Imprimir acórdão
Processo nº 554/07
2ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
No processo nº 146/02.0IELSB, do 2ª Juízo Criminal, 3ª Secção, de Lisboa, A.,
foi condenado, por sentença de 20/12/2005, pela prática de um crime de abuso de
confiança fiscal, na forma continuada, p.p. pelos artº 105º, nº 1 e 5, do RGIT,
30º, nº 2 e 79º, do C.P., na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, com execução
suspensa pelo período de 5 anos, na condição do arguido pagar à Administração
Fiscal, a prestação tributária em dívida.
Desta sentença recorreu o arguido para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por
acórdão de 19-12-2006, negou provimento ao recurso, confirmando a sentença
recorrida.
O arguido, por requerimento de 15-1-2007, interpôs recurso para o Tribunal
Constitucional, pedindo a apreciação da inconstitucionalidade das seguintes
“normas”:
“a) a do artigo 14.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT);
b) a extraída do artigo 14.º, n.º 1, do RGIT segundo a qual a suspensão da
execução da pena aplicada a crime continuado depende automaticamente da
condição do pagamento das prestações tributárias correspondentes à totalidade
das condutas integradoras da continuação;
c) a do artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, quando interpretado no sentido de que
exige, como condição de suspensão da execução da pena de prisão, o pagamento da
totalidade das prestações tributárias e acréscimos legais ou dos benefícios
indevidamente recebidos (mormente da totalidade das prestações ou benefícios
nos casos de crime continuado) em situações em que, disjuntiva ou
conjuntivamente, o arguido não é o sujeito passivo das prestações tributárias,
não foi condenado em pedido de indemnização civil, não se apropriou nem
beneficiou pessoalmente dessas prestações, não lhe é reconhecida capacidade para
pagar o valor global das contribuições em falta no prazo da suspensão da
execução da pena ou, tendo sido condenado pela prática de um crime continuado, o
valor global das prestações tributárias em falta é superior ao do valor da que
corresponde à conduta mais grave que integra a continuação;
As referidas normas violam os princípios constitucionais da proporcionalidade,
da igualdade, da necessidade ou da máxima restrição das penas (arts. 13.º e
18.º, n.º 2 e 3 da CRP), da jurisdicionalidade da aplicação do direito penal,
como garantia da máxima objectividade e do mínimo abuso (arts. 27.º, n.º 2, da
CRP) e da humanidade e da culpa, inerentes ao da dignidade da pessoa humana
(art. 1.º da CRP)”.
Após ter sido admitido este recurso por despacho da Desembargadora relatora de
6-2-2007, o arguido, por requerimento de 7-2-2007, veio pedir que se declarasse
extinto o procedimento criminal, atenta a alteração entretanto ocorrida no tipo
legal de crime pelo qual havia sido condenado, pela Lei nº 53-A/2006.
O Ministério Público pronunciou-se sobre este requerimento, promovendo que se
remetessem os autos ao tribunal recorrido a fim de se providenciar pela
notificação a que se refere o artº 105º, nº 4, alínea b), do RGIT.
O arguido apresentou novo requerimento revelando a sua discordância
relativamente à promoção do Ministério Público.
Foi proferido acórdão, em conferência, em 17-4-2007, que determinou a devolução
dos presentes autos ao tribunal de 1 ª instância, “a fim de aí se proceder à
notificação a que alude o artº 105º, nº 4, b), da RGIT, ao arguido A., posto o
que, decorrido o prazo aí cominado, deverá aí ser proferida decisão sobre a
verificação ou não da aludida condição objectiva de punibilidade relativamente
ao mencionado arguido”.
Desta decisão voltou o arguido a interpor recurso para o Tribunal
Constitucional, em 3-5-2007, pedindo a apreciação da inconstitucionalidade das
seguintes “normas”:
“a) A extraída da interpretação conjugada da anterior e da actual versão dos
n.ºs 1 e 4 do art. 105.º do RGIT e do n.º 4 do artigo 2.º do Código Penal,
segundo a qual não foi descriminalizada (continuando a constituir crime) a não
entrega da prestação tributária por sujeito passivo que cumpriu as suas
obrigações declarativas e que (ainda) não foi notificado nos termos do disposto
na alínea b) do n.º 4 do referido artigo 105.º do RGIT;
b) A extraída da interpretação da anterior e da actual versão dos n.ºs 1 e 4 do
art. 105.º do RGIT, segundo a qual é criminalmente punível, constituindo crime,
a não entrega da prestação tributária por sujeito tributário passivo que cumpriu
a obrigação de declaração constante da alínea b) do mencionado n.º 4 mas não foi
notificado para proceder ao pagamento previsto nesta alínea;
c) A extraída da interpretação conjugada da anterior e da actual versão do
artigo 105.º, n.º 1 e 4, do RGIT, segundo a qual, nos casos em que o sujeito
tributário passivo acusado, pronunciado ou condenado (sem trânsito em julgado)
pela prática do crime da abuso de confiança fiscal deu cumprimento às suas
obrigações declarativas e não foi notificado para pagar a prestação
tributária, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável
(disso não tendo sido sequer acusado ou pronunciado), compete ao tribunal do
julgamento providenciar pela realização de tal notificação;
d) A extraída da interpretação conjugada da anterior e da actual versão do
artigo 105.º, n.º 1 e 4, do RGIT e do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal,
segundo a qual, nos casos em que o sujeito tributário passivo acusado,
pronunciado ou condenado (sem trânsito em julgado) pela prática do crime da
abuso de confiança fiscal deu cumprimento às suas obrigações declarativas e não
foi notificado para pagar a prestação tributária, acrescida dos juros
respectivos e do valor da coima aplicável (disso não tendo sido sequer acusado
ou pronunciado), o processo não deve ser arquivado.
2. As normas referidas nas alíneas a) e b) supra violam o princípio
constitucional da não retroactividade da penalização (art. 29.º, n.º 1, da CRP).
3. As normas mencionadas nas alíneas c) e d) supra violam os princípios do
acusatório (art. 32.º, n.º 5, da CRP), da plenitude das garantias de defesa dos
arguidos (art. 32.º, n.º 1, da CRP), da separação de poderes (art. 2.º da CRP) e
da independência dos tribunais (art. 203.º da CRP)”.
Neste Tribunal foi proferida decisão sumária, nos termos do artº 78º - A, nº 1,
da LTC., que julgou improcedente o recurso interposto do acórdão do Tribunal da
Relação de Lisboa de 19-12-2006, e não conheceu do recurso interposto do acórdão
do Tribunal da Relação de Lisboa de 6-2-2007.
Esta decisão apresentou os seguintes fundamentos
“1. Do recurso interposto do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de
19-12-2006
1.1. Da questão enunciada na alínea a)
O recorrente invoca a inconstitucionalidade do artº 14º, nº 1, do Regime Geral
das Infracções Tributárias (RGIT).
A inconstitucionalidade deste artigo já foi apreciada por diversas vezes pelo
Tribunal Constitucional, o qual concluiu sempre pela sua conformidade com os
preceitos constitucionais, como se pode constatar pela leitura dos acórdãos nº
256/03, 335/03, 500/05, 309/06, 543/06, 587/06, 29/07 e 61/07, todos
disponíveis no site www.tribunalconstitucional.pt.
Uma vez que se concorda inteiramente com este julgamento reiterado, justifica-se
que se profira decisão sumária nesse sentido, remetendo-se para a fundamentação
constante dos mencionados acórdãos, nos termos permitidos pelo nº 1, do artº 78º
- A, da LTC, e 705º, do C.P.C., aplicável ex vi do artº 69º, da LTC.
1.2. Da questão enunciada na alínea b)
O recorrente invoca a inconstitucionalidade da interpretação normativa extraída
do artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, “segundo a qual a suspensão da execução da pena
aplicada a crime continuado depende automaticamente da condição do pagamento das
prestações tributárias correspondentes à totalidade das condutas integradoras da
continuação”.
No presente caso o recorrente foi condenado pela prática de um crime de abuso de
confiança fiscal, na forma continuada, p.p. pelos artº 105º, nº 1 e 5, do RGIT,
30º, nº 2 e 79º, do C.P., na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, com execução
suspensa pelo período de 5 anos, tendo esta suspensão ficado condicionada ao
pagamento das prestações tributárias em falta, correspondentes à totalidade das
condutas integradoras da condenação.
Conforme consta da fundamentação dos acórdãos citados no ponto anterior as
condições de suspensão da execução das penas devem respeitar os princípios
constitucionais da proporcionalidade e adequação, e também, como se refere nos
mesmos acórdãos, no caso de crimes fiscais, atento o interesse público da
cobrança dos impostos, revela-se perfeitamente proporcionada e adequada a
aposição da condição de suspensão da execução das penas que consista no
pagamento pelo arguido dos valores tributários, cuja dívida esteve na base da
respectiva condenação.
Ora, apesar de num crime continuado o arguido ser apenas punido com a pena
correspondente à conduta mais grave que integra a continuação (artº 78º, nº 5,
do C.P.), o juízo que é proporcional e adequada a condição do pagamento das
prestações tributárias em dívida aposta à suspensão da execução daquela pena,
mantém-se, mesmo quando essas prestações respeitem a todas as condutas
integrantes do crime continuado e não apenas à mais grave.
Na verdade, para esse juízo de proporcionalidade e adequação o que releva é que
as prestações cujo pagamento funciona como condição da suspensão da execução da
pena sejam devidas pelo condenado e o seu débito esteja relacionado com a
conduta que aquela pena pune. Ora, apesar de ter sido aplicada a pena prevista
para a conduta mais grave, todas as condutas integrantes do crime continuado
são punidas por aquela pena, pelo que se mostra perfeitamente proporcionada e
adequada que a aposição da condição de suspensão da execução da pena consista no
pagamento de todas as prestações relativas a todas as condutas punidas com essa
pena.
Sendo, pois, manifestamente improcedente o recurso relativo à questão enunciada
na alínea b) do respectivo requerimento de interposição, deve ser proferida
decisão sumária nesse sentido, nos termos do artº 78º - A, da LTC.
1.3. Da questão enunciada na alínea c)
O recorrente invoca a inconstitucionalidade da interpretação normativa do artº
14º, nº 1, do RGIT, “no sentido de que exige, como condição de suspensão da
execução da pena de prisão, o pagamento da totalidade das prestações tributárias
e acréscimos legais ou dos benefícios indevidamente recebidos (mormente da
totalidade das prestações ou benefícios nos casos de crime continuado) em
situações em que, disjuntiva ou conjuntivamente, o arguido não é o sujeito
passivo das prestações tributárias, não foi condenado em pedido de indemnização
civil, não se apropriou nem beneficiou pessoalmente dessas prestações, não lhe é
reconhecida capacidade para pagar o valor global das contribuições em falta no
prazo da suspensão da execução da pena ou, tendo sido condenado pela prática de
um crime continuado, o valor global das prestações tributárias em falta é
superior ao do valor da que corresponde à conduta mais grave que integra a
continuação”.
É requisito de conhecimento de recurso interposto no Tribunal Constitucional
que a decisão recorrida tenha feito aplicação, como sua ratio decidendi, das
dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
Ora, da leitura dessa decisão – o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de
19-12-2006 - constata-se que a mesma não considerou que o recorrente não fosse
sujeito passivo das prestações tributárias, nem que ele não se tenha apropriado
ou beneficiado pessoalmente dessas prestações.
Relativamente a estes últimos factos, apesar do seu contrário também não ter
ficado demonstrado, apenas se provou o seguinte:
- que o recorrente com a sua conduta visou obter para a sociedade que geria
vantagem patrimonial;
- que a não entrega do IVA integrou-se na forma de actuação usual da sociedade,
no período de tempo em questão, baseada num laxismo quanto ao cumprimento cabal
e nos termos da lei de obrigações fiscais, sentidas como um fardo económico e
até contabilístico e administrativo, face aos benefícios derivados do seu
incumprimento, sendo que o recorrente e a sociedade mantiveram por tanto tempo a
situação descrita no que se refere às dívidas ao Fisco, face à esperada
morosidade da actuação da Administração Fiscal, tendo persistido em manter a
firma em situação de incumprimento por isso os beneficiar e em nada os
prejudicar no imediato.
- que o recorrente procedeu ao pagamento dos salários dos seus trabalhadores e
alguns fornecedores, para que estes não deixassem de fornecer e, através do
produto da sua venda conseguisse manter viva a sociedade na esperança de ser
ultrapassada a crise que a afectou.
- que o recorrente tentou salvaguardar a manutenção da actividade da sociedade e
assim obstar à eminente situação de falência desta, com consequências nefastas
para a generalidade dos seus credores, designadamente os seus trabalhadores e
respectivas famílias.
Destes factos, apesar de resultar uma intenção do recorrente salvaguardar a
manutenção da actividade da sociedade ao não cumprir as obrigações tributárias
desta, não é possível concluir que não se tenha apropriado ou beneficiado
pessoalmente do não pagamento das prestações tributárias em dívida, pelo que,
não tendo estes factos sido apurados neste processo, eles são necessariamente
alheios à ratio decidendi do acórdão recorrido.
Quanto à alegada circunstância do recorrente não ser o sujeito passivo das
prestações tributárias, é preciso ter em consideração que está consagrada a
responsabilidade pessoal, ilimitada e solidária dos administradores e gerentes
das sociedades comerciais de responsabilidade limitada, pela satisfação das
dívidas tributárias da respectiva sociedade, que vigora no nosso sistema fiscal
desde o Decreto nº 17.730, de 7 de Dezembro de 1929, e que actualmente consta do
artº 13º, do Código de Processo Tributário, o que torna aqueles administradores
e gerentes igualmente sujeitos passivos das dívidas tributárias das sociedades
que gerem.
Na verdade, independentemente da posição que se adopte na controversa
qualificação jurídica desta responsabilidade tributária pelo pagamento da
dívida de outrem, os referidos administradores e gerentes são também
considerados sujeitos passivos das prestações tributárias devidas pelas
respectivas sociedades. É que a Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei
n.º 398/98, de 17 de Dezembro, no seu artº 18º, qualifica este tipo de
responsável tributário como um sujeito passivo da relação tributária, do mesmo
modo que o contribuinte directo e o substituto tributário, enquanto “pessoa que,
nos termos da lei, está vinculada ao cumprimento da prestação tributária”.
Não constando do acórdão recorrido interpretação diversa da acima enunciada,
também não é possível vislumbrar na sua ratio decidendi a dimensão normativa que
o recorrente lhe atribui neste domínio.
A circunstância de não ser reconhecida capacidade ao recorrente para pagar o
valor global das contribuições em falta no prazo da suspensão da execução da
pena, além de também não constar da ratio decidendi do acórdão recorrido, é
irrelevante para a decisão de inconstitucionalidade da questão suscitada,
conforme consta da fundamentação dos acórdãos acima referidos no ponto 1.1.,
para a qual já remetemos.
O facto de nos encontrarmos perante a condenação pela prática de um crime
continuado e das prestações tributárias a cujo pagamento ficou condicionada a
suspensão da execução da pena de prisão corresponderem à totalidade das
condutas integradoras da condenação, já foi ponderada na análise da questão
anterior, tendo-se concluído que a correspondente interpretação não infringe
qualquer preceito constitucional.
Resta, assim, como segmento da interpretação normativa, referida na alínea c)
do requerimento de interposição de recurso, que esteja contido na decisão
recorrida e que ainda não tenha sido objecto de apreciação, o facto do
recorrente não ter sido condenado no pedido cível contra si deduzido, tendo por
objecto a sua condenação no pagamento das prestações tributárias, cujo pagamento
ficou a condicionar a suspensão da execução da pena de prisão.
Devendo a fixação de condições à suspensão da execução da pena respeitar o
princípio constitucional da proporcionalidade, não se justificava subordinar
essa suspensão a pagamento duma quantia que, porventura, se considerasse não ser
devida, segundo a lei aplicável.
Contudo, a não condenação no pedido cível deduzido, além desta causa, pode
ocorrer por outras razões que não impliquem um juízo sobre a existência daquele
débito tributário, nomeadamente a verificação duma excepção dilatória que impeça
o conhecimento do mérito do pedido civil, determinando apenas a absolvição da
instância do demandado, como sucedeu neste caso.
Por isso, o simples facto do arguido não ter sido condenado no pedido civil não
é suficiente para que possa considerar que a aposição da condição da suspensão
da execução da pena de prisão, violou o referido princípio da
proporcionalidade.
Se, disjuntivamente, as circunstâncias ponderadas na fundamentação da decisão
recorrida (condenação pela prática de crime continuado e não condenação no
pedido civil) não ferem a interpretação normativa referida na alínea c) do
requerimento de recurso de inconstitucionalidade, quando encaradas em conjunto
em nada alteram essa conclusão. Pode dizer-se que zero mais zero é igual a zero.
Assim, revela-se também manifestamente improcedecente o recurso relativo à
questão enunciada na alínea c) do respectivo requerimento de interposição, pelo
que deve ser proferida decisão sumária nesse sentido, nos termos do artº 78º -
A, da LTC.
2. Do recurso interposto do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 6-2-2007
Apenas são susceptíveis de recurso para o Tribunal Constitucional as decisões
que decidam em definitivo determinada questão.
Ora, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 6-2-2007 apenas decidiu
determinar a devolução dos presentes autos ao tribunal de 1 ª instância, “a fim
de aí se proceder à notificação a que alude o artº 105º, nº 4, b), da RGIT, ao
arguido A., posto o que, decorrido o prazo aí cominado, deverá aí ser proferida
decisão sobre a verificação ou não da aludida condição objectiva de punibilidade
relativamente ao mencionado arguido”.
Este acórdão apenas decide a remessa dos autos ao tribunal da 1ª instância para
aí se proceder à notificação a que alude o artº 105º, nº 4, b), da RGIT, na
pessoa do recorrente.
Quanto às consequências a extrair do resultado dessa notificação, nada está
decidido e mesmo a referência a que a mencionada alínea b), do nº 4, do artº
105º, do RGIT, integra uma condição objectiva de punibilidade, não vincula a
decisão que vier a ser proferida sobre a aplicação da referida alínea.
Assim, das quatro questões colocadas neste recurso apenas a mencionada na alínea
c) se poderia considerar decidida com cariz definitivo na decisão recorrida.
Contudo, se verificarmos como essa questão foi suscitada pelo recorrente no
requerimento que antecedeu o acórdão recorrido, facilmente constatamos que a
mesma tem como seu fundamento as questões suscitadas nas restantes alíneas do
requerimento de interposição de recurso, pelo que, por tais questões não terem
sido ainda objecto de decisão definitiva o impedimento ao seu conhecimento
estende-se também à enunciada na referida alínea c).
Por estas razões não é possível tomar conhecimento de todas as questões
identificadas requerimento de interposição de recurso, proferindo-se decisão
sumária nesse sentido, nos termos do artº 78º - A, nº 1, da LTC”.
O recorrente vem agora reclamar para a conferência desta decisão sumária,
expondo os seguintes argumentos:
I. Quanto ao conhecimento imediato do recurso interposto do acórdão do Tribunal
da Relação de Lisboa de 19.12.2006
1. A douta decisão sumária de que se reclama declarou não ser possível tomar
conhecimento de nenhuma das questões identificadas no requerimento de
interposição do recurso relativo ao acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de
06.02.2007, por entender que tais questões não foram objecto de decisão
definitiva, uma vez que aquele acórdão apenas teria decidido “a remessa dos
autos ao tribunal da l.ª instância para aí se proceder à notificação a que alude
o artº 105º, nº 4, b), do RGIT, na pessoa do recorrente”.
2. “Quanto às consequências a extrair do resultado dessa notificação, nada
[estaria] decidido e mesmo a referência a que a mencionada alínea b), do nº 4,
do artº 105º, do RGIT, integra uma condição objectiva de punibilidade, não
[vinculará] a decisão que [venha] a ser proferida sobre a aplicação da referida
alínea”.
3. Ora, salvo melhor entendimento, não existe também decisão com cariz
definitivo quanto à condenação do Recorrente e, consequentemente, quanto à
escolha e medida da pena aplicada e à condição de suspensão da execução da
mesma.
4. Tudo poderá ter que voltar a ser decidido em função precisamente do
entendimento que se tiver quanto ao preenchimento, ou não, do elemento previsto
na alínea b) do n.º 4 do art. 105.º do RGIT e quanto ao alcance das respectivas
consequências.
5. Logo, salvo o devido respeito, que é muito, por identidade de razão, também
não existirá fundamento para que o Venerando Tribunal Constitucional se
pronuncie, desde já, sobre a inconstitucionalidade das normas extraídas do
artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, suscitada no recurso interposto do acórdão do
Tribunal da Relação de Lisboa de 19.12.2006.
6. Deste modo, em conferência, deverá ser decidido não se conhecer, pelo menos
imediatamente, do recurso interposto do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
de 19.12.2006, ou determinar-se que o recurso prossiga para apreciação desse
eventual não conhecimento.
Porém, caso assim não se entenda, ainda se dirá o seguinte:
II. Quanto aos pontos 1.2 e 1.3 da douta decisão sumária
7. O Recorrente não se conforma com a douta decisão sumária, pelo menos, na
parte em que se pronunciou sobre as questões suscitadas nas alíneas b) e c) do
requerimento de interposição do recurso do acórdão do Tribunal da Relação de
Lisboa de 19.12.2006, (pontos 1.2 e 1.3 da douta decisão sob reclamação).
8. Com efeito, afigura-se que tais questões, que nunca terão sido anteriormente
apreciadas pelo Tribunal Constitucional, merecem ser decidas em sentido
favorável ao Recorrente, uma vez que, ao contrário do defendido na douta decisão
sumária, as normas extraídas pelo douto acórdão recorrido do artigo 14.º, n.º 1,
do RGIT violam os princípios da proporcionalidade e da adequação, designadamente
quando estabelecem como condição de suspensão da execução da pena de prisão
aplicada pela prática de um crime continuado de abuso de confiança fiscal a
mesma que seria aplicada se a conduta do arguido configurasse, não uma
continuação, mas um concurso efectivo e real de vários crimes de abuso de
confiança fiscal.
9. Nestes termos, deverá ser determinado o prosseguimento do recurso para
conhecimento das questões sumariamente apreciadas nos pontos 1.2 e 1.3 da douta
decisão sob reclamação.
III. Quanto ao não conhecimento do recurso interposto do acórdão do Tribunal da
Relação de Lisboa de 06.02.2007, designadamente das alíneas c) e d) do
respectivo requerimento de interposição
10. No que diz respeito ao recurso interposto do acórdão do Tribunal da Relação
de Lisboa de 19.12.2006, o Recorrente não se conforma com o não conhecimento
imediato das questões suscitadas nas alíneas c) e d) do respectivo requerimento
de interposição.
11. Com efeito, afigura-se que o douto acórdão recorrido pronunciou-se, com
cariz definitivo, no sentido de que o tribunal do julgamento é o competente para
providenciar pela realização da notificação prevista na al. b) do n.º 4 do
artigo 105.º do RGIT e, por outro lado, no sentido de que o processo não deve
ser imediatamente arquivado.
12. As normas que subjazem a tal entendimento, e cuja inconstitucionalidade foi
suscitada pelo Recorrente, deveriam ter sido objecto de apreciação pelo Tribunal
Constitucional, uma vez que foram aplicadas com cariz definitivo.
13. Saliente-se que as questões da inconstitucionalidade destas normas não se
fundam nas questões de inconstitucionalidade suscitadas nas outras alíneas do
mesmo requerimento.
14. Com efeito, nas alíneas c) e d) do requerimento de interposição do recurso
estão em causa princípios constitucionais de natureza processual (de direito
penal adjectivo), designadamente do acusatório, da plenitude das garantias de
defesa dos arguidos, da separação de poderes e da independência dos tribunais,
que seriam sempre aplicáveis, mesmo ao abrigo da mesma lei (veja-se, a este
propósito quer o requerimento de interposição do recurso, quer o requerimento
em que é suscitada a inconstitucionalidade perante o Tribunal da Relação de
Lisboa). Não estão em causa princípios ligados à sucessão de leis penais (de
direito penal substantivo), como nas alíneas a) e b) do mesmo requerimento.
15. Nestes termos, deverá ser determinado o prosseguimento do recurso também
para conhecimento das questões suscitadas nas alíneas c) e d) do requerimento de
interposição do recurso”.
O Ministério Público pronunciou-se no sentido de ser indeferida a reclamação
apresentada.
*
Fundamentação
1. Do conhecimento em decisão sumária do recurso interposto do acórdão do
Tribunal da Relação de Lisboa de 19-12-06
O reclamante vem defender que não deve ser conhecido o mérito do recurso
interposto do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19-12-06, devido à
decisão condenatória contida no mesmo não ter cariz definitivo, atenta a
alteração entretanto ocorrida na norma que prevê a punição do crime pelo qual o
arguido foi condenado por aquele acórdão.
Apesar duma posterior alteração da lei tipificadora do crime pelo qual o arguido
foi punido poder conduzir à sua descriminalização e consequente cessação da pena
pela qual o arguido foi condenado, ou à aplicação de um regime mais favorável,
caso a respectiva sentença não tenha transitado em julgado (artº 2º, do C.P.),
isso não retira o cariz definitivo ao acórdão do Tribunal da Relação que
confirmou a sentença da 1ª instância que havia condenado o arguido pela prática
de ilícito criminal.
O carácter provisório das decisões judiciais, impeditivo da sua apreciação pelo
Tribunal Constitucional, reside na sua própria natureza (v.g. as decisões que
decretem providências cautelares) e não na possibilidade delas poderem ser
alteradas por qualquer circunstância superveniente. Essa alteração pode tornar o
recurso constitucional inútil, atenta a sua instrumentalidade, mas enquanto tal
alteração não ocorrer, sendo apenas uma mera hipótese académica, nada justifica
que não se conheça do mérito do recurso interposto do acórdão do Tribunal da
Relação que confirmou sentença condenatória do arguido proferida em 1ª
instância.
Subsidiariamente, o reclamante manifesta a sua discordância da decisão de mérito
proferida na decisão sumária sobre as questões enunciadas nas alíneas b) e c) do
seu requerimento de interposição de recurso.
Limita-se a manifestar a sua discordância das decisões tomadas, sem invocar
qualquer argumento que contrarie a fundamentação que justificou essas decisões.
Concordando-se totalmente com a fundamentação contida na decisão sumária quanto
a estas decisões, devem as mesmas manterem-se.
2. Do não conhecimento do recurso interposto do Acórdão do Tribunal da Relação
de Lisboa de 6-2-2007
O reclamante entende que as questões por si enunciadas nas alíneas c) e d) do
requerimento de interposição de recurso do acórdão do Tribunal da Relação de
Lisboa de 6-2-2007 se reportam a um segmento da decisão recorrida que assume
cariz definitivo - a ordem para que o tribunal da 1ª instância proceda à
notificação a que alude o artº 105º, nº 4, b), do RGIT.
São as seguintes as questões colocadas nas referidas alíneas:
“c) A extraída da interpretação conjugada da anterior e da actual versão do
artigo 105.º, n.º 1 e 4, do RGIT, segundo a qual, nos casos em que o sujeito
tributário passivo acusado, pronunciado ou condenado (sem trânsito em julgado)
pela prática do crime da abuso de confiança fiscal deu cumprimento às suas
obrigações declarativas e não foi notificado para pagar a prestação tributária,
acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável (disso não tendo
sido sequer acusado ou pronunciado), compete ao tribunal do julgamento
providenciar pela realização de tal notificação;
d) A extraída da interpretação conjugada da anterior e da actual versão do
artigo 105.º, n.º 1 e 4, do RGIT e do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal,
segundo a qual, nos casos em que o sujeito tributário passivo acusado,
pronunciado ou condenado (sem trânsito em julgado) pela prática do crime da
abuso de confiança fiscal deu cumprimento às suas obrigações declarativas e não
foi notificado para pagar a prestação tributária, acrescida dos juros
respectivos e do valor da coima aplicável (disso não tendo sido sequer acusado
ou pronunciado), o processo não deve ser arquivado”.
A questão colocada na alínea d) pressupõe uma decisão definitiva do Tribunal
recorrido sobre as consequências da alteração legislativa ocorrida no artº 105º,
do RGIT, a qual não foi tomada pelo acórdão recorrido. Este limitou-se a ordenar
ao tribunal da 1ª instância que procedesse à notificação prevista no artº 105º,
nº 4, b), do RGIT, sem extrair conclusões definitivas quanto às consequências
dos resultados dessa notificação, pelo que tal decisão não é susceptível de
recurso para o Tribunal Constitucional para apreciação dessa questão, uma vez
que não contém qualquer juízo definitivo sobre uma eventual decisão de
“arquivamento”.
A questão colocada na alínea c), apesar de se reportar à competência para
realizar a notificação referida na alínea b), do nº 4, do artº 105º, do RGIT,
conforme facilmente se constata pelos termos em que tal questão foi suscitada
pelo recorrente no requerimento que antecedeu o acórdão recorrido, tem como seu
pressuposto exactamente as questões enunciadas nas restantes alíneas do
requerimento de interposição de recurso, pelo que a impossibilidade de
conhecimento destas se estende necessariamente à enunciada na alínea c).
Na verdade, verifica-se que a competência para a realização dessa notificação é
questionada pelo recorrente face a um eventual juízo valorativo dos resultados
dessa notificação, o qual, como se referiu não foi efectuado pelo acórdão
recorrido, pelo que é prematuro, também quanto a esta questão o recurso
interposto pelo recorrente.
Pelos motivos apresentados, deve ser indeferida totalmente a reclamação
apresentada.
*
Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada por A. da decisão sumária
proferida nestes autos em 6-6-2007.
*
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta
(artº 7º, do D.L. nº 303/98, de 7 de Outubro).
*
Lisboa, 3 de Julho de 2007
João Cura Mariano
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos