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Processo n.º 58/03
1ª Secção
Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
Acordam no Tribunal Constitucional
I.
Relatório
1.
1.1.
A. (Crédito), Lda., requerida no procedimento cautelar de entrega judicial e
cancelamento do registo movido por B., SA, recorreu para a Relação de Lisboa do
despacho de fls. 173 dos autos que lhe indeferiu, no que releva para o presente
recurso, as inconstitucionalidades orgânica e material dos artigos 17º e 21º
contidos, respectivamente, nos Decretos-Lei n.ºs 149/95 de 24 de Junho e 265/97,
de 2 de Outubro, por si anteriormente suscitadas na oposição à instaurada
providência cautelar.
1.2.
Por acórdão de 11 de Dezembro de 2002 a Relação de Lisboa negou provimento ao
recurso interposto pela requerida.
Pode ler-se no texto desse aresto:
“(…)
b) Inconstitucionalidade material
A recorrente conclui que as normas acima mencionadas sofrem de
inconstitucionalidade material por violação do princípio da igualdade, uma vez
que estabelecem uma discriminação injustificada entre o locador financeiro e o
locador comum.
Como vimos o instituto da locação financeira não tem por escopo a realidade
sócio‑económica, rectius funções sociais.
É uma forma de financiar a aquisição de habitação.
Na realidade a leasing faz um investimento para ceder o uso e aquisição ao
locatário, ou seja, possibilita com o financiamento a aquisição imobiliária. Tem
uma função de financiamento.
A cedência do gozo surge como uma forma de financiar a aquisição imobiliária,
afastando-se do regime vinculístico que visa a garantia do direito à habitação.
Na palavra de Calvão da Silva (in “Estudos de Direito Comercial”, pag. 26) o
locador tem a obrigação de conceder mas não de assegurar o gozo da coisa ao
locatário.
Na locação tradicional artigo 1031º, al. b), do C.Civil o locatário paga a
contraprestação — as rendas — para poder gozar a coisa.
Daí se tratar de situações diferentes, uma (arrendamento/habitação) em que
estamos perante o direito de habitação e por isso se limita o direito de
propriedade. E outra, uma operação financeira realizada por uma empresa que
investe, com risco que tal envolve, facilitando o acesso ao imobiliário.
Em remate:
As situações envolvem perspectivas diferentes:
locação geral — estabilidade da habitação;
leasing — garantia do financiamento da aquisição imobiliária. Logo, há um
tratamento desigual para realidades diferentes.
Ora o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da CRP requer que se dê
tratamento igual ao que for essencialmente igual e que se trate diferentemente o
que for essencialmente diferente.
Ele não proíbe distinções de tratamento. Proíbe tão só a discriminação, o
arbítrio legislativo (cfr. Ac. do Tribunal Constitucional nº128/99, de 3.3,
publicado no DR de 6.7.99, II Série, pag. 9669).
E é jurisprudência uniforme do TC que o direito de acesso à justiça embora não
comporte a garantia generalizada de um direito ao recurso, o princípio da
igualdade proíbe o estabelecimento de limitações arbitrárias ou discricionárias
à impugnação, em certas causas, de determinadas decisões judiciais.
Donde as normas sub iudicio não ofendem os artigos 13º e 165º, nº1, al. b) da
Constituição, ou seja, não se mostram inquinadas do vício da
inconstitucionalidade material no que respeita os princípios da igualdade e do
direito à habitação.
No artigo 21º, nº1, na parte em que se interprete a norma que dispensa a
alegação e prova do fundado receio do prejuízo já que não estamos perante um
esbulho violento, ou por outras palavras, ao não prever o requisito “periculum
in mora” — fundado receio de lesão grave — parece haver uma diminuição grave das
garantias de defesa (do contraditório).
A medida é um desvio ao artigo 395º do C.P.Civil — contraditório normal que tem
a ver com o processo equitativo, decorrendo deste o contraditório de que deverá
aquilatar‑se da inconstitucionalidade das normas processuais.
Como adverte Lopes do Rego (in “Estudo sobre Intervenções Processuais”, Rev.
M.P., ano 23º, nº 91, págs. 159 e ss. e na separata de Estudos em Homenagem a
Cunha Rodrigues) os princípios da igualdade de partes e do contraditório
constituem directas emanações do princípio da igualdade. Aliás, a jurisprudência
constitucional vem conferindo relevância fundamental ao princípio da igualdade
processual enquanto expressão da garantia da via judiciária. Assim, a sua
hipotética violação consubstancia, naturalmente, uma inconstitucionalidade
material por violação dos artigos 2º e 13º, nº1, da CRP. Nanja,
inconstitucionalidade orgânica catalogada pela recorrente, sabido que a nível
processual, segundo é jurisprudência uniforme do Tribunal Constitucional, aquela
só se coloca no âmbito do processo penal e da competência.
A garantia constitucional do acesso ao direito e aos Tribunais envolve, além do
mais, a imposição de que o processo, uma vez iniciado, deva subordinar-se a
determinados princípios fundamentais, designadamente o contraditório (ínsito no
nº1 do artigo 20º da Lei Fundamental), dimensionado nos nºs 4 e 5 onde se
prescreve o direito à obtenção de uma decisão em prazo razoável, mediante
processo cuja tramitação se mostre estruturada em termos equitativos.
A regra do contraditório comporta, desde logo, como dimensão essencial o
princípio da “proibição da indefesa”, contido no âmbito normativo do direito de
acesso à justiça.
Tal princípio constitucional obsta, pois, à vigência de qualquer regime
adjectivo que “priva por completo o interessado de poder apresentar perante o
Tribunal qualquer tipo de defesa, acabando por ser confrontado com uma decisão
condenatória cujos fundamentos de facto e de direito não teve oportunidade de
contraditar” — cfr. Ac. Constitucional nº449/94, Acs. do TC, 28º, pag. 319.
Como escreve Manuel de Andrade o princípio do contraditório significa que: “cada
uma das partes é chamada a deduzir as suas razões (de facto e de direito), ao
oferecer as suas provas, a controlar as provas do adversário e discretear sobre
o valor e resultados de umas e outras” (Noções Elementares do Processo Civil,
1976, pág. 377).
Por seu lado, a consagrada previsão constitucional do “direito a um processo
equitativo” para além de constituir um acrescido fundamento dos princípios de
igualdade e do contraditório das partes traduz a dimensão da regra do
contraditório expressa no princípio da proibição de convolações inesperadas ou
da prolação de “decisões surpresa”.
O princípio do contraditório impõe que antes da decisão, ambas as partes sejam
ouvidas, ainda que não pessoalmente em certos casos excepcionais, porém, para
garantir o fim da determinada providência determina-se que o réu seja ouvido
depois dela efectuada.
Nestes casos a audição do réu deve ser garantida “ex_post”, sendo-lhe então
possibilitadas meios de defesa quanto possível idênticos ao que teria se o
contraditório fosse assegurado desde o inicio (Lebre de Freitas in “Estudos
sobre Direito Civil e Processo Civil”, pág. 20).
O que se harmoniza com a jurisprudência reiterada do TC que vem entendendo que
não viola o direito ao contraditório a possibilidade de no âmbito de alguns
procedimentos cautelares, a providência poder ser provisoriamente decretada sem
prévia audição do requerido, desde que lhe fiquem assegurados os meios
impugnatórios para controverter a decisão que decretou a providência requerida
(Acs. nos 598/99 — DR, II, de 20.5.00 — e 337/99 — DR, II, 22.7.99).
Este tipo de providências consomem o pedido material, uma vez que o antecipam,
mas a alteração do estado das coisas não deixa de ser provisória sujeita ainda a
confirmação na decisão da acção principal, ao invés do carácter definitivo
atribuído pela agravante.
Menezes Cordeiro (in Manual de Direito Bancário, págs. 556/557) escreve que o
artigo 21º estabelece um esquema expedito para o locador reaver o bem no caso da
cessação do contrato.
Trata-se de uma providência cautelar especialmente adaptada, que permite a
rápida recuperação do bem. Visou-se, assim, responder às lições da prática: o
locatário podia, através de diversos esquemas dilatórios, frustrar o domínio do
locador.
Importa agora saber como se tem densificado o direito a um processo equitativo
das partes no processo civil reconhecido no artigo 20º, nº4, da CRP [que integra
o direito de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos nas suas duas
vertentes: o direito à discussão contraditória e o direito à igualdade de armas
(equilíbrio entre as partes na apresentação das respectivas teses, ou seja, dos
meios processuais que para o efeito dispõem)], no quadro da justiça cautelar,
cuja decisão provisória se funda na aparência do direito e no periculum in mora.
A dispensa deste último requisito, em princípio, na medida em que se traduz numa
diminuição das garantias de defesa do próprio processo equitativo podia parecer
brigar com o nº4 do artigo 20º da CRP.
Porém, no domínio das providências cautelares há uma preocupação de simplicidade
e celeridade — assentes na necessidade de dirimição do litígio em tempo útil.
Mas como observa Lopes do Rego (ob. cit. pag.161) aquelas exigências implicarão
um delicado balanceamento ou ponderação de interesses por parte do legislador
infraconstitucional — podendo nelas fundadamente basear-se o estabelecimento de
certos efeitos cominatórios ou preclusivos para as partes ou a adopção de
“mecanismos que desencorajem as partes de adoptar comportamentos capazes de
conduzir ao protelamento indevido do processo”, sem, todavia, aniquilar ou
restringir desproporcionadamente o núcleo fundamental do direito de acesso à
justiça e os princípios e garantias de um processo equitativo que lhe estão
subjacentes, como instrumentos indispensáveis a obtenção de uma decisão
jurisdicional — não apenas célere — mas também justa, adequada e ponderada.
No concreto as normas em causa não rompem o equilíbrio entre as partes, a favor,
designadamente, da sociedade locadora.
Com efeito, a norma do nº1 do artigo 21º no que respeita ao leasing de imóveis
perante a rápida recuperação do bem no caso de cessação do contrato, em que
legislador dá prevalência a critérios de racionalidade económica o que se
apresenta razoável atento a que a actividade da locadora é puramente financeira,
sendo a possuidora da coisa em termos de propriedade e não dever estar sujeita a
sua devolução e esquemas dilatórios do locatário. E como aqueles imóveis
representam um capital financeiro investido e que fica imobilizado se não
obtiver a imediata entrega dele findo o contrato, o que por si só traduz uma
lesão grave do direito, a justificar de pleno a dispensa da prova em concreto do
prejuízo.
E doutra parte o interesse da locatária pode ser acautelado pela prestação de
uma caução em substituição do decretamento da providência, aqui admissível por
visar evitar um prejuízo patrimonial.
A norma do artigo 17º remetendo o regime da resolução para os termos gerais,
substituindo-o ao da locação comum, não colide com a garantia do processo
equitativo e tão pouco com o direito de defesa — os princípios de igualdade e do
contraditório — a questão surge tão só por a recorrente, ao arrepio de toda a
jurisprudência e doutrina, considerar o contrato de locação financeira como uma
sub-espécie da locação comum.
Em conclusão: as normas dos artigos 17º e 21º, nº1, do Dec. Lei nº149/95 com as
alterações introduzidas pelo Dec. Lei nº256/97 não padecem de
inconstitucionalidade material.
Improcedem, assim, todas as conclusões da alegação da recorrente.
2.
Inconformada, recorreu a A., para o Tribunal Constitucional ao abrigo do
disposto no artigo 70º n.º 1 alínea b) da Lei nº 28/82 de 15 de Novembro,
pretendendo a apreciação da conformidade constitucional das normas dos artigos
17º e 21º do Decreto-Lei n.º 149/95 de 24 de Junho, com as alterações
introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 265/97 de 2 de Outubro, na sua aplicação ao
contrato de locação financeira de imóveis, “por enfermarem de
inconstitucionalidade:
a) orgânica, com fundamento na violação do disposto no art. 165º, nº 1, al. b),
da CRP, que fixa como matéria da reserva relativa de competência legislativa da
Assembleia da República a locação de bens imóveis, tendo os aludidos diplomas
sido aprovados pelo Governo sem qualquer autorização legislativa;
b) material, com fundamento na violação dos Princípios da Igualdade, Direito de
Defesa e Direito à Habitação, consagrados nos arts. 13º, 20º e 65º da CRP.”
2.1.
A recorrente alegou e concluiu:
A) O termo locação é utilizado juridicamente para identificar tanto o
arrendamento como o aluguer (art. 1023º do CC).
B) A qualificação de um contrato é feita atendendo-se aos seus elementos
essenciais.
C) Um sub-tipo de um contrato tem presente tanto os mesmos elementos essenciais
que caracterizam um determinado tipo de contrato, como aqueles elementos que lhe
são próprios, as próprias especialidades.
D) Os elementos próprios de um sub-tipo não o afastam em relação ao tipo — se
esse excesso não impede a qualificação, não há razão para o autonomizar.
E) O elemento essencial definidor da locação é “o contrato pelo qual uma das
partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante
retribuição” (1022º CC).
F) É também este o elemento essencial da locação financeira, aos quais o
legislador acrescentou, como traços pretensamente próprios da locação
financeira, o facto de o bem móvel ou imóvel ser, em regra, adquirido ou
construído por indicação do locatário e o locatário ter a faculdade de, findo o
período acordado, optar por adquirir o bem por um preço determinado ou
determinável (art. 1º do DL nº 149/95).
É este equilíbrio ou fundamento que está totalmente quebrado no procedimento
especial previsto no art. 21º do DL nº 149/95. nºs 149/95 e 265/97.
29.2. O legislador arredou o direito de defesa e permitiu a emissão de uma
decisão judicial com efeitos definitivos, dispensando o respectivo requerente de
alegar ou provar qualquer justo receio da produção de prejuízos pela demora na
emissão de uma decisão proferida depois de respeitados os direitos de defesa e
de recurso.
Razão pela qual o regime do art. 21º do DL nº 149/95, com as alterações
introduzidas pelo DL nº 265/97, é inconstitucional por violação do direito de
defesa e de recurso, consagrados no art. 20º da CRP.
29.3. Relativamente ao Direito à Defesa, confira-se o que, escreveram os Profs.
Gomes Canotilho e Vital Moreira (ob. cit., pág. 164):
“(…) deve assinalar-se ainda a proibição da «indefesa» que consiste na provação
ou limitação do direito de defesa do particular, perante os órgãos judiciais,
junto dos quais se discutem questões que lhe dizem respeito. A violação do
direito à tutela judicial efectiva, sob o ponto de vista da limitação do direito
de defesa, verificar-se-á sobretudo quando a não observância de normas
processuais ou de princípios gerais de processo acarreta a impossibilidade de o
particular exercer o seu direito de alegar, daí resultando prejuízos efectivos
para os seus interesses (...)”.
Ora, nenhum destes dois elementos é essencial ao contrato de locação financeira:
(i) quanto à aquisição ou construção do bem por indicação do locatário, nada
impede que a locadora seja proprietária do bem antes da celebração do contrato
de locação financeira (vd. art. 7º do DL no 149/95, onde se alude à locação de
bens já propriedade da locadora); (ii) a faculdade do 1ocatário de, findo o
período acordado, optar por adquirir o bem por um preço determinado ou
determinável é um elemento que tem que estar sempre presente, mas cujo relevo se
faz sentir apenas no termo do contrato, para além de se tratar de uma mera
faculdade (o facto de o locatário exercer ou não essa faculdade de optar por
adquirir o bem em nada afecta a validade e eficácia do contrato e em nada
prejudica a plena produção de efeitos do contrato ao longo do seu período de
vigência).
G) O contrato de locação financeira é, só pode ser, uma sub-espécie do contrato
de locação, o que o legislador do DL nº 149/95 deixou, aliás, bem vincado nesse
diploma (cfr. art. 10º, nº2, 110, nº 1, e 17º).
H) O DL nº 149/95 e o DL nº 265/97 foram aprovados pelo Governo sem qualquer lei
de autorização legislativa da Assembleia da República, pelo que o Governo agiu
como se estivesse a legislar em matéria não reservada a Assembleia da República.
1) Contudo, o regime geral da locação de imóveis, ou, o regime geral do
arrendamento urbano e rural, é matéria da reserva relativa de competência da
Assembleia da República (art. 165º, nº 1, al. h), da CRP, anterior art. 168º).
Estatuindo a referida al. h) que a reserva relativa diz respeito ao “...regime
geral do arrendamento rural e urbano” pode assim o Governo criar regimes
especiais, sendo o regime jurídico da locação financeira um tal regime especial.
J) O Governo pode em matéria de locação de imóveis (arrendamento) criar por si
só regimes especiais, mas desde que respeite as bases gerais do regime geral
definidas pela Assembleia da República. Entre essas bases gerais intocáveis para
o Governo “...conta‑se seguramente o regime da celebração do contrato e da sua
cessação...”.
L) No art. 17º do DL nº 149/95, o legislador, mais concretamente o Governo,
trilhou um caminho que lhe estava vedado: afastou o princípio basilar que a
resolução do contrato de locação por falta de cumprimento do locatário tem que
ser decretada pelo tribunal.
M) O regime de cessação do contrato de locação de imóveis (ou, dito com mais
propriedade, o arrendamento) é matéria vedada ao poder legislativo Governo,
salvo autorização da Assembleia da República.
N) O Governo criou legislação que regula os termos de uma sub-espécie do
contrato de arrendamento para habitação e para o exercício de actividade
comerciais, serviços ou indústria, sendo que o fez em moldes que afrontam e
derrogam os princípios gerais vigentes nesta matéria e cuja definição cabe na
reserva relativa de competência da Assembleia da República.
O DL n.º 149/95 e o DL n.º 256/97, tendo o último alterado o primeiro, sofrem,
assim, de inconstitucionalidade orgânica, muito em especial quanto o regime
vertido no art. 17º, na parte que regula a cessação do contrato de locação
financeira.
O) O regime jurídico vertido nos citados DL nº 149/95 e DL nº 256/97, também
materialmente, e a dois níveis, afronta a Constituição.
P) Uma instituição financeira, em caso de falta de pagamento pontual das rendas
(i) resolve unilateralmente o contrato de locação; (ii) tal resolução produz
logo efeitos, sem necessidade de declaração judicial; (iii) se o arrendatário
não proceder de imediato à devolução do imóvel locado, a locadora tem ao seu
dispor um procedimento cautelar especial, cujo decretamento não depende da
existência de qualquer justo receio; (iv) com o singelo decretamento do
procedimento cautelar, isto é, com uma mera prova sumária, o imóvel é entregue à
locadora, esta pode cancelar o registo predial da locação e, sem mais, dispor do
imóvel.
Q) O “locador comum” perante a falta de pagamento de rendas: (i) não pode
resolver o contrato, tendo para o efeito que intentar a correspectiva acção
declarativa para que a resolução seja judicialmente declarada; (ii) da sentença
que declare a resolução do contrato, o locatário tem sempre recurso,
independentemente do valor, para a Relação, com efeito suspensivo; (iii) o
locador não dispõe de qualquer procedimento cautelar especial para reaver o
imóvel, e o procedimento cautelar comum ou os nominados no CPC não são
admissíveis para o efeito, porque a entrega do imóvel só pode ocorrer após a
resolução do contrato e esta tem que ser judicialmente declarada; (iv) a entrega
do imóvel contra a vontade do locatário só ocorre em sede de execução de
sentença e, mesmo aí, pode ocorrer o diferimento da desocupação.
R) O chamado contrato de locação financeira de imóveis, na terminologia dos DLs.
nº 149/95 e nº 265/97, goza de um regime jurídico incomensuravelmente mais
favorável aos locadores — qualidade aí restrita a instituições financeiras — por
comparação com o regime jurídico da locação comum de imóveis. ´
S) O regime bastante favorável à locadora previsto nos DLs. nº 149/95 e no
265/97, tem por base o permitir que a locadora financeira não fique atado a um
locatário que não cumpre — a situação mais comum será a de um locatário que não
paga as rendas.
Ora, o locador comum tem, tanto quanto a instituição financeira, o seu
património, os seus meios financeiros, investidos num imóvel que deixa de gerar
rendimento.
As razões que valem para as instituições financeiras valem, com igual ou mais
peso, para o locador comum, pelo que resta a firmar que se criou um regime
jurídico de privilégio para as instituições financeiras.
T) O locatário comum não pode ter nem mais nem menos que as instituições
financeiras. Não há razão para os privilégios criados e reservados às
instituições em matéria de locação.
U) Em termos de funcionamento do Princípio da Igualdade vale a materialidade, a
substância, e não a forma ou a aparência, pelo que não colhem os argumentos
expendidos no Douto Acórdão recorrido no sentido de justificar a diferença de
regimes com a diferença de situações.
V) O regime vertido nos arts. 17º e 21º do DL nº 149/95, com as alterações
introduzidas pelo DL nº 265/97, sofre assim de inconstitucionalidade material
por violação do Princípio da Igualdade, consignado no art. 13º da CRP, porquanto
consagra uma discriminação ilegítima, um tratamento diferenciado injustificado,
a favor das instituições financeiras que se dedicam à locação de imóveis.
X) O artigo 21º do DL nº 149/95, com as alterações que lhe foram introduzidas
pelo DL nº 265/97 sofre também de uma inconstitucionalidade material por
violação do Direito de Defesa e do Direito à Habitação, constitucionalmente
consagrados (arts. 20º e 65º da CRP).
Y) O art. 21º do DL nº 149/95 consagra, sob a falsa capa de um procedimento
cautelar, uma verdadeira acção declarativa, permitindo ainda a agressão de
direitos constitucionalmente consagrados, como a habitação e o direito de
defesa.
Z) O art. 21º do DL nº 149/95 possibilita a um tribunal proferir uma decisão com
efeitos definitivos sobre os direitos dos particulares, baseado numa prova
sumária e mesmo sem que o particular seja ouvido. Veja-se que com a mera decisão
do procedimento cautelar, a locadora poder alienar o imóvel locado, o que
significa que mesmo tendo o particular a razão do seu lado, e que o demonstre
depois, já não poderá recuperar o imóvel.
AA) A CRP não admite uma justiça sumária nem admite a existência de decisões
definitivas dos tribunais sem respeito pelo Direito de Defesa. A desvalorização
do Direito de Defesa em sede de procedimentos cautelares é feita tendo por base
a demonstração de um justo receio de prejuízos irreparáveis e com o limite de se
tratar de uma decisão provisória, o que está totalmente quebrado no procedimento
especial previsto no art. 21º do DL nº 149/95.
AB) O regime do art. 21º do DL nº 149/95, com as alterações introduzidas pelo DL
no 265/97, é inconstitucional por violação do direito de defesa e de recurso e
do direito à habitação, consagrados nos arts. 20º e 65º da CRP.
AC) Assim, requer-se seja proferido Acórdão que declare a inconstitucionalidade
orgânica dos DL nº 149/95 e DL nº 265/97, por violação da reserva relativa de
competência da AR, e a inconstitucionalidade material do regime contido nos
arts. 17º e 21º do DL nº 149/95, com as alterações que lhe foram introduzidas
pelo segundo diploma citado, por violação dos arts. 13º (Princípio da
Igualdade), 20º (Direito de Defesa e Recurso), 65º (Direito à Habitação), 165c,
nº 1, al. h) (art. 168º, nº i, al. h), na anterior versão) e 198º, nº 1, al. a)
(art. 201º, nº 1, al. a), na anterior versão), todos da CRP, em ambos os casos
quanto à locação financeira de imóveis, e, em consequência, seja ordenada a
remessa dos autos ao Tribunal da Relação de Lisboa, nos termos e para os efeitos
do art. 80º, nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional.”
2.2.
Foi posteriormente proferido despacho, pelo relator, com o seguinte teor:
1. A sociedade comercial denominada A. (Crédito), LDA, recorre para
o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei
n.º 28/82 de 15 de Novembro (LTC) impugnando a conformidade constitucional de
normas contidas nos artigos 17º e 21 do Decreto-lei n.º 149/95 de 24 de Junho,
na versão do Decreto-Lei n.º 265/97 de 2 de Outubro.
O recurso foi recebido e a recorrente apresentou alegação.
Acontece que a decisão aqui recorrida – o acórdão da Relação de Lisboa de 11 de
Dezembro de 2002 – foi proferida no âmbito de uma providência cautelar e pode
entender-se que não cabe recurso de constitucionalidade de tais decisões quando,
como no caso se pode entender que aconteça, a questão que é objecto do recurso
se repercute não só na providência, como na acção principal, designadamente em
virtude de se questionar o 'regime' legal em que decorre tal providência, em vez
de se impugnar a conformidade constitucional de uma norma, devidamente
identificada, aplicada na decisão recorrida como sua ratio decidendi.
Deverá a recorrente, querendo, ser ouvida sobre este assunto, para o que dispõe
de 15 dias.
2. No mesmo prazo, deverá a mesma recorrente informar o Tribunal
sobre se se mantém a decisão recorrida e do estado da acção principal.
Decorrido o prazo de que dispunha para este efeito, a recorrente não respondeu,
nem prestou ao Tribunal o esclarecimento que lhe havia sido pedido.
Cumpre apreciar e decidir.
II.
Fundamentação
3.
Tem entendido o Tribunal Constitucional, na verdade, que não
cabe recurso de constitucionalidade das decisões proferidas nos procedimentos
cautelares quando a solução dada à questão que é objecto do recurso se repercute
não só na providência em análise como na acção principal de que aquela depende.
Efectivamente, dada a natureza do procedimento cautelar – que não visa a
resolução definitiva da questão jurídica que lhe está subjacente, mas apenas a
sua solução provisória para evitar o periculum in mora que poderá resultar em
cada caso submetido a apreciação jurisdicional – da decisão proferida no âmbito
destes procedimentos não pode caber, por princípio, recurso de
constitucionalidade, por não ser possível dar sequer por verificada, numa
decisão que se limita a valorar o fumus bonnus iuris, a aplicação definitiva de
norma substantiva aplicada como ratio decidendi da decisão provisória. Além
disso, uma decisão (por natureza definitiva) quanto à inconstitucionalidade de
norma substantiva aplicada no procedimento cautelar teria como resultado o
julgamento definitivo da lide.
Com efeito, a ser julgada a questão de constitucionalidade numa hipótese destas,
ou o julgamento não constituía caso julgado relativamente à acção principal,
onde podia ser tomada decisão diferente, ou constituía uma decisão definitiva,
subvertendo a lógica inerente à relação de instrumentalidade existente entre a
acção e o procedimento.
É perante esta dependência do procedimento cautelar face à
acção principal que tal jurisprudência se tem firmado e reiterado, por ser
efectivamente inconcebível, no sistema de fiscalização de constitucionalidade
normativa delineado na Constituição, que o Tribunal houvesse de proferir uma
decisão provisória de constitucionalidade – ver, neste sentido, o Acórdão n.º
151/85, publicado no Diário da República, II Série, de 31 de Dezembro de 1998.
O recorrente questiona a existência de um regime próprio de
locação financeira, por referência ao regime geral da locação; ora, esta questão
não pode deixar de ser tratada na decisão definitiva tomada na acção de que a
presente providência é dependente. Assim, das normas arguidas de
inconstitucionais pela recorrente e da verificação do vício que as afectaria
depende, igualmente, o juízo de mérito a proferir, quer no âmbito da providência
cautelar, quer no domínio da acção correspondente, argumento preponderante para,
de igual modo, não proferir decisão sobre a questão de constitucionalidade no
domínio deste processo de natureza cautelar. Neste sentido, e frisando este
argumento, bem como o igualmente expendido no aresto 151/85 já referido, também
já se pronunciou este Tribunal no seu Acórdão n.º 442/00, publicado no Diário da
República, II Série, de 5 de Dezembro de 2000.
Aí escreveu-se:
“(…)
4. Com efeito, quando a decisão (…) julgou não ser admissível o recurso
interposto para o Tribunal Constitucional, não se baseou na circunstância de se
pretender a apreciação da constitucionalidade de uma norma claramente
substantiva, cuja aplicação era determinante para o juízo de mérito proferido no
âmbito da providência requerida; assentou, sim, na verificação de que dessa
mesma norma dependia o juízo de mérito a proferir, quer no âmbito da
providência, quer no domínio da acção correspondente.
(…) O critério distintivo ali definido assenta, não na natureza adjectiva ou
substantiva da norma em causa, mas na circunstância de estar ou não em causa a
sua aplicação, simultaneamente, na acção principal e na providência cautelar, o
que não é equivalente. Assim, por exemplo, pode ser questionada a
constitucionalidade de uma norma que defina os requisitos substanciais de
concessão da providência cuja aplicação não tenha cabimento da acção principal.
Ora a circunstância de a mesma norma ser aplicável em ambos os casos é que torna
inadmissível o recurso interposto no âmbito da providência cautelar, atento o
valor meramente provisório, não da decisão de mérito nela proferida, como aponta
o reclamante, mas do juízo de constitucionalidade emitido igualmente ao julgar a
providência cautelar.
5. Na verdade, as duas razões são indissociáveis. Como claramente se afirma no
acórdão nº 151/85, seria a natureza provisória do juízo de constitucionalidade
efectuado ao julgar a providência cautelar que, fundamentalmente, justifica a
inadmissibilidade do recurso.
Com efeito, se fosse julgada a questão de constitucionalidade numa hipóteses
destas, ou o julgamento não constituía caso julgado relativamente à acção
principal, admitindo-se que, nesta, se viesse a emitir novo julgamento,
eventualmente não coincidente, com possibilidade de outro recurso para o
Tribunal Constitucional; ou constituía, subvertendo a lógica inerente à relação
de instrumentalidade existente entre a acção e o procedimento, pois que a sorte
daquela era traçada por uma decisão tomada no âmbito deste. (…)”
Acresce que o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado que só deve
conhecer do objecto dos recursos de constitucionalidade, mesmo que estes sejam
recursos obrigatórios, se a decisão que, a final, vier a proferir puder ter
qualquer relevo ou efeito útil sobre a situação concreta de que emerge o litígio
e o recurso que a ele corresponde. Ora, face ao silêncio da interessada, não é
possível agora antever qualquer utilidade no julgamento da questão no presente
procedimento, o que determina o não conhecimento do presente recurso – ver,
igualmente, o Acórdão n.º 235/01, publicado no Diário da República, II Série, de
19 de Janeiro de 2000.
É esta jurisprudência que se reitera e que se aplica ao
presente caso.
III.
Decisão
Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do
objecto do recurso de constitucionalidade interposto.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 12 UC’s.
Lisboa, 10 de Julho de 2007
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos