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Processo n.º 904/07
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, em Conferência, no Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º,
n.º 1, alíneas b) e g) da Lei do Tribunal Constitucional, do Acórdão do Tribunal
da Relação de Lisboa que confirmou o despacho do 1.º Juízo de Pequena Instância
Criminal de Loures pelo qual se determinou a execução da pena de 4 meses de
prisão devido a falta de pagamento voluntário ou coercivo, e subsequente
impossibilidade de cobrança da multa, em que havia sido condenado por condução
sem habilitação legal. Tal recurso não foi admitido pelo Exmo. Desembargador
Relator por despacho de fls. 54 nos seguintes termos:
“Dado que se trata de recurso manifestamente infundado (art. 76.º, n.º 2, da Lei
28/82, de 15-11) por suscitar a inconstitucionalidade de norma que não foi
levantada durante o processo, mas tão só nas alegações de recurso para o T.C.
(art.º 70.º, n.º 1, al. b) da mesma lei) não se admite o recurso.”
Inconformado, vem agora reclamar, nos termos do artigo 76.º, n.º 4 da mesma Lei,
do despacho de não admissão do recurso, alegando, para tanto, que:
“1 – A decisão de rejeição do recurso assenta na consideração de que se trata de
recurso manifestamente infundado (art°. 76°. n°. 2, do D.L. 28/82, de 15/11) por
suscitar a inconstitucionalidade da norma que não foi levantada durante o
processo mas tão só nas alegações de recuso para o T.C. (art°. 70°. nº. 1 al. b)
da mesma Lei) não se admite o mesmo.
2 – Falece, porém, razão, à decisão assim tomada.
3 – O recorrente recorreu também ao abrigo da alínea g) do art°. 70°., mas não
identificou a decisão do Tribunal Constitucional, que, com anterioridade, julgou
inconstitucional ou ilegal a norma aplicada pela decisão recorrida.
4 – Pelo que nos termos do n°. 5 do art°. 75°. A da L.T.C. o Exm°. Juiz devia
ter convidado o requerente a prestar essa indicação no prazo de 5 dias o que não
o fez.
5 – Posteriormente à interposição do recurso do despacho de fls. 78 dos autos de
18 de Abril de 2006, interposto em 16 de Maio de 2006, por o requerente ter sido
detido foi requerida a passagem de guias no valor de 480,00 € para pagar a multa
a que o arg°. tinha sido condenado, tendo o pai do arg°. pago a multa.
6 – Posteriormente à interposição do recurso e posterior pagamento do argº., por
despacho datado também de 16 de Maio de 2006, face à interposição de recurso e
mostrando-se efectuado o depósito de 480,00 €, foi determinado a passagem de
mandados de libertação imediata.
7 – Pelo que não foi possível ao recorrente arguir o vício de
inconstitucionalidade das normas questionadas, no Tribunal a quo, durante o
processo e mesmo no requerimento de interposição de recurso.
8 – Sendo assim só após o Acórdão do Tribunal da Relação e consequente Acórdão
ao pedido de Aclaração é que foi possível arguir os vícios de
inconstitucionalidade na própria interposição de recurso para o Tribunal
Constitucional
9 – Verifica-se que após a interposição do recurso e antes do Acórdão proferido
pelo Tribunal da Relação houve uma razão objectiva para manifesta situação
imprevisível, isto é, o arg°. interpôs recurso, foi detido e pagou a multa e já
após a interposição do recurso e com estes 2 pressupostos (interposição de
recurso e pagamento da multa) é que foi libertado.
10 – Pressupostos estes que não foram levantados no recurso por serem
posteriores à interposição deste.
11 – Além de que a interpretação dada aos artigos 44.º n°. 1 e 2, 47.º nº. 3, 4
e 5 e 49°. nº. 3 todos do C.P. na decisão recorrida foi de todo imprevisível,
não podendo razoavelmente o reclamante contar com a sua aplicação, isto é, nada
aproveita ao arg°. que após a prolação do despacho que está a fls. 78 e que
activou o procedimento descrito no art°. 44°. nº 2, do Código Penal, tenha sido
pago o montante da multa em questão, pois que, como decidiu o acórdão da Relação
de Guimarães de 9/2/2004. CJ 2004, 1-299, se o arg°. não pagou voluntariamente a
multa em que foi condenado, nem fez prova de que o não pagamento não lhe era
imputável, tem que cumprir a pena de prisão que, em substituição, lhe foi
aplicada. Por não ser aplicável ao caso o mecanismo do art°. 49°. n.º 2, do
Código Penal, não é admissível o pagamento da multa depois de o Juiz ter
determinado o cumprimento da pena de prisão de substituição.
12 – Na verdade, tendo a decisão interpretado de modo tão particular tais
normas, não era exigível ao reclamante prever que essa interpretação viria a ser
possível e viesse a ser adoptada na decisão.
13 – O uso inesperado e insólito de tal interpretação levou a que reclamante não
tivesse podido, em momento anterior ao da decisão, representar a possibilidade
de aplicação da norma com tal interpretação.
14 – Assim sendo, não se mostrava adequado exigir-lhe, no caso concreto, um
qualquer juízo de prognose relativo a essa aplicação, em termos de se antecipar
ao proferimento da decisão, suscitando logo a questão de inconstitucionalidade.
15 – Só perante a decisão proferida se viu o reclamante na possibilidade de
arguir a inconstitucionalidade em causa, tendo-o feito logo no primeiro momento
que se lhe impunha fazê-lo, ou seja, no requerimento de interposição do recurso.
16 – De resto, tem sido esta a jurisprudência defendida em vários acórdãos pelo
Tribunal Constitucional.
17 – Existem casos excepcionais ou anómalos em que o interessado, por não ter
disposto de oportunidade processual para levantar a questão antes de proferida a
decisão, a levantou após a sua prolação e o TC a considerou atempadamente
suscitada.
18 – Trata-se de casos em que não se torna possível aplicar a regra da arguição
da inconstitucionalidade até à decisão; casos em que tal exigência é dispensada
por se ter verificado uma situação excepcional ou anómala que justifica essa
dispensa
19 – A jurisprudência do TC permite-nos constatar a existência de três tipos de
situações:
a) O interessado não teve a possibilidade de suscitar a questão em virtude de
não lhe ter sido dada qualquer oportunidade para intervir no processo antes da
decisão;
b) Tendo intervido, a questão da inconstitucionalidade só pôde colocar-se
perante um circunstancialismo ocorrido já após a sua última intervenção
processual e antes da decisão;
c) Ao interessado não foi exigível que antevisse a possibilidade de aplicação da
norma ao caso concreto, de modo a impor-se-lhe o ónus de suscitar a questão
antes da decisão.
20 – É de se entender que na presente reclamação e no caso dos autos ocorreram
as 2 últimas situações.
21 – A orientação geral de que, após a prolação da decisão já não é possível
suscitar a questão de inconstitucionalidade, também não é de aplicar naqueles
casos anómalos ou excepcionais em que o recorrente é confrontado com uma
situação de aplicação ou interpretação normativa de todo imprevista e
inesperada, feita pela decisão. Aqui o interessado não dispões de ‘oportunidade
processual’ para suscitar a questão antes de esgotado o poder jurisdicional do
tribunal a quo, por não poder antever a possibilidade dessa aplicação (acs.
61/92, 188/93, 181/96, 569/95, 596/96).
22 – A utilização por parte da decisão do Tribunal da Relação, das referidas
normas, foi de todo insólita e imprevisível, sobre a qual seria desrazoável e
inadequado exigir ao interessado um prévio juízo de prognose relativo à sua
aplicação, em termos de se antecipar ao proferimento da decisão, suscitando logo
a questão de inconstitucionalidade, isto é, o arg°. interpôs recurso, foi detido
e pagou a multa e já após a interposição do recurso e com estes 2 pressupostos
(interposição de recurso e pagamento da multa) é que foi libertado. Pelo que não
foi possível levantar no recurso estas questões que só surgiram após a
interposição do recurso.
23 – A aplicação da interpretação dada pelo Tribunal da Relação às referidas
normas constituíram de todo em todo uma surpresa com a qual o interessado não
podia nem lhe era exigido contar, isto é, o arg° interpôs recurso, foi detido e
pagou a multa e já após a interposição do recurso e com estes 2 pressupostos
(interposição de recurso e pagamento da multa) é que foi libertado. Pelo que não
foi possível levantar no recurso estas questões que só surgiram após a
interposição do recurso.
24 – Além do mais as várias questões de inconstitucionalidades foram levantadas
ao longo do processo nas seguintes peças processuais:
a) no Recurso interposto em 16 de Maio de 2006 do despacho de fls. 78 dos autos
de 18 de Abril de 2006;
b) no Parecer do MP junto do Tribunal da Relação de fls. dos autos datado de 4
de Dezembro de 2006;
c) na Resposta a este Parecer junta aos autos em 20 de Dezembro de 2006;
d) no Douto Acórdão de fls. dos autos proferido em 17 de Abril de 2007;
e) no pedido de Aclaração quanto a este Acórdão junto aos autos em 30 de Abril
de 2007;
f) e no Douto Acórdão de fls. dos autos proferido em 29 de Maio de 2007.”
Notificado para se pronunciar, o Exmo. Magistrado do Ministério Público junto
deste Tribunal pugnou pela manifesta improcedência da reclamação nos seguintes
termos:
“A presente reclamação é manifestamente improcedente. Na verdade – e quanto ao
recurso fundado na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º, da Lei n.º 28/82 – é
evidente que o ora reclamante não suscitou, durante o processo e em termos
processualmente adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa,
idónea para servir de suporte a tal recurso – tendo oportunidade processual para
o fazer, nomeadamente no âmbito do recurso que interpôs para a Relação.
Relativamente ao recurso estruturado com base na alínea g) de tal preceito
legal, verifica-se que o ora reclamante continua a não especificar qual a
decisão deste Tribunal que teria anteriormente julgado inconstitucionais as
normas por ele arroladas, o que naturalmente – e só por si – o inviabiliza.”
Dispensados os vistos por se entender que a questão a resolver é simples, cumpre
apreciar e decidir.
II – Fundamentação
6. As reclamações sobre não admissão de recursos interpostos para o Tribunal
Constitucional destinam-se primordialmente a aferir da cognoscibilidade dos
respectivos objectos. Como se escreveu no Acórdão n.º 178/95, publicado no
Diário da República, II Série, de 21 de Junho de 1995, “destinam-se as
reclamações sobre não admissão dos recursos intentados para o Tribunal
Constitucional a verificar a eventual preterição, pelo Tribunal Constitucional,
de uma questão de constitucionalidade, em sede de recurso de
constitucionalidade. Mais do que apreciar a fundamentação do despacho de
indeferimento do recurso, há, pois, que verificar o preenchimento dos requisitos
do recurso de constitucionalidade que se pretendeu interpor.”
No mesmo sentido, confiram-se, entre outros, os Acórdãos n.ºs 641/99 e 387/2001,
disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Vejamos então se se encontram preenchidos os pressupostos dos recursos de
constitucionalidade que o ora Reclamante tentou interpor de modo a ajuizar se
houve ou não, de facto, preterição de conhecimento devido do objecto do recurso
por parte deste Tribunal Constitucional.
7. Vejamos, primeiramente, o recurso intentado ao abrigo do disposto no artigo
70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional. Esta norma respeita a
recursos de constitucionalidade cujo conhecimento pressupõe, sumariamente, a
verificação dos seguintes requisitos específicos − suscitação, de modo
processualmente adequado, pelo recorrente, de inconstitucionalidade de uma norma
durante o processo, constituindo essa norma fundamento (ratio decidendi) da
decisão recorrida, bem como o prévio esgotamento dos recursos ordinários.
No caso em apreço, tal não ocorreu. O Reclamante só invocou a
inconstitucionalidade das normas impugnadas no requerimento de interposição de
recurso para este Tribunal Constitucional. Fez uma mera referência ao artigo
32.º da Constituição, no final da motivação do recurso interposto para a
Relação, mas tal não é suficiente, de todo, para efeito de se dar como
preenchido o pressuposto de suscitação atempada e de modo processualmente
adequado da questão de constitucionalidade normativa.
8. O Tribunal Constitucional tem afirmado que só é de admitir a não
exigibilidade ao recorrente de suscitação atempada da questão de
constitucionalidade em casos muito restritos, nomeadamente quando a
interpretação da norma pela decisão seja inesperada de modo a que aquele não
pudesse, razoavelmente, antecipar tal cenário (é o caso, por exemplo, entre
outros, dos Acórdãos n.ºs 479/89 e 367/96, publicados, respectivamente, no
Diário da República, II Série, de 24 de Abril de 1992 e de 10 de Maio de 1996).
Não basta, no entanto, que o juízo decisório não coincida com a interpretação
efectuada ou pretendida pelo interessado. É necessário ainda que o mesmo surja
como verdadeira decisão surpresa o que sobejamente não sucede quando, como
ocorreu nos autos, aquele o Tribunal se limita a confirmar o juízo decisório
prolatado na 1.ª instância.
Como se afirmou no Acórdão n.º 479/89, publicado no Diário da República, II
Série, de 24 de Abril de 1992, “ (…) desde logo terá de ponderar-se que não pode
deixar de recair sobre as partes em juízo o ónus de considerarem as várias
possibilidades interpretativas das normas de que se pretendem socorrer, e de
adoptarem, em face delas, as necessárias cautelas processuais (por outras
palavras, o ónus de definirem e conduzirem uma estratégia processual adequada).
E isso – acrescentar-se-á também logo mostra como a simples ‘surpresa’ com a
interpretação dada judicialmente a certa norma não será de molde (ao menos,
certamente, em princípio) a configurar uma dessas situações excepcionais
(voltando agora à nossa questão) em que seria justificado dispensar os
interessados da exigência de invocação ‘prévia’ da inconstitucionalidade perante
o tribunal a quo.” (sublinhado nosso)
Mas isso também não aconteceu. O Reclamante não tem razão quando invoca “que a
utilização das normas foi de todo insólita ou imprevisível”. Fá-lo a propósito
da interpretação efectuada pela decisão recorrida nos termos da qual se
considerou não ser aplicável o mecanismo do artigo 49.º, n.º 2 do Código Penal.
Ora, se a interpretação da norma se afigura como expectável, ou, pelo menos,
previsível, como sucede no caso dos autos, não pode o Reclamante alegar a
impossibilidade de cumprimento, em tempo, do ónus de suscitação da questão de
constitucionalidade.
Assim, a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa não pode ser considerada uma
“decisão surpresa”, uma vez que, ao confirmar a sentença do 1.º Juízo de Pequena
Instância Criminal de Loures, e sustentando orientação que não é inovatória na
jurisprudência, não tem carácter insólito ou imprevisível (para efeitos de se
dar por dispensado o recorrente do cumprimento adequado do ónus de atempada
suscitação da questão de constitucionalidade).
9. O que o Reclamante pretende é atacar a interpretação que o Tribunal da
Relação de Lisboa supostamente havia encetado. Com efeito, quando a questão de
constitucionalidade é levantada, o Reclamante não procedeu à sua especificação
de modo processualmente adequado. Verdadeiramente o que vem impugnado é a
decisão judicial propriamente dita. Tal não pode, no entanto, ser objecto de
conhecimento dado não configurar verdadeira questão de constitucionalidade
normativa.
A fiscalização concreta da constitucionalidade nesta instância tem por objecto
normas (ou segmentos de normas), não competindo ao Tribunal Constitucional
sindicar nem de qualquer outro modo apreciar as decisões proferidas pelos outros
tribunais. Não tendo sido acolhida, no modelo português, a figura do “recurso de
amparo”, compete a este Tribunal, tão-somente, apreciar a compatibilidade dos
preceitos legais (ou segmentos normativos) com as normas e princípios
constitucionais. Tal resulta, claramente, do disposto nos artigos 280.º, n.º 1
da Constituição e 70.º, n.º 1 da Lei do Tribunal Constitucional.
10. Vem também interposto recurso ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea g) da
Lei do Tribunal Constitucional, norma relativa à recorribilidade, para efeitos
de fiscalização concreta da constitucionalidade, das decisões dos tribunais que
apliquem norma anteriormente julgada inconstitucional pelo Tribunal
Constitucional.
Para que se possa conhecer do objecto de tal recurso é necessário, igualmente,
que se encontrem preenchidos alguns requisitos específicos, nomeadamente a
indicação, pelo recorrente, do acórdão ou acórdãos deste Tribunal que tenham
julgado ou declarado as normas em questão inconstitucionais e que se verifique,
em concreto, a total identidade entre a norma ou a interpretação normativa
questionada nos autos e a que foi objecto de anterior pronúncia no sentido da
respectiva inconstitucionalidade.
Assim, a falta de preenchimento de qualquer um destes pressupostos processuais
implica a impossibilidade de conhecimento do recurso interposto ao abrigo da
citada alínea g).
11. Ora, nos autos o Reclamante não indicou qual a decisão (ou decisões) do
Tribunal Constitucional relevantes para a situação em apreço. Não só não o fez
no requerimento de interposição de recurso como também voltou a não o fazer na
reclamação, dizendo, inclusivamente que “O Exmo. Juiz devia ter convidado o
requerente a prestar essa indicação no prazo de 5 dias e não o fez.”
Não o tendo feito nunca, nem sequer na presente reclamação, não pode, por
conseguinte, proceder-se ao conhecimento do objecto do recurso.
12. Como se pode constatar, não se verificando os requisitos indispensáveis para
se poder tomar conhecimento de nenhum dos recursos interpostos, mais não resta
do que concluir pela manifesta falta de fundamento da presente Reclamação.
III – Decisão
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam em indeferir a presente
reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada no sentido de não
tomar conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 ( Vinte ) UCs.
Lisboa, 31 de Outubro de 2007
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos