação do pressupostos do recurso de
constitucionalidade em apreço a que já se procedeu, e nos termos do disposto nos
artigos 280.º, n.º 1, alínea b) da Constituição e 70.º, n.º 1, alínea b) da Lei
do Tribunal Constitucional, a questão de constitucionalidade deve ser suscitada
durante o processo.
Esta expressão tem sido objecto de jurisprudência pacífica e reiterada deste
Tribunal, entendendo-se a suscitação em sentido funcional, de modo a que o
tribunal recorrido ainda possa conhecer da mesma antes de esgotado o respectivo
poder jurisdicional (confiram-se, a título de exemplo, os Acórdãos n.ºs 62/85,
90/85, 90/85 e 450/87, publicados, respectivamente, no Diário da República, II
Série, de 31 de Maio de 1985 e 11 de Julho de 1985, e nos Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 10.º volume, pp. 573 e seguintes).
É certo que a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem aceite e reconhecido
situações limite em que não é exigível o cumprimento deste ónus por parte do
recorrente.
Tal sucede quando, por exemplo, o interessado não teve qualquer oportunidade
processual para intervir, formulando nos termos tidos por convenientes, a
impugnação jurídico-constitucional atinente a determinada norma, respectivo
segmento, conjunto de normas ou dimensão normativa.
A ausência de oportunidade processual foi já aferida quando, entre outras
situações, o Tribunal considerou não ser exigível, ao recorrente, a antecipação
da aplicação ao caso concreto de determinada norma ou interpretação normativa (é
o caso, por exemplo, dos Acórdãos n.ºs 61/92 e 272/92, publicados,
respectivamente, no Diário da República, II Série, de 18 de Agosto e 23 de
Novembro de 1992).[1]
Para que tal excepção proceda, no entanto, é imperioso que se esteja perante uma
factualidade de tal modo anómala ou excepcional que a situação de aplicação ou
interpretação normativa seja realmente imprevista ou inesperada em termos que a
antecipação da mesma e, consequentemente, a suscitação da questão de
constitucionalidade em momento anterior ao do esgotamento do poder jurisdicional
do tribunal recorrido, não seja exigível ao interessado.
Ocorreu tal circunstancialismo de excepcionalidade no caso em apreço?
A resposta não pode deixar de ser negativa. Vejamos:
As excepções enunciadas assentam todas num pressuposto irredutível que consiste
no facto de, sumariamente, não ser exigível ao interessado na interposição do
recurso de constitucionalidade o cumprimento do ónus atinente à suscitação da
questão de forma atempada – durante o processo – isto é, antes de esgotado o
poder jurisdicional do tribunal a quo.
A Reclamante invoca não ter tido oportunidade de suscitar, de forma precisa e
clara, a inconstitucionalidade no recurso que interpôs para o Supremo Tribunal
de Justiça “porquanto o entendimento inconstitucional do artigo 420.º n.º 1 do
Código de Processo Penal e do recurso à ‘dupla conforme’ que aqui se destaca
somente surgiu na decisão recorrida”.
Como se diz no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 678/99, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt, “tem o Tribunal entendido que uma das situações
em que o interessado não dispõe de oportunidade processual para suscitar a
questão de constitucionalidade antes de esgotado o poder jurisdicional do
tribunal a quo é precisamente a daqueles casos em que o recorrente é confrontado
com uma situação de aplicação ou interpretação normativa, feita pela decisão
recorrida, de todo imprevisível ou inesperada, em termos de não lhe ser exigível
que a antecipasse, de modo a impor-se-lhe o ónus de suscitar a questão antes da
prolação dessa decisão.” (sublinhado nosso)
Neste sentido vejam-se também, por exemplo, os Acórdãos deste Tribunal n.ºs
650/99, 507/99 e 503/96, entre outros (os dois primeiros inéditos, disponíveis
no site já referido, e o último publicado no Diário da República, II Série, de 4
de Julho de 1996).
Portanto, e também como se diz no Acórdão n.º 489/94 (publicado no Diário da
República, II Série de 16 de Dezembro de 1994) deste mesmo Tribunal
Constitucional: “cabe às partes considerar antecipadamente as várias hipóteses
de interpretação razoáveis das normas em questão e suscitar antecipadamente as
inconstitucionalidades daí decorrentes antes de ser proferida a decisão.”
No caso sub judicio constata-se que o entendimento propugnado pelo Supremo
Tribunal de Justiça nos termos do qual, para efeitos do disposto no artigo
400.º, n.º 1, alínea f) do Código de Processo Penal, se reconhece como decisão
confirmatória de condenação proferida em 1.ª instância aquela em que o Tribunal
da Relação rejeita o recurso por inadmissibilidade não é novo. Tal resulta
igualmente da própria fundamentação da decisão recorrida que cita o Acórdão
daquele Tribunal de 13 de Setembro de 2003, proferido no âmbito do processo n.º
2163/03, o qual adoptou a mesma orientação.
A mesma orientação é adoptada noutros arestos do Supremo Tribunal de Justiça
como é o caso do Acórdão de 15 de Outubro de 2003 (Processo n.º 1870/03-P,
disponível em www.dgsi.pt) no qual se pode ler que “como tem entendido este
Supremo Tribunal, um acórdão que rejeita um recurso deve ser considerado como
confirmativo do acórdão recorrido. O instituto da rejeição de um recurso não
pode ter outro sentido que não seja o de confirmar, para todos os efeitos
legais, a decisão posta em crise, isto é, manter como estava o anterior julgado.
Essa manutenção realiza a ideia da dupla conforme.”
Adiante-se ainda que, mesmo implicitamente, a própria Reclamante antecipou a
possibilidade de o recurso vir a não ser admitido. Tal conclusão resulta do
facto de a mesma, tendo interposto, em simultâneo, recurso da decisão da Relação
para o Tribunal a quo e recurso de constitucionalidade para este Tribunal
Constitucional, vir depois declarar, na motivação do primeiro, que desistia do
segundo caso aquele viesse a ser aceite. Depreende-se, portanto, que a
Reclamante antecipou a possibilidade de decisão de inadmissibilidade do recurso.
E essa antecipação adveio, exactamente, do juízo de prognose que aquela efectuou
face à (possibilidade de) aplicação do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), isto é,
da norma que, como se constatou supra, constituiu o fundamento da decisão de
rejeição do recurso do Acórdão da Relação por inadmissibilidade.
O Tribunal Constitucional tem afirmado amiúde que só é de reconhecer a não
exigibilidade ao recorrente de suscitação atempada da questão de
constitucionalidade quando a interpretação da norma pela decisão seja inesperada
de modo a que aquele não pudesse, razoavelmente, antecipar tal cenário (é o
caso, por exemplo, entre outros, dos Acórdãos n.ºs 479/89 e 367/96, publicados,
respectivamente, no Diário da República, II Série, de 24 de Abril de 1992 e de
10 de Maio de 1996). Não basta que o juízo decisório não coincida com a
interpretação efectuada ou pretendida pelo interessado. É necessário ainda que o
mesmo surja como verdadeira decisão-supresa o que sobejamente não sucede quando,
como ocorreu nos autos, aquele corresponda à interpretação lógica da norma em
questão [artigo 400.º, n.º 1, alínea f) do Código de Processo Penal] e postula
entendimento já constante de jurisprudência anterior que a Reclamante, se
ignorava, não devia desconhecer. E cremos, de facto, que não o desconhecia dada
a ressalva que efectuou relativamente à desistência do recurso de
constitucionalidade caso o recurso para o Supremo viesse a ser admitido.
Como se afirmou no Acórdão n.º 479/89, publicado no Diário da República, II
Série, de 24 de Abril de 1992, “ (…) desde logo terá de ponderar-se que não pode
deixar de recair sobre as partes em juízo o ónus de considerarem as várias
possibilidades interpretativas das normas de que se pretendem socorrer, e de
adoptarem, em face delas, as necessárias cautelas processuais (por outras
palavras, o ónus de definirem e conduzirem uma estratégia processual adequada).
E isso - acrescentar-se-á também logo mostra como a simples «surpresa» com a
interpretação dada judicialmente a certa norma não será de molde (ao menos,
certamente, em princípio) a configurar uma dessas situações excepcionais
(voltando agora à nossa questão) em que seria justificado dispensar os
interessados da exigência de invocação «prévia» da inconstitucionalidade perante
o tribunal a quo.” (sublinhado nosso)
Ora, se a interpretação da norma se afigura como lógica ou até mesmo expectável,
como sucede no caso dos autos e parece ter sido, ainda que implicitamente,
reconhecido pela Reclamante, não pode esta depois alegar a impossibilidade de
cumprimento, em tempo, do ónus de suscitação da questão de constitucionalidade.
Assim, a decisão do Supremo Tribunal de Justiça não pode ser considerada uma
“decisão surpresa”, uma vez que ao confirmar o Acórdão do Tribunal da Relação de
Coimbra, não tem carácter insólito ou imprevisível (o que poderia dispensar a
recorrente do cumprimento adequado daquele ónus).
Efectivamente, não seria desrazoável ou inadequado exigir da recorrente um juízo
prévio relativo a uma possível confirmação da decisão da Relação de Coimbra,
pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Nesse caso, antecipando essa possibilidade, poderia ter suscitado a questão de
inconstitucionalidade durante o processo, o que não aconteceu.
Portanto, também aqui falha um dos pressupostos de conhecimento do recurso
atinente à fiscalização concreta da constitucionalidade, sem os quais não pode
este Tribunal tomar conhecimento das questões de constitucionalidade suscitadas.
III – Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência,
confirmar a decisão reclamada.
Custas pela Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em ( 20 ) UCs.
Lisboa, 10 de Julho 2007
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos
[1] Para maiores desenvolvimentos sobre estas circunstâncias de excepcionalidade
cfr. Inês Domingos e Margarida Menéres Pimentel, “O Recurso de
Constitucionalidade (espécies e respectivos pressupostos)”, in Estudos sobre a
Jurisprudência do Tribunal Constitucional, AEQUITAS, 1993, pp. 568 e seguintes.