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Processo nº 895/2006
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Por acórdão do Tribunal Judicial de Arraiolos, de 21 de Fevereiro de 2001,
de fls. 188, e para o que agora releva, A. foi condenado pela prática de dois
crimes de homicídio por negligência, nos termos do disposto nos artigos 10º, 15º
e 137º, n.º 1, do Código Penal, em cúmulo jurídico, na pena única de 500 dias de
multa, à taxa diária de 2.000$00, correspondente portanto a um milhão de
escudos, bem como na pena acessória de 10 meses de proibição de conduzir
veículos motorizados.
A. recorreu para o Tribunal da Relação de Évora, mas o recurso foi rejeitado
pelo acórdão de 16 de Outubro de 2001, de fls. 251, por não ter conclusões, e,
posteriormente, para o Supremo Tribunal de Justiça. Por acórdão de 7 de Março de
2002, de fls. 283, o recurso foi igualmente rejeitado, por inadmissibilidade.
A. recorreu então para o Tribunal Constitucional do acórdão do Tribunal da
Relação de Évora.
Pelo acórdão n.º 428/2003 deste Tribunal, de 24 de Setembro de 2003, de fls.
330, foi julgada inconstitucional 'por violação do artigo 32º, n.º 1, da
Constituição, a norma constante dos artigos 412º, n.º 1, 414º, n.º 2 e 420º,
n.º1, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que a falta de
conclusões da motivação do recurso conduz à rejeição liminar do recurso do
arguido, sem que ao mesmo seja facultada a oportunidade de suprir tal
deficiência'.
Por acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de fls. 372, foi decidido 'conceder
provimento ao recurso e, em consequência, anular o julgamento, ordenando o
competente reenvio para novo julgamento, a efectuar de acordo com o disposto nos
artºs 426º e 426º-A, do Cód. Proc. Penal, a fim de se apurar a situação
económica do arguido e quais os seus encargos pessoais', ficando 'prejudicado o
conhecimento das restantes questões suscitadas pelo recorrente'.
A Relação considerou que, tendo o tribunal de 1ª Instância optado por condenar
o arguido no pagamento de uma multa, e dependendo o montante da multa das
'condições pessoais do agente' e da 'sua situação económica' (artigo 71º, n.º
2, d) do Código Penal), deveria o mesmo Tribunal ter 'cumprido o dever de
investigar a situação económica e financeira do arguido, bem como os seus
encargos pessoais, como se lhe impunha'. Não o tendo feito, 'fica este Tribunal
impedido de, com base nos factos dados como provados, decidir a causa'.
2. Por despacho do Juiz do Tribunal Judicial de Arraiolos de 4 de Novembro de
2004, foi determinada a remessa dos autos ao Tribunal Judicial da Comarca de
Avis, para novo julgamento, 'a efectuar de acordo com o disposto nos arts. 426º
e 426º-A, do Código de Processo Penal, a fim de se apurar a situação económica
do arguido e quais os seus encargos pessoais'.
Conforme consta da acta da audiência de discussão e julgamento, realizada em 5
de Janeiro de 2006 após várias vicissitudes, e apenas para o que agora
interessa, o mandatário do arguido arguiu a nulidade da constituição do
colectivo de Juízes por o integrar um Juiz que fizera parte do colectivo que
julgara a causa no Tribunal de Arraiolos, o que foi indeferido. O Tribunal
considerou não ocorrer qualquer nulidade, desde logo por não estar previsto o
caso no artigo 123º do Código de Processo Civil, apenas podendo eventualmente
verificar-se uma irregularidade. Julgou, todavia, 'indeferida tal
irregularidade, ordenando (…) o prosseguimento da audiência para se apurar do
ordenado no douto acórdão de folhas 382 e 383 dos autos'.
Consta ainda da acta que o arguido prestou declarações mas que, quer o seu
mandatário, quer o Ministério Público, prescindiram do depoimento das
testemunhas arroladas.
Por acórdão de 11 de Janeiro de 2006, de fls. 583, o Tribunal Judicial de Avis
manteve a condenação pela prática de 2 crimes de homicídio por negligência, nos
termos dos mesmos artigos 10º, 15º e 137º do Código Penal, manteve a condenação
na pena acessória e reduziu a pena de multa para dois mil e quinhentos euros,
pelos seguintes motivos:
'No presente caso, não obstante as (…) necessidades de forte prevenção geral que
este tipo de casos reclama, cremos, ainda assim, dever privilegiar-se a faceta
menos intensa da prevenção especial (o arguido não deixa de ser o que se costuma
apelidar de uma pessoa de bem, já com uma avançada idade, à beira de completar
os 75 anos, não obstante a falha em causa nestes autos, a qual teve trágicas
consequências). Daí que este Tribunal Colectivo, ponderando em todos os
aspectos acima explanados, entenda como adequadas ao caso as penas de 300 dias
de multa, à taxa diária de 5 (cinco) euros, para cada um dos crimes de homicídio
por negligência e, em cúmulo jurídico, a pena de 500 dias de multa, à mesma Taxa
diária, que perfaz a quantia global de 2500,00 euros'.
3. A., a fls. 602, recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, quer do
indeferimento de outra nulidade que arguira, quer do acórdão condenatório, quer
'do douto acórdão [despacho] que desatendeu a arguição de nulidade consistente
no facto de, tratando-se de julgamento no âmbito do 426º-A do C.P.P., o tribunal
de reenvio ser presidido por juiz que integrara o anterior colectivo'.
Quanto a este último ponto, sustentou na motivação (e repetiu nas alegações) do
recurso o seguinte:
'1. Decretado o reenvio do processo para novo julgamento, decorre do art. 426°-A
do C.P.P. – com o estabelecer que compete ele ao tribunal de categoria e
composição idênticas às do tribunal que proferiu a decisão recorrida que se
encontrar mais próximo – que do tribunal de segundo julgamento não podem fazer
parte quaisquer dos juízes que tenham integrado o primeiro.
2. É essa a interpretação do preceito consentânea com as disposições da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem, nomeadamente do seu art. 6°, 1,
princípios esses que subjazem ao ordenamento judiciário português e à
consagração constitucional da regra de que o processo penal assegura todas as
garantias de defesa (art. 32°, 1, da C.R.P.), sob pena de violação desses
ontológicos princípios.
3. O Juiz Presidente do Tribunal recorrido, e porque integrara o colectivo do
julgamento anulado, estava impedido de intervir, pelo que, tendo, não obstante,
intervindo no julgamento e no acórdão recorrido, violadas foram as apontadas
regras e preceitos, com a consequência inevitável da declaração de nulidade do
julgamento e anulação do acórdão recorrido (por força também do estatuído nos
art.s 118° e ss do C.P.P.).'
Enviado o processo para o Tribunal da Relação de Évora, foi o mesmo remetido ao
Supremo Tribunal de Justiça, na sequência do despacho de fls. 675.
4. Por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Setembro de 2006, de fls.
705, foi decidido o seguinte:
'III. Recurso do despacho de fls. 581
No início da audiência, a fls. 580, o arguido levantou as questões da nulidade
da realização da mesma sem a presença do seu defensor escolhido e da nulidade da
composição do tribunal colectivo, tendo o Presidente do tribunal colectivo
indeferido o requerimento, ordenando o prosseguimento da audiência.
(…)
Questão da nulidade do julgamento por violação das regras de constituição do
tribunal colectivo
O presente processo foi julgado num primeiro momento pelo tribunal colectivo da
comarca de Arraiolos.
Em recurso interposto pelo arguido, o Tribunal da Relação de Évora ordenou o
reenvio do processo para novo julgamento, nos termos dos artigos 426° e 426°-A,
do Código de Processo Penal.
O julgamento foi repetido pelo tribunal colectivo da comarca de Avis,
constituído pelo juiz presidente, que interviera no anterior julgamento como
juiz da comarca de Arraiolos, e por outros juízes adjuntos.
No início do mesmo, o arguido suscitou a questão na nulidade da constituição do
tribunal, com fundamento na circunstância de o presidente do tribunal ter
intervindo no primeiro julgamento.
O presidente do tribunal indeferiu o que considerou ser uma irregularidade e
ordenou o prosseguimento dos autos, invocando jurisprudência deste Supremo
Tribunal no sentido de que apenas não poderá integrar o tribunal colectivo o
juiz que tenha proferido a decisão recorrida.
Está em causa a aplicação do artigo 426.°-A do Código de Processo Penal.
O n.° 1 dispõe que quando for decretado o reenvio do processo, o novo julgamento
compete ao tribunal, da categoria e composição idênticas às do tribunal que
proferiu a decisão recorrida, que se encontrar mais próximo.
O n.° 2 preceitua que quando na mesma comarca existirem mais de dois tribunais
da mesma categoria e composição, o julgamento compete ao tribunal que resultar
da distribuição.
O recorrente sustenta na motivação do recurso que o juiz presidente estava
impedido de intervir, pelo que o julgamento deve ser anulado, nos termos dos
artigos 118° e seguintes do Código de Processo Penal.
O Ministério Público, tanto na 1ª instância como neste Supremo Tribunal tomou
posição concordante com a pretensão do recorrente.
Trata-se de saber se, no caso de reenvio do processo para novo julgamento a
efectuar por outro tribunal colectivo, na constituição deste pode entrar um dos
juízes que intervieram no primeiro julgamento.
Sobre esta questão não tem sido uniforme a jurisprudência deste Supremo
Tribunal.
Mencionaremos em seguida alguns dos arestos proferidos, com indicação resumida
das posições assumidas.
(…) Como revela a diversidade de posições assumidas na jurisprudência deste
Supremo Tribunal, a questão não é de fácil solução.
Há que tomar posição.
Temos para nós que, tendo sido o tribunal colectivo de outra comarca que
efectuou o segundo julgamento, foi observado o disposto no artigo 426°-A, n.° 1,
do Código de Processo Penal.
E obedecendo a sua constituição às normas de organização judiciária aplicáveis,
designadamente os artigos 105º da Lei n.° 3/99, de 13 de Janeiro, e 7.° do
Decreto-Lei n.° 186-A/99, de 31 de Maio, não se verifica a nulidade insanável
prevista no artigo 119.°, alínea a), do mesmo Código: violação das regras legais
relativas ao modo de determinar a composição do tribunal.
Embora possa impressionar que um dos juízes intervenha nos dois julgamentos, o
certo é que não existe norma legal que estabeleça o impedimento da sua
participação no segundo julgamento.
Alguns dos arestos citados que adoptaram solução contrária à que ora se perfilha
apoiam-se no artigo 40° do Código de Processo Penal, que prevê os casos de
impedimento por participação em processo.
Estabelece esse artigo que nenhum juiz pode intervir em recurso ou pedido de
revisão relativos a uma decisão que tiver proferido ou em que tiver participado
ou no julgamento de um processo a cujo debate instrutório tiver presidido ou em
que, no inquérito ou na instrução, tiver aplicado e posteriormente mantido a
prisão preventiva do arguido.
A anterior intervenção do juiz no caso em apreço não integra qualquer das
hipóteses aí previstas, pelo que não se pode lançar mão desse preceito para
sustentar o impedimento do juiz no segundo julgamento.
E sempre seria de ter presente que a declaração de impedimento não é feita
oficiosamente: terá de ser declarada pelo próprio, ou requerida pelos
interessados, nos termos do artigo 41° do Código de Processo Penal.
O afastamento do juiz só pode ser obtido através dos incidentes de recusa e
escusa, regulados nos artigos 43° e seguintes do Código de Processo Penal. No
n.° 2 do artigo 43° prevê-se até expressamente como fundamento de recusa ou
escusa a intervenção do juiz em fase anterior do processo fora dos casos do
artigo 40°.
Afastado o juiz nesses termos, o seu lugar será preenchido por outro juiz
segundo as regras de substituição previstas nas leis de organização judiciária.
Deste modo improcede a arguida nulidade do acórdão do tribunal colectivo.'
5. A. recorreu então para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do
disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro,
do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 'na medida em que desatendeu o
recurso do despacho de fls 581 – na parte respeitante à arguição de nulidade do
julgamento por violação das regras de constituição do tribunal colectivo',
pretendendo 'a apreciação da inconstitucionalidade do art. 426°-A do Código de
Processo Penal quando e se interpretado no sentido de que é permitida a
intervenção, no tribunal do reenvio do processo, de um dos Juízes que já
interviera no anterior e anulado julgamento'.
Em seu entender, 'o acórdão recorrido violou o princípio constitucional
de que o processo penal deve garantir ao arguido todos os idóneos meios de
defesa, e que vem consagrado no art. 32° n.° 1, da C.R.P., na vertente
designadamente do direito ao julgamento por um tribunal independente, isento e
imparcial, princípio que tem também acolhimento no art. 6° da Convenção Europeia
dos Direitos do Homem.'
Notificadas para o efeito, as partes apresentaram alegações, que o
recorrente concluiu da seguinte forma:
'a) Decretado que seja o reenvio do processo para novo julgamento, do art. 426°
A do C.P.P. — como o estabelecer que compete ele ao Tribunal de categoria e
composição idênticas às do Tribunal que proferiu a decisão recorrida que se
encontrar mais próximo — se interpretado de acordo com as disposições da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem, nomeadamente do seu art. 6°, 1, cujos
princípios subjazem e foram incorporados no ordenamento judiciário português, e
se interpretado de acordo com o princípio constitucional de que o processo penal
tem que assegurar todas as garantias de defesa vertido no art. 32°, 1, da
C.R.P., desse art. 426°-A do C.P.P., dizia-se, decorre o corolário irrecusável
de que o Tribunal de segundo julgamento não pode fazer parte qualquer dos Juízes
que tenha integrado o primeiro, sob pena de violação desses ontológicos
princípios.
b) Interpretação mais ou menos capciosa ou complacente do preceito implicaria a
violação dos princípios constitucionais aludidos.
c) Declarada a inconstitucionalidade de tal interpretação, impor-se-á, em
consequência, que, no lugar e momento próprio, seja anulado o julgamento
viciado, com o que se fará JUSTIÇA.'
Quanto ao Ministério Público, formulou estas conclusões:
'1. É inconstitucional a norma do artigo 426°-A do Código Processo Penal, na
interpretação de que em novo julgamento pelo Tribunal Colectivo pode fazer parte
um dos juízes, que integrara o anterior, cuja decisão foi anulada, por violação
do disposto nos artigos 20°, n° 4 e 32°, n° 1 da Lei Fundamental.
2. Termos em que deverá proceder o presente recurso.'
6. O n.º 1 artigo 426°-A do Código de Processo Penal (competência para novo
julgamento) – só releva o n.º 1, no âmbito deste recurso – tem a seguinte
redacção:
“1. Quando for decretado o reenvio do processo, o novo julgamento compete ao
tribunal, de categoria e composição idênticas às do tribunal que proferiu a
decisão recorrida, que se encontrar mais próximo.'
Constitui, assim, o objecto deste recurso, segundo a definição feita
pelo recorrente no requerimento de interposição, a norma do n.º 1 do artigo 426º
do Código de Processo Penal enquanto interpretada 'no sentido de que é permitida
a intervenção, no tribunal do reenvio do processo, de um dos Juízes que já
interviera no anterior e anulado julgamento'.
A verdade, todavia, é que esta norma apenas foi aplicada a um caso de
anulação meramente parcial do julgamento, e em que o reenvio para novo
julgamento se destinou, somente, a que o tribunal de 1ª Instância 'apura[sse] a
situação económica do arguido e quais os seus encargos pessoais', a fim de ser
possível fixar o montante da pena de multa, não se questionando, sequer, a opção
por esse tipo de pena.
O objecto do recurso tem, assim, de ser restringido em conformidade, já
que o Tribunal Constitucional apenas pode apreciar a alegada
inconstitucionalidade de normas efectivamente aplicadas na decisão recorrida,
não obstante ter sido suscitada oportunamente a respectiva inconstitucionalidade
(nos casos dos recursos ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º
da Lei nº 28/82, como agora sucede).
Assim, o Tribunal Constitucional vai apreciar a norma do n.º 1 do
artigo 426º do Código de Processo Penal enquanto interpretada 'no sentido de que
é permitida a intervenção, no tribunal do reenvio do processo, de um dos Juízes
que já interviera no anterior e anulado julgamento' quando a anulação apenas
teve por objectivo que se apurasse a situação económica e os encargos pessoais
do arguido, de forma a ser possível tomar tais elementos em consideração para
efeitos da fixação do montante da multa a aplicar.
7. Como este Tribunal já teve ocasião de escrever no seu acórdão n.º
324/2006 (Diário da República, II série, de 30 de Agosto de 2006), foi a Lei n.º
59/98, de 25 de Agosto que, tendo em conta as alterações então introduzidas no
sistema de recursos, acrescentou ao Código de Processo Penal o artigo 426º-A,
relativo à determinação do tribunal competente para o novo julgamento em caso
de reenvio do processo para o efeito. Veio, por aquele motivo, substituir o
'disposto anteriormente nos artigos 436º (reenvio determinado pelo Supremo
Tribunal de Justiça ) e 431º (reenvio determinado pelas Relações)'.
Também ali se escreveu que esta alteração não foi acompanhada de uma
qualquer regra que considerasse motivo de 'impedimento (…) que eventualmente
venha a intervir no novo julgamento um juiz que participou no primeiro. Os
impedimentos, em Processo Penal, constam dos artigos 39º e 40º do mesmo Código,
não figurando entre eles esta hipótese (diferentemente do que sucede com a
intervenção em recurso, prevista no artigo 40º)'.
Acrescenta-se agora que, além do mais, as regras da organização
judiciária, como se sabe, também não foram modificadas por forma a evitar
coincidência de juízes nos dois julgamentos; trata-se, aliás, de um problema por
diversas vezes colocado nos tribunais, como se pode verificar pela
jurisprudência indicada no próprio acórdão recorrido.
Torna-se, assim, difícil ao sistema respeitar o objectivo com que a
regra da repetição do julgamento anulado pelo tribunal que o proferiu, que
vigorava até 1987, foi substituída, e que foi o de que 'sendo a repetição do
julgamento um mal necessário, pareceu que o reexame da causa poderia ser feito
em melhores condições por tribunal diferente' (Cunha Rodrigues, Recursos, in
Jornadas de Direito Processual Penal, o novo Código de Processo Penal, Coimbra,
1988, pág. 379 e segs., pág. 397). Aparentemente, fica sujeita ao regime
definido pelo n.º 2 do artigo 43º a possibilidade de o próprio juiz pedir escusa
ou de ser recusado, caso se ponha a hipótese de intervenção nos dois
julgamentos.
8. O problema colocado ao Tribunal Constitucional não é, todavia, o de
saber qual é a solução decorrente das normas de direito ordinário; consiste,
apenas, em determinar se, tal como foi interpretada e aplicada ao caso, a norma
retirada do n.º 1 do artigo 426º-A do Código de Processo Penal viola ou não as
garantias de defesa do arguido, consagradas no n.º 1 do artigo 32º, como
sustenta o recorrente, ou, ainda, as 'garantias de um processo equitativo,
consagrado no n.º 4 do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa', como
também afirma o Ministério Público.
Em qualquer caso, e independentemente da norma constitucional em
concreto violada, o problema colocado por ambas as partes traduz-se em saber se
a norma põe ou não em causa a independência e a imparcialidade do julgador de
forma constitucionalmente insuportável.
9. O Tribunal Constitucional já por diversas vezes se debruçou sobre a questão
da independência e da imparcialidade do julgador, nomeadamente no âmbito do
Processo Penal.
Recorrendo, por exemplo, ao seu acórdão n.º 124/90 (Diário da República, II
série, de 8 de Fevereiro de 1991), verificamos que sempre o Tribunal
Constitucional observou que 'num Estado de Direito, a solução jurídica dos
conflitos há-de, com efeito, fazer-se sempre com observância de regras de
independência e de imparcialidade, pois tal é uma exigência do próprio direito
de acesso aos tribunais, que a Constituição consagra no artigo 20.º, n.º 1
(cfr., neste sentido, o Acórdão n.º 86/88 deste Tribunal, publicado no Diário da
República, II Série, de 22 de Agosto de 1988). A garantia de um julgamento
independente e imparcial é, de resto, também uma dimensão — e dimensão
importante — do princípio das garantias de defesa, consagrado no artigo 32.º,
n.º 1, da Constituição, para o processo criminal, pois este tem que ser sempre a
due process of law.
Para que haja um julgamento independente e imparcial, necessário é que o juiz
que a ele proceda possa julgar com independência e imparcialidade.
(…) não pode, porém, esquecer-se a necessidade de existir um quadro legal que
«promova» e facilite aquela «independência vocacional».
Assim, necessário é, inter alia, que o desempenho do cargo de juiz seja rodeado
de cautelas legais destinadas a garantir a sua imparcialidade e a assegurar a
confiança geral na objectividade da jurisdição.
É que, quando a imparcialidade do juiz ou a confiança do público nessa
imparcialidade é justificadamente posta em causa, o juiz não está em condições
de «administrar justiça». Nesse caso, não deve poder intervir no processo,
antes deve ser pela lei impedido de funcionar — deve, numa palavra, poder ser
declarado iudex inhabilis.
Importa, pois, que o juiz que julga o faça com independência e imparcialidade.
E importa, bem assim, que o seu julgamento surja aos olhos do público como um
julgamento objectivo e imparcial. É que, a confiança da comunidade nas decisões
dos seus magistrados é essencial para que os tribunais, ao «administrar a
justiça», actuem, de facto, «em nome do povo» (cfr. artigo 205.º, n.º 1, da
Constituição).'
É com este objectivo de garantir a imparcialidade do julgador que a lei prevê,
no caso do Processo Penal, o regime dos 'impedimentos, recusas e escusas'
(artigos 39º e segs. do respectivo Código); e foi justamente a propósito das
normas respectivas, sobretudo, que se desenvolveu a jurisprudência
constitucional relevante (cfr., por exemplo, para a história da jurisprudência
relativa ao artigo 40º do Código de Processo Penal, que prevê o 'impedimento por
participação em processo', o acórdão n.º 297/2003, Diário da República, II
série, de 3 de Outubro de 2003).
No presente recurso, a alegação de inconstitucionalidade por violação do direito
a um julgamento por um tribunal independente e imparcial não é dirigida às
normas sobre impedimentos, recusas ou escusas; como se viu, antes é colocada
relativamente ao preceito que fixa o modo de determinar qual é o tribunal que,
em caso de reenvio do processo para novo julgamento na sequência de anulação do
primeiro pelo tribunal de recurso, deve efectuar a repetição.
Isto não significa, naturalmente, que não tenham plena aplicação as
considerações atrás transcritas, uma vez que é justamente a quebra da
independência e da imparcialidade que o recorrente aponta como justificativa da
inconstitucionalidade que suscitou.
10. Mais concretamente, o recorrente suscita a questão a propósito da
constituição do tribunal colectivo que procedeu ao segundo julgamento,
constituição essa que, em seu entender, resultou da aplicação de uma
interpretação inconstitucional do disposto no artigo 426º-A do Código de
Processo Penal.
O Tribunal Constitucional já analisou a questão da constitucionalidade de normas
relativas a participação de juízes que, tendo intervindo em julgamentos anulados
em recurso, voltaram a participar no segundo julgamento, por exemplo, nos seus
acórdãos n.ºs 399/2003 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt) e 393/2004
(Diário da República, II série, de 8 de Julho de 2004).
Assim, no acórdão n.º 399/2003 negou provimento a um recurso cujo objecto era
constituído pelas «normas dos artigos 40º e 43º, n.ºs 1 e 2, do Código de
Processo Penal, 'no segmento que permite que os arguidos possam ser julgados por
juízes que antes já haviam participado num primeiro julgamento, do qual houve
sentença, anulado com a finalidade de se proceder á documentação das declarações
prestadas em audiência'».
No acórdão n.º 393/2004 decidiu 'não julgar inconstitucionais as normas dos n.ºs
1 e 2 do artigo 43º do Código de Processo Penal, interpretadas no sentido de não
constituir, por si só, motivo de recusa da intervenção de juízes em novo
julgamento a sua participação em anterior julgamento, que veio a ser considerado
consequentemente inválido por força da revogação, em recurso, de despacho que
determinara o desentranhamento da contestação e do requerimento de produção de
prova apresentados pelo arguido'.
Tratava-se, nos dois casos, de anulações não decorrentes da verificação de
qualquer dos vícios previstos no n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo
Penal, tendo a repetição sido efectuada no mesmo tribunal que julgara pela
primeira vez e não nos termos do disposto no artigo 426º do Código de Processo
Penal.
Ambos os acórdãos, aliás, dão relevo a essa diferença. Assim, no acórdão n.º
399/2003 chama-se a atenção para as duas hipóteses, nestes termos:
'Convém salientar, como refere o Ministério Público nas suas alegações, que, no
caso concreto, não está em causa a aplicação dos artigos 426º e 426º-A do Código
de Processo Penal – que só são convocadas quando o tribunal ad quem julgue
verificados vícios intrínsecos quanto ao conteúdo da decisão tomada sobre a
matéria de facto pelo tribunal recorrido, tipificados no nº2 do artigo 410º do
Código de Processo Penal –, mas tão só a mera anulação do processado a partir de
determinado acto – no caso, o despacho que indeferir a gravação da prova –, em
consequência de ter ocorrido uma nulidade processual, susceptível de
reflexamente se repercutir nos ulteriores termos da causa, incluindo o próprio
julgamento.
Os vícios tipificados no artigo 410º, nº2, do Código de Processo Penal,
reportam-se a vícios intrínsecos quanto ao conteúdo da decisão tomada sobre a
matéria de facto – insuficiência ou contradição dos factos e razões que suportam
a própria decisão –, ou de erros ostensivos ou patentes na valoração da prova,
que pela sua natureza e gravidade constituem verdadeira nulidade de sentença,
justificando o reenvio para julgamento noutro tribunal.
Já assim não é quando a anulação do julgamento decorre, não por vícios
intrínsecos e lógicos do conteúdo da própria decisão, mas quando a mesma é
ditada reflexamente por via da anulação dos actos posteriores em consequência do
cometimento de uma nulidade decorrente da tramitação da causa.
Tanto basta, por serem diferentes as situações contempladas no artigo 426º do
Código de Processo Penal, para os casos de reenvio, e a dos presentes autos,
para que não se mostre violado o princípio da igualdade, consagrado no artigo
13º, nº1, da Constituição, existindo um fundamento material bastantes que
justifica a diferença de tratamento.'
Também no acórdão n.º 393/2004 se escreveu que 'no presente caso, não tendo a
necessidade de repetição do julgamento resultado da verificação de qualquer dos
vícios referidos no n.º 2 do artigo 410.º do CPP, mas antes surgindo como
indirecta e exclusiva consequência do provimento de recurso de despacho
proferido no decurso da audiência (…), que havia ordenado o desentranhamento da
contestação e do requerimento de produção de prova apresentados pelo arguido,
implicitamente entendeu–se – entendimento que, respeitando a interpretação do
direito ordinário, não compete ao Tribunal Constitucional censurar – não ser
aplicável a regra de o novo julgamento caber a tribunal diferente. E, por
outro lado, agora de forma expressa, entendeu‑se não ocorrer, no caso, “risco
de ser considerada suspeita” a intervenção no novo julgamento de juízes que
haviam participado no anterior, por não “existir motivo, sério e grave, adequado
a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”, justificador da sua recusa.
E entendeu-se que 'os fundamentos desenvolvidos para alicerçar o juízo de não
inconstitucionalidade, contido no Acórdão n.º 399/2003, são transponíveis para
o presente caso (…). Nestes dois casos, diferentemente do que sucede quando a
causa do reenvio é a procedência dos vícios elencados no n.º 2 do artigo 410.º
do CPP, não foi posto em causa – nem chegou a ser apreciado – o conteúdo da
decisão condenatória, quer em sede de matéria de facto, quer em sede de matéria
de direito, nem sequer a coerência lógica da sentença, mas aspectos exteriores
à mesma (embora com possibilidade de nela se repercutirem), como a documentação
da prova ou a atendibilidade da contestação e a produção de prova requerida pelo
arguido, o que terá estado na base do entendimento do legislador de que, nestas
hipóteses, nada obsta a que a repetição do julgamento seja feita pelo mesmo
tribunal. E, na mesma linha, há que concluir não ser de considerar como
desrespeitadora do princípio da imparcialidade do julgador a possibilidade de
intervenção dos mesmos juízes (ou de parte deles) que participaram no primeiro
julgamento.'
11. Ora, no presente recurso está precisamente em apreciação uma norma aplicável
à hipótese de reenvio para novo julgamento, decorrente da ocorrência de um dos
vícios previstos no n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal.
A verdade, todavia, é que, num caso de uma anulação meramente parcial,
determinada com o objectivo de ampliar a base factual para permitir a
quantificação da pena de multa – não visando, nem eliminar contradições, nem
corrigir erros de apreciação da prova –, dificilmente se encontrará motivo para
crer que a participação de um juiz que interveio no julgamento anulado implique
receio de quebra objectiva da independência ou da imparcialidade do colectivo do
segundo julgamento.
Não se quer com isto afirmar que, para as outras hipóteses de reenvio, ocorra ou
não um tal receio; apenas se pretende concluir que não infringe, nem o n.º 1 do
artigo 32º, nem o n.º 4 do artigo 20º da Constituição, uma norma que permita
que, em caso de reenvio para novo julgamento em consequência de uma anulação
parcial do julgamento, com o estrito objectivo de determinar a situação
económica do arguido, por tal averiguação ter sido omitida, integre o colectivo
que realizar o segundo julgamento um dos juízes que participou no primeiro.
12. Nestes termos, nega-se provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 ucs.
Lisboa, 7 de Março de 2007
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Vítor Gomes
Bravo Serra
Gil Galvão
Artur Maurício