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Processo n.º 62/07
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. O Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao
abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro,
do despacho de 19 de Setembro de 2006, proferido pelo juiz do Tribunal Judicial
de Abrantes (3.º Juízo), no decurso da audiência de julgamento, em processo
comum (tribunal singular), do Processo n.º 53/05.5GCABT, do seguinte teor:
“A testemunha A. esta validamente convocada para comparecer nesta audiência de
julgamento. Porém, faltou e não comunicou sequer ao Tribunal qualquer motivo
impeditivo dessa comparência. Por isso, à luz do artº 117º do C.P. Penal tem tal
falta de se considerar injustificada.
Esta situação reúne os pressupostos formais de aplicação da norma plasmada no
artº 116º, nº 1 do C.P. Penal, de onde resultaria que a testemunha faltosa teria
de ser condenada no pagamento de uma soma entre 2 a 10 UCs.
Contudo a testemunha faltosa foi arrolada pelo arguido e este prescindiu da
respectiva inquirição. Não se vislumbra qualquer necessidade, para o bom
julgamento da causa, em proceder à inquirição oficiosa dessa testemunha.
Sendo assim, a interpretação do artº 116º, nº 1 do C.P.P., no sentido de que tem
o juiz obrigatoriamente de sancionar a testemunha faltosa no pagamento de soma
não inferior a 2 UCs, constitui uma interpretação normativa não consentida pela
Constituição da República Portuguesa, por violação do princípio da
proporcionalidade acolhido no artºs. 2º e 18º da Constituição. De resto, este
mesmo entendimento foi sufragado pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º
184/06 de 8/3 do corrente ano, proferido no processo 559/05 da 2ª secção desse
Alto Tribunal.
Pelo exposto, decido julgar validamente prescindida a inquirição da testemunha
A. e não a condenar no pagamento de qualquer soma prevista no n.º 1 do artº 116º
do C. P. Penal, por a norma aí contida ser inconstitucional por violação do
referido princípio da proporcionalidade quando interpretada no sentido de impor
ao juiz a condenação obrigatória do faltoso, cuja inquirição foi prescindida
validamente, no pagamento da soma entre 2 e 10 Ucs.”
2. Ordenada a notificação para alegações, o Ministério Público alegou no sentido
da inconstitucionalidade da norma como foi interpretada, mas salientando ser
lícito questionar se, tendo presente o disposto no n.º 6 do artigo 651.º do
Código de Processo Civil, não bastaria proceder a uma “decisão interpretativa”
que fixasse à norma um sentido em causa em conformidade com a Constituição,
concluindo do seguinte modo:
“1 – A norma constante do artigo 116° do Código de Processo Penal deve ser
interpretada em conformidade com a Constituição, não comportando o
sancionamento, com multa processual, da testemunha faltosa que foi válida e
regularmente prescindida pela parte ou sujeito processual que a arrolou, sem que
o juiz haja determinado a sua comparência para inquirição oficiosa.
2 – Na verdade, neste caso seria desproporcionada a imposição de multa a quem,
com a sua falta, nenhum prejuízo determinou para o andamento do processo,
constituindo “justificação” da falta a própria declaração de renúncia à
inquirição.”
A testemunha condenada em multa, cuja notificação para alegar
o relator ordenou por considerá-la directamente interessada no recurso de
constitucionalidade, nada disse.
II- Fundamentos
3. Dispõe o artigo 116.º do Código de Processo Penal:
“Artigo 116.º
(Falta injustificada de comparecimento)
1. Em caso de falta injustificada de comparecimento de pessoa regulamentarmente
convocada ou notificada, no dia, hora e local designados, o juiz condena o
faltoso ao pagamento de uma soma entre duas e dez UCs.
2. Sem prejuízo do disposto no número anterior, o juiz pode ordenar,
oficiosamente ou a requerimento, a detenção de quem tiver faltado
injustificadamente pelo tempo indispensável à realização da diligência e, bem
assim, condenar o faltoso ao pagamento das despesas ocasionadas pela sua não
comparência, nomeadamente das relacionadas com notificações, expediente e
deslocação de pessoas. Tratando-se do arguido, pode anda ser-lhe aplicada medida
de prisão preventiva, se esta for legalmente admissível.
3. Se a falta for cometida pelo Ministério Público ou por advogado constituído
ou nomeado no processo, dela é dado conhecimento, respectivamente, ao superior
hierárquico ou à Ordem dos Advogados.
4. É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 68.º, n.º 5.”
Sobre a justificação versa o artigo seguinte do Código que
preceitua:
“Artigo 117º
(Justificação da falta de comparecimento)
1. Considera-se justificada a falta motivada por facto não imputável ao faltoso
que o impeça de comparecer no acto processual para que foi convocado ou
notificado.
2. A impossibilidade de comparecimento deve ser comunicada com cinco dias de
antecedência, se for previsível, e no dia e hora designados para a prática do
acto, se for imprevisível. Da comunicação consta, sob pena de não justificação
da falta, a indicação do respectivo motivo, do local onde o faltoso pode ser
encontrado e da duração previsível do impedimento.
3. Os elementos de prova da impossibilidade de comparecimento devem ser
apresentados com a comunicação referida no número anterior, salvo tratando-se de
impedimento imprevisível comunicado no próprio dia e hora, caso em que, por
motivo justificado, podem ser apresentados até ao 3.º dia útil seguinte. Não
podem ser indicadas mais de três testemunhas.
4. Se for alegada doença, o faltoso apresenta atestado médico especificando a
impossibilidade ou grave inconveniência no comparecimento e o tempo provável de
duração do impedimento. A autoridade judiciária pode ordenar o comparecimento do
médico que subscreveu o atestado e fazer verificar por outro médico a veracidade
da alegação da doença.
5. Se for impossível obter atestado médico, é admissível qualquer outro meio de
prova.
6. Havendo impossibilidade de comparecimento, mas não de prestação de
declarações ou de depoimento, esta realizar-se-á no dia, hora e local que a
autoridade judiciária designar, ouvido o médico assistente, se necessário.
7. A falsidade da justificação é punida, consoante os casos, nos termos dos
artigos 260.º e 360.º do Código Penal.”
4. O despacho recorrido recusou aplicação à norma do n.º 1 do artigo 116.º, com
fundamento em violação do princípio constitucional da proporcionalidade, “quando
interpretada no sentido de impor ao juiz a condenação obrigatória do faltoso
cuja inquirição foi prescindida validamente”. Nas alegações que apresentou neste
Tribunal (cfr. conclusão 1ª), o Ministério Público introduziu um elemento mais
na hipótese normativa, o que, primo conspectu, tem o efeito de restringir o
âmbito (a extensão) da norma que é objecto de censura de inconstitucionalidade.
A censura de desproporcionalidade é referida a uma hipótese integrada por duas
condições de verificação cumulativa: (i) ter o sujeito processual que arrolou a
testemunha prescindido da sua inquirição e (ii) não ter o juiz determinado
oficiosamente essa inquirição. Nesta formulação, a desnecessidade de comparência
da testemunha para os fins processuais, de onde se parte para o juízo de
desproporcionalidade da aplicação da sanção pela falta injustificada, não é o
resultado, apenas, da opção do sujeito processual que arrolou a testemunha e
agora prescinda dela, mas da concorrência deste acto da “parte” com um juízo do
tribunal, que também entende não ser necessário tomar depoimento à testemunha ao
abrigo do poder de ordenar oficiosamente todos os meios de prova cujo
conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão
da causa (cfr. artigo 340.º do Código de Processo Penal).
Sucede que esta divergência entre o sentido normativo que o despacho recorrido
enuncia e aquele que o Ministério Público propõe como objecto do recurso é
meramente aparente. Na verdade, o despacho recorrido recusou aplicação ao n.º 1
do artigo 116.º do CPP numa situação definida por aqueles mesmos dois
elementos: ter quem indicou a testemunha prescindido da inquirição e não se
vislumbrar “ qualquer necessidade, para o bom julgamento da causa, em proceder à
inquirição oficiosa dessa testemunha”.
Deste modo, considera-se que o objecto do recurso é a norma do n.º 1 do
artigo116.º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que a
testemunha que não justifique a falta tem de ser sancionada, mesmo que o sujeito
processual que a arrolou prescinda do respectivo depoimento e o juiz não
determine oficiosamente a inquirição.
5. Como a decisão recorrida e as alegações do Ministério Público dão notícia, a
questão que no presente recurso se discute foi objecto de apreciação pelo
Tribunal Constitucional no acórdão n.º 184/2006, publicado no Diário da
República, II Série, de 17 de Abril de 2006, que concluiu pela
inconstitucionalidade da norma em causa.
Entendeu-se, então, que não seria aceitável uma solução que implicasse a
aplicação necessária de uma sanção a uma testemunha faltosa, mas da qual o
sujeito processual que a indicou prescindiu e cujo depoimento o Tribunal não
considerou necessário à descoberta da verdade. Traduzir-se-ia, tal
interpretação, numa violação do princípio da proporcionalidade ínsito no
princípio do Estado de direito, e colidiria ainda com os princípios de
celeridade, de economia processual e de proibição da prática de actos inúteis,
já que levaria a comparecer em audiência um interveniente cuja participação no
processo nenhuma razão justifica. E conclui-se “pela inconstitucionalidade do
artigo 116º, nº 1, do Código de Processo Penal, por violação do princípio da
proporcionalidade resultante dos artigos 2º e 18º da Constituição, interpretado
no sentido de determinar a aplicação obrigatória de uma sanção processual à
testemunha faltosa da qual o sujeito processual que a apresentou veio a
prescindir”.
Afigura-se, porém, necessário reponderar a questão.
6. Começa por reconhecer-se que se apresenta muito sustentável a interpretação
do regime de justificação das faltas de testemunhas em processo penal proposto
pelo Ministério Público e também admitido no acórdão n.º 184/2006 – embora se
tenha terminado por uma decisão positiva de inconstitucionalidade e não por uma
“interpretação conforme” susceptível d se impor ao tribunal da causa ao abrigo
do n.º 3 do artigo 80.º da LTC –, que procede à integração desse regime com
recurso às normas que, em situações semelhantes no processo civil, dispensam a
justificação da falta e, consequentemente, afastam o sancionamento do faltoso
independentemente da prova da razão justificativa da não comparência (cfr. n.º 6
do artigo 651.º e n.º 5 do artigo 629.º do Código de Processo Civil).
Todavia, para que o Tribunal adoptasse tal interpretação ou
integração do direito ordinário, num recurso de fiscalização concreta de
constitucionalidade, em termos de poder impor-se ao tribunal da causa na reforma
da decisão (artigo 80.º, n.º 3, da LTC), mais a mais não podendo a leitura que o
tribunal a quo fez da norma considerar-se jurisprudencialmente desgarrada (cfr.
p. ex. ac. da Relação de Évora, de 4 de Setembro de 2000, Colectânea de
Jurisprudência, Ano XXV, Tomo IV, págs. 277 e segs.), necessário seria que tal
sentido, ainda comportável pelos demais elementos de interpretação, se impusesse
para evitar a inconstitucionalidade da norma na interpretação sujeita a
apreciação.
7. A “soma “ referida no n.º 1 do artigo 116.º do CPP, embora as finalidades
próprias do direito processual penal possam influir no respectivo regime,
designadamente quanto aos termos da justificação da falta para que é cominada e
ao seu montante, é uma sanção pecuniária com a mesma natureza das demais multas
processuais.
A propósito deste tipo de sanções pecuniárias disse o Tribunal no acórdão n.º
315/92, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 23.º vol., pág. 323 (cfr. tb. o
acórdão n.º 680/2004, in www.tribunalconstitucional. pt):
“Se a doutrina processual civil se refere a elas (às multas processuais), por
vezes, como «penas», é porque utiliza esta expressão amplamente, em sinonímia
com «sanções punitivas» (assim, Manuel de Andrade, Noções Elementares de
Processo Civil, com a colaboração de Antunes Varela, edição revista e
actualizada por Herculano Esteves, 1976, p.354, e Alberto dos Reis, Código de
Processo Civil Anotado, vol. II, 3ª ed., reimpressão, 1981, p.261)
As sanções processuais são cominadas para ilícitos praticados no processo, cujo
adequado desenvolvimento visam promover. Com a sua estatuição, pretende-se,
conforme os casos, obter a cooperação dos particulares com os serviços
judiciais, impor aos litigantes uma conduta que não prejudique a acção da
justiça ou ainda assegurar o respeito pelos Tribunais.
(...)
Mas as multas processuais (...) constituem sanções indiscutivelmente estranhas
ao direito disciplinar e ao direito de mera ordenação social.
O direito disciplinar caracteriza-se pela existência de um poder hierárquico que
o tribunal não possui, evidentemente, quando aplica multas processuais às partes
ou a outros intervenientes no processo. Tão pouco o direito de mera ordenação
social, que se distingue do direito penal, tendencialmente, «... pela natureza
dos respectivos bens jurídicos...(e) ... pela desigual ressonância ética» e,
decisivamente, através da qualificação feita pelo próprio legislador (cfr. o
preâmbulo do DL n.º 433/82, de 27 de Outubro), pode abranger as multas
processuais - sanções historicamente anteriores e não filiadas no direito
penal.”
Todavia, sob esta designação comum, abrigam-se sanções pecuniárias com
finalidades e pressupostos muito diversos. Assim, as multas destinadas a
garantir o cumprimento do dever geral de colaboração para a descoberta da
verdade, designadamente por parte daqueles que devam prestar elementos de prova
ou sujeitar‑se aos meios da sua obtenção, distinguem-se claramente daquelas que
são aplicadas às partes para garantir a boa ordenação do processo, de que são
exemplo a multa pela prática de actos fora do prazo normal (n.º 5 do artigo
145.º do CPC) e a multa pela apresentação tardia de documentos (n.º 2 do artigo
523.º do CPC). A cominação de multas para factos do primeiro tipo previne e
reprime o não acatamento injustificado do dever de colaboração com os tribunais,
encontrando uma justificação que não se confina à frustração imediata dos fins
para que, naquele processo concreto, é solicitada a colaboração. As multas
cominadas para situações do segundo tipo são um modo de suavizar o efeito do
incumprimento dos prazos para a prática de actos que se traduzem em verdadeiros
ónus processuais, nisso se esgotando a sua finalidade.
8. A soma cujo pagamento é imposto ao abrigo do n.º 1 do
artigo 116.º do CPP para a falta injustificada de comparecimento de pessoa
regularmente notificada ou convocada para acto do processo penal sanciona um
comportamento que, em extremo rigor, poderia integrar crime de desobediência,
mas ao qual a lei tradicionalmente confere tratamento privilegiado,
sancionando-o expeditamente com uma multa processual, aplicável mediante um
incidente simplificado (Cfr., a propósito de mecanismo sancionatório semelhante
que já constava do artigo 91.º do Código de Processo Penal de 1929, o Parecer
n.º 98/78, da Procuradoria-Geral da República, publicado no Boletim do
Ministério da Justiça, n.º 284, págs. 30 e segs.).
O fim imediato desta sanção é reprimir o incumprimento do
dever de colaboração para que o agente é solicitado no âmbito de um concreto
processo. Dever esse a cujo cumprimento o faltoso pode, aliás, ser judicialmente
coagido (n.º 2 do artigo 116.º do CPP e alínea f) do n.º 3 do artigo 27.º da
CRP; cfr., quanto ao processo civil, n.º 2 do artigo 519.º do CPC).
Mas a sanção cumpre também um fim de prevenção geral, intimidando os potenciais
infractores e contribuindo para instilar na comunidade a consciência da
efectividade desse dever, minorando a perniciosa repercussão da generalização de
uma atitude de desrespeito pelas convocatórias dos tribunais na tarefa
fundamental do Estado de administrar justiça. Esta preocupação em atacar o que
era identificado como um dos pontos críticos da morosidade da justiça penal
tornou-se evidente com as novas regras de justificação das faltas em processo
penal, introduzidas no artigo 117.º do CPP pela Lei n.º 55/98, de 25 de Agosto.
Avulta neste regime a imposição de que a falta seja comunicada com cinco dias de
antecedência, se for previsível, ou no dia e hora designados para a prática do
acto, se imprevisível, e não em momento posterior à falta, como era tradicional
(Outro aspecto em que se verificou inovação, para o presente recurso
irrelevante, consiste em ter deixado de se fazer referência aos critérios de
justificação da falta por remissão para o regime substantivo de exclusão da
ilicitude e da culpa, o que pode ser interpretado como alargando a margem de
apreciação judicial das razões justificativas da não comparência).
É neste contexto que se há-de ver se o sancionamento da
testemunha regularmente convocada e que não justifica a falta, mas cujo
depoimento é considerado prescindível tanto pelo sujeito processual que a
arrolou como pelo tribunal, viola o princípio da proibição do excesso,
concretizador do princípio do Estado de direito, consagrado no artigo 2.º da
Constituição.
9. A colaboração dos cidadãos na administração justiça, que se
desdobra nos deveres de testemunhar, de intervir como perito, de participar no
tribunal do júri e intervenções ocasionais semelhantes (com ressalva dos casos
de recusa legítima), corresponde a um dever fundamental dos cidadãos para com o
Estado, de conteúdo cívico-político. Afigura-se lícito extrair essa
fundamentalidade da expressa autorização constitucional para impor o cumprimento
coercivo de tal dever (rectius, da imposição coactiva de um dever prodrómico
desse dever de colaboração, que é o dever de comparência perante as autoridades
judiciárias quando a pessoa é regularmente convocada – alínea f) do n.º 3 do
artigo 27.º da CRP), o que pressupõe o seu implícito reconhecimento
constitucional. De todo modo, mesmo quem assim não entenda não negará carácter
de dever legal fundamental ao dever de colaborar na administração da justiça
(Parece ser esta a opinião de Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria
da Constituição, 7.ª ed., pág. 534 e de José Casalta Nabais, O Dever Fundamental
de Pagar Impostos, pág. 94).
Efectivamente, quanto à finalidade imediata de alguns modos de colaboração (v.
gr., como perito, depositário e semelhantes), ainda seria teoricamente
conjecturável uma organização pública ou contratualizada de serviços que
permitisse à administração da justiça funcionar sem recurso a esses modos de
colaboração ocasional do cidadão. Mas isso seria absolutamente impossível
relativamente à modalidade de colaboração que é a prestação de depoimento como
testemunha (artigo 131.º do CPP). Pode reduzir-se a onerosidade da intervenção
na qualidade de testemunha (v. gr., mediante a prestação de depoimento por
vídeo-conferência ou outros modos que não exijam a presença no tribunal da
causa), mas não pode eliminar‑se o dever porque não pode cumprir-se a tarefa
constitucional dos tribunais sem o respectivo reconhecimento. A disciplina
jurídica e os aspectos organizacionais que se dirijam a obviar ou reduzir as
causas de adiamento das diligências – por exemplo, o maior rigor quanto aos
termos de justificação das faltas – serão mesmo um instrumento para tornar
globalmente menos oneroso o dever de colaboração. Mas não se concebe que possa
prescindir-se da imposição de comparência perante as autoridades judiciárias por
parte de quem deva prestar depoimento, porque esse é um meio de prova sem o qual
a instrução e o julgamento das causas é, geralmente, impossível. E não pode
deixar de estabelecer-se o adequado e expedito sancionamento dos faltosos, pois
de outro modo a imposição do dever não teria eficácia.
10. Reentrando no caso, é exacto que, numa situação em que esteja adquirido que
nenhum dos sujeitos processuais – nem aquele que a indicou, nem o tribunal por
sua iniciativa – consideram necessário inquirir a testemunha arrolada, a sua
falta de comparência na audiência de julgamento, apesar de regularmente
convocada, não se repercute na descoberta da verdade, na boa decisão da causa,
ou na marcha do processo. Se a testemunha tivesse comparecido, seria mandada
embora sem prestar depoimento, pelo que a deslocação ao tribunal teria
constituído um sacrifício (pelo menos de tempo ou de disponibilidade pessoal)
sem qualquer utilidade para os fins endo-processuais Nestas circunstâncias, a
sanção para a falta injustificada de comparência não pode encontrar fundamento
na necessidade de assegurar o cumprimento do dever de colaboração com os
tribunais, como testemunha, na administração da justiça penal (artigo 131.º do
Código de Processo Penal: dever de testemunhar) porque essa colaboração é, em
concreto e por definição, desnecessária. Assim, se identificarmos o bem jurídico
tutelado mediante a cominação da multa para a falta injustificada apenas com a
utilidade da comparência para os fins processuais em função da qual foi
concretamente ordenada, é compreensível que se considere a imposição dessa
sanção, na hipótese considerada, como violando o princípio da proporcionalidade.
Com efeito, o princípio da proibição do excesso postula que,
entre o conteúdo da decisão estadual (a norma que manda sancionar a testemunha
que não justificou a falta) e o fim que ela prossegue haja sempre um equilíbrio,
uma ponderação e uma justa medida. As vantagens (obtidas por todos) através da
medida estadual devem ser proporcionais às desvantagens que tal medida tenha
eventualmente causado a alguns membros da comunidade jurídica, de tal modo que o
peso da decisão pública nunca venha a exceder o quantum requerido pela
prossecução do seu fim (maria lúcia amaral, A Forma da República, pág 186).
Deste modo, se o fim específico da imposição do pagamento de uma soma entre duas
e dez UCs fosse exclusivamente assegurar a satisfação da necessidade de
comparência da testemunha no concreto processo para que foi indicada, obrigá-la
a justificar a falta a um acto para que a sua presença teria sido inútil –
portanto, retrospectivamente, a convocatória objectivamente injustificada – e
impor-lhe uma sanção por não ter comparecido nem justificado a falta, seria
impor-lhe um encargo desnecessário, incompatível com o princípio geral de
limitação do poder público que se ancora no princípio do Estado de direito
(artigo 2.º da CRP).
11. Todavia, a norma que manda impor ao faltoso o pagamento de
uma “soma” não se destina, ou não se destina apenas, a reprimir a falta em
função do resultado concreto, mas a sancionar a desobediência à ordem de
comparência, enquanto conduta potencialmente lesiva da boa administração da
justiça, que transcende esse resultado ou o perigo concreto.
Pretende-se, por um lado, mediante a imposição do dever de comunicação
antecipada da causa impeditiva de comparência previsível, habilitar o tribunal
(ou a autoridade judiciária) com informação atempada que lhe permita reorganizar
o serviço e reduzir, até onde for possível, as consequências negativas da falta,
seja para o serviço em geral, seja para os restantes intervenientes processuais.
E visa-se, concomitantemente, criar na comunidade em geral a convicção na
efectividade da norma que estabelece o dever de testemunhar e, para tanto, de
comparecer no local e na data determinados pela autoridade que dirige o
processo.
Perante esta plurifuncionalidade do dever de justificação das faltas e da
correspondente imposição do pagamento da “soma” prevista no n.º 1 do artigo
116.º do CPP, quando a testemunha não comparece nem justifica a falta ao acto
para que foi regularmente convocada, não pode afirmar-se que a norma em causa
viole o princípio da proporcionalidade. A exigência de justificação para a não
comparência e a correspondente sanção pecuniária quando a testemunha falta sem
justificação, mesmo que, em concreto, a falta não tenha tido reflexos na prática
do acto, reafirma comunitariamente a norma que estabelece o dever de comparecer
perante a autoridade judiciária para prestar depoimento.
Embora a regra essencial seja a de que só devem existir os deveres necessários
e na medida necessária para a salvaguarda dos direitos fundamentais ou de
interesses constitucionalmente protegidos, encontrado um interesse
constitucional que ainda suporta a imposição do dever de comparência ou
justificação da ausência e para cujo incumprimento a sanção pecuniária se
apresenta adequada e não excessiva, cabe na discricionariedade legislativa optar
por exigir sempre a justificação por parte do interessado ou dispensá-la quando
a falta não tenha repercussão no acto processual, consoante a maior ou menor
prevalência que o legislador dê à necessidade de prevenção geral e a avaliação
que faça sobre as vantagens e desvantagens para os cidadãos e para o próprio
funcionamento dos tribunais (a celeridade, a economia processual, a relação
custo-benefício ) na imposição desse ónus de justificação.
A cominação da sanção pecuniária mesmo nas circunstâncias da hipótese normativa
em apreciação – a adequação e a proporcionalidade da medida em sentido estrito
não estão em dúvida – traduz uma opção do legislador por um modelo de
relacionamento entre as autoridades judiciárias e os intervenientes acidentais
de pendor mais autoritário ou de maior rigor dogmático (todo o cidadão convocado
deve comparecer ou justificar a falta, sob pena de sanção), em contraposição a
um modelo mais pragmático adoptado em processo civil (não tem utilidade
justificar a falta, se esta não teve consequências), que não é manifestamente
desrazoável face aos fins próprios do processo penal e que não cabe ao juiz
constitucional censurar. Isto na pressuposição, relembra-se, da bondade da
interpretação adoptada, que é domínio exclusivo do tribunal da causa.
Em conclusão, não pode considerar-se que a norma do n.º 1 do artigo 116.º do
Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que a testemunha que
não justifique a falta tem de ser condenada ao pagamento de uma soma entre duas
e dez UCs, ainda que o sujeito processual que a arrolou prescinda do respectivo
depoimento e o juiz não determine oficiosamente a inquirição, viole o princípio
da proibição do excesso, enquanto subprincípio caracterizador do princípio do
Estado de direito consagrado no artigo 2.º da Constituição.
12. Decisão
Pelo exposto, acorda-se em conceder provimento ao recurso e
ordenar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o agora decidido
sobre a questão de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 25 de Setembro de 2007
Vítor Gomes
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Ana Maria Guerra Martins (Vencida com os fundamentos
constantes do acórdão n.º 184/06).
Gil Galvão