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Processo n.º 108/07
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Por decisão sumária de fls. 5281 e seguintes, não se tomou
conhecimento do recurso interposto para este Tribunal por AECOPS – Associação de
Empresas de Construção e Obras Públicas e outros para o Tribunal Constitucional,
pelos seguintes fundamentos:
“[…]
5. Da leitura do requerimento de interposição do presente recurso de
constitucionalidade (supra, 4.) resulta que o acórdão recorrido é o acórdão do
Tribunal da Relação de Lisboa de 14 de Dezembro de 2006 (supra, 3.).
Este acórdão indeferiu certas nulidades do acórdão de 1 de Junho de 2006 (supra,
1.), que haviam sido arguidas pelos ora recorrentes (supra, 2.).
Sucede que, nos termos do artigo 666º, n.º 1, do Código de Processo Civil, o
poder jurisdicional do tribunal recorrido esgotou-se quando proferiu o acórdão
de 1 de Junho de 2006, apenas sendo lícito a este tribunal, depois de proferido
esse acórdão, suprir os vícios referidos no n.º 2 daquele preceito (no caso da
decisão penal, os referidos nos artigos 379º e 380º do Código de Processo
Penal).
Significa isto que, a ter o tribunal ora recorrido aplicado qualquer norma ou
interpretação normativa inconstitucional, tal só poderia ter ocorrido quando
proferiu o acórdão de 1 de Junho de 2006, pois que, no acórdão ora recorrido (o
de 14 de Dezembro de 2006), só lhe era lícito conhecer dos vícios referidos no
artigo 379º do Código de Processo Penal que haviam sido arguidos.
Aliás, os próprios recorrentes, quando arguíram inconstitucionalidades durante o
processo, fizeram-no imputando-as ao acórdão de 1 de Junho de 2006 (supra, 2.),
não se compreendendo que agora as imputem ao acórdão de 14 de Dezembro de 2006.
Em suma: não é possível conhecer do objecto do presente recurso de
constitucionalidade, pois que um dos seus pressupostos processuais – a
aplicação, na decisão recorrida, da norma ou interpretação normativa
alegadamente inconstitucional (cfr. o artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do
Tribunal Constitucional) – não se encontra manifestamente preenchido.
6. Acresce que, ainda que se considerasse estar preenchido o referido
pressuposto processual – o que evidentemente não teria cabimento, face ao que se
disse –, outro motivo existiria para que se não conhecesse do objecto do
presente recurso de constitucionalidade.
Se bem se reparar, tal objecto não integra qualquer norma ou interpretação
normativa, susceptível de ser apreciada sob o ponto de vista da sua conformidade
constitucional, coincidindo, antes, com a própria decisão recorrida.
Explicando melhor: o que os recorrentes censuram – e censuraram, aliás, durante
o processo – é a própria decisão do tribunal de recurso que julgou fundamentada
a decisão da primeira instância sem concomitantemente proceder a nova
fundamentação e reanálise das questões entretanto suscitadas e, bem assim, a
decisão daquele tribunal de recurso, na parte em que utilizou certas fórmulas
tabelares para fundamentar a conclusão a que chegou.
Ora, o Tribunal Constitucional não tem competência para apreciar a conformidade
constitucional de decisões judiciais, em si mesmas consideradas – mas apenas de
normas ou interpretações normativas –, sabido como é que, no ordenamento
português, não está consagrado o recurso de amparo (cfr. as várias alíneas do
n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional).
Não pode, assim, também por falta de competência do Tribunal Constitucional para
a apreciação do objecto do presente recurso, tomar-se dele conhecimento.
[…].”.
2. Notificados desta decisão sumária, AECOPS – Associação de Empresas
de Construção e Obras Públicas e outros vieram reclamar para a conferência, ao
abrigo do disposto no artigo 78º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional,
dizendo, em síntese, o seguinte (fls. 5316 e seguintes):
a) Foi o acórdão de 14 de Dezembro de 2006 (o acórdão recorrido, ou
seja, aquele que indeferiu certas nulidades de acórdão) que fez uma
“interpretação dos artigos 379º, n.º 1, alínea a), e 374º, n.º 2, do Código de
Processo Penal, segundo a qual não constitui causa de nulidade o facto de uma
sentença de um Tribunal de recurso [o acórdão de 1 de Junho de 2006] ter
considerado cabalmente fundamentada, quer na apreciação da matéria de facto,
quer na aplicação do direito, uma decisão condenatória do Tribunal de primeira
instância, sem, no entanto, a sentença do Tribunal de recurso ter procedido a
uma nova fundamentação que demonstrasse terem sido efectivamente reanalisadas as
questões de facto e de direito que os mesmos Recorrentes haviam apontado no seu
recurso”;
b) Foi também o acórdão de 14 de Dezembro de 2006 que fez uma
“interpretação do artigo 379º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal,
segundo a qual não constitui causa de nulidade o facto de o acórdão de 1 de
Junho de 2006 utilizar fórmulas tabelares como fundamentação jurídica na quase
totalidade da sua decisão”;
c) As questões de constitucionalidade cuja apreciação os recorrentes
pretendem relacionam-se com a suficiência do dever de fundamentação e
correlativa nulidade de processo, no caso do seu desrespeito, sobre a qual se
pronunciou, e podia pronunciar, o acórdão de 14 de Dezembro de 2006;
d) Repercutindo-se a insuficiência da fundamentação na nulidade do
acórdão de 1 de Junho de 2006 e pronunciando-se o tribunal recorrido, no acórdão
recorrido, sobre essa nulidade, é evidente que só deste podia ter sido
interposto o presente recurso de constitucionalidade;
e) O acórdão ora recorrido defende que não se torna necessário que um
tribunal de recurso se tenha de pronunciar sobre questões de facto e de direito
suscitadas pelos recorrentes acerca da decisão de primeira instância e que tenha
de fundamentar a sua eventual não admissibilidade, sendo suficiente o enunciar
de uma simples concordância com a decisão recorrida sem nunca se referir às
questões suscitadas;
f) Este entendimento traduz o uso de um critério normativo,
susceptível de ser sindicado pelo Tribunal Constitucional, sob o ponto de vista
da sua conformidade constitucional.
3. Notificado da mencionada reclamação, o representante do Ministério
Público junto do Tribunal Constitucional respondeu-lhe, nos seguintes termos
(fls. 5331 e seguinte):
“1º - A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2º - Em primeiro lugar – e tendo os recorrentes reportado o recurso de
constitucionalidade ao acórdão da Relação que se pronunciou sobre as invocadas
nulidades do acórdão que dirimiu o mérito da causa – é evidente que o objecto do
recurso apenas poderá ser integrado pelo critério normativo que conduziu à
rejeição de tal pretensão.
3º - Como decorre de tal aresto, a p. 5263, a fundamentação do acórdão basta-se
com «uma exposição concisa, isto é, resumida, mas tanto quanto possível
completa, isto é abrangente de toda a matéria de facto e de direito em
discussão, que sustente, de modo suficiente, a respectiva decisão», não
implicando o exercício do duplo grau de jurisdição quanto à matéria de facto uma
«repetição do julgamento» já efectuado, nem podendo a motivação da decisão de
facto constituir «um substituto do princípio da oralidade e da imediação e
transformar-se numa espécie de documentação de audiência».
4º - Ora, é desde logo evidente que este critério normativo não coincide com a
argumentação expendida ao longo do prolixo requerimento de interposição do
recurso de constitucionalidade, sem que – apesar da sua desmesurada extensão –
tenha o recorrente logrado identificar adequadamente a precisa e específica
dimensão normativa que pretendia questionar.
5º - E sendo manifesto que a impugnação deduzida transcende claramente o âmbito
normativo do recurso de constitucionalidade dirigindo-se, não contra o dito
critério normativo, efectivamente aplicado, mas contra o modo como ao mesmo terá
sido subsumida a concreta e específica matéria em litígio – o que obviamente
extravaza o plano normativo em que se movem os recursos de
constitucionalidade.”.
Cumpre apreciar e decidir.
II
4. Partiu-se, na decisão sumária ora reclamada, do pressuposto de que
o objecto do presente recurso coincidia com as questões de inconstitucionalidade
suscitadas pelos recorrentes no requerimento de arguição de nulidades do acórdão
proferido nos autos em 1 de Junho de 2006, uma vez que os recorrentes, no
requerimento de interposição do presente recurso de constitucionalidade,
referiram que as questões de inconstitucionalidade que pretendiam ver apreciadas
haviam sido suscitadas nesse requerimento (cfr. fls. 5275 a 5276).
Ora, as questões de inconstitucionalidade que foram suscitadas
nesse requerimento prendiam-se com um determinado entendimento do dever de
fundamentação de decisões judiciais, alegadamente perfilhado pelo tribunal
recorrido no acórdão de 1 de Junho de 2006.
Considerou-se, em síntese, na decisão sumária reclamada: em
primeiro lugar, que a decisão recorrida não tinha aplicado a norma ou
interpretação normativa alegadamente inconstitucional; em segundo lugar, que o
objecto definido pelos então recorrentes no requerimento de interposição do
recurso não integrava qualquer norma ou interpretação normativa, susceptível de
ser apreciada sob o ponto de vista da sua conformidade constitucional,
coincidindo, antes, com a própria decisão recorrida. Por isso se concluiu no
sentido do não conhecimento do objecto do recurso.
5. Na presente reclamação, vêm os reclamantes afirmar que o objecto
do presente recurso se prende, não tanto com o modo como o tribunal recorrido
entendeu o dever de fundamentação de decisões judiciais, mas com a não
consideração, como nulo, do acórdão de 1 de Junho de 2006 que adoptara certo
entendimento acerca do dever de fundamentação de decisões judiciais: por isso,
pretenderiam os então recorrentes impugnar o acórdão de 14 de Dezembro de 2006
(que, precisamente, decidiu uma arguição de nulidades do acórdão anterior).
Mais precisamente, o objecto do presente recurso seria o
seguinte (supra, 2., a) e b)):
a) a “interpretação dos artigos 379º, n.º 1, alínea
a), e 374º, n.º 2, do Código de Processo Penal, segundo a qual não constitui
causa de nulidade o facto de uma sentença de um Tribunal de recurso [o acórdão
de 1 de Junho de 2006] ter considerado cabalmente fundamentada, quer na
apreciação da matéria de facto, quer na aplicação do direito, uma decisão
condenatória do Tribunal de primeira instância, sem, no entanto, a sentença do
Tribunal de recurso ter procedido a uma nova fundamentação que demonstrasse
terem sido efectivamente reanalisadas as questões de facto e de direito que os
mesmos Recorrentes haviam apontado no seu recurso”;
b) a “interpretação do artigo 379º, n.º 1, alínea
c), do Código de Processo Penal, segundo a qual não constitui causa de nulidade
o facto de o acórdão de 1 de Junho de 2006 utilizar fórmulas tabelares como
fundamentação jurídica na quase totalidade da sua decisão”.
6. Admitindo que é este afinal o objecto do recurso – e sem cuidar
agora de saber se aos recorrentes é lícito delimitá-lo no momento da reclamação
para a conferência –, verifica-se que procedem inteiramente as razões invocadas
pelo Ministério Público, na resposta à presente reclamação, no sentido de não
ser possível conhecer de tal objecto (supra, 3.).
É que as interpretações indicadas pelos reclamantes –
independentemente também de saber se o são verdadeiramente ou se traduzem,
antes, a própria aplicação do direito ao caso concreto – não foram certamente
adoptadas no acórdão recorrido. No texto do acórdão de 14 de Dezembro de 2006,
nenhuma alusão se faz a essas interpretações, nele se referindo, diversamente, o
seguinte (cfr. fls. 5263):
– “como resulta da própria letra da lei, a fundamentação, que
não poderá deixar de existir nos termos em que a mesma lei a prevê, basta-se,
contudo, com uma exposição concisa, isto é, resumida, mas tanto quanto possível
completa, isto é, abrangente de toda a matéria de facto e de direito em
discussão, que sustente, de modo suficiente, a respectiva decisão”;
– “o Tribunal de recurso, para além daquilo que é compreendido
no âmbito da renovação da prova, como é por demais sabido, não existe para
repetir os julgamentos já efectuados na primeira instância, mas, tão só, para
criticar as suas decisões”;
– “a motivação da decisão de facto não pode constituir um
substituto do princípio da oralidade e da imediação e transformar-se numa
espécie de documentação da audiência”.
É portanto evidente que este critério normativo subjacente à
decisão recorrida não coincide com aquele a que se referem os reclamantes, quer
no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, quer na
reclamação agora em apreço.
Não correspondendo as interpretações normativas identificadas
pelos reclamantes ao critério normativo utilizado no acórdão recorrido,
conclui-se que as mesmas não foram aplicadas na decisão recorrida.
A não aplicação, na decisão recorrida, da norma ou
interpretação normativa cuja conformidade constitucional se pretende que o
Tribunal Constitucional aprecie determina a falta de preenchimento de um dos
pressupostos processuais do presente recurso (cfr. artigo 70º, n.º 1, alínea b),
da Lei do Tribunal Constitucional), pelo que não é possível conhecer do
respectivo objecto.
III
7. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal
Constitucional decide indeferir a presente reclamação, mantendo a decisão
sumária de fls. 5281 e seguintes, que não tomou conhecimento do recurso.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20
(vinte) unidades de conta, por cada um.
Lisboa, 8 de Março de 2007
Maria Helena Brito
Carlos Pamplona de Oliveira
Rui Manuel Moura Ramos