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Processo n.º 795/2009
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos
do Tribunal da Relação de Coimbra, em que é recorrente A., foi proferida decisão
sumária de não conhecimento do objecto do recurso com o seguinte fundamento:
[…]
É manifesto que em lugar algum das alegações de recurso para o Tribunal a quo
foi suscitada qualquer questão de constitucionalidade normativa, apenas aí se
afirmando que “[…] ao não ter aplicado o princípio in dubio pro reo, o Tribunal
[de primeira instância] violou o preceituado no art. 32.º, n.º 2 da Lei
Fundamental [itálico nosso]”. Ao formular a questão nesses termos, é evidente
que o que o recorrente pretende atacar é a própria decisão recorrida e não
qualquer norma ou segmento normativo de um preceito legal que, aliás, nem sequer
identifica.
Uma tal forma de proceder é manifestamente insuficiente para que se possa
considerar cumprido o ónus, que impende sobre o recorrente, de, caso pretenda
vir a recorrer para o Tribunal Constitucional, suscitar previamente, perante o
tribunal recorrido, de modo processualmente adequado, uma questão de
constitucionalidade normativa que por este possa vir a ser apreciada.
Este pressuposto de admissibilidade do recurso só é, em regra, de considerar
preenchido quando o interessado, pelo menos, identifica a norma que reputa de
inconstitucional, menciona a norma ou princípio constitucional que considera
infringido e justifica, ainda que de forma sumária, mas de modo claro e preciso,
as razões que, no plano constitucional, invalidam a norma e impõem a sua “não
aplicação” pelo tribunal da causa, ao abrigo do disposto no artigo 204.º da
Constituição.
O que, de todo em todo, não aconteceu no presente caso.
O próprio modo como o recorrente veio agora delimitar o objecto do recurso de
constitucionalidade é manifestamente insatisfatório, pois, embora identifique o
artigo 127.º do Código de Processo Penal, não enuncia de forma rigorosa qual o
sentido que, in casu, ao preceito foi atribuído de que se extrai a norma que se
considera inconstitucional. Sendo que tal forma de proceder seria, em todo o
caso, extemporânea para que se pudesse considerar cumprido o ónus de suscitação
prévia, de modo processualmente adequado, de uma questão de constitucionalidade
normativa.
Tanto basta para que se não possa conhecer do recurso de constitucionalidade.
2. Notificado desta decisão, A. veio reclamar para a conferência, dizendo o
seguinte:
1) O presente recurso foi interposto com base na situação prevista no artigo 70
n.° 1 alínea b) da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, ou seja numa decisão
judicial que aplicou normas cuja inconstitucionalidade foi suscitado pelo ora
Recorrente durante o processo.
2) O Recorrente, no seu requerimento de interposição de recurso, constante de
fls... dos presentes autos, alegou e invocou o seguinte:
1.º) A fls (...) dos autos, com reafirmação a fls. (...), e, dos ditos autos,
designadamente no recurso que deu entrada em juízo em Fevereiro de 2009, e
resposta ao Parecer emitido pelo Senhor Procurador Geral Adjunto ao Tribunal da
Relação de Coimbra, em Abril desse mesmo ano, ao arguido, ora recorrente, arguiu
vícios de inconstitucionalidade material, por violação do princípio
constitucional da garantia do processo criminal, previsto e consagrado no artigo
32 n.° 2 da CRP, na concreta interpretação e aplicação que daqueles preceitos
foi efectuada nos autos (divergente da do arguido, ora recorrente).
O recorrente pretende, pois, que seja, apreciada a constitucionalidade da
interpretação normativa do artigo 127 do CPP que conduz à violação e não
aplicação do Principio in dubio pro reo, que assegura as garantias de defesa do
arguido, violando consequentemente o disposto do dito artigo 32 da CRP, por
incorrecta interpretação do artigo 127 do C. P. P.
2.º) O ora recorrente foi condenado, no Processo 402/04.3GASPS que correu termos
no Tribunal Judicial de São Pedro do Sul pela co-autoria material, em concurso
efectivo, de três crimes de furto qualificado um dos quais na forma tentada, p.
e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 203 n.° 1 e 204, numa pena única
de quatro anos de prisão efectiva.
3.º) Diverge o arguido, ora recorrente, deste entendimento do Exmo. Colectivo do
Tribunal Judicial de São Pedro do Sul, pois que, desde logo, e como referiu ao
Tribunal da Relação de Coimbra:
“Ponderada a prova produzida, a sua validade e o seu alcance, apenas se pode
concluir que o Tribunal a quo, revela uma apreciação criteriosa da prova, deu
como assente a factualidade ora impugnada mediante um rebuscado raciocínio de
índole persecutória, inequivocamente sustentado numa presunção de culpa,
inaceitável face à CRP, cujo art. 32 n° 2 há muito baniu do Processo Penal.”
“...não será correcto fundamentar-se, tão só, com o critério de aplicação do
artigo l27 do CPP a não possibilidade de obtenção de sucesso de algumas das
questões que o arguido, recorrente, elege como constitutivas do recurso
apresentado, pois tal argumento colocaria, de imediato, o presente recurso como
não controlável e o seu obiecto prisioneiro da decisão recorrida.”
“Deveria o tribunal recorrido aplicar o principio in dubio pro reo, enquanto
expressão garante da presunção de inocência e da minimização de equívocos
irreflectidos quando se recorre a este tipo de prova.”
“Ao não ter aplicado o principio in dubio pro reo, o Tribunal a quo violou o
preceituado no artigo 32 n.° 2 da Lei Fundamental.”
“Assim sendo, o Tribunal “a quo”, [violou] não só o art. 210 n.° 1 do Código
Penal, ao ter proferido decisão condenatória sem que o tipo legal de crime se
encontrasse preenchido, como também o artigo 127 do C.P. Penal e, ainda o art.
32.° n.° 2 da Lei Fundamental”.
4.º) No momento processualmente correcto, e conhecendo dos vícios de
inconstitucionalidade arguidos pelo ora recorrente, decidiu o Venerando Tribunal
da Relação de Coimbra não se verificarem os vícios apontados.
5.º) Embora pareça ao ora recorrente – sempre salvo o devido respeito – que a
questão da inconstitucionalidade foi no douto acórdão do Venerando Tribunal da
Relação de Coimbra subalternizada em relação a outras questões que aí se tecem,
bem certo é que as considerações nele produzidas e expendidas, e sobretudo a
decisão de confirmar integralmente a decisão recorrida, não deixa dúvidas sobre
o entendimento do acórdão daquele Venerando tribunal quanto à não violação, no
caso concreto, que qualquer preceito constitucional.
6.º) Assim não o entende o ora recorrente, sempre salvo o devido respeito por
opinião contrária.
7.º) E, por isso, mostrando-se esgotados os recursos ordinários, estará o
Venerando Tribunal Constitucional em condições de conhecer do presente recurso.
8.º) Nessa hipótese, o presente recurso, limitado à questão da
inconstitucionalidade arguida, mencionada supra e, outrossim, na motivação dos
já referido recurso, e decidida agora no douto acórdão do Venerando Tribunal da
Relação de Coimbra, que lhe negou provimento e confirmou inteiramente as
decisões da primeira instância, está a ser interposto em tempo (cf artigo 75 n.°
1 da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional.)
9.º) E visa obter declaração de inconstitucionalidade material do artigo 127.°,
do C.P.P, na concreta interpretação e aplicação que daquele preceito fez a
decisão da primeira instância e, também, por confirmação da mesma, o douto
acórdão do Venerando tribunal da Relação de Coimbra, por violação dos princípios
constitucionais das garantias do processo criminal, previstos e consagrados no
artigo 32 da CRP.
3) Todavia entendeu a Exma. Senhora Juíza Conselheira‑Relatora, ao abrigo do
disposto no artigo 78-A n.° 1 da Lei do Tribunal Constitucional, não tomar
conhecimento do objecto do recurso em virtude de,
4) ... “em lugar algum das alegações de recurso para o tribunal a quo foi
suscitada qualquer questão de constitucionalidade normativa”.
5) ... “sendo manifestamente insuficiente para que se possa considerar cumprido
o ónus, que impende sobre o recorrente de, suscitar previamente perante o
tribunal recorrido, de modo processualmente adequado, uma questão de
constitucionalidade normativa que por este possa vir a ser apreciada.”
6) Terminando por referir que: ... “embora identifique o artigo 127 do C.P.P,
não enuncia de forma rigorosa qual o sentido que, in casu, ao preceito foi
atribuído de que se extrai a norma que se considera inconstitucional”.
7) Ora, salvo o devido respeito, por posição diversa, discorda o Recorrente, ora
Reclamante da douta decisão sumária da Exma. Senhora Juíza Conselheira‑Relatora,
razão pela qual deve a mesma ser submetida à sábia apreciação da Veneranda
Conferência deste Venerando Tribunal Constitucional.
8) Com efeito, contrariamente ao que se afirma na douta decisão reclamada o
Recorrente, ora reclamante, respeitou o conjunto de requisitos específicos aos
recursos de constitucionalidade para que o mesmo possa ser conhecido.
9) Na verdade, enunciou, de forma clara e perceptível, o sentido que no caso foi
atribuído ao artigo 127 do C.P.P, tornando a norma inconstitucional.
10) Como, aliás, decorre de uma análise, ainda que superficial no seu
requerimento de interposição de recurso, nomeadamente:
O recorrente pretende, pois, que seja, apreciada a constitucionalidade da
interpretação normativa do artigo 127 do C.P.P que conduz à violação do disposto
no artigo 32 da CRP, em virtude da violação e não aplicação do principio In
Dubio Pro Reo, que assegura as garantias de defesa do arguido, violando
consequentemente o disposto do dito artigo 32 da CRP, por incorrecta
interpretação do artigo 127 do C.PP
Do supra citado, extrai-se que:
11) a norma que reputamos como inconstitucional é o artigo 127 do C.P.P.
12) o principio constitucional que consideramos infringido encontra-se
mencionado, ou seja o principio in dubio pro reo e,
13) por fim encontra-se, salvo melhor opinião, que se encontra justificado, as
razões que, no plano constitucional, invalidam a norma, pois são as garantias de
defesa do arguido consagrado no artigo 32 da Lei Fundamental.
14) Tendo, portanto, na nossa modesta opinião, rigorosamente cumprido todos os
requisitos e pressupostos impostos pela Lei do Tribunal Constitucional,
designadamente,
— Identificação da norma que se reputa constitucional
— Menção da norma ou principio constitucional que considera infringido e,
— Justificação, ainda que de forma sumária, mas de modo claro e preciso, as
razões que, no plano constitucional, invalidam a norma e impõem a sua “não
aplicação” pelo tribunal em causa
15) Face ao supra exposto, impõe-se, com o devido respeito, conhecer do objecto
do recurso interposto.
3. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional
respondeu à reclamação nos seguintes termos:
1°
Na Decisão Sumária de fls 2813 a 2816, decidiu não conhecer-se do recurso
interposto pelo recorrente porque, invocando ele a violação do princípio do in
dubio pro reo, não tinha, durante o processo, suscitado qualquer questão de
inconstitucionalidade normativa que levasse à violação daquele princípio.
2°
Efectivamente, ao dizer-se, como disse o recorrente na motivação do recurso para
o Tribunal da Relação de Coimbra (o momento oportuno para suscitar a questão),
que o tribunal de 1ª instância, ao não ter aplicado aquele princípio, violara o
artigo 32º, nº 2, da Constituição, não se está a colocar a questão a nível de
qualquer interpretação normativa, antes a imputar à decisão, a violação daquele
princípio.
3°
Aqui, será de referir que o acórdão recorrido é neste ponto bastante claro,
quando aí se afirma que o tribunal não usou aquele princípio “porque não teve
quaisquer dúvidas de valoração da prova e, ficou seguro do juízo de censura
formulado”.
4º
Na reclamação apresentada, o recorrente não adianta quaisquer argumentos que
possam abalar a decisão reclamada.
5º
Aliás, para ilustrar que suscitaram adequadamente a questão de
inconstitucionalidade, transcrevem parte daquilo que haviam afirmado no
requerimento de interposição do recurso para este Tribunal.
Ora, por um lado, aí não vem delineada qualquer questão de inconstitucionalidade
normativa.
Por outro, como é evidente, esse já não era o momento próprio nem o instrumento
processual adequado para suscitar a questão.
6º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II
Fundamentos
4. O reclamante alega que, contrariamente ao que se afirma na decisão sumária
reclamada, respeitou o conjunto de requisitos específicos de que depende a
admissibilidade do recurso de constitucionalidade.
Para demonstrá-lo, afirma que enunciou, de forma clara e perceptível, o sentido
que no caso foi atribuído ao artigo 127.º do Código de Processo Penal (CPP),
ilustrando-o por intermédio da reprodução, na parte relevante, do requerimento
de interposição do recurso de constitucionalidade.
Entende o reclamante que daí decorre que a norma que reputa inconstitucional é o
artigo 127.º do CPP, que o princípio constitucional que considera violado é o
princípio in dubio pro reo e que justifica as razões que, no plano
constitucional, invalidam a norma.
Assim sendo, afirma que se encontram cumpridos os requisitos estabelecidos na
Lei do Tribunal Constitucional que, segundo o reclamante, seriam o de
identificação da norma que se reputa inconstitucional [por lapso, escreveu-se
“constitucional”]; menção da norma ou princípio constitucional que considera
infringido e justificação, ainda que de forma sumária, mas de modo claro e
preciso, das razões que, no plano constitucional, invalidam a norma e impõem a
sua não aplicação” pelo tribunal em causa.
Não tem razão o reclamante.
Na reclamação que apresenta, o reclamante confunde aquilo que são requisitos
específicos do requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade e
aquilo que são pressupostos de admissibilidade do recurso de
constitucionalidade.
A decisão reclamada enunciou já em que consistem os últimos, tendo justificado
de forma satisfatória por que razão não se verifica cumprido o ónus de
suscitação prévia, de modo processualmente adequado, de uma questão de
constitucionalidade normativa, em termos que são de acompanhar e se dão aqui por
integralmente reproduzidos.
5. Além disso, importa observar que os vícios atribuídos pela decisão reclamada
ao requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade não integram a
sua ratio decidendi, pois nela se salvaguarda que ainda que o recorrente, no
requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, tivesse
enunciado de forma rigorosa qual o sentido atribuído ao artigo 127.º do CPP de
que se extrai a norma que se considera inconstitucional – o que, manifestamente,
não se verifica –, tal forma de proceder seria, em todo o caso, extemporânea
para que se pudesse considerar cumprido o ónus de suscitação prévia, de modo
processualmente adequado, de uma questão de constitucionalidade normativa.
III
Decisão
6. Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a
presente reclamação, confirmando a decisão sumária reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 2 de Dezembro de 2009
Maria Lúcia Amaral
Carlos Fernandes Cadilha
Gil Galvão