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Processo n.º 560/07
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal
Constitucional, vêm A. e Outros reclamar da decisão sumária proferida no âmbito
dos presentes autos, nos termos seguintes:
“1 – O Exm°. Relator, aliás muito ilustre magistrado, segue, neste despacho de
indeferimento liminar do recurso de constitucionalidade, a jurisprudência comum
do Tribunal Constitucional.
2 – Não terá sido alegada com efectividade a desconformidade normativa
constitucional da solução legal encontrada pelas instâncias, no caso concreto.
3 – O reclamante não se conforma com este entendimento restritivo e leva a
questão à conferência na esperança de que a renovação recente do Tribunal
Constitucional faça inflectir esta verdadeira castração do direito dos cidadãos
recorrerem a juízo de constitucionalidade.
4 – É o próprio Exm°. Relator que reconhece a base séria dos argumentos de
inconstitucionalidade do Reclamante, mas diz que estes não tiveram verdadeira
concretização ao nível do discurso, supostos apenas.
5 – Certo é, porém, que, muito embora se possa aceitar ter sido assim, não há
uma regra jurídica de expressão em português nas peças dirigidas aos Tribunais.
6 – E tudo quanto a língua supõe e exprime como suposto, está no texto, tem de
ser considerado como dito.
7 – Parece estranho que a Constituição Portuguesa, das mais aperfeiçoadas na
contemporaneidade, continue a ser entendida do ponto de vista dum logicismo
positivista, de todo abandonado pela Teoria do Direito neste momento.
8 – Momento que é de vitória da hermenêutica, justamente do entendimento do
Direito como recôndito do sentido, de todos os sentidos supostos numa discussão
racional, mas armada das ferramentas de descoberta e desocultação.
9 – Por conseguinte, a posição do reclamante é, mais do que tudo, uma posição de
afinamento teórico e de protesto contra uma jurisprudência restritiva e que se
acantona em modas absolutamente fora de moda.
10 – E, neste sentido, chama a atenção para o seguinte:
Dizem os reclamantes que o juízo final da causa contrariou os pressupostos
lógicos das decisões judiciais, pois não considerou o ilogicismo ou ineptidão da
petição inicial.
11 – Com efeito, os AA argumentaram que, vendo-se vítimas de uma burla por parte
dos RR, forçaram uma compra e venda de bem valioso, sabendo bem que agiam contra
a vontade dos donos.
12 – Em suma, usara, de certo modo, do direito formal contra o que supunham ser
uma ilegalidade material.
13 – Em certa altura da lide, os RR levantam a questão deste absurdo, mas as
instâncias dão o caso como coberto por suprimento da nulidade e julgam como se
nada disto tivesse sido alegado, reduzindo as circunstâncias ao mero segmento da
legalidade, que foi a ferramenta afinal perversa dos AA.
14 – Concluem, então, os RR que, neste intento e nesta concretização da
actividade jurisdicional, ou melhor, nesta modalidade de julgamento abstracto e
redutor do caso à expressão mais simples, mas mais distante da realidade, houve
infracção do direito fundamental ao julgamento justo por um Tribunal.
15– Retorquiu-lhes o Exm°. Relator:
‘Para que se encontre preenchido o requisito da suscitação de questão de
inconstitucionalidade normativa, não basta que o sujeito processual interessado
na mesma se limite a usar expressões como o sentido normativo ou questão da
verdadeira constitucionalidade normativa, sem proceder à concretização do
respectivo conteúdo, isto é, sem enunciar, de forma clara, adequada e
perceptível, tal questão: imputando o vício de inconstitucionalidade
genericamente à globalidade de normas que presidiram à formação dos juízos
jurisdicionais impugnados importa, em última análise, imputação do mesmo às
próprias decisões recorridas, o que, naturalmente, escapa à esfera de
atribuições do tribunal Constitucional (não indaga da constitucionalidade da
sentença, sindica normas da ratio decidendi).’
16– Mas nada disto acontece senão apenas na aparência.
17 – O que os reclamantes arguem não é a sentença de inconstitucionalidade, é a
infracção, através de um modo particular do funcionamento do Tribunal, do
direito fundamental a terem julgamento da causa no modo típico e constitucional
de um julgamento por um Tribunal, e não sofrerem uma decisão meramente
arbitrária e que põe de parte a lógica do debate judiciário, ou, mesmo assim, a
mera lógica, a lógica da exposição segundo a língua portuguesa, que é natural
suposto constitucional.
18 — Deste modo, não tem razão o Exm°. Relator e deve ser apreciado o recurso.”
2. A Decisão reclamada tem o seguinte teor:
“1. A., e Outros, inconformados com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
proferido em 28 de Setembro de 2006 que confirmou a decisão das instâncias que
haviam declarado nulo o contrato de compra e venda da “Herdade do ...” e
reconhecido como seus únicos proprietários B. e Outros, vieram pedir a aclaração
daquele aresto, alegando, no que ora importa, o seguinte:
‘ […]
21. Mas também deve ser considerado um outro problema, que é um suporte de toda
a problemática em jogo, a saber: aceitar-se que meras normas de ordenação
afastam a crítica da substancialidade dos direitos fundadores das pretensões é
entender as normas do C.P.C. e do C. Penal convocadas pelo Acórdão do S.T.J. em
contrariedade com a Constituição da República, nomeadamente, em oposição ao art°
20 do C.RP. que nos apresenta, como liberdade fundamental, o acesso do cidadão a
uma Justiça material e a um julgamento justo no sentido de que os direitos devem
ser reconhecidos a quem os tem e não apenas presumidos naqueles que os alegam,
na modalidade de uma base de onde venham a partir para um pedido de composição
judicial do litígio.
22. E é assim que se esclarece, da parte do recorrente, a questão da verdadeira
constitucionalidade normativa que subjaz a toda a argumentação que o tem
conduzido até aqui.’
Por acórdão de 6 de Dezembro de 2006, o Supremo Tribunal de Justiça indeferiu o
pedido de aclaração, assim concluindo:
‘ […]
4°. Ora, resulta do requerimento dos recorrentes que eles perceberam bem o
sentido e alcance do acórdão de fls. 1221 a 1229, o qual se apresenta claro e
inequívoco.
No âmbito dos mencionados normativos não pode o tribunal reapreciar o mérito do
recurso, razão pela qual é indevida a pretensão dos réus, a pretexto de uma
alegada dúvida existente no acórdão, de questionarem a solução fáctico-jurídica
adaptada.
5°. Ainda que a coberto do pedido de aclaração e misturando conceitos jurídicos
diferentes parece visarem os recorrentes também a reforma do acórdão proferido.
Preceitua o art 669°, n° 2, do C.P.Civ. que a reforma do acórdão depende, por um
lado, da ocorrência de manifesto lapso do tribunal na determinação da norma
aplicável ou na qualificação jurídica dos factos (al. a) e por outro lado, de
constarem do processo documentos ou quaisquer elementos que, só por si,
impliquem necessariamente decisão diversa da proferida e que o tribunal, por
lapso manifesto, não haja tomado em consideração (al. b).
Quanto ao fundamento da reforma com base no disposto na al. b) do art 669°, n°2,
nada refere no requerimento pelo que nos limitaremos a uma breve apreciação do
concernente aos pressupostos previstos na al. a).
Ora, não ocorreu qualquer lapso manifesto na análise e decisão das questões de
direito suscitadas no acórdão e, designadamente no tocante à problemática do
cometimento do crime de infidelidade na outorga da escritura de compra e venda
em causa, praticado pelo C. em desfavor da sociedade vendedora, escreveu-se o
seguinte (além do mais):
‘Resulta dos autos que formalmente à data da escritura.., o C.... era o único
titular de todo o capital social da 4a Ré e o seu único gerente.
Não se provou que os recorridos soubessem, ao tempo da celebração da citada
escritura que as quotas daquela sociedade não pertenciam ao C. mas sim aos 1° e
3° recorrentes...
‘não se mostram preenchidos os pressupostos do alegado crime de
infidelidade...’
Não se verificando a existência de ‘manifesto lapso na determinação das normas
aplicáveis ou na qualificação jurídica dos factos’, não pode deixar de
improceder a pretensão de reforma do acórdão.
6°. A invocação genérica de desconformidade das normas aplicadas com o disposto
no art 20° da C.R.P. carece de fundamento já que não se vislumbra que o direito
constitucional de acesso dos cidadãos ao direito e tutela jurisdicional efectiva
haja sido denegado ou limitado aos recorrentes (que só agora se ‘lembraram’ de
suscitar esta questão).
O tribunal não deu prevalência a normas processuais sobre disposições legais de
carácter substancial, em detrimento do direito a uma solução justa do litígio,
pelo que nenhuma inconstitucionalidade foi cometida.
7°. Atento o exposto, acorda-se em indeferir a pretensão formulada pelos réus a
fls. 1236/1238.’
2. Na sequência desse indeferimento, os ora Recorrentes, vieram arguir a
nulidade do Acórdão, assacando-lhes o vício de omissão de pronúncia, nos termos
do artigo 668.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil e alegando, em
síntese, que:
‘[…]
14 – Com efeito, o direito fundamental de acesso aos tribunais impõe como
corolário a precedência da substância sobre a forma, quando as formas não são,
em si mesmas, um direito das partes.
15 – Ora, neste caso, um pretenso suprimento de uma pretensa nulidade do
processo, por ineptidão inicial, não é direito das partes que possa prevalecer
sobre a ordenação ‘ad substantia’ do litígio.
16 – Sem dúvida que o vício apontado pelos RR. ao negócio dos AA, quando foi
transposto e afirmado na P.I., não consubstancia só a ineptidão que tem como
consequência a referida nulidade do processo, mas também o intuito de obter
através da causa um fim contrário ao direito.
17 – Neste particular, deve aplicar-se o disposto no art.º 665º C.P.C. E é
justamente a preterição, neste caso, desta norma de processo que tornará o
sentido normativo dado à conjugação dos artºs 660, n.º 2, 193, 202 e 204 do CPC,
como contrário ao dito artº 20º da CRP.’
3. A 15 de Março de 2007, o Supremo Tribunal de Justiça indeferiu a arguição de
nulidade nos termos que se passam a transcrever:
‘Proferido o acórdão fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do
Supremo Tribunal de Justiça quanto à matéria da causa (arts. 666°, n° 1, 716°,
n° 1 e 726° do C.P.Civ.).
E porém, lícito ao Tribunal rectificar erros materiais, esclarecer dúvidas,
suprir nulidades e reformar o acórdão (arts. 666°, n° 2 e 667° a 669° do mesmo
diploma).
A decisão susceptível de ser, além do mais, arguida de nula é a que julga a
causa, como resulta do citado art. 666°, n° 2, e não a que conhece os pedidos de
rectificação, esclarecimento, arguição de nulidades ou reforma, sob pena de tal
procedimento nunca mais ter fim, protelando-se indefinidamente o trânsito da
decisão e o cumprimento do julgado (cfr. acs. S.T.J. de 06/01/2000, ver. n°
l074-A/98, desta secção e T.C. de 13/12/90, Acórdãos do T.C., vol. 17°, p. 298 e
segs).
Daí que não deva ser apreciado o requerimento de fls. 1263 e 1264 onde os réus
vêm arguir a nulidade do acórdão proferido por este tribunal em 06/12/2006, que
desatendeu a sua pretensão de aclaração e reforma do acórdão de 1221 a 1229,
datado de 28/09/2006, que julgou improcedente o recurso de revista por eles
interposto.
5°. Sem prejuízo do exposto e porque, ainda que indirectamente, é visado no
aludido requerimento este último acórdão, não deixaremos de referir o seguinte:
O acórdão é nulo quando o colectivo de Juízes do Supremo Tribunal de Justiça
‘deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar...’ (arts. 668°, n°
1, al. d) — lª. parte -‘ 716°, n° 1 e 732° do C.P.Civ.).
A nulidade por omissão de pronúncia está em consonância com o dever imposto
pelos arts. 20º, n° 1 da C.R.P. e 660°, nº 2 — lª parte — do C.P.Civ. de o
julgador resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua
apreciação.
‘Questões’ são os pontos de facto ou de direito relevantes no quadro do litígio,
ou seja, os relativos ao pedido, à causa de pedir e às excepções.
Em sede de recurso só podem ser reconhecidas as questões suscitadas pelo
recorrente nas conclusões das respectivas alegações, nos termos dos arts. 684°,
n° 3 e 690º, n° 1 do C.P.Civ. (salvo se forem de conhecimento oficioso).
6°. Os réus, no requerimento em apreço, alegam que a invocada nulidade do
acórdão decorre da omissão de pronúncia sobre a questão de ser nulo o negócio
por carência de vontade jurídica relevante dos autores, que não quiseram comprar
o prédio mas simplesmente constituir garantia para a dívida proveniente de
outros negócios.
- Nas conclusões A) a E) das alegações do recurso de revista os réus recorrentes
suscitaram a omissão de pronúncia da Relação relativamente à questão da
incongruência da causa de pedir e do pedido por não haver negócio jurídico
quando alguém, como os autores, reputando-se vítima de uma burla por parte deles
réus, se prevalece de faculdades formais para obter um efeito jurídico defensivo
contra aquela agressão patrimonial, mas não querendo já relacionar-se com a
parte contrária que substitui por outro actor, o C., o qual sabiam ser estranho
à regulação dos interesses em jogo, ao não ter qualquer vínculo autorizado a
dispor do prédio.
Tal questão foi conhecida no acórdão proferido em 28/09/2006 onde, nomeadamente,
se escreveu (a fls. 1226):
‘não se vislumbra a alegada contradição entre o pedido e a causa de pedir uma
vez que esta não se fundamenta no cometimento de burla pelos recorrentes mas na
nulidade da venda, em 28/10/98, ao réu Carlos Renato, por a propriedade da
herdade haver sido transmitida em 14/10/98 aos recorridos.
Mas ainda que existisse ineptidão da p.i. por contradição do pedido com a causa
e pedir, a correspondente nulidade processual (prevista no art. 193°, n°s 1 e 2,
al. b) do C.P.Civ.) deve considerar-se sanada porque não foi arguida
oportunamente (cfr. arts 202° e 204°, n° 1 do C.P.Civ)’...
Foi, portanto, apreciada a questão a que se alude no requerimento de fls. 1263 e
1264.
Diga-se ainda que a afirmação, só agora feita pelos recorrentes, de que o vício
apontado ao negócio dos recorridos não consubstancia só a ineptidão da p.i. mas
também o intuito de obtenção de um fim contrário ao direito, a merecer a
aplicação do disposto no art. 665° do C.P.Civ, carece de base factual e legal.
Não padece, por conseguinte, o acórdão da nulidade a que se reporta o citado
art. 668°., n° 1, al. d) — 1ª parte — do C.P.Civ.
7º A arguição, injustificada, da nulidade do acórdão depois do indeferimento do
pedido de aclaração, denota persistência dos réus na defesa de posições
jurídicas desconformes com a correcta interpretação dos factos e do direito
aplicável.
O circunstancialismo envolvente não revela suficientemente, contudo, que os réus
tenham assumido tal conduta processual consciente da falta de fundamento das
pretensões deduzidas e com o propósito deliberado de protelar o trânsito em
julgado do acórdão (a que o tribunal sempre pode obstar lançando mão do
procedimento previsto no art. 720º do C.P.Civ. (vide ac. do T.C. de 20/12/2006,
no proc. n° 435/06, 1ª Sec.).
Assim, e contrariamente ao propugnado pelos requeridos, não se sancionará os
requerentes por litigância de má fé nem se fará a participação estabelecida no
art. 459º daquele diploma.
8°. Atento o exposto, indefere-se a arguição de nulidade formulada pelos réus a
fis. 1263 e 1264.’
4. Mais uma vez inconformados com a decisão, interpuseram os Recorrentes o
presente recurso de constitucionalidade, o qual foi admitido por despacho de 10
de Maio de 2007 do Exmo. Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça.
Já neste Tribunal foram aqueles convidados, ao abrigo do disposto no artigo
75.º-A, n.º 2 da Lei do Tribunal Constitucional, a indicar as normas ou
princípios constitucionais que consideram violados, bem como a peça processual
em que foi suscitada a questão da constitucionalidade. Responderam então nos
seguintes termos:
‘1 — A norma da Constituição violada pelos art°s. do CPC e CP convocados pelo
acórdão do STJ de 28/09/06 (fls 1236 dos autos) é o art°. 20°. CRP.
2 — A questão foi suscitada no pedido de aclaração do acórdão do STJ de
28/09/09.
3 — Os art°s do CPC e CP convocados por aquele acórdão foram os art°s. 668 — 1 —
d, 716,1, 713-2, 731 — 2, 193/1 e 2, 202, 204, 722/2, 655/1, 729-3, 264,
511-1,676-1, 690-1, do CPC, e 224-1 CP.
3 — Na arguição de nulidade do mesmo acórdão (ao abrigo dos art°s. 670/3 e
668/1-d) CPC (fls 1263) também foi arguida a inconstitucionalidade dos art°s
660/2, 193, 202 e 204 CPC, por violação do disposto no art°. 20°. CRP.’
II – Fundamentação
5. Não obstante o presente recurso ter sido admitido pelo Tribunal a quo, o
certo é que tal decisão não vincula este Tribunal, de acordo com o disposto no
artigo 76.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional.
Cumpre portanto aferir, desde logo, se se encontram preenchidos os pressupostos
de conhecimento do presente recurso de constitucionalidade − a suscitação, pelo
recorrente, de inconstitucionalidade de uma norma durante o processo,
constituindo essa norma fundamento (ratio decidendi) da decisão recorrida, bem
como o prévio esgotamento dos recursos ordinários.
6. A questão de constitucionalidade só foi suscitada, como se observa do que se
transcreveu supra, aquando da formulação do pedido de aclaração do Acórdão do
Supremo Tribunal de Justiça e, posteriormente, na arguição de nulidade do mesmo.
Como resulta dos artigos 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição, e 70.º, n.º
1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional, tal questão deve ser suscitada
durante o processo.
Esta expressão (durante o processo) tem sido objecto de jurisprudência pacífica
e reiterada deste Tribunal, entendendo-se a suscitação em sentido funcional, de
modo a que o tribunal recorrido ainda possa conhecer da mesma antes de esgotado
o respectivo poder jurisdicional o que sucede, precisamente, em regra, com a
prolação da sentença, nos termos do artigo 666.º, n.º 1, do Código de Processo
Civil (confiram-se, a título de exemplo, os Acórdãos n.ºs 62/85, 90/85, 90/85 e
450/87, publicados, respectivamente, no Diário da República, II Série, de 31 de
Maio de 1985 e 11 de Julho de 1985, e nos Acórdãos do Tribunal Constitucional,
10.º volume, pp. 573 e seguintes).
Tendo os Recorrentes suscitado a questão de inconstitucionalidade no pedido de
aclaração do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (e, posteriormente, na
arguição de nulidade do mesmo, embora aqui com conteúdo diverso) fácil é de
concluir que, em qualquer dos casos, tal não ocorreu durante o processo e sim em
momento posterior, quando se encontrava já esgotado o poder jurisdicional do
tribunal a quo e, por conseguinte, em momento tal que não lhe permitiu
debruçar-se e tomar posição sobre a mesma. Ora, o sistema português de
fiscalização concreta da constitucionalidade, no qual se inclui o meio
impugnatório dos presentes autos, previsto nos artigos 280.º, n.º 1, alínea b)
da Constituição e 70.º, n.º 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional,
apresenta um carácter difuso, ocorrendo a intervenção deste Tribunal apenas em
sede de recurso – o que se justifica na medida em que a competência para julgar
da inconstitucionalidade é cometida a todos os tribunais, nos termos dos artigos
204.º e 280.º, n.º 1, alínea b) da Constituição. Tal pressupõe, por conseguinte,
a intervenção ou pronúncia prévia da instância recorrida sobre a questão de
constitucionalidade concretamente formulada. Assim, o Tribunal Constitucional
não poderá conhecer destas questões ex novo e apenas em sede de recurso, sob
pena de extravasar as suas competências neste domínio.
7. Mas, mesmo que se admitisse que a suscitação da questão de
constitucionalidade efectuada em sede de pedido de aclaração de acórdão
constitui um modo adequado e atempado de cumprir tal requisito – o que apenas se
concebe para efeitos meramente argumentativos – o certo é que, ainda assim, o
presente recurso nunca poderia ter sido admitido.
Com efeito, a questão de constitucionalidade normativa deve ser arguida, como se
disse, durante o processo, por forma a permitir à instância recorrida
pronunciar-se sobre aquela tal como se apresenta recortada pela parte que a
suscita – o que, como se escreveu no Acórdão n.º 560/94, publicado no Diário da
República, II Série, de 20 de Janeiro de 1995, ‘(…) exige que quem tem o ónus de
suscitação da questão de constitucionalidade a coloque de forma clara e
perceptível.’
Ora, tal não sucedeu, sobejamente, nos autos em apreço. De facto, os Recorrentes
limitaram-se a acenar uma hipótese de inconstitucionalidade não resultando claro
o modo de formação e a fundamentação de tal juízo valorativo. Não curaram
minimamente de concretizar quais as interpretações das normas em questão (não
tendo, aliás, nessa sede, procedido sequer à sua especificação, que veio a
ocorrer apenas em sede de resposta ao convite formulado pelo Relator neste
Tribunal), o que, no seguimento de jurisprudência uniforme e reiterada do
Tribunal Constitucional, constitui requisito cuja inobservância comina a
impossibilidade de conhecimento do respectivo recurso (a título de exemplo,
cfr., entre outros, os Acórdãos 367/94 e 178/95, publicados, respectivamente, no
Diário da República, II Série, de 7 de Setembro de 1994 e 26 de Junho de 1995).
Como refere Lopes do Rego, ‘(…) quando se pretenda questionar a
constitucionalidade de uma dada interpretação normativa, é indispensável que a
parte identifique expressamente essa interpretação ou dimensão normativa, em
termos de o Tribunal, no caso de a vir a julgar inconstitucional, a poder
enunciar na decisão, de modo a que os respectivos destinatários e os operadores
do direito em geral fiquem a saber que essa norma não pode ser aplicada com tal
sentido’ (in O objecto idóneo dos recursos de fiscalização concreta da
constitucionalidade: as interpretações normativas sindicáveis pelo Tribunal
Constitucional, in Jurisprudência Constitucional, n.º 3, Julho-Setembro de 2004,
p. 8).
O que os Recorrentes se limitaram a fazer, portanto, foi imputar a
inconstitucionalidade em bloco às normas processuais convocadas pelas sucessivas
decisões do Tribunal a quo, não cuidando de especificar, de modo detalhado e
processualmente adequado, as dimensões interpretativas que, in casu, feririam a
norma constitucional invocada ou qualquer outra.
Para que se encontre preenchido o requisito da suscitação de questão de
inconstitucionalidade normativa não basta que o sujeito processual interessado
na mesma se limite a utilizar expressões como “o sentido normativo” ou “questão
da verdadeira constitucionalidade normativa” sem proceder à concretização do
respectivo conteúdo, isto é, sem enunciar, de forma clara, adequada e
perceptível, tal questão. Imputando o vício de inconstitucionalidade,
genericamente, à globalidade de normas que presidiram à formação dos juízos
jurisdicionais ora impugnados importa, em última análise a imputação do mesmo às
próprias decisões recorridas o que, naturalmente, escapa à esfera de atribuições
deste Tribunal Constitucional. Com efeito, o nosso sistema de fiscalização de
normas jurídicas não permite que se indague da constitucionalidade da decisão
judicial, sendo apenas sindicáveis as normas (ou interpretações normativas) que
configurem a ratio decidendi do litígio
8. Em face do exposto, por falta de pressupostos, não pode conhecer-se do
objecto do presente recurso.
III − Decisão
Com estes fundamentos, e ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1 da Lei do
Tribunal Constitucional, decide-se negar provimento ao presente recurso.”
3. B. e Outro, notificados da Reclamação apresentada, vêm dizer o seguinte:
“1.º A reclamação apresentada não tem qualquer fundamento legal ou
jurisprudencial;
2.° Nem sequer demonstra qualquer raciocínio lógico;
3° Tem apenas como único fundamento o evitar o trânsito em julgado da sentença
que considerou os A.A. como únicos proprietários do prédio dos autos;
4.° Sendo certo que tal sentença, assim como os doutos Acórdãos da Relação de
Lisboa e do Supremo Tribunal de Justiça, que a confirmaram, não padeceu de
qualquer inconstitucionalidade;
Neste temos e nos mais de Direito, e sempre com o mui douto suprimento dos
Magnânimos Conselheiros desse Tribunal Constitucional, deverá a Reclamação ser
indeferida, com as legais consequências.”
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Os ora Reclamantes não invocam quaisquer razões concretas susceptíveis de
infirmar a decisão sumária proferida. Limitam-se, com efeito, a discordar do
teor da mesma bem como dos pressupostos do recurso de constitucionalidade
intentado interpor tal como se encontram recortados na Constituição da República
e na Lei do Tribunal Constitucional.
O recurso de constitucionalidade, nos termos do disposto nos artigos 280.º, n.º
1, alínea b) da Constituição e 70.º, n.º 1, alínea b) da Lei do Tribunal
Constitucional é um recurso normativo, podendo, portanto, versar apenas a
apreciação da conformidade constitucional de normas ou dimensões normativas.
E tal questão de constitucionalidade normativa deve ser arguida, nos termos do
disposto nos citados preceitos, durante o processo, e não em momento ulterior ao
esgotamento do poder jurisdicional do Tribunal a quo. Só assim se respeitará a
arquitectura do recurso de constitucionalidade, assente no pressuposto de que a
pronúncia deste Tribunal Constitucional ocorrerá, apenas, em sede de recurso,
versando uma anterior pronúncia sobre a referida questão de constitucionalidade
emitida pela instância recorrida. Para tanto é mister que tal questão tenha sido
carreada aos autos de forma clara, adequada e perceptível em termos tais que
aquela instância se pudesse aperceber da questão suscitada de modo a poder
pronunciar-se sobre a mesma.
Ora, nos autos, não só a questão de constitucionalidade foi suscitada apenas no
pedido de aclaração do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça – quando o poder
jurisdicional do Tribunal a quo já se encontrava esgotado – como decisivamente a
arguição da mesma não ocorreu de forma adequada e perceptível, tendo a
inconstitucionalidade sido imputada, em bloco, às normas processuais
sucessivamente convocadas pelo Tribunal a quo.
III – Decisão
Assim, e, sem necessidade de maiores considerações, acordam, em conferência,
indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão
reclamada no sentido de não tomar conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 24 de Julho de 2007
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos