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Processo nº 51/07
2ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A., por acórdão da 6ª Vara Criminal de Lisboa, foi condenado, como autor
material de um crime de homicídio qualificado, p.p. pelos artº 131º e 132º, nº
2, alíneas g) e i), do C.P., na pena de 18 anos de prisão, e pela prática de um
crime de detenção de arma proibida, p.p. pelo artº 275º, nº 1, do C.P., na pena
de dois anos e três meses de prisão. Em cúmulo foi condenado na pena única de 19
anos de prisão.
O arguido recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de
24-2-2005, negou provimento ao recurso.
Recorreu em seguida para o S.T.J. que, por acórdão de 1-6-2005, anulou
parcialmente o acórdão recorrido.
Em novo acórdão, proferido em 19-1-2006, o Tribunal da Relação de Lisboa voltou
a negar provimento ao recurso.
O arguido voltou a recorrer para o S.T.J., que, por acórdão de 6-9-2006, julgou
não provido o recurso, confirmando o acórdão recorrido.
O arguido arguiu a nulidade do acórdão do S.T.J., o que foi indeferido por
acórdão de 29-11-2006.
O arguido interpôs então recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do
disposto na alínea b), do nº 1, do artº 70º, da L.T.C., nos seguintes termos:
“Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade das normas dos artigos 127º,
144º, 150º, 355º e 356º, todos do Código de Processo Penal e 671º e 672º do
Código de Processo Civil, com a interpretação com que foram aplicadas na decisão
recorrida, ou seja, de que não considera violador da Constituição, a
circunstância de os acórdão anteriores, nomeadamente do Tribunal Colectivo e do
Tribunal da Relação, incorporarem no seu processo de formação de convicção e de
apreciação da prova para valoração do depoimento de testemunhas de acusação, o
conteúdo de um auto de reconstituição (art. 150º), quando por decisão anterior e
transitada em julgado do Juiz de Instrução Criminal, este mesmo auto foi
declarado como sendo de interrogatório (art. 144º).
Entendeu a decisão recorrida, que a referência feita pela relação a fls. 2005 ao
depoimento dos inspectores da policia judiciaria «conjugado com o auto de
reconstituição de fls. 1011 e 1012», em consonância com a fundamentação
constante do acórdão do tribunal colectivo, deve ser entendida como valoração
dos depoimentos, complementados com o que conta desse auto.
Contudo, o conteúdo daquele auto, antes considerado de interrogatório, estava
subtraído à convicção do tribunal, nos termos dos artigos 355º e 356º do C.P.P.
pois, o arguido que foi interrogado naquele auto, remeteu-se ao silêncio em
julgamento.
Na interpretação com que foram aplicadas as normas do C.P.P. e C.P.C. acima
referidas, inquina-as de inconstitucionalidade, por limitar de uma forma
desproporcional e intolerável os direitos defesa do arguido, e assim contende
com as normas constantes nos artigos 2º, 18º nº 1 e 32º, nº 1 da C.R.P.
Com efeito, estão em causa os princípios da segurança jurídica, da confiança e
das garantias de defesa do arguido.
O princípio do Estado de direito impõe uma vinculação do Estado em todas as suas
manifestações, e portanto também dos tribunais, ao Direito criado ou determinado
anteriormente, de modo definitivo. Assim, não é legitimo que uma decisão ao
abrigo da qual se constitua um direito de intervenção processual, ainda que
baseada numa eventual interpretação errónea do direito, mas não arbitrária ou
ela mesmo flagrantemente violadora de direitos (o que, de resto, aqui não se
poderá analisar nem está em causa como problema de constitucionalidade), venha a
ser destruída ponha em causa o prosseguimento com boa fé da actividade
processual do arguido, nomeadamente o exercício normal do seu direito de defesa.
Pretende-se ainda, ver apreciada a inconstitucionalidade das normas dos artigos
127º, 147º e 148º, todos do Código de Processo Penal, com a interpretação com
que foram aplicadas na decisão recorrida, ou seja, de que não considera
violador da Constituição, a valoração em julgamento, em sede de livre apreciação
da prova, de um reconhecimento de objectos, realizado sem que se tivesse
observado em qualquer fase processual, alguma das regras estatuídas no artigo
148º do CPP.
Com efeito, a testemunha identificou o guarda-chuva em julgamento, com base em
fotografias, sem nunca, em julgamento ou em anteriores fases processuais, se ter
cumprido o disposto no art. 147º e 148º do CPP.
É que em tais casos o que se valoriza é o depoimento da testemunha, apreciado
nos termos do artigo 127º do Código de Processo Penal, e não “prova por
reconhecimento” a que alude o artigo 147º do mesmo diploma.
Na interpretação com que foram aplicadas as normas do C.P.P. e C.P.C. acima
referidas, inquina-as de inconstitucionalidade, por limitar de uma forma
desproporcional e intolerável os direitos defesa do arguido, e assim contende
com as normas constantes nos artigos 18º nº 1 e 32º, nº 1 da C.R.P.
Com efeito, já decidiu este Tribunal Constitucional:
Julgar inconstitucional, por violação das garantias de defesa do arguido,
consagradas no nº 1 do artigo 32º da Constituição, a norma constante do artº
127º do Código de Processo Penal, quando interpretado no sentido de admitir que
o princípio da livre apreciação da prova permite a valoração, em julgamento, de
um reconhecimento de arguido realizado sem a observância de nenhuma das regras
definidas pelo artigo 147º do Código de Processo Penal.”
Concluiu do seguinte modo as suas alegações de recurso:
“1 – Foram violados os princípios da segurança jurídica, da confiança, e as
garantias de defesa do arguido.
2 – A decisão recorrida, incorporou para a formação da sua convicção, o teor de
um acto processual – auto de reconstituição – quando por decisão anterior
transitada em julgado, o mesmo acto, foi declarado como sendo um auto de
interrogatório de arguido por não cumprir os requisitos apertados do regime
previsto no artigo 150º do CPP.
3 – O princípio do Estado de direito impõe uma vinculação do Estado em todas as
suas manifestações, e portanto também dos tribunais, ao Direito criado ou
determinado anteriormente, de modo definitivo.
4 – Pois o arguido confiou na validade de uma decisão anterior, para estruturar
a sua defesa.
5 – Violaram-se as normas constantes dos artigos 2º, 18º nº 1 e 32º nº 1 da CRP,
com a interpretação com que foram aplicadas na decisão recorrida, as normas dos
artigos 127º, 144º, 150º, 355º e 356º do CPP, ou seja, de que não considera
violador da Constituição, para valoração do depoimento de testemunhas de
acusação, o uso para formação da convicção do tribunal, do teor de um auto de
reconstituição, quando por decisão anterior e transitada em julgado do Juiz de
Instrução Criminal, este mesmo auto foi declarado como sendo de interrogatório
de arguido.
6 – Entendeu o acórdão recorrido, que o reconhecimento de objecto feito nos
termos dos artigos 147º e 148º do CPP, deve ser valorado em julgamento sempre
nos termos do art. 127º, mesmo quando em julgamento ou em fases anteriores do
processo, os requisitos apertados previsto naqueles artigos do CPP, nunca foram
cumpridos.
7 – Deste modo, é claramente lesivo do direito de defesa do arguido, consagrado
no nº 1 do artigo 32º da Constituição, interpretar o artigo 127º do Código de
Processo Penal no sentido de que o princípio da livre apreciação da prova
permite valorar, em julgamento, um acto de reconhecimento realizado sem a
observância de nenhuma das regras previstas no artigo 147º do mesmo diploma”.
O Ministério Público apresentou contra-alegações, em que concluiu:
“1 - A decisão recorrida não aplicou a interpretação normativa, especificada
pelo recorrente por referência ao artigo 150º do Código de Processo Penal, já
que não considerou como meio de prova fundamentador da decisão sobre a matéria
de facto o “auto de reconstituição do facto”, precedentemente invalidado por
decisão definitiva das instâncias, pelo que não deverá, nesta medida,
conhecer-se do recurso interposto.
2 - Pelas razões expendidas no acórdão nº 425/05, não é inconstitucional a
interpretação normativa que considera não serem aplicáveis ao reconhecimento em
audiência de pessoas ou objectos, as formalidades legalmente previstas para o
“auto de reconhecimento” cumprindo ao tribunal valorar livremente os depoimentos
prestados sobre tal matéria – pelo que deverá, quanto a tal questão, improceder
o presente recurso”.
Notificado para se pronunciar sobre a posição do Ministério Público de não
conhecimento da primeira questão de inconstitucionalidade suscitada pelo
arguido, este respondeu, discordando dessa posição.
*
Fundamentação
1. Do não conhecimento da questão de inconstitucionalidade da alegada
interpretação normativa relativa à valoração de auto de reconstituição
No recurso deduzido com fundamento na alínea b), do nº 1, do artº 70º, da LTC,
pode questionar-se a constitucionalidade da interpretação duma norma efectuada
pela decisão recorrida.
Contudo, também aqui, o controlo exercido pelo Tribunal Constitucional tem
natureza estritamente normativa, não sendo a decisão judicial que é objecto de
fiscalização, enquanto operação subsuntiva da norma ao caso concreto, mas sim o
critério normativo utilizado para efectuar tal operação, como resultado da
actividade interpretativa duma determinada norma.
Necessário é que a interpretação cuja inconstitucionalidade se pretende ver
declarada se encontre inequivocamente enunciada na decisão recorrida, como sua
ratio decidendi.
O recorrente pretende que se declare inconstitucional a interpretação de que é
admissível a incorporação pelo Tribunal no seu processo de formação de convicção
e de apreciação da prova para valoração do depoimento de testemunhas de
acusação, o conteúdo de um auto de reconstituição, quando por decisão anterior e
transitada em julgado do Juiz de Instrução Criminal, este mesmo auto foi
declarado como sendo de interrogatório.
Relativamente a esta questão escreveu-se na decisão recorrida:
“O que consta da fundamentação da decisão da matéria de facto é que os
inspectores da Polícia Judiciária «Declararam que a reconstituição desse
trajecto documentada a fls. 1011 e 1012, não teve por base as declarações
prestadas pelo 2º arguido em sede de inquérito (...) Mas sim, toda a
investigação anteriormente efectuada, mormente através da leitura das chamadas
efectuadas pelos arguidos e por eles recebidas na hora que precedeu a morte da
vítima e através da localização por áreas geográficas do local onde os arguidos
se encontravam em determinado momento».
No acórdão do tribunal colectivo não vem mencionado esse meio de prova como
fundamento da decisão da matéria de facto. O tribunal colectivo referiu-se ao
mencionado auto tão-somente no âmbito da apreciação dos depoimentos dos
inspectores da Polícia Judiciária.
No acórdão recorrido a Relação expendeu: «... contrariamente ao que os
recorrentes alegam, as testemunhas/inspectores da polícia judiciária, inquiridos
em sede das audiências de julgamento, limitaram-se a relatar os factos
relativamente dos quais tiveram conhecimento directo, não tendo em momento algum
enveredado pelos testemunhos indirectos; concomitantemente, em momento algum da
fundamentação se menciona, como suporte da mesma, o mencionado pelo primeiro
recorrente auto de reconstituição. O que se extraí da fundamentação é
tão-somente que as testemunhas inspectores da Polícia Judiciária “declararam que
a reconstituição desse trajecto a fls. 1011 e 1012, não teve por base as
declarações prestadas pelo 2.º arguido em sede de inquérito”» (fls. 9258 e
9259).
A referência feita pela Relação a fls. 2005 ao depoimento dos inspectores da
Polícia Judiciária «conjugado com o auto de reconstituição de fls. 1011 e 1012»,
em consonância com a fundamentação constante do acórdão do tribunal colectivo,
deve ser entendida como valoração dos depoimentos, complementados com o que
consta desse auto.
No fundo, o que relevado foi a prova testemunhal, que incluiu no seu conteúdo a
reconstituição pelas testemunhas de um trajecto a partir de elementos objectivos
– o registo de chamadas telefónicas e a identificação dos locais onde se
encontravam os respectivos intervenientes.
Ou seja, não se tratou da valoração do meio de prova regulado no artigo 150.º do
Código de Processo Penal, como «reconstituição do facto».
Não se verifica assim a alegada falta de exame crítico da prova nem a utilização
de um meio de prova inválido.
E, não tendo o referido «auto de reconstituição» sido valorado como meio de
prova pelo tribunal colectivo, qualquer irregularidade de que o mesmo padecesse
não afectou os direitos de defesa do recorrente consagrados no artigo 32.º da
Constituição, pelo que não se verifica qualquer interpretação da lei violadora
desse diploma”.
Apesar do transcrito discurso fundamentador conter algumas declarações
equívocas, quanto à questão em análise, não se encontra enunciado explícita, ou
sequer implicitamente, o critério normativo que o recorrente invoca no seu
requerimento de recurso.
Pelo contrário, lê-se na decisão recorrida: “e, não tendo o referido «auto de
reconstituição» sido valorado como meio de prova pelo tribunal colectivo,
qualquer irregularidade de que o mesmo padecesse não afectou os direitos de
defesa do recorrente consagrados no artigo 32.º da Constituição”.
Na verdade, o acórdão do S.T.J. não considerou admissível qualquer valoração do
“auto de reconstituição” constante do processo, tendo antes considerado que tal
auto não foi valorado como meio de prova pelas instâncias que julgaram a
matéria de facto.
Não constando da fundamentação da decisão recorrida a interpretação normativa
apontada pelo recorrente, está este Tribunal impedido de conhecer da sua
inconstitucionalidade.
2. Da questão de inconstitucionalidade da interpretação normativa relativa à
valoração de “reconhecimento” de objecto em audiência
O recorrente pretende que se declare inconstitucional a interpretação de que é
admissível a valoração de um depoimento testemunhal realizado em audiência de
julgamento, na parte em que identifica como pertencendo à vítima, objecto
apreendido ao arguido, sem a observância de nenhuma das regras previstas no
artigo 147º do C.P.P..
Convém precisar que o reconhecimento de objectos se encontra previsto no artº
148º, do C.P.P., o qual remete parcialmente para a regulamentação contida no
artº 147º, nº 1 e 4, do C.P.P..
Relativamente a esta questão consta o seguinte na decisão recorrida:
“Está em causa a indicação na fundamentação da decisão da matéria de facto dos
depoimentos de várias testemunhas que se referiram a um chapéu-de-chuva
pertencente à vítima e que foi encontrado em poder do recorrente. Uma das
testemunhas – B. – referiu que o chapéu apreendido nos autos, e que comparou com
um da própria testemunha, era igual ao chapéu da vítima (fls. 1654).
Sobre este ponto a Relação expendeu que o reconhecimento dos objectos, como o
das pessoas, em audiência não está sujeito aos requisitos exigidos no artigo
147.º do Código de Processo Penal, os quais são referentes à prova por
reconhecimento em inquérito ou em instrução. Acresce que constam dos autos as
fotografias de fls. 872 a 872, nas quais são visíveis o guarda-chuva apreendido
ao arguido e o guarda-chuva entregue pela testemunha, tendo tal prova sido
indicada pela acusação e confirmada na pronúncia. As fotografias juntas aos
autos são documentos a considerar e a valorar pelo tribunal, segundo o princípio
da livre apreciação da prova. (fls. 1259 a 1261).
Conforme jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal, o reconhecimento em
audiência de certa pessoa como autora de determinado facto não está sujeito aos
requisitos exigidos no artigo l47.º do Código de Processo Penal (acórdãos de
11-05-2000, proc. n.º 75/2000, e de 17-02- 2005, proc. n.º 4324/04, entre
outros).
É que em tais casos o que valoriza é o depoimento da testemunha, apreciado nos
termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal, e não a «prova por
reconhecimento» a que alude o artigo 147.º do mesmo diploma.
E esta interpretação do artigo 147.º não viola o princípio das garantias de
defesa consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, ou qualquer outra
norma constitucional, como considerou o Tribunal Constitucional no acórdão n.º
425/2005, de 25-08-2005, proc. n.º 452/05.
Estas considerações aplicam-se ao reconhecimento de objectos, por força do
disposto no artigo 148.º do Código de Processo Penal.
Falece assim razão ao recorrente nesta parte”.
A interpretação do artº 148º, do C.P.P., enunciada na decisão recorrida de que
pode ser valorado o “reconhecimento” de um objecto efectuado no decurso de um
depoimento testemunhal, prestado em audiência de julgamento, sem cumprimento das
exigências de procedimento contidas naquele dispositivo situa-se numa linha
jurisprudencial consolidada, apreciando a valoração do “reconhecimento” de
pessoas em audiência de julgamento (vide os acórdãos do S.T.J. de 22-9-1994, no
B.M.J. nº 439, pág. 448, relatado por SOUSA GUEDES, de 1-2-1996, na C.J. (Ac. do
S.T.J.), Ano IV, tomo 1, pág. 199, relatado por SÁ NOGUEIRA, de 2-10-1996, no
B.M.J. nº 460, pág. 538, relatado por LOPES ROCHA, de 11-5-2000, no B.M.J. nº
497, pág. 283, relatado por GUIMARÃES DIAS, e de 7-12-2005, na C.J. (Ac. do
S.T.J.), Ano XIII, tomo 3, pág. 224, relatado por ARMINDO MONTEIRO).
ALBERTO MEDINA DE SEIÇA, contudo, sustentou posição contrária à corrente
jurisprudencial acima referida (em “Legalidade da prova e reconhecimentos
atípicos em processo penal: notas à margem da jurisprudência (quase) constante”,
em “Liber discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias”, pág. 1387-1421, da ed. de
2003, da Coimbra Editora).
O Tribunal Constitucional, no seu acórdão nº 425/05 (pub. em “Acórdãos do
Tribunal Constitucional”, 62º vol., pág. 1151), já se debruçou sobre esta
interpretação normativa, tendo emitido um juízo de não inconstitucionalidade.
A decisão de inconstitucionalidade contida no acórdão 137/01 (pub. em “Acórdãos
do Tribunal Constitucional”, 49º vol., pág. 537) – “julgar inconstitucional, por
violação das garantias de defesa do arguido, consagradas no nº 1 do artº 32º da
Constituição, a norma constante do artº 127º do Código de Processo Penal,
quando interpretada no sentido de admitir que o princípio da livre apreciação da
prova permite a valoração em julgamento, de um reconhecimento do arguido
realizado sem a observância de nenhuma das regras definidas pelo artº 147º, do
Código de Processo Penal” - não se reportava a uma valoração de um
reconhecimento efectuado em audiência de julgamento, mas sim efectuado em fase
de inquérito, pelo que a dimensão normativa julgada inconstitucional nesse
acórdão é diversa da enunciada na decisão ora recorrida.
Antes de iniciar a abordagem da problemática em questão importa afirmar dois
pontos prévios:
- em primeiro lugar não compete ao Tribunal Constitucional emitir qualquer juízo
sobre a correcção, face ao regime processual penal infra-constitucional vigente,
da interpretação normativa em análise, mas apenas verificar a sua
compatibilidade com os princípios e normas constitucionais que regem esta
matéria.
- em segundo lugar, o facto do objecto do “reconhecimento” ser uma pessoa ou um
objecto não implica qualquer distinção no raciocínio sobre a constitucionalidade
da interpretação normativa em causa neste recurso.
A estipulação de regras formais específicas para a realização do acto de
reconhecimento de pessoas como meio de prova em processo penal, que já constava
da Reforma Judiciária de 13 de Janeiro de 1837 (artº 119º) e da Novissima
Reforma Judiciária de 21 de Maio de 1841 (artº 971º), foi adoptada pelo C.P.P.
de 1929, no seu artº 243º, defendendo a doutrina de então a sua aplicação
analógica ao reconhecimento de objectos (vide LUÍS OSÓRIO, em “Comentário ao
Código de Processo Penal Português”, 3º vol., pág. 431, da ed. de 1933, da
Coimbra Editora).
O C.P.P. de 1987, actualmente vigente, manteve a opção legislativa anterior,
tendo no artº 147º (“Reconhecimento de pessoas”), que integra, conjuntamente com
os artº 148º e 149º, o capítulo III (“Da prova por reconhecimento”), do título
II (“Dos meios de prova”), do Livro III (“Da prova”) desta codificação, disposto
o seguinte:
“1 – Quando houver necessidade de proceder ao reconhecimento de qualquer pessoa,
solicita-se à pessoa que deva fazer a identificação que a descreva, com
indicação de todos os pormenores de que se recorda. Em seguida, é-lhe perguntado
se já a tinha visto antes e em que condições. Por último, é interrogada sobre
outras circunstâncias que possam influir na credibilidade da identificação.
2 – Se a identificação não for cabal, afasta-se quem dever proceder a ela e
chamam-se pelo menos duas pessoas que apresentem as maiores semelhanças
possíveis, inclusive de vestuário, com a pessoa a identificar. Esta última é
colocada ao lado delas, devendo, se possível, apresentar-se nas mesmas condições
em que poderia ter sido vista pela pessoa que procede ao reconhecimento. Esta é
então chamada e perguntada sobre se reconhece algum dos presentes e, em caso
afirmativo, qual.
3 – Se houver razão para crer que a pessoa chamada a fazer a identificação pode
ser intimidada ou perturbada pela efectivação do reconhecimento e este não tiver
lugar em audiência, deve o mesmo efectuar-se, se possível, sem que aquela pessoa
seja vista pelo identificando.
4 – O reconhecimento que não obedecer ao disposto neste artigo não tem valor
como meio de prova”.
E, consagrando a posição doutrinária defendida na vigência do C.P.P. de 1929,
acrescentou uma nova disposição, referente ao “reconhecimento de objectos”, no
artº 148º, com a seguinte redacção:
“1 – Quando houver necessidade de proceder ao reconhecimento de qualquer objecto
relacionado com o crime, procede-se de harmonia com o disposto no nº 1 do artigo
anterior, em tudo quanto for correspondentemente aplicável.
2 – Se o reconhecimento deixar dúvidas, junta-se o objecto a reconhecer com pelo
menos dois outros semelhantes e pergunta-se à pessoa se reconhece algum de entre
eles e, em caso afirmativo, qual.
3 – É correspondentemente aplicável o disposto no nº 4 do artigo anterior”.
Actualmente defende-se que estas disposições são também extensíveis ao
reconhecimento que incida sobre outra percepção sensorial reconhecível, como
sons, cheiros e quaisquer outros fenómenos captáveis pelos sentidos (GERMANO
MARQUES DA SILVA, em “Curso de processo penal”, vol. II, pág. 174-175, da 2ª
ed., da Editorial Verbo).
O reconhecimento de um objecto, em processo penal, é um meio de prova que
consiste numa declaração da pessoa que procede a esse acto sobre a identidade
entre uma percepção sensorial anterior e outra actual de objecto considerado
probatoriamente relevante. Aquela reconhece ou não, no objecto que lhe é
presente no acto processual, aquele que anteriormente percepcionou na sua
vivência quotidiana, através do recurso à memória.
Apesar do reconhecimento de pessoas ou objectos mais não ser que uma modalidade
específica do testemunho, uma vez que se traduz na evocação duma percepção
sensitiva anterior, com recurso a uma actividade mnemónica (A. DALIA e M.
FERRAIOLI, em “Corso di diritto processule”, pág. 172, da ed. de 1992, da Cedam,
A. NAPPI, em “Guida al codice di procedura penale”, pág. 348, da 4ª ed., da
Giuffrè, e NICOLA TRIGIANI, em “La ricognizione: Struttura ed efficacia”, na
Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale”, Ano XXXIX, Fasc. 2-3, pág.
728-729), a particularidade dessa actividade, no reconhecimento, “trabalhar com
matéria alógica, onde ocorrem curto-circuitos de sensações racionalmente
insondáveis” (LUISELLA NEUBURGER, em “Exame e controexame nel processo penale”,
pág. 310, da ed. de 2000, da Cedam), aumenta consideravelmente o risco do erro e
a limitação dos meios de controle da fiabilidade deste tipo de testemunho (vide,
sobre as mais diversas possibilidades de erro no acto de reconhecimento ENRICO
ALTAVILLA, em “Psicologia judiciária”, vol. I, pág. 386 e seg., LUISELLA
NEUBURGER, na ob. cit., pág. 311-314, C. PANSERI, em “La ricognizione di
persona: aspetti psicologici e giuridici”, em “Tratatto di psicologia
giudiziaria nel sistema penale”, de G. Gullota, pág. 553 e seg., da ed. de
1987, da Giuffrè, e E. LOFTUS, em “Eyewitness testimony”, pág. 23 e seg., e 134
e seg., da ed. de 1996, da Harvard University Press).
Contudo, paradoxalmente à existência destas fragilidades, o resultado probatório
de um reconhecimento convicto revela uma elevada eficácia persuasiva. Como se
disse no acórdão do Tribunal Constitucional nº 408/89 (pub. em Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 13º vol., pág. 1147) “o reconhecimento…é de importância
decisiva e o resultado do reconhecimento pode, portanto, ser fatal para o
arguido”.
Daí que o legislador processual penal, consciente do perigo da força probatória
de um meio tão exposto a enganos e de difícil sindicância, tenha desde há muito
imposto formalismos específicos para a produção deste tipo de testemunho,
autonomizando-o, de modo a criar mecanismos de controle da fiabilidade do
reconhecimento e a minorar o apontado risco de erro.
Assim, o actual nº 1, do artº 147º, do C.P.P., aplicável por remissão do nº 1,
do 148º, do C.P.P., ao reconhecimento de objectos, exige, em primeiro lugar, que
aquele que deva fazer a identificação descreva a coisa a reconhecer, com
indicação de todos os pormenores de que se recorda. Em seguida, deve ser-lhe
perguntado se já a tinha visto antes e em que condições. Por último, é
interrogado sobre outras circunstâncias que possam influir na credibilidade da
identificação.
Procura-se, deste modo, obter a identificação do objecto através duma narração
das suas características, o que permite um maior controle da fiabilidade do
testemunho, uma vez que o processo de composição da recordação pode ser
aprofundado, vigiado e submetido a contra-interrogatório.
Se este reconhecimento descritivo deixar dúvidas, junta-se o objecto a
reconhecer com pelo menos dois outros semelhantes e pergunta-se à pessoa se
reconhece algum de entre eles e, em caso afirmativo, qual (artº 148º, nº 2, do
C.P.P.).
Sendo, pois, inconclusiva a identificação descritiva, passa-se para a
identificação sensitiva. Mas esta é feita com o particular cuidado do objecto a
identificar se encontrar junto com outros semelhantes, de modo a evitar o
conhecido fenómeno do yes effect (sobre este fenómeno, vide ALBERTO MEDINA DE
SEIÇA, na ob. cit., pág. 1418, nota 91, e SILVIA PRIORI, em “La ricognizione di
persona: cosa suggerisce, la ricersa psicológica”, em “Diritto penale e
processo”, fasc. 10, 2003, pág. 1284 e seg.).
Tais critérios procedimentais, previstos para a realização do reconhecimento,
embora não consigam eliminar totalmente as fragilidades deste tipo de acto
cognoscitivo-declarativo, permitem, de todo o modo, reduzi-las a patamares
considerados aceitáveis.
Estas exigências não só são um reflexo do princípio da investigação ou da
verdade material, uma vez que procuram que a prova produzida resulte numa
aproximação o mais fiável possível à realidade investigada, como também integram
o vasto elenco das garantias de defesa do arguido, uma vez que o protegem de
eventuais erros de identificação.
No artº 32º, nº 1, da C.R.P., impõe-se que o processo criminal assegure ao
arguido todas as garantias de defesa.
Esta cláusula geral abrange não só as garantias que constam expressamente dos
diversos números do citado artº 32º, da C.R.P., como todas aquelas que apesar de
não terem sido especificadas no texto constitucional, decorrem do princípio da
protecção global e completa dos direitos de defesa do arguido em processo penal.
Daí que, no domínio da prova, se deva entender que a Constituição não se limita
a proibir as provas obtidas pelos meios referidos no nº 7, do seu artº 32º,
tendo uma intervenção mais ampla na imposição das garantias de defesa do
arguido, nomeadamente na exigência do cumprimento dos requisitos estipulados no
artº 148º, do C.P.P., para o reconhecimento de objectos.
Mas isso não significa que a valoração da referência identificativa de objecto
relevante no domínio da prova, efectuada em depoimento testemunhal produzido em
audiência de julgamento, sem o cumprimento das formalidades previstas no artº
148º, do C.P.P., se possa considerar violadora das garantias de defesa do
arguido.
É que o reconhecimento com elevada força probatória e cuja fiabilidade é de
difícil controle, o que justifica a sua autonomização, com a imposição de
procedimentos específicos na sua realização processual, é apenas aquele em que
o sujeito do acto probatório é confrontado pela primeira vez, no âmbito do
processo, com o objecto em causa, registando-se só nesse momento a percepção
“actual” do mesmo que ele terá de comparar com a sua percepção antiga, através
duma actividade mnemónica de difícil sindicância.
O acto recognitivo psicologicamente autêntico é irrepetível (vide, neste
sentido, GERMANO MARQUES DA SILVA, na ob. cit., pág. 176, ALBERTO MEDINA DE
SEIÇA, na ob. cit., pág. 1398, e FRANCO CORDERO, em “Procedura penale”, pág.
493, da 8ª ed., da Giuffrè).
Todas as declarações que a pessoa autora do acto de reconhecimento venha
posteriormente a fazer, em acto processual, sobre a identidade da sua antiga
percepção com o objecto considerado probatoriamente relevante, já não podem ser
consideradas um autêntico reconhecimento, não se justificando a sua sujeição aos
formalismos exigidos pelo artº 148º, do C.P.P..
Perante a existência duma percepção anterior, já efectuada no âmbito do processo
em causa, do objecto considerado com interesse probatório, a exigência do
interrogatório referido no artº 147º, nº 1, do C.P.P., aplicável por remissão do
nº 1, do artº 148º, do C.P.P., e o procedimento de identificação descrito no nº
2, do mesmo artº 148º, deixam de fazer qualquer sentido.
Ora, tendo presente que, em processo penal, o acto de julgamento é por regra
precedido duma fase de recolha de prova (Livro VI, da parte II, do C.P.P.),
sendo público a partir do termo dessa fase (artº 86º, do C.P.P.), é normal que
as testemunhas, quando depõem em audiência de julgamento, tenham sido
anteriormente confrontadas com os objectos considerados probatoriamente
relevantes, com conexão com o seu depoimento, pelo que não se perspectiva, em
princípio, nesta fase processual, a necessidade de produção de um acto de
reconhecimento de objectos, segundo os ritos do artº 148º, do C.P.P..
Foi precisamente esta a situação que ocorreu no processo aqui em recurso, no
qual a testemunha Justilina Elisa, que procedeu à identificação, em audiência de
julgamento, do guarda-chuva apreendido ao arguido recorrente, já havia sido
confrontada com este objecto durante a fase de inquérito.
Note-se igualmente que a força probatória reforçada do acto de reconhecimento
resulta também deste ser efectuado em data próxima do evento percepcionado
(ALBERTO MEDINA DE SEIÇA, na ob. cit., pág. 1398, NICOLA TRIGIANI, na ob. cit.,
pág. 734, A. MELCHIONDA, em “Commmento al nuovo Codice de Procedura Penale”,
coordenado por M. Chiavario, vol. II, pág. 539, da ed. de 1989, da UTET), o que
determina que a sua produção deva ser feita em sede de inquérito, constituindo
uma prova autónoma pré-constituída (JOÃO GOMES DE SOUSA, em “O reconhecimento de
pessoas no projecto do Código de Processo Penal”, em “Julgar”, nº 1, 2007, pág.
167), tal como, aliás, resultava expressamente da alteração proposta ao artº
356º, do C.P.P., pelos Projectos de Lei, dos Grupos Parlamentares do Partido
Socialista (nº 519/1X), e do Partido Social Democrata (nº 237/X), assim como da
Proposta de Lei de 25-06-2004, do XVI Governo Constitucional, entretanto
caducados, todos disponíveis em www.parlamento.pt.
Mas se o respeito pelas garantias de defesa do arguido, impõe que não possa ser
valorado, como prova pré-constituída, o acto de reconhecimento de objectos que
não cumpra os formalismos exigidos pelo artº 148º, do C.P.P., pelas razões acima
aduzidas, tal protecção constitucional já não impede que se valore o depoimento
de testemunha produzido em audiência de julgamento que contenha referências
identificativas relativas a objectos com conexão com o acto ilícito sujeito a
julgamento.
Nesta última situação já não estamos perante um verdadeiro reconhecimento, tal
como é entendido e regulado no artº 148º, do C.P.P., mas apenas perante um
simples depoimento testemunhal de evocação e relato de evento passado, com
recurso a actividade mnemónica, no qual constam referências identificativas de
objectos considerados probatoriamente relevantes, reportadas ao evento narrado.
É certo que essas referências, tal como todo o depoimento testemunhal, continuam
a estar sujeitas ao risco de erro, devido às conhecidas deficiências da
actividade mnemónica, mas esse risco é o risco normal da valoração de qualquer
elemento do depoimento testemunhal, sendo certo que tais referências não têm a
reforçada eficácia persuasiva do acto de reconhecimento autêntico, assim como a
possibilidade de inquirição, contra-interrogatório e de formulação de perguntas
às testemunhas em audiência de julgamento (artº 348º, do C.P.P.) sempre
permitirá um controle da fiabilidade do processo mental justificativo da
identificação efectuada.
Não se verificam, pois, nestas situações quaisquer razões especiais que exijam
um tratamento diferenciado da valoração dessas referências, relativamente ao
resto do depoimento, pelo que não ofende o direito de defesa do arguido a sua
livre apreciação, nos termos do artº 127º, do C.P.P..
Assim, deve ser julgado improcedente o recurso interposto, quanto à questão da
inconstitucionalidade, por violação do disposto no artº 32º, nº 1, da C.R.P., da
interpretação dos artº 148º e 127º do C.P.P., no sentido de que é admissível a
valoração de um depoimento testemunhal realizado em audiência de julgamento, na
parte em que identifica como pertencendo à vítima objecto apreendido ao arguido,
sem a observância de nenhuma das regras previstas no citado artigo.
*
Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) não conhecer do recurso interposto quanto à questão de inconstitucionalidade
da alegada interpretação normativa relativa à valoração de auto de
reconstituição;
b) julgar improcedente o recurso interposto quanto à questão da
inconstitucionalidade da interpretação dos artº 148º e 127º do C.P.P., no
sentido de que é admissível a valoração de um depoimento testemunhal realizado
em audiência de julgamento, na parte em que identifica como pertencendo à
vítima, objecto apreendido ao arguido, sem a observância das regras previstas no
artigo 148º, do C.P.P..
*
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta
(artº 6º, nº 1, do D.L. 303/98, de 7 de Outubro).
*
Lisboa, 3 de Julho de 2007
João Cura Mariano
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos