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Processo n.º 702/07
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. A empresa A., SA impugnou perante o Supremo Tribunal de Justiça a deliberação
da Comissão Nacional de Eleições (CNE) que lhe aplicara uma coima única no valor
de onze mil euro pela prática de três contra-ordenações previstas e puníveis
pelos artigos 49º e 212º da Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14 de Agosto (Lei
Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais - LEOAL), por tratamento jornalístico
discriminatório às diversas candidaturas no âmbito de uma eleição para os órgãos
das autarquias locais.
Nas conclusões da sua alegação, a recorrente invocou, na parte que interessa
agora considerar, o seguinte:
(…)
II – As decisões da CNE são ilegais na medida em que o artigo 212° da LEOAL, em
que se baseiam, apenas prevê infracções praticadas em empresas proprietárias de
publicação informativa:
a. E de acordo, tanto com a legislação da comunicação social, como com a
legislação eleitoral (incluindo a Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais
-LEOAL), como com o próprio artigo 212° é evidente que por esta expressão se
refere imprensa escrita de carácter informativo;
b. Pelo que não pode a referida disposição ser aplicada a empresas titulares de
outros meios de comunicação social (como a rádio e a televisão), sob pena de se
cair numa interpretação dos artigos 1° e 2° do RGCO de acordo com a qual é
lícito incluir no âmbito de aplicação de uma norma sancionadora em matéria
contra-ordenacional casos que estão para além do quadro significativo demarcado
pelo seu teor literal, e apenas correspondentes a um rebuscado sentido
etimológico, a fim de prover a uma lacuna punitiva, interpretação que viola o
art. 29° da Constituição.
(…)
IV. As decisões da CNE ora impugnadas são ilegais, na medida em que as decisões
em matéria de selecção dos municípios objecto de debate e das candidaturas a
convidar para os mesmos não traduzem um tratamento não igualitário:
a. A igualdade não impõe só o tratamento igual do que é igual mas ainda o
tratamento desigual, e em moldes de proporcionalidade, de situações desiguais –
o que se aplica também à igualdade de tratamento das diversas candidaturas;
b. É lícita, em função da necessidade de compatibilizar o princípio da igualdade
de tratamento com outros valores constitucionais (como os princípios
constitucionais da liberdade de imprensa e do direito à informação), a
utilização de um critério jornalístico, não só no que respeita à selecção dos
municípios objecto de debate, como ainda das candidaturas a convidar para os
mesmos;
c. E é-o especialmente em relação a programas televisivos e radiofónicos cuja
natureza não seja estritamente informativa — estão neste caso os debates e
entrevistas — que, para a própria CNE «gozam de uma maior liberdade e
criatividade na determinação do seu conteúdo».
d. Nos casos dos autos, não foram tomadas decisões individuais arbitrárias, mas
antes assumido um critério jornalístico: o da representatividade das
candidaturas nas autarquias a que os debates diziam respeito, medida pelos
resultados nas eleições autárquicas anteriores (directamente, pela representação
nas assembleias municipais, indirectamente, pela percentagem de votação obtida).
e. Esse critério não é discriminatório, mas antes imposto pela necessidade de
evitar:
i. Que, pelo elevado número de intervenientes, se impossibilite um diálogo e
exposição de posições de cada um deles, de forma minimamente ordenada e
elucidativa inutilizando as virtualidades esclarecedoras dos debates e pondo em
causa, não só a liberdade de imprensa, como o direito à informação (a informar e
– também – a ser informado).
ii. Uma conflitualidade previsível, o que determina que ele se meça por
critérios objectivos indiscutíveis, de maneira a ser transparente e controlável,
e se possa manter completamente inalterável em relação a todas as autarquias
municipais seleccionadas para a realização de debates.
f. Que assim é decorre, para além de toda a possível dúvida, do facto de a
própria lei, quando colocada perante um problema análogo – o da subvenção a
atribuir nos termos da Lei do Financiamento dos Partidos Políticos e das
Campanhas Eleitorais (Lei n° 19/2003 de 20 de Junho) — o resolver de forma em
tudo semelhante (cfr,. arts. 17°, n°s 3 e 4), em solução perfeitamente
compatível com o princípio da igualdade de tratamento das candidaturas.
g. O entendimento oposto da CNE significa uma violação:
i. Da liberdade de imprensa e do direito à informação (arts. 37° e 38° da
Constituição), e tanto na perspectiva do direito a informar como na do direito a
ser informado;
ii. Do princípio legal (arts. 40° e 49° LEOAL) e constitucional da igualdade
(arts. 13° e 113°, n°3, al. b), da Constituição) de tratamento das candidaturas,
na medida em que este impõe um «tratamento em moldes de proporcionalidade das
situações desiguais» e, designadamente, não só permite como impõe que apenas se
dê um tratamento jornalístico semelhante às situações dotadas de «um relevo
jornalístico semelhante, atendendo aos diversos factores que para o efeito se
tem de considerar)).
Por acórdão de 6 de Julho de 2006, O Supremo Tribunal de Justiça concedeu
parcial provimento ao recurso, diminuindo o montante da coima aplicável para
seis mil euro, mas apenas com base em considerações relacionadas com a medida da
pena, julgando improcedentes todos os demais fundamentos do recurso.
Na parte respeitante à suscitada questão do âmbito normativo do artigo 212º da
LEOAL, o citado aresto manifestou concordância com o entendimento expresso pela
CNE, aduzindo, entre outros considerandos, o seguinte:
Como se viu, criou-se um dever de imparcialidade aplicável a todas as entidades
públicas e privadas, salvas as excepções da própria lei. E afinando-se esse
dever, em função da especial natureza dessa entidades, criou-se para todos os
órgãos de comunicação social, um especial dever de tratamento jornalístico
igualitário para todas as candidaturas, com a já falada excepção das faladas
«publicações doutrinárias».
É assim claro no contexto do art. 49.º que o mesmo considera os órgãos de
comunicação social como compostos por «publicações informativas», às quais se
aplica o dever que prescreve (n.º 1) e «publicações doutrinárias», as quais
estão isentas desse dever (n.º 2).
Deste modo quando sanciona no art. 212.º a violação daquele dever (também
previsto mais genericamente no art. 40.º), socorre-se da expressão «publicações
informativas» para as penalizar, não porque, como pretende a recorrente, queira
criar uma categoria mais restritiva dentro dos órgãos de comunicação social e
que se limite à imprensa escrita, mas para as distinguir das «publicações
doutrinárias» que mencionara expressamente no art. 49.º, n.º 2, como isentas
daquele dever de imparcialidade e, logo não as sancionar.
Ou seja, utiliza a expressão «publicações informativas» para restringir a
punição a essa categoria, afastando as «publicações doutrinárias», categoria
também incluída nos órgãos de comunicação social a que se reporta o art. 49.º.
No que se refere à invocada inexistência de um tratamento não igualitário, o
acórdão ponderou mais adiante:
Desde logo importa notar que a liberdade de imprensa se é elemento essencial da
liberdade de expressão (o jornalista enquanto tal não pode ser coarctado da sua
liberdade intelectual nem ser impedido ou limitado por qualquer censura), é-o
enquanto importante elemento do direito à informação do cidadão em geral, e, em
caso de propaganda eleitoral, do eleitor a bem do seu esclarecimento, que se
impõe ao próprio jornalista.
E que a LEOAL estabelece regras de adequação de outros direitos, liberdades e
garantias ao especial tempo de propaganda eleitoral, em nome exactamente de um
outro direito fundamental em democracia e igualmente com assento constitucional:
a liberdade de escolha esclarecida do eleitor alicerce da soberania popular que
funda o Estado de direito democrático, que somos (art. 2.º da CRP).
Tem, assim, o jornalista liberdade de adoptar os critérios de exercício da sua
profissão e de tratamento da notícia, desde que não crie, naquele período, uma
situação de discriminação de uma candidatura concorrente a um órgão de poder
local.
A actividade dos órgãos de comunicação social, que façam a cobertura da campanha
eleitoral, deve, pois, ser norteada por critérios que cumpram os requisitos de
igualdade entre todas as forças concorrentes às eleições; por preocupações de
equilíbrio e abrangência, não podem adoptar condutas que conduzam à omissão de
qualquer uma das candidaturas presentes.
É a esta luz, que se deve resolver a questão de saber se podem deixar de
convidar para os debates eleitorais que realizem os representantes de todas as
candidaturas, sabido que este formato, que não é estritamente informativo, goza
de maior liberdade e criatividade na determinação do seu conteúdo, o que não
significa que possa adoptar um critério que dê prevalência a determinadas
candidaturas omitindo completamente outras. Uma coisa é a liberdade na forma de
organização do debate e outra, bem diversa é impedir que o eleitor conheça as
ideias de alguma candidatura, em confronto com outras, como se ela não
existisse, como se não apresentasse a sufrágio, assim subvertendo a realidade do
acto eleitoral.
Ao tratar o tema escreve Gomes Canotilho: «Uma “igualdade esquemática” excluirá,
desde logo, qualquer discriminação jurídica entre “partidos grandes” e
“pequenos”, “partidos de governo” e “partidos de oposição”, partidos com
“representação parlamentar” e “partidos sem representação parlamentar”» (ob. e
loc. cit.).
Ora, como se viu, sustenta a recorrente que partindo exactamente do critério
“partidos com representação na Assembleia da República”, para participação em
debates, que utilizara nas eleições para este órgão, construiu o critério:
“candidaturas com assento na Assembleia Municipal”, como condição de
participação em debates.
Num claro desrespeito pelo dever que sobre si impendia de tratar igualmente as
candidaturas em presença, sem discriminar nenhuma, a recorrente excluiu, pois,
dos debates que organizou, e que estão aqui em causa, as candidaturas sem
representação na Assembleia Municipal respectiva.
É certo que a recorrente invoca a necessidade de usar este critério, por ser
impossível organizar debates de outra forma.
Mas essa argumentação não procede, em dois planos.
Em primeiro lugar, e como se viu já, os órgãos de comunicação social não são
obrigados a cobrir a campanha eleitoral, mas uma vez que o façam estão obrigados
a respeitar as condições da lei. Daí que devesse fazer o exame sobre a sua
capacidade para acompanhar a campanha eleitoral, na única forma consentida pela
lei, antes de o empreender. Ou verificando, no seu decurso, que não poderia
realizar debates com respeito pelos princípios de igualdade das candidaturas e
não discriminação das mesmas, abster-se de os levar a cabo.
Em segundo lugar, não demonstrou sequer a necessidade que invocou, por
impossibilidade de proceder de outra forma. Com efeito, fundou essa
impossibilidade em dois elementos: tempo de duração do debate (1 hora) e
impossibilidade técnica de fazer um debate com 100 pessoas.
No entanto, as testemunhas por si apresentadas não souberam responder sobre o
porquê do limite temporal, estabelecido unilateralmente pela recorrente. Como
não souberam dizer quantas eram as candidaturas em cada um dos debates
realizados, por forma a demonstrarem que eram em número que impossibilitava a
realização técnica do debate.
O que vale por dizer que não provaram a invocada necessidade do critério.
Do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, a A., SA interpôs recurso para o
Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do
Tribunal Constitucional, identificando as seguintes questões de
constitucionalidade:
a) A da conformidade constitucional, face ao princípio da legalidade penal
consagrado no artigo 29º, n.º 5, da Constituição, da interpretação segundo a
qual “o artigo 212º da LEOAL, que se refere à “violação de deveres das
publicações informativas por empresa proprietária de publicação informativa,
também é aplicável a empresas proprietárias de outros meios de comunicação
social, designadamente aos operadores de televisão, com a única ressalva das
empresas proprietárias de publicação doutrinária”;
b) A da conformidade constitucional, também face ao princípio da legalidade
penal, da interpretação dos artigos 1º e 2º do Regime Geral das
Contra-Ordenações, de acordo com a qual “é lícito incluir no âmbito de aplicação
de uma norma sancionadora em matéria contra-ordenacional casos que estão para
além do quadro significativo demarcado pelo seu teor literal possível e
determinado de acordo com as definições legais vigentes na matéria a que se
reporta”;
c) A da conformidade constitucional, face aos princípios da liberdade de
informação e de imprensa e da igualdade de tratamento das candidaturas, da
interpretação do artigo 212º da LEOAL segundo a qual “durante a campanha
eleitoral para as eleições autárquicas, constitui tratamento não igualitário
punível a realização de debates televisivos sem que sejam convidadas todas as
candidaturas concorrentes”.
Por decisão sumária proferida ao abrigo do disposto no artigo 78º-A, n.º 1, da
Lei do Tribunal Constitucional, o relator não tomou conhecimento do recurso, com
fundamento, em síntese, nas seguintes ordens de considerações:
Relativamente à primeira das questões suscitadas, a recorrente limita-se a
questionar o próprio processo interpretativo seguido pelo tribunal recorrido
para concluir no sentido de que tal preceito não se aplica apenas à imprensa
escrita de carácter informativo, o que significa que visa, não propriamente a
apreciação da conformidade de uma certa interpretação normativa, mas obter uma
declaração sobre a melhor interpretação do direito ordinário.
Relativamente à segunda questão colocada, constata-se que o tribunal recorrido
não aplicou a interpretação normativa cuja constitucionalidade se pretende ver
sindicada, visto que no texto da decisão recorrida nenhuma referência se faz aos
artigos 1º e 2º do Regime Geral das Contra-Ordenações.
Por outro lado, também, não pode conhecer-se do recurso no tocante ao terceiro
aspecto em análise, porquanto o tribunal recorrido não teria perfilhado
exactamente a interpretação segundo a qual “durante a campanha eleitoral para as
eleições autárquicas, constitui tratamento não igualitário punível a realização
de debates televisivos sem que sejam convidadas todas as candidaturas
concorrentes”; pois, igualmente admitiu que essa punibilidade não era
automática, ao invocar, como fundamento da decisão, a ausência de prova de um
facto alegado pela recorrente: a impossibilidade de organizar debates com a
presença de todas as candidaturas.
Discordando deste entendimento, a recorrente deduziu reclamação para a
conferência em que formula as seguintes conclusões:
I. A apreciação da constitucionalidade da interpretação do artº 212º da
LEOAL adoptada pelo Supremo Tribunal de Justiça não corresponde a uma
interpretação autêntica por parte do Tribunal Constitucional, antes decorrendo
da competência do mesmo – assumida pela sua jurisprudência pelo menos desde 1999
–, tendo em conta que se refere “à interpretação ou à dimensão perfilhadas
quanto a certa norma jurídica na decisão impugnada”;
II. Há uma manifesta inerência entre a interpretação da norma do artigo 212.º
da LEOAL – no entender da ora Recorrente, ferida de inconstitucionalidade – e a
das normas plasmadas nos artigos 1.º e 2.º do RGCO – interpretadas no sentido de
que é admissível uma tal interpretação, configurando uma clara ultrapassagem do
sentido possível do preceito em causa, fundada no recurso a uma forma
inadmissível de analogia in malam partem;
III. A necessidade de demonstração da impossibilidade de
organizar debates com todas as candidaturas constitui obiter dictum do critério
decisivo de condenação que se traduziu na imposição de um dever de tratamento
igualitário, em termos de absoluta paridade, com abstenção de quaisquer condutas
que não garantissem a sua observância – dever esse que, do ponto de vista da
Recorrente, corresponde a um comando normativo inconstitucional, extraído pela
interpretação do Supremo Tribunal de Justiça;
IV. Pelo que não poderá o Tribunal Constitucional deixar
de apreciar as questões de inconstitucionalidade invocadas.
O Exmo representante do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se no
sentido da improcedência da reclamação por considerar que «a argumentação da
entidade reclamante em nada abala os fundamentos da decisão reclamada, no que
respeita à evidente inverificação dos pressupostos de admissibilidade do recurso
interposto».
Vem o processo à conferência sem vistos.
II - Fundamentação
2. Dispõe o artigo 212.º da Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais
(LEOAL), sob a epígrafe «Violação de deveres de publicações periódicas», que
«[A] empresa proprietária de publicação informativa que não proceder às
comunicações relativas a campanha eleitoral previstas na presente lei ou que não
der tratamento igualitário às diversas candidaturas é punida com coima de
200000$00 a 2000000$00».
Na impugnação deduzida, perante o Supremo Tribunal de Justiça, contra a decisão
punitiva que, com base no referido preceito, lhe foi aplicada pela Comissão
Nacional de Eleições, a reclamante defendeu o entendimento de que o segmento
«empresas proprietárias de publicação informativa» se refere à imprensa escrita
de carácter informativo e não já a outras empresas titulares de outros meios de
comunicação social, como a rádio e a televisão.
O Supremo Tribunal de Justiça não sufragou esta posição, firmando antes a
interpretação segundo a qual os deveres impostos pela referida disposição se
aplicam a todos os órgãos de comunicação social, com excepção apenas daqueles
que sejam titulares de «publicações doutrinárias», sem excluir do alcance
normativo do preceito, por conseguinte, os operadores de televisão ou de
radiodifusão.
A reclamante interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, discutindo a
conformidade constitucional da mencionada interpretação, face ao princípio da
legalidade penal consagrado no artigo 29º, n.º 5, da Lei Fundamental. E como
decorre com clareza dos próprios termos do requerimento de recurso, a
reclamante considera que «a norma é inconstitucional por [na interpretação que
lhe foi dada pelo tribunal recorrido] ultrapassar o sentido possível do referido
preceito».
Ou seja, o que a recorrente censura ao acórdão recorrido é o facto de se ter
subsumido ao conceito de empresa proprietária de publicação informativa as
empresas que sejam titulares de meios de comunicação televisivos ou
radiofónicos. E isso por entender que toda a interpretação que ultrapasse o
sentido e alcance normativo que se julgue ser o aplicável se torna
inconstitucional por violar os limites da tipicidade que é imposta pelo artigo
29º, nº 1, da Constituição.
Mas, a ser assim, o que a recorrente verdadeiramente questiona, ratione
constitutionis, não é tanto um certo sentido ou dimensão normativa que o acórdão
recorrido tenha extraído do citado artigo 212º da LEOAL, mas, mais propriamente,
o processo interpretativo que permitiu ao tribunal recorrido incluir no conceito
de empresa proprietária de publicação informativa as empresas que não sejam
apenas titulares de meios informativos de imprensa escrita. Ou seja: a
recorrente não coloca em causa, exactamente, que o legislador pudesse tipificar
como contra-ordenação a violação dos deveres especificados na LEOAL quando o
sejam por quaisquer empresas proprietárias de publicações informativas; discute,
isso sim, a validade da decisão judicial que, por um processo de interpretação
que a Constituição proíbe, tenha chegado a esse resultado.
Por isso, na decisão sumária ora reclamada, se entendeu não ser de conhecer do
objecto do recurso, porquanto o Tribunal Constitucional não tem competência, nem
para apreciar as decisões judiciais, em si mesmas consideradas – e integra ainda
a decisão o processo interpretativo seguido pelo tribunal recorrido -, nem para
proceder à interpretação autêntica do direito ordinário (entendendo-se
interpretação autêntica, naturalmente, não como sendo uma interpretação
legislativa, mas uma interpretação doutrinal que possa definir, no caso
concreto, a melhor solução jurídica).
E esse tem sido também o entendimento que, em situações similares, tem sido
seguido pela jurisprudência constitucional, representada, designadamente, pelos
acórdãos n.ºs 674/99, 383/00 e 176/03.
Como se ponderou no primeiro dos arestos citados, quando se conclui que o que
vem impugnado pelo recorrente não é a norma, em si mesma considerada, mas antes,
a decisão judicial que a aplicou, por via de um processo interpretativo
constitucionalmente proibido, essa «questão - por não respeitar a uma
inconstitucionalidade normativa, mas antes a uma inconstitucionalidade da
própria decisão judicial - excede os poderes de cognição do Tribunal
Constitucional, uma vez que, entre nós, não se encontra consagrado o denominado
recurso de amparo, designadamente na modalidade do amparo contra decisões
jurisdicionais directamente violadoras da Constituição».
De todo o modo - como logo acrescenta o mesmo aresto -,mesmo que se entendesse
que este Tribunal ainda era competente para conhecer das questões de
inconstitucionalidade resultantes do facto de se ter procedido a uma
constitucionalmente vedada integração analógica ou a uma «operação equivalente»,
designadamente a uma interpretação «baseada em raciocínios analógicos» (cfr.
declaração de voto do Consº Sousa e Brito ao citado Acórdão n.º 634/94, bem como
o já mencionado Acórdão n.º 205/99), o que sempre se terá por excluído é que o
Tribunal Constitucional possa sindicar eventuais interpretações tidas por
erróneas, efectuadas pelos tribunais comuns, com fundamento em violação do
princípio da legalidade.
Aliás, se assim não fosse, o Tribunal Constitucional passaria a controlar, em
todos os casos, a interpretação judicial das normas penais (ou fiscais), já que
a todas as interpretações consideradas erróneas pelos recorrentes poderia ser
assacada a violação do princípio da legalidade em matéria penal (ou fiscal).
Não há motivo, por isso, para alterar o julgado, neste ponto.
3. No tocante à segunda questão de constitucionalidade que constitui objecto de
recurso, sustenta a reclamante que a interpretação formulada pelo tribunal
recorrido, quanto ao âmbito normativo do citado artigo 212º da LEOAL, tem
igualmente pressuposta uma interpretação dos princípios gerais vigentes no
direito contra-ordenacional que estão plasmados nos artigos 1º e 2º do RGCO que
está, ela própria, ferida de inconstitucionalidade por violação do princípio da
legalidade penal. Isso porque tal interpretação permite considerar que é lícito
incluir no âmbito de aplicação de uma norma sancionadora em matéria
contra-ordenacional casos que estão para além do quadro significativo demarcado
pelo seu teor literal possível e determinado.
Como se referiu, no entanto, na decisão reclamada, o tribunal recorrido não faz
qualquer referência, para efeito de fundamentar a sua posição, às mencionadas
normas do RGCO e não aplicou, por isso, como ratio decidendi, qualquer
interpretação normativa dessas disposições que se torne passível de ser
sindicada quanto à sua conformidade constitucional.
E, como é sabido, e se depreende com toda a clareza do artigo 70º, n.º 1, alínea
b), da Lei do Tribunal Constitucional, constitui pressuposto processual do
recurso de constitucionalidade, que a decisão recorrida aplique norma cuja
inconstitucionalidade haja sido suscitada no processo, o que naturalmente se não
compadece com a mera invocação, pelo recorrente, de uma interpretação normativa
que não se encontre minimamente referenciada, ainda de forma implícita, na
decisão recorrida.
4. O recurso de constitucionalidade tinha ainda por objecto a apreciação da
conformidade constitucional, face aos princípios da liberdade de informação e de
imprensa e da igualdade de tratamento das candidaturas, da interpretação do
artigo 212º da LEOAL segundo a qual “durante a campanha eleitoral para as
eleições autárquicas, constitui tratamento não igualitário punível a realização
de debates televisivos sem que sejam convidadas todas as candidaturas
concorrentes”.
A decisão reclamada não conheceu do recurso, nessa parte, por entender que não
poderia retirar-se, do texto da decisão recorrida, a interpretação que a
recorrente censura, pois que o tribunal recorrido não considerou punível, sem
mais, a realização de debates televisivos sem que sejam convidadas todas as
candidaturas concorrentes, atendendo a que também admitiu que a recorrente
pudesse comprovar a impossibilidade de organização de tais debates.
Neste ponto, a reclamante considera que o tribunal recorrido emitiu uma
pronúncia expressa sobre a invocada questão do tratamento não igualitário e que,
nesse contexto, a referência à necessidade de demonstração da impossibilidade de
organizar debates com intervenção de todas as candidaturas terá constituindo um
mero obiter dictum, e não propriamente um segmento decisório.
A verdade é que a decisão recorrida, como claramente se depreende da transcrição
feita na rubrica Relatório, proferiu um julgamento de improcedência quanto ao
invocado argumento da impossibilidade prática de a impugnante organizar os
debates com a presença de todas as candidaturas; e fê-lo na parte da
fundamentação em que analisa a questão do tratamento não igualitário (cfr. ponto
2.4.2), tudo indicando que o tribunal recorrido se propôs avaliar aquele
circunstancialismo factual, caso pudesse considerar-se como provado, como uma
causa justificativa do facto, que poderia conduzir, do mesmo modo, à revogação
da medida punitiva. O que conduz a concluir que o tribunal recorrido não adoptou
um entendimento restritivo que permita considerar que a realização de debates
televisivos sem a presença de todas as candidaturas concorrentes representa
sempre um tratamento não igualitário, visto que acabou por aceitar a ideia de
que um tal comportamento poderia, apesar disso, não ser punível se interviessem
circunstâncias desculpabilizantes.
Mesmo admitindo, porém, que o tribunal recorrido aplicou a referida
interpretação normativa, o certo é que a sua eventual inconstitucionalidade não
vem suscitada de modo processualmente adequado no processo. No ponto IV das
conclusões do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, a recorrente limita-se
a formular diversas considerações quanto à ilegalidade da decisão da CNE (no
ponto em que se considera ter havido um tratamento não igualitário de todas as
candidaturas), concluindo na g) do seguinte modo:
O entendimento oposto da CNE significa uma violação:
i. da liberdade de imprensa e do direito à informação (arts. 37° e 38° da
Constituição), e tanto na perspectiva do direito a informar como na do direito a
ser informado;
ii. Do princípio legal (arts. 40° e 49° LEOAL) e constitucional da igualdade
(arts. 13° e 113°, n°3, al. b), da Constituição) de tratamento das candidaturas,
na medida em que este impõe um «tratamento em moldes de proporcionalidade das
situações desiguais» e, designadamente, não só permite como impõe que apenas se
dê um tratamento jornalístico semelhante às situações dotadas de «um relevo
jornalístico semelhante, atendendo aos diversos factores que para o efeito se
tem de considerar.
A recorrente não identifica, como bem se vê, uma certa interpretação normativa
do artigo 212º da LEOAL que seja passível de violar os citados princípios
constitucionais, e apenas sustenta que um entendimento oposto àquele que é
defendido nas precedentes alíneas a) a f) do ponto IV das conclusões (onde se
expõem diversos argumentos, incluindo alguns de carácter doutrinário, destinados
a demonstrar a ilegalidade da decisão da CNE) significa a violação dos apontados
princípios da liberdade de imprensa e do direito à informação e do princípio da
igualdade. Isto é, na peça processual não se encontra definida, com precisão, a
interpretação normativa que se considera ferida de inconstitucionalidade e
apenas se entende como sendo inconstitucional um modo de interpretação da lei
que não leve em devida consideração todos os elementos de carácter hermenêutico
que haviam sido antecedentemente explanados (e que deviam conduzir, na óptica da
recorrente, ao reconhecimento da ilegalidade da decisão punitiva).
Assim, também por falta de suscitação desta terceira questão de
constitucionalidade, não poderia conhecer-se do recurso.
III – Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, acordam em indeferir a reclamação e
confirmar a decisão reclamada.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 15 de Outubro de 2007
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Gil Galvão