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Processo n.º 788/06
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.Por acórdão de 19 de Julho de 2006, o Supremo Tribunal de Justiça concedeu
provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público junto do Tribunal da
Relação de Lisboa da decisão deste Tribunal de 22 de Fevereiro de 2006, que,
concedendo provimento ao recurso interposto por A., revogara o despacho
recorrido proferido em 11 de Outubro de 2005, e, consequentemente, julgara
extinto, por prescrição, o procedimento criminal instaurado contra aquele pela
prática, em 1992, de um crime de burla agravada, previsto e punido pelos artigos
313.º e 314.º, alínea c), da redacção originária do Código Penal de 1982. Pode
ler-se nesse aresto do Supremo Tribunal de Justiça:
«Na análise da questão substancial suscitada nos presentes autos importa
precisar o segmento da decisão proferida objecto de impugnação.
“Analisemos agora a argumentação do mencionado acórdão de fixação de
jurisprudência.
Não merecem, em nosso entender, qualquer crítica os dois primeiros argumentos
utilizados. De facto, o corpo do artigo 119.º da redacção originária do Código
Penal de 1982 ressalva outros casos especialmente previstos na lei e essa
ressalva tanto abrange as situações já então previstas como casos especiais de
suspensão do procedimento criminal como outras que, posteriormente, tivessem
vindo a ser estabelecidas. Para isso seria, no entanto, imprescindível que
fossem ou viessem a ser posteriormente concebidas como causas de suspensão da
prescrição do procedimento criminal e não como meras causas de suspensão do
processo. Não é pelo facto de a suspensão da prescrição, a existir, dever ter
duração correspondente à da suspensão do processo que esta, «sem ter na letra da
lei um mínimo de correspondência verbal» (n.º 2 do artigo 9.º do Código Civil),
se pode transformar naquela.
Uma coisa é prever-se uma causa de suspensão do processo.
Outra, completamente diferente, uma causa de suspensão da prescrição do
procedimento criminal. Se da primeira apenas decorrem efeitos de natureza
processual, a prescrição tem uma natureza mista. Extingue o procedimento e
também a responsabilidade criminal.
É certo que o legislador ao publicar o novo Código de Processo Penal deveria ter
alterado o Código Penal, nomeadamente as disposições relativas à prescrição,
para adaptar as causas de suspensão e de interrupção do procedimento criminal à
nova tramitação prevista, como veio a fazer em 1995, e depois em 1998, sob pena
de, de outro modo, acabar «por vir a proteger o arguido que, mais lesto, fugira
à alçada da justiça». Porém, tais considerações de política legislativa não
podem, por si só, sustentar a referida interpretação do artigo 336.º do Código
de Processo Penal. Se, em geral, as considerações político-criminais não podem
ser estranhas ao intérprete e devem por ele ser consideradas na sua actividade,
o resultado da interpretação não pode ir além do sentido possível das palavras
utilizadas no texto. Não se pode pretender que o intérprete, com base nas
considerações de política legislativa e político‑criminais, se substitua ao
legislador e alcance, por via da aplicação do direito, o resultado que o
legislador devia ter previsto mas que, consabidamente, não previu.
De outra forma violar-se-ia inexoravelmente o princípio da legalidade consagrado
no artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa e no artigo 1.º do Código
Penal.
E desta forma se entra no argumento decisivo para a não aplicação do referido
acórdão de fixação de jurisprudência.
Se bem que ele não constitua hoje «assento», nem sequer jurisprudência
obrigatória para os tribunais judiciais (n.º 3 do artigo 445.º do Código de
Processo Penal), sempre poderíamos optar, não obstante a nossa discordância, por
o aplicar, não fora a questão de constitucionalidade. Isto por considerações de
segurança jurídica e de respeito pelos interesses dos sujeitos processuais
envolvidos, atenta a data relativamente recente daquela fixação da
jurisprudência.
Porém, a interpretação do segmento «a declaração de contumácia implica a
suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou à detenção do
arguido», inserto no n.º 1 do artigo 336.º da redacção originária do Código de
Processo Penal, no sentido de que aí se consagra uma causa especial de suspensão
da prescrição do procedimento criminal admitida pelo corpo do n.º 1 do artigo
119.º da redacção primitiva do Código Penal de 1982, viola o princípio da
legalidade criminal referido, sendo portanto, por esse motivo, materialmente
inconstitucional.”
Assim, conclui a decisão em causa que, com fundamento em inconstitucionalidade,
se decide não aplicar (artigo 204.º da Constituição da República Portuguesa) a
norma criada pelo citado acórdão, razão pela qual, tendo decorrido a prazo de
prescrição previsto no artigo 117.º, n.º 1, alínea b), da redacção originária do
Código Penal e não tendo sido praticado, até ao seu termo, qualquer acto com
efeito suspensivo ou interruptivo, se julga procedente o recurso e,
consequentemente, se declara extinto, por prescrição, o procedimento criminal
instaurado contra o arguido A., pela prática em 1992 de um crime de burla
agravada, p. e p. pelos artigos 313.º e 314.º, alínea c), da redacção originária
do Código Penal de 1982.
*
Na decisão do presente recurso importa estabelecer as premissas que constituem o
antecedente lógico da decisão a enunciar:
a) O Assento n.º 10/2000 decidiu que “No domínio da vigência do Código Penal de
1982 e do Código de Processo Penal de 1987, a declaração de contumácia
constituía causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal”.
b) Pronunciando-se sobre a questão da constitucionalidade do entendimento
consagrado no mesmo Assento refere o Acórdão n.º 449/2002 do Tribunal
Constitucional que o princípio da legalidade – e, em concreto, a exigência de
tipicidade – não requer que todas as causas de suspensão do prazo de prescrição
do procedimento criminal estejam previstas na mesma norma legal. Apenas pode
postular que a norma que preveja cada uma (ou várias) daquelas causas seja
suficientemente precisa e seja emitida pela Assembleia da República ou pelo
Governo, no uso da indispensável autorização legislativa [artigo 198.º, n.º 1,
alínea b), da Constituição].
Mas nada obsta a que uma norma – no caso, o artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal
de 1982 – remeta para outras normas a consagração, em concreto, de causas de
suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal.
Esta conclusão não é invalidada pela circunstância de a norma que consagra a
causa de suspensão do prazo prescricional – o artigo 336.º, n.º 1, do Código de
Processo Penal de 1987 – ser posterior. Na verdade, a cláusula “geral” ou de
“remissão” dirige-se a todas as normas que vigoravam à data da sua entrada em
vigor ou hajam entrado em vigor posteriormente (mas, claro está, na sua
vigência).
Esta técnica legislativa em nada contraria o princípio da legalidade, bastando
ter em conta, para o evidenciar, que uma enumeração taxativa (do artigo 119.º,
n.º 2, do Código Penal de 1982) poderia ser livremente revogada por uma norma de
idêntico valor hierárquico (artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal de
1987), que consagrasse uma nova causa de suspensão do prazo de prescrição do
procedimento criminal.
c) Este Supremo Tribunal de Justiça pronunciou-se plúrimas vezes sobre a
validade dos fundamentos e conclusão do referido Assento (Acórdãos de 2/10/2002;
13/1/2003; 27/2/2003 e 26/1/2003).
De acordo com o disposto no artigo 445.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, a
decisão que resolver o conflito, no caso de recurso para a fixação de
jurisprudência, não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais
judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à
jurisprudência fixada naquela decisão.
Sobre o sentido interpretativo daquela norma permitimo-nos chamar à colação a
decisão deste Supremo Tribunal de 26.01.2006 (proc. n.° 06P181) onde se referiu
que:
1 – A partir da reforma de 1998 do processo penal, os tribunais judiciais
podem-se afastar da jurisprudência uniformizada pelo Supremo Tribunal de
Justiça, conquanto que fundamentem as divergências relativas à jurisprudência
fixada naquela decisão (n.º 3 do art.º 445.º do CPP).
2 – Mas, com essa norma não se quis seguramente referir o dever geral de
fundamentação das decisões judiciais (art.ºs 97.º, n.º 4, e 374.º do CPP), antes
postular um dever especial de fundamentação destinado a explicitar e explicar as
razões de divergência em relação à jurisprudência fixada.
3 – Quis então o legislador que o eventual afastamento, por parte dos tribunais
judiciais, da jurisprudência fixada, pudesse gerar uma “fiscalização difusa” da
jurisprudência uniformizada (art.º 446.º, n.º 3, do CPP).
4 – Ora, as duas normas, que se ocupam da possibilidade de revisão pelo Supremo
Tribunal de Justiça da jurisprudência por si fixada, usam a mesma terminologia:
haver “razões para crer que uma jurisprudência fixada está ultrapassada” (art.ºs
446.º, n.º 3, e 447.º, n.º 2, 1.ª parte, do CPP), as únicas razões, pois, que
podem levar um tribunal judicial a afastar-se da jurisprudência fixada.
5 – Isso sucederá, v.g., quando:
- o tribunal judicial em causa tiver desenvolvido um argumento novo e de grande
valor, não ponderado no acórdão uniformizador (no seu texto ou em eventuais
votos de vencido), susceptível de desequilibrar os termos da discussão jurídica
contra a solução anteriormente perfilhada;
- se tornar patente que a evolução doutrinal e jurisprudencial alterou
significativamente o peso relativo dos argumentos então utilizados, por forma a
que, na actualidade, a sua ponderação conduziria a resultado diverso; ou,
finalmente,
- a alteração da composição do Supremo Tribunal de Justiça torne claro que a
maioria dos juízes das Secções Criminais deixaram de partilhar fundadamente da
posição fixada.
7 – Mas seguramente não sucederá quando, como infelizmente se tem vindo a
constatar suceder com frequência, o Tribunal Judicial não acata a jurisprudência
uniformizada, sem adiantar qualquer argumento novo, sem percepção da alteração
das concepções ou da composição do Supremo Tribunal de Justiça, baseado somente
na sua convicção de que aquela não é a melhor solução ou a “solução legal”.
Na verdade, esta é a posição que se coaduna com a concepção vigente do Supremo
Tribunal de Justiça como regulador e uniformizador da jurisprudência nacional,
cabendo-lhe essencialmente a função de tribunal de revista (art.º 29.º da Lei
Orgânica dos Tribunais Judiciais).
É, pois, o Supremo Tribunal de Justiça um tribunal de revista, isto é, um
«tribunal cuja função própria e normal é restabelecer o império da lei,
corrigindo os erros de interpretação e aplicação das normas jurídicas cometidos
pela relação ou pelo tribunal da 1.ª instância, contribuindo para a
uniformização da jurisprudência. Essa uniformização ocorre quer directamente,
por via dos assentos, quer indirectamente» (Alberto dos Reis, Código de Processo
Civil Anotado, VI, pág. 2).
«Pelo facto de estar colocado no mais alto grau da hierarquia judicial, de ser
tribunal único, e de ser presumível que a jurisprudência estabelecida pelos seus
acórdãos venha a ser adoptada, de futuro, em casos semelhantes, é natural que os
tribunais de 1.ª e 2.ª instância se inspirem na interpretação e aplicação que o
Supremo for dando aos textos legais.»
«O que dá aos acórdãos do Supremo um prestígio e valor especial é a
circunstância de emanarem do mais alto tribunal e de dever supor-se que o
Supremo manterá, de futuro, a sua jurisprudência, em casos semelhantes. Esta
força, senão de persuasão, ao menos de supremacia, tenderá a produzir o seguinte
resultado prático: os tribunais inferiores, mesmo quando não concordem com a
doutrina emitida pelo Supremo, serão levados naturalmente a aceitá-la e a
aplicá-la. Podem, certamente, reagir contra ela, quando a considerarem errada; e
a cada passo reagem. Mas se o Supremo insistir na sua jurisprudência, se se
mantiver fiel a ela, os tribunais inferiores acabarão por desarmar e por se
submeter, certos de que a sua luta será inglória e inútil. A jurisprudência do
Supremo acabará por triunfar contra as veleidades de resistência dos tribunais
de instância. Pouco a pouco, por uma lei natural do espírito humano, os juízes
dos tribunais inferiores vão-se conformando com as directrizes traçadas pelo
Supremo em matéria de interpretação e aplicação das normas jurídicas. Este o
mecanismo indirecto que conduz à uniformização da jurisprudência. Mecanismo
lento, mas de resultado seguro. A acção deste mecanismo pressupõe a condição já
assinalada: que o Supremo se mantenha fiel à sua própria jurisprudência»
(Alberto dos Reis, loc. cit., pág. 1-15, cfr. também Karl Larenz, a importância
da jurisprudência para a actividade jurídica prática in Metodologia da Ciência
do Direito, 2.ª ed., C. Gulbenkian, pág. 277). Conforme refere o Ex.º M.º Juiz
Conselheiro Simas Santos ao pronunciar-se sobre esta matéria, “tem assim o
Supremo Tribunal de Justiça como função própria e normal corrigir os erros de
interpretação e aplicação das normas jurídicas cometidos pelas instâncias,
restabelecendo o império da lei e contribuindo para a uniformização da
jurisprudência directamente (por via da jurisprudência fixada) e indirectamente,
por via das suas decisões.
Já se viu que é a circunstância de emanarem do mais alto tribunal nacional e de
dever supor-se que o STJ de futuro manterá, em casos semelhantes, a sua
jurisprudência, que dá aos acórdãos do Supremo um prestígio e valor especial. É
que, sendo o mais alto grau da hierarquia judicial e tribunal único, é de
esperar que no futuro os seus acórdãos e a jurisprudência que estabeleçam venha
a ser adoptada em casos semelhantes, o que torna natural que as instâncias se
inspirem na interpretação e aplicação dos textos legais que o STJ for fazendo.
As instâncias, ainda que não concordando com a doutrina emitida pelo Supremo,
terão tendência a aceitá-la aplicando-a, independentemente de reagir contra ela
num primeiro momento, quando a considerarem errada. Mantendo o STJ a sua
jurisprudência, os restantes tribunais acabarão por se conformar com ela. Mas
este mecanismo indirecto e lento de uniformização da jurisprudência pressupõe
que o Supremo se mantenha fiel à sua própria jurisprudência” (Simas Santos, ob.
cit.).
*
Compulsado o texto da decisão recorrida verifica-se que a mesma se limita a
enunciar uma das duas posições em debate prévio à prolação do referido Acórdão
de Uniformização de Jurisprudência.
A decisão recorrida, não seguindo a orientação determinada por este Supremo
Tribunal, limitou-se a elencar argumentos já analisados não importando nenhum
elemento “ex novo”. Igualmente é certo que não existiu qualquer alteração nos
pressupostos doutrinais que levaram à emissão do referido Acórdão de
Uniformização.
Nesta conformidade acordam os juízes que compõem a Secção Criminal em conceder
provimento ao presente recurso trazido pelo Ministério Público entendendo que se
mantêm inteiramente válidos os pressupostos constantes do acórdão uniformizador
de 19.10.00 (DR, IS-A, de 10.11.00) que estabeleceu a doutrina de que «No
domínio da vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de
1987, a declaração de contumácia constituía causa de suspensão da prescrição do
procedimento criminal», revogando-se a decisão recorrida.
Consequentemente, confirmando-se a decisão proferida em sede de primeira
instância, devem os autos prosseguir os seus termos face à improcedência da
questão prévia suscitada.»
2.Dessa decisão interpôs o arguido o presente recurso de constitucionalidade, ao
abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento
e Processo do Tribunal Constitucional (Lei do Tribunal Constitucional), nos
seguintes termos:
«Em cumprimento do disposto no art.º 75.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro,
o Recorrente esclarece que o presente recurso assenta na afirmação da
inconstitucionalidade material, formal e orgânica da norma extraída do art.º
119.º, n.º 1, do CP 1982 (“casos especialmente previstos na lei” e o “tempo em
que o procedimento criminal não puder legalmente iniciar‑se ou continuar por
falta de uma autorização legal...”), conjugada com a expressão utilizada pelo
art.º 336.º, n.º 1, do CPP 1987 (“suspensão dos ulteriores termos do processo”),
por parte do Assento n.º 10/2000, concluindo que, na vigência do CPP e do CP
originários, a declaração de contumácia constituía causa de suspensão da
prescrição, inconstitucionalidade essa por violação do disposto nos art.ºs 1.º,
2.º, 8.º, 29.º, n.ºs 1, 3 e 4, e 165.º, n.ºs 1, al. c), e 3, da Constituição da
República.
Ainda nos termos do disposto no referido art.º 75.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, declara o Recorrente que tal questão de inconstitucionalidade:
• Foi pelo Arguido suscitada, não só no recurso por si interposto do Acórdão do
Tribunal Criminal de Lisboa para o Tribunal da Relação de Lisboa;
• Como o foi igualmente nas motivações de resposta do Arguido ao recurso
interposto pelo Ministério Público do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
para o STJ.
Por fim se declara que a questão de inconstitucionalidade em apreço, com a
abrangência e os fundamentos invocados pelo Arguido ao longo dos autos, nunca
foi objecto de conhecimento por parte do Tribunal Constitucional.
O presente recurso deverá subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito
suspensivo, nos termos do disposto no art.º 78.º, n.º 3, da Lei n.º 28/82, de 15
de Novembro, porquanto esse efeito e regime de subida eram os que já se
aplicavam ao recurso anterior, no âmbito do qual foi proferida a decisão agora
recorrida.»
Admitidos os autos no Tribunal Constitucional, foram as partes notificadas para
alegar. O recorrente concluiu pela seguinte forma as suas alegações:
«A. O presente recurso tem por objecto a afirmação de inconstitucionalidade
material, formal e orgânica da norma extraída do artigo 119.º, n.º 1, do CP/82,
conjugada com o artigo 336.º, n.º 1, do CPP/87, interpretação essa feita no
Acórdão recorrido (e consagrada no Assento n.º 10/2000, de 19/10, in DR, 1.ª
Série, 10/11/2000), que concluiu que, na vigência do CPP e CP originários, a
declaração de contumácia constituía causa de suspensão da prescrição.
B. Entende o Recorrente que tal norma, com a interpretação que lhe foi dada pelo
STJ (inclusive com consagração em Assento), está ferida de
inconstitucionalidade, por violação dos artigos 1.º, 2.º, 8.º, 29.º, n.ºs 1, 3 e
4, e 165.º, n.ºs 1, al. c), e 3, da CRP.
C. Entende o Recorrente que o Acórdão recorrido e a jurisprudência fixada no
referido Assento n.º 10/2000 aplicam norma que carece de fundamento lógico
intrínseco e que viola os art.ºs 1.º, 2.º, 29.º, n.ºs 1, 3 e 4, e 165.º, n.ºs 1,
al. c), e 3, da CRP, termos em que deveria ter sido desaplicado pelo STJ o dito
Assento, e, assim, desaplicada a interpretação normativa que fazem do artigo
119.º, n.º 1, do CP/82, conjugada com o artigo 336.º, n.º 1, do CPP/87.
Assim:
D. As expressões constantes do art.º 119.º, n.º 1, do CP 1982 (“casos
especialmente previstos na lei” e “o tempo em que o procedimento criminal não
puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de uma autorização
legal...”), conjugadas com a expressão utilizada pelo 336.º, n.º 1, do CPP 1987
(“suspensão dos ulteriores termos do processo”), não permitem concluir pela
integração da declaração de contumácia do arguido como causa de suspensão do
prazo de prescrição do procedimento criminal no âmbito do CP de 1982, nem tal
integração cabe minimamente nos sentidos normativos possíveis da letra da Lei.
E. Por isso a revisão do CP operada pelo Dec.-Lei n.º 48/95, de 15 de Março,
ajustando o CP 1982 ao CPP 1987, introduziu como causa de suspensão autónoma na
alínea c) do art.º 120.º CP 1995, a par dos “casos especialmente previstos na
lei” (art.º 120.º, n.º 1) e da referência ao “tempo em que o procedimento
criminal não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização
legal” (art.º 120.º, n.º 1, al. a)), referência expressa ao “tempo em que
vigorar a declaração de contumácia”.
F. Quer a análise do Dec.-Lei n.º 48/95, quer a análise da Lei de Autorização
Legislativa n.º 35/94, de 15 de Setembro, em especial o n.º 77 do art.º 3.º,
levam a conclusão oposta à da interpretação sustentada na decisão recorrida e no
Assento n.º 10/2000, visto que o legislador é expresso no sentido de que está a
proceder a uma modificação legislativa (e não a uma clarificação do regime
vigente).
G. Quer os trabalhos preparatórios do CP 1995, cristalizados nas posições
assumidas pela Comissão Revisora, quer a Doutrina com pergaminhos na matéria,
nunca entenderam que a situação de declaração de contumácia estava abrangida no
art.º 119.º do CP de 1982.
H. Por outro lado, e no que aqui mais importa, o Acórdão recorrido – que se
firmou com base no Assento n.º 10/2000 – consagra interpretação do art.º 119.º,
n.º 1, do CP de 1982 pela qual se aplica uma norma claramente inconstitucional,
pelas seguintes razões:
I. As normas sobre prescrição do procedimento criminal não podem ser
interpretadas nem integradas em violação do princípio favor reus nem do
princípio da legalidade, consagrados intangivelmente nos art.ºs 1.º e 2.º do CP
e no art.º 29.º, n.ºs 1, 3 e 4, da CRP.
J. Ao sustentar uma interpretação do art.º 119.º, n.º 1, do CP de 1982 que
permite nele incluir a declaração de contumácia do Arguido como causa de
suspensão da prescrição, procede o STJ à criação de situação de suspensão da
prescrição que não constava expressamente, traduzindo-se em interpretação
proibida da dita norma (por recurso ao art.º 336.º, n.º 1, do CPP de 1987), o
que consubstancia alargamento da área da incriminação e diminuição dos casos de
afastamento da punição por extinção da acção penal, violando os art.ºs 1.º e
29.º, n.ºs 1, 3 e 4, da CRP.
K. A jurisprudência sustentada no Acórdão recorrido, tendo por base o Assento
n.º 10/2000, defende ademais uma interpretação orgânica e formalmente
inconstitucional dos art.ºs 119.º, n.º 1, do CP de 1982 e 336.º, n.º 1, do CPP
de 1987.
L. Isto porque o art.º 2.º da Lei n.º 43/86, de 26 de Setembro (autorização
legislativa do CPP de 1987), não concedeu qualquer autorização ao Governo para
legislar em matéria de suspensão de prescrição do procedimento criminal e, muito
menos, de alargamento das incriminações (cfr. art.º 2.º, n.º 62, da referida
Lei).
M. A ser aceite a jurisprudência sustentada no Acórdão recorrido igualmente
estaria violado o princípio da separação de poderes que impõe que em matéria de
definição de crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos, bem
como processo criminal é da exclusiva competência da Assembleia da República,
salvo autorização ao Governo – arts. 2.º e 165.º, n.º 1, al. c), da CRP.
N. Tudo razões pelas quais se encontra viciada de ilegalidade e de aplicação de
norma inconstitucional o douto Acórdão recorrido do STJ.»
Por sua vez, o representante do Ministério Público junto do Tribunal
Constitucional, contra‑alegando, concluiu:
«1 – As causas de suspensão de prescrição do procedimento criminal não foram
definidas no Código Penal de 1982 de forma taxativa e fechada, admitindo-se a
existência de outras especialmente previstas na lei.
2 – Entre estas, encontrava-se a declaração de contumácia estabelecida
inicialmente no artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e que foi
expressamente consagrada, a partir da reforma do Código Penal de 1995, no seu
artigo 120.º, n.º 1, alínea c).
3 – A existência legal de uma causa suspensiva do prazo de prescrição verificada
em data posterior à prática do facto criminoso, mas aplicado ao processo
pendente não merece censura constitucional, mesmo na dimensão da exigência da
não retroactividade “in pejus”.
4 – Atenta a natureza instrumental do recurso de constitucionalidade, não é de
conhecer a parte referente à invocada inconstitucionalidade orgânica, uma vez
que, qualquer que fosse o sentido da decisão, nenhum efeito útil teria na
decisão da questão de mérito relativa à suspensão da prescrição do procedimento
criminal, tendo em consideração que a declaração de contumácia ocorreu já na
vigência da reforma do Código Penal de 1995.
5 – Mas mesmo que assim se não entenda, ocorre que o Governo estava munido de
competente e necessária autorização parlamentar, face ao disposto no artigo 2.º,
n.º 2-59, da Lei de Autorização Legislativa n.º 43/86, de 26 de Setembro, para
poder consagrar, como o fez, na redacção originária do artigo 336.º, n.º 1, do
Código de Processo Penal, a declaração de contumácia como causa suspensiva da
prescrição do procedimento criminal.
6 – Termos em que não deverá proceder o presente recurso.»
Foi então proferido pelo Relator, em 12 de Dezembro de 2006, o seguinte
despacho:
“Notifique o recorrente para, no prazo de 10 (dez) dias, se pronunciar,
querendo, sobre a eventualidade de se não poder tomar conhecimento, total ou
parcialmente, do recurso, pelo facto de, à data em que foi declarado contumaz,
estar já em vigor a redacção dada ao artigo 120.º, n.º 1, alínea c), do Código
Penal, pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março.”
Respondeu o recorrente:
«I – INTRÓITO
1. Ao abrigo do disposto no art.º 75.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, o
Recorrente esclareceu que o presente recurso assentava na afirmação da
inconstitucionalidade material, formal e orgânica da norma extraída do art.º
119.º, n.º 1, do CP 1982 (“casos especialmente previstos na lei” e “o tempo em
que o procedimento criminal não puder legalmente iniciar-se ou continuar por
falta de uma autorização legal...»), conjugada com a expressão utilizada pelo
art.º 336.º, n.º 1, do CPP 1987 (“suspensão dos ulteriores termos do processo»),
por parte do Assento n.º 10/2000, concluindo que, na vigência do CPP e do CP
originários, a declaração de contumácia constituía causa de suspensão da
prescrição...
2. Inconstitucionalidade essa por violação do disposto nos art.ºs 1.º, 2.º, 8.º,
29.º, n.ºs 1, 3 e 4, e 165.º, n.ºs 1, al. e), e 3, da Constituição da República.
3. Mais declarou o Recorrente no seu Requerimento de interposição de Recurso que
a questão de inconstitucionalidade em apreço, com a abrangência e os fundamentos
invocados pelo Arguido ao longo dos autos, nunca foi objecto de conhecimento por
parte do Tribunal Constitucional.
4. Vem agora o Exm.º Senhor Procurador-Geral Adjunto junto do TC suscitar a
questão da eventual impossibilidade de este Tribunal conhecer do recurso, “pelo
facto de, à data em que foi declarado contumaz (o Recorrente), estar já em vigor
a redacção dada ao artigo 120.º, n.º 1, alínea c), do CP, pelo Decreto-Lei n.º
48/95, de 15 de Março”.
5. E é sobre esta questão que o Recorrente é convidado a pronunciar-se.
II – INADMISSIBILIDADE FORMAL E MATERIAL DA QUESTÃO PRÉVIA COLOCADA
6. Conjugando o disposto no art.º 70.º, n.º 1, al. b), e 71.º, n.º 1, da LOTC, o
recurso de decisões judiciais para o Tribunal Constitucional é restrito à
questão da constitucionalidade ou da ilegalidade que tiverem sido suscitadas.
7. Que o mesmo é dizer que o TC não funciona sequer como um Tribunal de Revista,
mas como um Tribunal de fiscalização da constitucionalidade, in casu, da
constitucionalidade de normas aplicadas numa decisão jurisdicional concreta.
8. Ora, no aresto do STJ que deu origem aos presentes autos, foi expressamente
aplicada a norma constante do art.º 119.º, n.º 1, do CP 1982, conjugada com a
expressão utilizada pelo art.º 336.º, n.º 1, do CPP 1987, por força do disposto
no Assento n.º 10/2000.
9. Ou seja, a norma segundo a qual na vigência do CPP e do CP originários a
declaração de contumácia constituía causa de suspensão da prescrição.
10. Expressis verbis se pode ler a pp. 14 do Acórdão do STJ o seguinte: “se
mantém inteiramente válidos os pressupostos constantes do acórdão uniformizador
de 19/10/00 (DR, IS-A, de 10.11.00) que estabeleceu a doutrina de que ‘no
domínio da vigência do CP de 1982 e do CPP de 1987, a declaração de contumácia
constituía causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal’...”.
11. Ora, a questão prévia ora suscitada pelo M.°P.° traduz-se em afirmar que se
não deve conhecer da questão de constitucionalidade objecto do recurso na medida
em que “à data em que foi declarado contumaz (o Arguido Recorrente), estar já em
vigor a redacção dada ao art.º 120.º, n.º 1, al. c), do CP, pelo Decreto-Lei n.º
48/95 de 15 de Março”.
12. I. e., a questão prévia suscitada nada tem que ver, nem com a norma aplicada
pelo STJ que se reputa de inconstitucional, nem com os termos do recurso de
constitucionalidade, cujo âmbito é definido pelas alegações e conclusões do
Recorrente.
13. Melhor explicando: aquilo que se questiona, em sede de constitucionalidade,
é da conformidade com a Constituição da República da norma aplicada pelo STJ no
caso concreto, i. e., na decisão recorrida!
14. Não é objecto deste recurso, nem pode ser, por força do disposto no art.º
70.º, n.º 1, al. b), 71.º e 79.º-C da LOTC, a correcta ou incorrecta aplicação
do Direito ao caso concreto por parte do STJ e demais instâncias inferiores,
questão essa que se tem por encerrada quando este TC é chamado a apreciar da
constitucionalidade da norma que foi efectivamente aplicada nas ditas decisões.
15. Ora, a questão prévia suscitada pelo M.°P.° manifesta uma profunda confusão,
s.d.r., sobre o que é objecto deste recurso de constitucionalidade, isto na
medida em que vem assumir – incompreensivelmente –, que a norma aplicada ao caso
vertente é a do art.º 120.º, n.º 1, al. c), do CP, por ser essa que “já se
encontrava em vigor à data da declaração de contumácia do Arguido”.
16. Por outras palavras, como poderia entender-se que o TC não deve conhecer do
objecto do recurso, por, à data da declaração de contumácia, já se encontrar em
vigor o art.º 120.º, n.º 1, al. c), do CP, na redacção dada pelo Dec.-Lei n.º
48/95, de 15 de Março, quando tal norma NÃO FOI APLICADA na decisão do STJ de
que se recorreu?...
17. E de que se recorreu devido ao facto de ter aplicado a norma do art.º 119.º
do CP de 1982, tal como delimitada e entendida no Acórdão n.º 10/2000 de
uniformização de jurisprudência do STJ.
18. Em suma, o facto de a 27/10/1995 já estar em vigor o art.º 120.º, n.º 1, al.
c), do CP na redacção dada pelo Dec.-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, é questão
totalmente irrelevante para este recurso de constitucionalidade, dado que tal
norma e solução jurídica não foram as aplicadas pelas instâncias, nem constitui,
como tal, objecto do recurso tal como delimitado pelo Recorrente.
19. Dir-se-á mais: o poder jurisdicional do TC nesta lide não abrange sequer
qualquer discussão sobre a aplicação ao caso vertente do art.º 120.º, n.º 1, al.
c), do CP na redacção dada pelo Dec.-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, como parece
sustentar o M.°P.° e estar subjacente à dúvida a que se alude no despacho de
12/12/06 do Sr. Conselheiro Relator, posto que tal norma NÃO FOI APLICADA pelo
STJ, nem foi – nem poderia ser – objecto de recurso de constitucionalidade.
20. Como é unânime entendimento deste TC, que reiteradamente o afirma:
a. Ac. n.º 178/2000 – Como a lei exige (cfr. a citada al. b) do n.º 1 do artigo
70.º e o artigo 79.º-C da Lei n.º 28/82) e o Tribunal Constitucional tem
repetidamente afirmado, o recurso de fiscalização concreta da
constitucionalidade interposto ao abrigo da citada alínea b) do n.º 1 do artigo
70.º destina-se a conhecer da alegada inconstitucionalidade de uma norma
efectivamente aplicada pela decisão recorrida, como expressamente ali se refere
(Cabe recurso para o Tribunal Constitucional em secção, das decisões dos
tribunais: b) Que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada
durante o processo.”)”.
b. Ac. n.º 313/2004 – «Na verdade, o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do
artigo 70.º da LTC apresenta como pressuposto, entre outros, o da efectiva
aplicação na decisão recorrida, como ratio decidendi, da norma cuja
inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo”.
21. Mais: se o TC viesse a recusar o conhecimento do presente recurso com o
fundamento invocado na questão prévia a que se responde, então deixaria no mundo
do direito uma situação perfeitamente incongruente e incompreensível, posto que
todas as instâncias competentes haviam decidido a questão material subjacente
aplicando a norma do art.º 119.º do CP de 1982, no sentido constante do Assento
n.º 10/2000, e o TC viria a não tomar conhecimento da questão de
constitucionalidade com o fundamento de que a norma aplicável ao caso era o
art.º 120.º, n.º 1, al. c), do CP na redacção do Dec.-Lei n.º 48/95.
22. Subsistiriam, assim, no mundo do direito duas decisões opostas, sendo que
uma delas, a proferida pelo TC, o teria sido por um Tribunal que não tem poder
jurisdicional de revista, conforme resulta do disposto nos art.ºs 70.º, n.º 1,
al. b), 71.º, 79.º-C e 80.º da LOTC.
23. Tudo razões pelas quais o Tribunal Constitucional pode e deve tomar
conhecimento total do recurso de constitucionalidade interposto.
24. Sem prejuízo de todo o exposto, caberá ainda analisar do mal fundado,
substantivamente, da questão prévia suscitada pelo M.°P.° nas suas
contra‑alegações.
III – PRESSUPOSTOS DA DECISÃO DA QUESTÃO PRÉVIA
25. Antes de mais, recoloque-se a questão fáctica nos seus devidos termos, com
base em dados assentes nos autos:
a. Os factos imputados nos autos criminais que deram origem ao presente recurso
remontam a meados de 1991;
b. Os autos iniciaram-se a 13 de Março de 1992;
c. O Arguido nunca foi notificado em sede de inquérito para prestar declarações
ou ser interrogado, seja perante o M.° P.° seja perante um J.I.C.;
d. A acusação foi proferida em Outubro de 1994;
e. A 27 de Outubro de 1995, o Arguido ora Recorrente foi declarado contumaz;
f. A acusação foi notificada pessoalmente ao Arguido em 11 de Outubro de 2005.
26. Ora, no processo criminal a Lei Penal aplicável é, segundo o impõem os
art.ºs 2.º do CP e 29.º da CRP, a lei penal mais favorável (seja a do momento da
prática dos factos, seja a do momento em que cumpre decidir determinada
questão), enquanto a Lei Processual Penal a aplicar será, por força do disposto
no art.º 5.º do CPP, e ressalvado o caso das chamadas normas processuais penais
de conteúdo material ou substancial – que seguem as regras do direito
substantivo –, a que estava em vigor no momento da prática do acto processual em
questão – tempos regit actum.
27. Assim sendo, caberá atentar no conteúdo do recurso interposto pelo Arguido
para este Egrégio Tribunal Constitucional, e, uma vez delimitado o objecto do
recurso, ver se faz algum sentido discutir a questão prévia suscitada pelo
Ministério Público, o que, desde já se antecipe, merece resposta negativa.
28. Ora, antes de tudo o mais, recorde-se que o que se peticiona ao Tribunal
Constitucional é que declare a inconstitucionalidade, material, formal e
orgânica da norma extraída do art.º 119.º, n.º 1, do CP 1982, conjugada com a
expressão utilizada pelo art.º 336.º, n.º 1, do CPP 1987, por parte do Assento
n.º 10/2000, concluindo que, na vigência do CPP e do CP originários, a
declaração de contumácia constituía causa de suspensão da prescrição.
29. Tudo porque, se tal inconstitucionalidade for declarada, então caberá
concluir que a declaração de contumácia não constituía causa de suspensão da
prescrição na vigência do CPP e do CP originários, ao invés do que resulta da
norma aplicada pelo STJ, diplomas originários esses aplicáveis ao caso vertente
no que concerne à contagem do prazo prescricional – conforme o disse a decisão
recorrida.
30. Assim se demonstra, logo in limine, que a questão prévia colocada pelo
Digníssimo Magistrado do Ministério Público carece totalmente, s.d.r., de
sentido, porquanto o facto de, à data da declaração de contumácia do ora
Recorrente, já estar em vigor o Dec.-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, em nada
altera a conclusão que previamente tem que ser tirada quanto às Leis penal e
processual penal aplicáveis ao caso vertente.
Vejamos.
31. A questão jurídico-material subjacente, cujo conhecimento foi pedido ao STJ
(e que, conhecendo-a mal, s.d.r., aplicou norma que se reputa de
inconstitucional, o que caberá ao TC decidir), é a de saber se, à data em que o
Arguido foi notificado da Acusação e foi constituído como Arguido – em
11/10/2005 –, o procedimento estava ou não prescrito.
32. Ora, para saber se determinado procedimento penal está prescrito cabe:
a. Atentar na data da prática dos factos;
b. Fixar a lei substantiva e processual penal em vigor a essa data e
posteriormente;
c. Contabilizar o decurso dos prazos legalmente previstos.
33. Conforme atrás referido, e dado por assente nos autos, os factos imputados
ao Arguido remontam a meados de 1991, tendo-se os autos iniciado em 13 de Março
de 1992.
34. A essa data, encontravam-se em vigor:
a. O art.º 314.º, al. c), do CP, na redacção originária do DL n.º 400/82, de 23
de Setembro, que punia as burlas, em abstracto, com uma moldura penal de 1 a 10
anos de pena de prisão;
b. Os art.ºs 119.º e 120.º do CP, na redacção originária do DL n.º 400/82, de 23
de Setembro, que estatuíam sobre a suspensão e a interrupção da prescrição,
nenhum deles fazendo qualquer alusão à eficácia suspensiva e/ou interruptiva da
prescrição da declaração de contumácia;
35. Apenas em 1 de Outubro de 1995 entrou em vigor o Dec.-Lei n.º 48/95, de 15
de Março, pelo qual:
a. Foram alterados os art.ºs 119.º e 120.º do CP, que passaram a ser os art.ºs
120.º e 121.º do CP, deles passando a constar, respectivamente:
i. Que «a prescrição do procedimento criminal suspende-se (...) durante o tempo
em que: (...) c) vigorar a declaração de contumácia”; e,
ii. que “a prescrição do procedimento criminal interrompe-se: (...) c) com a
declaração de contumácia”.
b. Foi alterado o tipo penal pelo qual o Arguido vinha acusado, passando o mesmo
a constar do artigo 218.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do CP, com uma moldura penal em
abstracto aplicável, para 2 a 8 anos de pena de prisão, o que ainda hoje se
mantém.
36. Pergunte-se: qual a lei aplicável, in casu, no que concerne à questão da
prescrição?
37. Ora, a matéria da prescrição do procedimento criminal, por processual que
seja, é unanimemente considerada como integrando o núcleo das normas processuais
penais de conteúdo material, i.e., normas processuais penais cuja relevância ou
influência na responsabilidade criminal do arguido impõe que sigam as regras
estatuídas para as normas incriminadoras.
38. Por outras palavras, dada a eficácia extintiva da responsabilidade criminal,
não se pode, no que à prescrição respeita (normas incriminadoras de sentido
negativo, ou normas que circunscrevem negativamente os tipos), deixar de aplicar
a regra de aplicação da lei no tempo constante do art.º 2.º CP, e, assim, a
norma segundo a qual quando as disposições penais vigentes no momento da prática
do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é
sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente,
salvo se este já tiver sido condenado por sentença transitada em julgado.
39. E assim o decidiu o STJ no aresto recorrido, bem como todas as instâncias
inferiores, i.e., nunca nenhuma instância decidiu que seria aplicável ao caso
vertente o art.º 120.º, n.º 1, al. c), na redacção do Dec.-Lei n.º 48/95, de 15
de Março, o que constitui premissa inafastável do presente recurso de
constitucionalidade.
40. Assim que seja totalmente irrelevante a questão prévia suscitada pelo M.°P.°
junto deste TC, posto que o facto de à data da declaração de contumácia já
vigorar a redacção dada ao art.º 120.º, n.º 1, al. c), do CP pelo Decreto-Lei
n.º 48/95, de 15 de Março, em nada briga com o facto de à prescrição dos
presentes autos ter de se aplicar a Lei em vigor à data da prática dos factos,
por força do disposto no art.º 2.º, n.º 4, do CP, tal como o fizeram o STJ e as
instâncias, ainda que aplicando norma inconstitucional.
41. Mas não só! Que o facto de o Decreto-Lei n.º 48/95 ter vindo a dar nova
redacção ao art.º 120.º, n.º 1, al. c), do CP, apenas pode servir, precisamente,
para demonstração da procedência da alegação de inconstitucionalidade que se
discute nesta sede, como aliás se encontra amplamente demonstrado nas alegações
e conclusões do Recurso junto deste TC, termos em que aqui por economia se não
reproduzem.
42. Daí que seja falacioso no caso vertente afirmar que “a norma do art.º 336.º,
n.º 1, do CPP não se aplica retroactivamente – aplica-se para o futuro a
processos crimes ainda pendentes, embora resultantes de crimes cometidos no
passado.”...
43. Tal entendimento pressuporia uma desconsideração do carácter
jurídico‑material das normas processuais penais que regulam a prescrição – que
como tal seguem as regras de aplicação no tempo constantes do art.º 2.º, n.º 4,
do CP.
44. Por outro lado, na perspectiva da Segurança Jurídica (do Arguido ora
Recorrente e de toda a Comunidade que se norteia pela lei penal e processual
penal cm vigor a cada momento), e mesmo da Justiça, cabe não esquecer que atenta
contra a confiança dos Cidadãos o facto de se lhes poder opor a não prescrição
do procedimento criminal com base em situações não expressas (nem contidas) na
Lei, assim se alargando a área da incriminação, e, pari passu, da punibilidade.
45. Um último passo cabe censurar à opinio iuris expendida pelo M.°P.° a este
respeito, posto que resulta de uma manifesta confusão acerca das questões em
discussão:
a. A invocada inconstitucionalidade orgânica, sendo decretada, afastaria a não
prescrição do procedimento;
b. Mas não é a declaração da inconstitucionalidade que afasta a aplicação da
citada alínea c) do n.º 1 do art.º 120.º do CP na redacção do Dec.-Lei n.º
48/95!
46. Expliquemo-nos: o que afasta a aplicação do art.º 120.º, n.º 1, al. c), do
CP na redacção do Dec.-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, é o disposto no art.º 2.º,
n.º 4, que impõe a aplicação do regime originário constante do art.º 119.º do
CP.
47. E o regime do art.º 119.º do CP no sentido conforme à Constituição da
República, que o mesmo é dizer, contrário ao da norma aplicada no Acórdão do STJ
de que promana o presente recurso de constitucionalidade.
48. Em suma, são várias as confusões, s.d.r., de que resulta a questão prévia
suscitada nas contra-alegações oferecidas aos autos pelo M.°P.°, pelo que deverá
a mesma ser desatendida.»
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos
A) Questão prévia
3.Sustenta o Ministério Público que o Tribunal Constitucional não poderá
conhecer da alegada inconstitucionalidade orgânica, atenta a natureza
instrumental do recurso de constitucionalidade, pois, “qualquer que fosse o
sentido da decisão, nenhum efeito útil teria na decisão da questão de mérito
relativa à suspensão da prescrição do procedimento criminal, tendo em
consideração que a declaração de contumácia ocorreu já na vigência da reforma do
Código Penal de 1995”. Bem vistas as coisas, o facto de a declaração de
contumácia ter ocorrido (em 27 de Outubro de 1995) numa data em que estava já em
vigor a redacção dada ao Código Penal em 1995, que entrou em vigor em 1 de
Outubro de 1995 (artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março), não
afectaria apenas a alegada inconstitucionalidade orgânica da norma impugnada.
Com efeito, em 1995 passou a prever-se, no artigo 120.º, n.º 1, alínea c), do
Código Penal, que a prescrição do procedimento criminal se suspende durante o
tempo em que “[v]igorar a declaração de contumácia”. Tal clara previsão legal
contenderia igualmente com a alegada violação do princípio da legalidade. Isto,
evidentemente, desde que a decisão do tribunal recorrido se tenha baseado
justamente (pelo menos também), de modo expresso ou implícito, na redacção dada
ao Código Penal em 1995, e não tenha antes aplicado, exclusivamente (bem ou mal)
as normas impugnadas do Código Penal, na sua redacção originária.
Ora, a análise do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça recorrido impõe a
conclusão de que a questão prévia suscitada não pode proceder. Com efeito, esta
decisão do Supremo Tribunal de Justiça fundamentou-se exclusivamente nos
“pressupostos constantes do acórdão uniformizador de 19.10.00 (DR, IS-A, de
10.11.00) que estabeleceu a doutrina de que «No domínio da vigência do Código
Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de 1987, a declaração de contumácia
constituía causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal»”.
Independentemente da questão de saber se deveria ou não ter sido aplicada a
norma do artigo 120.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal, na redacção decorrente
da reforma de 1995 (como sustenta o Ministério Público), tendo em conta a data
da declaração de contumácia, o facto é que, dedicando vários parágrafos à
análise da relação entre a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça e a das
instâncias, no acórdão recorrido não se encontra, porém, qualquer traço de
invocação do referido artigo 120.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal, na
redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 48/95. O tribunal recorrido baseou-se, antes,
exclusivamente na redacção originária do artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal de
1982, e no artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal de 1976. Ora, o
Tribunal Constitucional apenas pode considerar objecto do presente recurso a
apreciação das questões de constitucionalidade das normas que foram aplicadas
pelo tribunal recorrido como rationes decidendi (e relativamente a cuja
aplicação o poder jurisdicional deste está já esgotado). E essas são apenas as
normas dos artigos 119.º, n.º 1, e 336º, n.º 1, respectivamente da versão
originária do Código Penal e do Código de Processo Penal de 1987 (cf., aliás,
uma situação semelhante, embora tratada para efeitos dos pressupostos do recurso
previsto no artigo 70.º, n.º 1, alínea g), da citada Lei do Tribunal
Constitucional, no Acórdão n.º 371/2005, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt).
Esta conclusão, baseada apenas na análise das normas aplicadas, bem ou mal, na
decisão recorrida, é, aliás, independente da resposta à questão de saber qual
seria exactamente o regime que o tribunal recorrido deveria ter aplicado
(designadamente de saber se tem razão o recorrente, quando, na resposta à
questão prévia suscitada pelo Ministério Público, veio dizer que “o facto de à
data da declaração de contumácia já vigorar a redacção dada ao art.º 120.º, n.º
1, al. c), do CP pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, em nada briga com o
facto de à prescrição dos presentes autos ter de se aplicar a Lei em vigor à
data da prática dos factos, por força do disposto no art.º 2.º, n.º 4, do CP,
tal como o fizeram o STJ e as instâncias”).
Não procede, pois, a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, e
tomar-se-á conhecimento do recurso, para apreciação da conformidade com a
Constituição da norma resultante das disposições conjugadas do artigo 119.º, n.º
1, alínea a), do Código Penal, e do artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo
Penal, ambos na redacção originária, na interpretação segundo a qual a
prescrição do procedimento criminal se suspende com a declaração de contumácia.
B) Questões de constitucionalidade
4.Segundo o recorrente, a norma referida viola o princípio da legalidade,
consagrado no artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição da República. Trata-se,
aqui, de questão de que (conforme jurisprudência maioritariamente firmada deste
Tribunal, e que se não vê razão para alterar) compete ao Tribunal Constitucional
conhecer em sede de recurso de constitucionalidade (v. já os Acórdãos n.ºs
205/99, 285/99 e 122/2000, publicados no Diário da República, II série,
respectivamente de 5 de Novembro, 21 de Outubro de 1999 e 6 de Junho de 2000).
Que se trata de uma questão que cabe dentro dos poderes de cognição deste
Tribunal, quando vier enunciada uma dimensão normativa, aplicada como critério
de decisão, que se pretende confrontar com aqueles princípios – e não quando
estiver em causa apenas a qualificação dos factos ou a sua subsunção sob uma ou
mais normas –, é o que resulta já do que se disse também no Acórdão n.º 412/2003
(disponível em www.tribunalconstitucional.pt), embora a propósito de outra
norma: a do “artigo 120.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal de 1982 (na
redacção originária), na interpretação segundo a qual a declaração de contumácia
pode ser equiparada, como causa de interrupção da prescrição do procedimento
criminal, à marcação de dia para julgamento em processo de ausentes, aí
prevista”. Remete-se para tais considerações, em que se recordou que,
“embora com alguns votos dissidentes, tem-se entendido que, neste tipo de
situações, se mostra delineada uma questão de inconstitucionalidade normativa,
cognoscível em recurso de constitucionalidade, já que o processo interpretativo,
extensivo ou de cariz analógico, seguido pelos tribunais decorre, não de uma
pura operação subsuntiva no tipo, mas da adopção de um critério normativo,
dotado de elevada abstracção e susceptível de ser invocado e aplicado a
propósito de uma pluralidade de situações concretas.
Este entendimento foi reiterado nos Acórdãos n.ºs 285/99 (Diário da República,
II Série, n.º 246, de 21 de Outubro de 1999, pág. 15 772; Boletim do Ministério
da Justiça, n.º 487, pág. 72; Acórdãos do Tribunal Constitucional, 43.º vol.,
pág. 477; e Revista do Ministério Público, n.º 84, Outubro/Dezembro de 2000,
pág. 158, com anotação de Eduardo Maia Costa), 122/00 (Diário da República, II
Série, n.º 131, de 6 de Junho de 2000, pág. 9708; Boletim do Ministério da
Justiça, n.º 494, pág. 57; Acórdãos do Tribunal Constitucional, 46.º vol., pág.
449; e Revista do Ministério Público, n.º 84, Outubro/Dezembro de 2000, pág.
168, com anotação de Eduardo Maia Costa), 317/00, 494/00, 557/00 e 585/00, e é
de manter no presente caso.”
Tal como então, “a adopção de um critério normativo, dotado de elevada
abstracção e susceptível de ser invocado e aplicado a propósito de uma
pluralidade de situações concretas, foi explicitamente invocada (...) na decisão
recorrida”. Nesta remeteu-se mesmo para a sua fixação, com carácter de
generalidade, pelo “Assento” n.º 10/2000 (publicado no Diário da República, I
Série‑A, n.º 260, de 10 de Novembro de 2000, pág. 6319), nos termos da qual
“[n]o domínio da vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal
de 1987, a declaração de contumácia constituía causa de suspensão da prescrição
do procedimento criminal”. O que está em causa é a apreciação deste critério,
resultante, segundo o referido “Assento” e para a decisão recorrida, do artigo
119.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, e do artigo 336.º, n.º 1, do Código de
Processo Penal, nas suas redacções originárias.
Também no presente caso, nesta perspectiva, nada obsta, pois, ao conhecimento do
objecto do recurso.
5.Há que reconhecer ainda que assiste razão ao recorrente quando afirma que “a
questão de inconstitucionalidade em apreço, com a abrangência e os fundamentos
invocados pelo Arguido ao longo dos autos, nunca foi objecto de conhecimento por
parte do Tribunal Constitucional”.
Com efeito, no Acórdão n.º 449/2002 (disponível no sítio da Internet
www.tribunalconstitucional.pt), invocado pelo Ministério Público nas suas
contra‑alegações e referido igualmente na decisão recorrida, o Tribunal
Constitucional não julgou inconstitucional a norma do artigo 119.°, n.º 1, do
Código Penal de 1982, quando interpretada no sentido de abranger, como causa de
suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal, a declaração de
contumácia. Todavia, esse aresto, tirado igualmente nesta 2.ª Secção do Tribunal
Constitucional, não só se pronunciou apenas sobre a constitucionalidade de um
certo entendimento do artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal de 1982, na parte em
que se remetia para outros “casos especialmente previstos na lei” de suspensão
da prescrição do procedimento criminal, como (na sequência da delimitação da
questão normativa a apreciar então efectuada pelo próprio Ministério Público) se
preocupou em ressalvar expressamente (em prevenir o tratamento como “precedente”
para) qualquer juízo sobre a constitucionalidade de um entendimento do artigo
336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal no sentido de neste se prever um
desses casos de suspensão da prescrição. Disse-se, na verdade, na fundamentação
do Acórdão n.º 449/2002:
«(...)
8. O princípio da tipicidade exprime-se, em direito penal, na exigência de
normas prévias, escritas e precisas. As normas incriminadoras – e, mais
amplamente, as normas penais positivas, isto é, as normas que geram ou agravam a
responsabilidade – só podem cumprir a sua finalidade preventiva geral e
satisfazer o desígnio da segurança jurídica que enforma o princípio da
legalidade e o próprio Estado de direito democrático se houverem entrado em
vigor antes da prática das condutas criminosas e forem efectivamente
cognoscíveis pelos destinatários.
Na Constituição, estes requisitos traduzem-se nas exigências de lei prévia e
expressa (artigo 29.º, n.ºs 1, 3 e 4), que constituem a essência do princípio da
legalidade penal, e ainda, no domínio da determinação das fontes normativas, na
atribuição de uma reserva relativa de competência legislativa à Assembleia da
República (artigo 165.º, n.º 1).
9. Ao invocar a violação da exigência constitucional de tipicidade, o recorrente
pretende que a declaração de contumácia se não encontrava expressamente prevista
como causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal
(pressupondo que tal é exigível, uma vez que a não suspensão de tal prazo
implica a efectivação da responsabilidade penal).
O recorrente identifica como norma inconstitucional o artigo 119.° (n.º 1) do
Código Penal de 1982, na medida em que a referência a qualquer caso
“especialmente previsto na lei” abranja uma situação futura. A verdade, porém, é
que o princípio da legalidade – e, em concreto, a exigência de tipicidade – não
requer que todas as causas de suspensão do prazo de prescrição do procedimento
criminal estejam previstas na mesma norma legal. Apenas pode postular que a
norma que preveja cada uma (ou várias) daquelas causas seja suficientemente
precisa e seja emitida pela Assembleia da República ou pelo Governo, no uso da
indispensável autorização legislativa [artigo 198.°, n.º 1, alínea b), da
Constituição].
Mas nada obsta a que uma norma – no caso, o artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal
de 1982 – remeta para outras normas a consagração, em concreto, de causas de
suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal.
Esta conclusão não é invalidada pela circunstância de a norma que consagra a
causa de suspensão do prazo prescricional – o artigo 336.°, n.º 1, do Código de
Processo Penal de 1987 – ser posterior. Na verdade, a cláusula “geral” ou de
“remissão” dirige-se a todas as normas que vigoravam à data da sua entrada em
vigor ou hajam entrado em vigor posteriormente (mas, claro está, na sua
vigência). Esta técnica legislativa em nada contraria o princípio da legalidade,
bastando ter em conta, para o evidenciar, que uma enumeração taxativa (do artigo
119.º, n.º 2, do Código Penal de 1982) poderia ser livremente revogada por uma
norma de idêntico valor hierárquico (artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo
Penal de 1987), que consagrasse uma nova causa de suspensão do prazo de
prescrição do procedimento criminal.
(...)
12. Por fim, seria ainda possível questionar se a determinação da “suspensão dos
termos ulteriores do processo”, estatuída pelo artigo 336.°, n.º 1, do Código de
Processo Penal (na sua versão originária, correspondente ao artigo 335.°, n.º 3,
na redacção dada pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto), constitui disposição
bastante para se concluir pela presença de uma causa de suspensão do prazo
prescricional “especialmente previsto na lei”. Poderia pôr‑se em causa, de novo,
a satisfação dos ditames da tipicidade, na medida em que se concluísse que a
expressão “termos ulteriores do processo” é ambígua e não obedece ao desígnio de
precisão decorrente do princípio da legalidade.
Todavia, como sustenta nas suas alegações junto deste Tribunal o Ministério
Público, tal questão normativa jamais foi suscitada pelo recorrente. Este, com
efeito, apenas arguiu a inconstitucionalidade do artigo 119.º, n.º 1, do Código
Penal de 1982, ainda que numa certa interpretação. Nunca chamou à colação o
artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal de 1987 ou invocou a
inconstitucionalidade dessa norma. Por isso, o Tribunal Constitucional não pode
conhecer da referida questão.»
(itálico aditado)
Não procede, pois, a invocação do Acórdão n.º 449/2002 feita pelo Ministério
Público, e que se encontra também na decisão recorrida, para o juízo sobre a
questão de constitucionalidade que se depara ao Tribunal Constitucional no
presente recurso, à a norma extraída das disposições conjugadas do artigo 119.º,
n.º 1, alínea a), do Código Penal, e do artigo 336.º, n.º 1, do Código de
Processo Penal, ambos na redacção originária, na interpretação segundo a qual a
prescrição do procedimento criminal se suspende com a declaração de contumácia.
Antes o Tribunal Constitucional não se pronunciou ainda sobre esta questão de
constitucionalidade, de que importa tratar.
6.Recordem-se, antes de mais, os dados da “história” legislativa e
jurisprudencial do problema a apreciar.
O Código Penal, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, na sua
redacção originária, dispunha no seu artigo 119.º, n.º 1:
Artigo 119.º
(Suspensão da prescrição)
1. A prescrição do procedimento criminal suspende‑se, para além dos casos
especialmente previstos na lei, durante o tempo em que:
a) O procedimento criminal não possa legalmente iniciar‑se ou não possa
continuar por falta de uma autorização legal ou de uma sentença prévia a
proferir por tribunal não penal, ou por efeito da devolução de uma questão
prejudicial para juízo não penal;
b) O procedimento criminal esteja pendente, a partir da notificação do despacho
de pronúncia ou equivalente, salvo no caso de processo de ausentes;
c) O delinquente cumpra no estrangeiro uma pena ou uma medida de segurança
privativa da liberdade.
2. (...)
3. (...)
Esta estatuição estava em consonância com o Código de Processo Penal de 1929 e
suas sucessivas alterações vigentes à data da aprovação do Código Penal de 1982.
Porém, a estrutura processual penal foi profundamente alterada pelo Código de
Processo Penal de 1987 – designadamente com a abolição do julgamento em processo
de ausentes, substituído pelo instituto da contumácia – sem que tivessem sido
introduzidas adaptações nas previsões do Código Penal de 1982. Com efeito, só
com o Decreto‑Lei n.º 48/95, de 15 de Março, é que essa adaptação legal veio a
ser feita através da nova redacção dada ao correspondente artigo 120.º do Código
Penal, que passou a ter o seguinte teor:
Artigo 120.º
(Suspensão da prescrição)
1. A prescrição do procedimento criminal suspende‑se, para além dos casos
especialmente previstos na lei, durante o tempo em que:
a) O procedimento criminal não puder legalmente iniciar‑se ou não possa
continuar por falta de autorização legal ou de sentença a proferir por tribunal
não penal, ou por efeito da devolução de uma questão prejudicial a juízo não
penal;
b) O procedimento criminal estiver pendente a partir da notificação da acusação
ou, não tendo esta sido deduzida, a partir da notificação da decisão instrutória
que pronunciar o arguido ou do requerimento para a audiência em processo
sumaríssimo;
c) Vigorar a declaração de contumácia; ou
d) O delinquente cumprir no estrangeiro pena ou medida de segurança privativa da
liberdade.
2. (...)
3. (...)
Relativamente aos processos – como o presente – nos quais esta alteração
legislativa não foi aplicada, suscitou‑se a questão de saber se se poderia
atribuir eficácia suspensiva da prescrição do procedimento criminal à declaração
de contumácia (tal como o problema se pusera também para actos processuais
previstos no Código de Processo Penal de 1987 que poderiam ser tidos como
“equivalentes” aos actos processuais referidos na redacção originária do artigo
119.º), ou se tal interpretação violaria o princípio da legalidade penal. As
divergências jurisprudenciais a este propósito suscitadas conduziram à prolação,
pelo Supremo Tribunal de Justiça, de acórdão de fixação de jurisprudência (o
citado “Assento” n.º 10/2000, de 19 de Outubro de 2000), pronunciando-se no
sentido de que mesmo no vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo
Penal de 1987, “a declaração de contumácia constituía causa de suspensão da
prescrição do procedimento criminal”. A atribuição à declaração de contumácia,
introduzida apenas pelo Código de Processo Penal de 1987, da eficácia
interruptiva da prescrição do procedimento criminal resultaria da aplicação da
norma do artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal de 1987 (em conjugação
com a norma do artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal de 1982), que dispunha, na
sua redacção originária, como se segue:
Artigo 336.º
(Declaração de contumácia. Caducidade)
1. A declaração de contumácia é da competência do presidente e implica a
suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou à detenção do
arguido, sem prejuízo da realização de actos urgentes nos termos do artigo
320.º.
2. (...)
3. (...)
Como está em causa o confronto com o princípio da legalidade da interpretação
normativa que foi adoptada e tratada no citado acórdão de fixação de
jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, há que recordar a fundamentação
deste aresto. Pode ler‑se nesse acórdão de fixação de jurisprudência:
«(...)
Para fundamentar o seu ponto de vista, escreveu-se no acórdão recorrido, a certo
passo:
«É que o referido n.º 1 do artigo 119.º do Código Penal de 1982, versão
original, tem a seguinte redacção:
‘A prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos
especialmente previstos na lei, durante o tempo em que: a) o procedimento
criminal não possa legalmente iniciar-se ou não possa continuar por falta de uma
autorização legal [...]’
Ora, a declaração de contumácia constitui um verdadeiro impedimento legal, que
obsta ao prosseguimento do processo (e, portanto, do procedimento criminal) até
à apresentação ou à detenção do arguido (artigo 336.º, n.ºs 1 e 3, do Código de
Processo Penal de 1987). Tal como, por exemplo, há um impedimento legal de
julgar o Presidente da República antes de findo o mandato por crimes estranhos
ao exercício das suas funções (artigo 133.º, n.º 4, da Constituição), há um
impedimento legal de julgar um arguido a que não foi possível notificar
pessoalmente o despacho que designa dia para julgamento. No primeiro caso há uma
falta de autorização legal em virtude das funções da pessoa, no segundo caso há
uma falta de autorização legal em virtude da ausência da pessoa. Sem a
declaração de contumácia, portanto, o procedimento criminal não pode continuar
por falta de uma autorização legal, falta essa que resulta da ausência do
arguido no processo e que caduca apenas no momento em que este se apresentar ou
for detido.»
Por sua vez, o acórdão fundamento baseia-se nas seguintes razões para justificar
o seu ponto de vista:
«Cremos, porém, que não tem razão o digno recorrente. É, sem dúvida, verdadeira
a primeira premissa em que assenta o seu raciocínio: o artigo 119.º [do Código
Penal de 1982] não contém um numerus clausus de causas de suspensão da
prescrição. Simplesmente, respeitando tal norma à ‘suspensão da prescrição’, a
remissão feita no n.º 1 para os ‘casos especialmente previstos na lei’ só pode
referir-se aos casos em que determinado preceito legal atribua expressamente a
determinado facto eficácia suspensiva da prescrição. Assim, só poderia
aceitar-se que a remissão é para os casos de suspensão de processo se:
a) As expressões ‘suspensão do processo’ e ‘suspensão da prescrição’ fossem
sinónimos, o que não é verdade – casos há de suspensão da prescrição que se não
ligam a qualquer paragem/suspensão do processo [v. o caso paradigmático da
alínea b) do n.º 1 do artigo 119.º]; ou
b) Houvesse uma indicação do legislador ou se tivesse ao menos de concluir, face
aos princípios gerais, no sentido de que toda e qualquer suspensão do processo
implica necessariamente a suspensão da prescrição.
Ora, se é certo que o instituto da suspensão da prescrição, para além do mais,
‘radica na ideia segundo a qual a produção de determinados eventos, que excluem
a possibilidade de o procedimento se iniciar ou a continuar, deve impedir o
decurso do prazo da prescrição’ (Figueiredo Dias, Direito Penal Português/As
consequências jurídicas do crime, p. 711), já parece não poder afirmar-se,
peremptoriamente, que qualquer suspensão da instância deve originar a suspensão
da prescrição pelo correspondente tempo: é, do ponto de vista teórico,
perfeitamente admissível que algumas causas de suspensão do processo não tenham
eficácia suspensiva da prescrição. E, assim, cabe ao legislador optar por erigir
em causa de suspensão da prescrição toda e qualquer suspensão do processo ou
escolher casuisticamente quais os casos de suspensão do processo que devem
relevar para esse efeito. E a verdade é que não encontramos no Código Penal de
1982 qualquer indício de que o legislador fez a primeira opção. O argumento
histórico leva-nos até a concluir que essa opção foi deliberadamente rejeitada.»
Posto isto, vejamos quais as normas jurídicas em causa.
Dispõe o artigo 119.º do Código Penal de 1982, aprovado pelo Decreto-Lei n.º
400/82, de 23 de Setembro, no seu n.º 1, o seguinte:
«A prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos
especialmente previstos na lei, durante o tempo em que:
a) O procedimento criminal não possa legalmente iniciar-se ou não possa
continuar por falta de uma autorização legal ou de uma sentença prévia a
proferir por tribunal não penal, ou por efeito da devolução de uma questão
prejudicial para o juízo não penal;
b) O procedimento criminal esteja pendente, a partir da notificação do despacho
de pronúncia ou equivalente, salvo no caso de processo de ausentes;
c) O delinquente cumpra no estrangeiro uma pena ou uma medida de segurança
privativa da liberdade.»
Este artigo correspondente ao artigo 110.º do projecto do Código Penal, parte
geral, segundo o qual, «[a] prescrição suspende-se durante o tempo em que:
1.º O procedimento criminal não pôde iniciar-se ou continuar por falta de uma
autorização legal ou de uma sentença prévia a proferir por tribunal não penal,
por efeito da devolução de uma questão prejudicial para um juízo não penal, bem
como em todos os casos em que a suspensão do processo penal é imposta por uma
disposição especial da lei;
2.º O processo penal se desenvolve, a partir da notificação do despacho de
pronúncia e até à sentença final e seu trânsito em julgado, salvo no caso do
processo de ausentes;
3.º O delinquente cumpre uma pena no estrangeiro.» (Boletim do Ministério da
Justiça, n.º 127, p. 127.)
Por sua vez, dispõe o artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal aprovado
pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro:
«A declaração de contumácia é da competência do presidente e implica a suspensão
dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou à detenção do arguido,
sem prejuízo da realização de actos urgentes nos termos do artigo 320.º»
E acrescenta o n.º 3:
«A declaração de contumácia caduca logo que o arguido se apresentar ou for
detido, sem prejuízo do disposto no número anterior.»
Como se sabe, o instituto da suspensão da prescrição foi uma novidade
introduzida pelo artigo 119.º do Código Penal de 1982 no direito penal português
- v. Figueiredo Dias, § 1150, p. 711, e Direito Penal Português, parte geral,
«As consequências jurídicas do crime».
Por sua vez, o instituto da contumácia aparece pela primeira vez na lei
processual penal, em substituição do processo de ausentes, no Código de Processo
Penal de 1987 e com uma regulamentação totalmente distinta da apresentada por
este processo (v. os artigos 335.º e seguintes do Código de Processo Penal de
1987 e os artigos 562.º e seguintes do Código de Processo Penal de 1929).
Ora, toda a divergência a que os autos se referem resulta do uso da expressão
«implica a suspensão dos termos ulteriores do processo» e a ausência de
alteração no artigo 119.º do Código Penal de 1982 em consequência da introdução
do instituto de contumácia.
Como diz Figueiredo Dias, na obra citada, a p. 712, § 1151, «[a]ssim, também
aqui aquela alínea [alínea b) do artigo 119.º] deveria estatuir que é causa de
suspensão da prescrição a pendência do procedimento [...]; bem como, em vez da
referência ultrapassada ao processo de ausentes, deveria a prescrição ficar
suspensa enquanto vigorar a declaração de contumácia».
No seguimento deste ponto de vista, aquando da revisão do Código Penal de 1982,
foi proposta uma alteração ao n.º 2 do artigo 119.º segundo a qual, «no caso
previsto na alínea b) do número anterior, a suspensão não pode ultrapassar três
anos, salvo se o arguido tiver sido declarado contumaz antes de ter expirado
aquele prazo».
Na discussão da proposta, o Sr. Procurador-Geral da República emitiu parecer no
sentido de que a «contumácia, por exemplo, não deveria interromper, mas sim
suspender, pois o que se verifica é a paralisação do processo devido ao arguido»
e «se a contumácia funciona também como causa autónoma da suspensão, então é
melhor prevê-la no n.º 1».
Acabou a comissão por entender «ser de proceder às seguintes alterações no
artigo 119.º, dado o novo enquadramento dado à questão:
A alínea c) passa a ter a seguinte redacção: ‘vigorar a declaração de
contumácia’;
No n.º 2 é eliminada a referência à contumácia.» (v. Código Penal –Actas e
Projecto da Comissão Revisora, Ministério da Justiça, 1993, pp. 106 a 109.)
Solução que veio a ser consagrada no Código Penal revisto pelo Decreto‑Lei n.º
48/95, de 15 de Março, na alínea c) do artigo 120.º.
Como resulta do conteúdo das actas, nenhum membro da comissão revisora entendeu
que a situação de contumácia poderia ser abrangida nos segmentos «o procedimento
criminal não possa legalmente iniciar-se ou não possa continuar por falta de uma
autorização legal» ou nos «casos especialmente previstos na lei» usados no
transcrito artigo 119.º. Mas também parece resultar claro que foi entendimento
da comissão que, dado o seu regime legal, a contumácia deveria ser considerada
como causa da suspensão do procedimento criminal.
Ainda recentemente, este Supremo Tribunal se pronunciou sobre esta questão no
processo n.º 1169/98, 3.ª Secção, onde se defendeu que a declaração de
contumácia, ao abrigo do disposto no Código de Processo Penal de 1987, tem
efeitos suspensivos no procedimento criminal, pois se trata de «um dos casos
especialmente previstos na lei» a que se refere o artigo 119.º, n.º 1, do Código
Penal de 1982, afirmando na sua fundamentação:
«Aliás, se, por força da alínea a) do n.º 1 do artigo 119.º do Código Penal de
1982, a prescrição do procedimento criminal ‘[se] suspende durante o tempo em
que o procedimento criminal não possa legalmente iniciar-se ou não possa
continuar por falta de uma autorização legal’, cremos que não poderia deixar de
suspender-se quando a própria lei manda suspender os termos do processo, por se
tratar de impedimento legal ao exercício do procedimento criminal», e «se o
legislador considerou necessário consagrar expressamente no Código Penal de 1995
a declaração de contumácia como causa de suspensão da prescrição do procedimento
criminal [artigo 120.º, n.º 1, alínea c)], tal deve explicar-se não pelo
propósito de preencher uma lacuna da regulamentação e sim como consequência da
atribuição à contumácia do efeito interruptivo da prescrição no artigo 121.º,
n.º 1, alínea c), donde a necessidade de fazer referência expressa no artigo
120.º, n.º 1, alínea c), à declaração de contumácia como causa de suspensão da
prescrição [...]» (Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal
de Justiça, ano VII, t. I, p. 175.)
Relativamente ao Acórdão de 27 de Abril de 2000, processo n.º 31/2000, 5.ª
Secção, citado nas muito doutas alegações do Exmo. Procurador‑Geral‑Adjunto,
dir-se-á que o mesmo teve em vista a interrupção da prescrição e não a suspensão
da mesma. Trata-se, pois, de situações distintas.
Feita esta resenha, impõe-se agora determinar qual a solução a adoptar.
Princípio legal que todo o jurista tem de respeitar ao proceder à interpretação
de uma norma jurídica é o consagrado no artigo 9.º do Código Civil.
Ao preceituar-se no n.º 1 do artigo 119.º «para além dos casos especialmente
previstos na lei» não se pode deixar de considerar abrangidos quer aqueles casos
que de momento já se encontrem previstos em leis quer aqueles que, de futuro,
venham a ser consagrados em diplomas legais. Na verdade, nada impede que, desde
logo, se preveja a possibilidade de, em normas avulsas ou não, se venha a
consagrar situações que determinem a suspensão da prescrição do procedimento
criminal. É como que um dar aqui como reproduzido o estabelecido nas tais normas
futuras.
Dizendo o artigo 336.º do Código de Processo Penal que a declaração de
contumácia implica a suspensão dos termos ulteriores do processo até à
apresentação do arguido, só poderá querer ter tido em vista aquela suspensão
relacionada com a prescrição do procedimento criminal. O efeito visado coincide
com o previsto no artigo 119.º, n.º 3: desde o momento de declaração de
contumácia até àquele em que caduca – n.º 3 do artigo 336.º - a prescrição não
corre.
De outra maneira, acabava-se por vir a proteger o arguido que, mais lesto,
fugira à alçada da justiça.
Não nos parece que o elemento histórico, nas suas vertentes, justifique o ponto
de vista defendido no acórdão fundamento.
O facto de ser desconhecido, à data da entrada em vigor do Código Penal de 1982,
o instituto da contumácia não justifica a afirmação de que o n.º 1 do artigo
119.º não se podia referir ao mesmo. A expressão usada, «casos especialmente
previstos na lei», não se quer referir a denominações, mas a situações, a certos
conteúdos. É isto que interessa, e não o nome que se lhes aplica. Para efeitos
iguais tem de haver soluções idênticas.
Justificando a introdução do normativo da alínea c) do n.º 1 do artigo 120.º do
Código Penal de 1995, diz Maia Gonçalves que ela resulta «de adaptação a
soluções perfilhadas pelo Código de Processo Penal» - Código de Processo Penal
Anotado, 9.ª ed., 1996, p. 499.
Parece-nos, assim, que a solução, em abstracto, defendida pelo acórdão recorrido
não é de censurar.»
Esta conclusão não foi, porém, pacífica, tendo logo vários Conselheiros ficado
vencidos neste acórdão do plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de
Justiça. A fundamentação de tal voto encontra-se na declaração de voto do
Conselheiro Carmona da Mota, com o seguinte teor, que importa igualmente
recordar:
«1 – A análise crítica com que, na Revista de Legislação e de Jurisprudência,
Eduardo Correia fustigou o processo de ausentes regulado no Código de Processo
Penal de 1929 (sobretudo na medida em que ditava, depois de verificada a
ausência do arguido, o prosseguimento do processo à sua revelia - cf. os artigos
570.º e seguintes) conduziu a que o novo CPP de 1982 viesse a optar, na
impossibilidade de notificação ao arguido do despacho designativo de dia para
audiência ou de execução da sua detenção ou prisão preventiva, pela «suspensão
dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou detenção do arguido»
(artigo 335.º, n.º 3).
2 – Tal «suspensão» (dos termos processuais ulteriores) não prejudicava, porém,
nem «a realização de actos urgentes» (artigo 335.º, n.º 3) nem, tampouco, as
diligências processuais que tivessem em vista a apresentação ou a detenção do
arguido em ordem, exactamente, à caducidade da declaração de contumácia e à
activação dos «termos ulteriores do processo»:
«A detenção, que é uma das formas de se pôr termo à situação de contumácia, pode
ser determinada para aplicação de uma medida de coacção.» - Acórdão da Relação
do Porto de 26 de Abril de 1995, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 446,
p. 349;
«É admissível a emissão de mandados de captura para detenção de arguido
contumaz, com vista à notificação do despacho que recebeu a acusação, mesmo que
o arguido esteja acusado de crime que não admita prisão preventiva.» - Acórdão
da Relação do Porto de 20 de Novembro de 1996, in Boletim do Ministério da
Justiça, n.º 461, p. 517;
«É admissível a emissão de mandados de comparência ou de detenção contra arguido
declarado contumaz com o objectivo de lhe ser notificado o despacho de
‘pronúncia’.» - Acórdãos da Relação do Porto de 20 de Novembro de 1996, in
Colectânea de Jurisprudência, ano XXI, t. V, p. 239, de 8 de Janeiro de 1997, in
Boletim do Ministério da Justiça, n.º 467, p. 617, de 14 de Maio de 1997, in
Boletim do Ministério da Justiça, n.º 467, p. 627, de 11 de Junho de 1997, in
Boletim do Ministério da Justiça, n.º 467, p. 475;
«Durante a situação de contumácia do arguido - e apesar da concomitante
‘suspensão dos ulteriores termos do processo’ -, não só poderá como deverá
diligenciar-se - oficiosamente ou a requerimento dos interessados (Ministério
Público e assistente) - pela localização do arguido (e, sendo caso disso, pela
sua detenção, captura e extradição), com vista à abreviação dessa situação, à
apresentação ou detenção do ausente, à caducidade da declaração de contumácia e,
enfim, à realização - já na presença do arguido - dos ‘termos ulteriores do
processo’.»[1] - Acórdão da Relação de Lisboa de 22 de Maio de 1997, in Boletim
do Ministério da Justiça, n.º 463, p. 635, e Colectânea de Jurisprudência, ano
XXII, t. III, p. 136.
3 - O Código Penal de 1982 - publicado na vigência do Código de Processo Penal
de 1929 - escusou-se, no âmbito do processo especial de ausentes, a inventariar
qualquer factor de suspensão do prazo prescricional do procedimento criminal
(artigo 119.º) e indicou, como único factor interruptivo desse prazo, a
«marcação do dia para o julgamento no processo de ausentes» [artigo 120.º, n.º
1, alínea d)].
4 - O artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal de 1982, em matéria de suspensão de
prescrição do procedimento criminal, salvaguardou, é certo, «os casos
especialmente previstos na lei» e, especialmente, «o tempo em que o procedimento
criminal não pudesse legalmente iniciar-se ou continuar por falta de uma
autorização legal» (n.º 1).
5 - Mas, ao referir-se às situações em que «o procedimento criminal não pudesse
legalmente continuar por falta de uma autorização legal», não visaria, com
certeza (pois que em 1982), a «suspensão dos ulteriores termos do processo» que
o Código de Processo Penal de 1987 só viria a fazer operar (a partir de 1988)
relativamente, no novo processo penal, em caso de «contumácia» do arguido.
6 - De qualquer modo, a «falta de uma autorização legal» (ou, melhor, de uma
autorização legalmente exigida) visaria paradigmaticamente as situações de
imunidade penal do Presidente da República, dos Deputados e dos membros do
Governo:
«A iniciativa do processo (por crimes praticados pelo Presidente da República no
exercício das suas funções) cabe à Assembleia da República.» - Artigo 133.º, n.º
2, da Constituição, revista pela Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de Setembro;
«Movido procedimento criminal contra algum Deputado e indiciado este
definitivamente por despacho de pronúncia ou equivalente, salvo no caso de crime
punível com pena maior, a Assembleia decidirá se o Deputado deve ou não ser
suspenso, para efeito de seguimento do processo.» - Artigo 160.º, n.º 3;
«Movido procedimento criminal contra um membro do Governo e indiciado este
definitivamente por despacho de pronúncia ou equivalente, salvo no caso de crime
punível com pena maior, a Assembleia decidirá se o membro do Governo deve ou não
ser suspenso, para efeito de seguimento do processo.» - Artigo 199.º
7 - E se era esse o sentido da lei ao aludir ao «tempo em que o procedimento
criminal não pudesse legalmente iniciar-se ou continuar por falta de uma
autorização legal», não creio que o sentido e alcance dessa «autorização legal»
- no pressuposto de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos
adequados e de que não poderá ser considerado pelo intérprete o pensamento
legislativo que não tenha na letra um mínimo de correspondência verbal (artigo
9.º, n.ºs 2 e 3, do Código Civil) - compreendessem (ou compreendam) os casos de
suspensão do processo penal entre a constatação da ausência do arguido e a sua
apresentação ou detenção.
8 - E tanto assim não era (nem será) que o Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de
Março, ao ajustar (com uma tardança de quase oito anos)[2] o Código Penal de
1982 ao Código de Processo Penal de 1987, fez questão de introduzir, como factor
de suspensão, a par dos «casos especialmente previstos na lei» (artigo 120.º,
n.º 1) e do «tempo em que o procedimento criminal não pudesse legalmente
iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal» [artigo 120.º, n.º 1,
alínea a), «o tempo em que vigorar a declaração de contumácia» [artigo 120.º,
n.º 1, alínea c)].
9 - Aliás, têm fracassado, a nível do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal
Constitucional, as sucessivas tentativas jurisprudenciais - antes da reforma de
1995 - de ajustamento substantivo do Código Penal de 1982, por interpretação
«actualista», às novidades adjectivas do Código de Processo Penal de 1987:
«Instaurado processo criminal na vigência do Código de Processo Penal de 1987
por crimes praticados antes de 1 de Outubro de 1995 e constituído o agente como
arguido posteriormente a esta data, tal facto não tem eficácia interruptiva da
prescrição do procedimento por aplicação do disposto no artigo 121.º, n.º 1,
alínea a), do Código Penal aprovado pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março.»
- Acórdão/assento n.º 1/98, de 9 de Julho de 1998, votado por unanimidade, in
Diário da República, 1.ª série-A, de 29 de Julho de 1998, e Boletim do
Ministério da Justiça, n.º 479, p. 87;
«Na vigência do Código Penal de 1982, redacção original, a notificação para as
primeiras declarações ou para comparência ou interrogatório do agente, como
arguido, no inquérito, sendo o acto determinado ou praticado pelo Ministério
Público, não interrompe a prescrição do procedimento criminal ao abrigo do
disposto no artigo 120.º, n.º 1, alínea a), daquele diploma.» - Acórdão/assento
n.º 1/99, de 12 de Novembro de 1998, votado por unanimidade, in Diário da
República, 1.ª série-A, de 5 de Janeiro de 1999, Colectânea de Jurisprudência -
Supremo Tribunal de Justiça, ano VI, t. III, p. 6, e Boletim do Ministério da
Justiça, n.º 481, p. 118.
«Seria inconstitucional (artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição) o artigo
120.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal interpretado no sentido de
que a notificação para as primeiras declarações do arguido na fase de inquérito
interromperia o prazo prescricional.» - TC, 7 de Abril de 1999, Boletim do
Ministério da Justiça, n.º 486, p. 51.
Seria «inconstitucional, por violação dos n.ºs 1 e 3 do artigo 29.º da lei
fundamental, a norma constante da alínea a) do n.º 1 do artigo 120.º da versão
originária do Código Penal, na interpretação segundo a qual a prescrição do
procedimento criminal se interrompe com a notificação para as primeiras
declarações para comparência ou interrogatório do agente, como arguido, na
instrução»[3]. - Tribunal Constitucional, Acórdão n.º 122/2000, de 23 de
Fevereiro de 2000, processo n.º 257/99-2, in Diário da República, 2.ª série, n.º
131, de 6 de Junho de 2000.
10 - Creio, por isso, que - pelas mesmas razões - mereceria igual sorte esta
outra tentativa jurisprudencial de minorar os efeitos do tal «escandaloso erro
legislativo de 1987[4].»
[notas de rodapé no original]
7.Ora, analisando a fundamentação transcrita do acórdão de fixação de
jurisprudência n.º 10/2000, do Supremo Tribunal de Justiça, cumpre notar, desde
logo, que é sobretudo tratada a questão do eventual alcance da remissão (e do
seu carácter “estático” ou “dinâmico”) que se contém no artigo 119.º, n.º 1, do
Código Penal, para outros casos de suspensão da prescrição “especialmente
previstos na lei”, mais do que especificamente a interpretação do artigo 336.º,
n.º 1, do Código de Processo Penal (ambos na sua redacção originária), onde se
previa que a declaração de contumácia teria como efeito a “suspensão dos termos
ulteriores do processo”. E é certo que é a questão da constitucionalidade do
entendimento também deste último preceito no sentido de prever (como um desses
casos “especialmente previstos na lei”) a suspensão da prescrição – e não apenas
a da conformidade constitucional do citado segmento remissivo do artigo 119.º,
n.º 1 (decidida no Acórdão n.º 449/2002) – que está agora em questão.
Assim, não podem considerar-se decisivos, para a questão de constitucionalidade
a decidir no presente recurso, argumentos como o da previsão da suspensão da
prescrição em casos análogos aos da contumácia (a prescrição “não poderia deixar
de suspender-se quando a própria lei manda suspender os termos do processo, por
se tratar de impedimento legal ao exercício do procedimento criminal”, e “[p
]ara efeitos iguais tem de haver soluções idênticas”), ou o de que se não
poderia dizer, ex adverso, que o próprio legislador sentiu necessidade de
colmatar em 1995 uma lacuna, pois que tal se explicaria antes pelo intuito de
atribuição à contumácia de um efeito interruptivo da prescrição. É que não só a
possível diversidade de explicações para a intervenção do legislador, em 1995,
nada permite concluir, só por si, sobre uma anterior previsão no artigo 336.º,
n.º 1, do Código de Processo Penal de 1987, respeitadora das exigências
constitucionais, no sentido de que a declaração de contumácia já suspendia a
prescrição, como é claro que tais exigências constitucionais de tipicidade e de
legalidade se não bastam com a descoberta de razões para um tratamento idêntico
de casos idênticos aos previstos na lei. Dir-se-á, mesmo, que uma das mais
significativas dimensões desses princípios reside, justamente, na proscrição da
analogia e na exigência de que a definição dos crimes, das penas e de outros
aspectos de que depende a acção penal (entre os quais a prescrição do
procedimento criminal) sejam objecto de uma previsão legal, cuja falta, ou
incorrecta formulação, beneficia o arguido.
Há, aliás, que recordar que o Tribunal Constitucional já se pronunciou (e já se
pronunciara também antes do “Assento” n.º 10/2000) sobre a sujeição do instituto
da prescrição, e da sua interrupção, ao princípio da legalidade,
aplicando-se‑lhe a proibição da analogia ao instituto da prescrição, e que
fundamentou aí juízos de inconstitucionalidade. Assim, disse-se no citado
acórdão n.º 205/99 (num discurso retomado também nos citados acórdãos n.ºs
285/99 e 122/2000; e cfr. também os acórdãos n.ºs 317/2000, 494/2000, 557/2000,
585/2000 e 412/2003):
«(...)
Apesar de a proibição da analogia quanto à matéria da prescrição não estar, de
modo literal, incluída na proibição da analogia quanto às normas incriminadoras
e ser questionável a existência de um verdadeiro direito do agente a que a
inércia do Estado na prossecução penal o beneficie, a proibição da analogia em
matéria prescricional, nomeadamente quanto às causas de interrupção da
prescrição, está sem dúvida justificada pelo referido controlo do poder punitivo
do Estado através do Direito que criou, de modo que sem a verificação de factos
previstos em lei penal (objecto de reserva de lei e inerente controlo
democrático) como indiciadores de uma efectiva e sustentada vontade e capacidade
punitiva do próprio Estado não será possível estabelecer causas interruptivas da
prescrição.
Assim, mesmo que a garantia da previsibilidade para os reais ou hipotéticos
agentes dos crimes dos prazos prescricionais não baste para justificar a
proibição da analogia, ela será imposta pelo menos pela segurança democrática,
relativamente ao controlo do exercício do poder punitivo, o qual não pode ser
exercido sem limites objectivos democraticamente estipulados. Pelo menos neste
sentido, a proibição da analogia das normas relativas à prescrição partilha dos
fundamentos da proibição da analogia relativamente aos fundamentos da
incriminação e insere-se no objecto de reserva relativamente à definição de
crimes e penas, prevista no artigo 168.°, n.º 1, alínea b), da Constituição.»
E no acórdão n.º 285/99 disse-se
«Em matéria da prescrição do procedimento criminal, é sem dúvida questionável a
existência de um verdadeiro direito do agente a que a inércia do Estado na
perseguição penal o beneficie; mas é inquestionável que a lei reconhece que a
perseguição criminal tem um “tempo” próprio e certo para ser desencadeada e
promovida. Ou seja, a não prescrição do procedimento criminal é condição
jurídica do exercício da acção penal - “orientada pelo princípio da legalidade”,
conforme exige a Constituição no artigo 219.°, n.º 1.
Mas acresce que a introdução de um grau relevante de incerteza neste campo
repercute-se por sua vez na consistência do princípio de legalidade que preside
à aplicação da lei criminal, conforme exigência dos n.ºs 1 e 3 do artigo 29.° da
Constituição. A punição criminal pressupõe lei anterior, mas lei que tem de ser
certa. Por isso neste domínio é incompatível com a Constituição uma
interpretação “criadora”, que no caso foi tornada indispensável pela falta de
adequada previsão legal inequívoca.»
Também o argumento – reportado aos efeitos de uma interpretação segundo a qual a
declaração de contumácia, a partir de 1987 e até à revisão do Código Penal, em
1995, não afectava o prazo de prescrição do procedimento – de que “[d]e outra
maneira, acabava-se por vir a proteger o arguido que, mais lesto, fugira à
alçada da justiça” não responde ao problema constitucional (que é o único que
nos pode nesta sede interessar) do respeito pelo princípio da legalidade, sabido
que é como o sentido deste princípio é também o de que “[e]squecimentos,
lacunas, deficiências de regulamentação ou de redacção funcionam, por isso,
sempre contra o legislador e a favor da liberdade, por mais evidente que se
revele ter sido intenção daquele (ou constituir finalidade da norma) abranger na
punibilidade também outros comportamentos” (no ensinamento de Jorge de
Figueiredo Dias, Direito penal. Parte geral. Tomo I: Questões fundamentais. A
doutrina geral do crime, Coimbra, 2004, p. 168).
Importa, pois, perguntar se o tribunal recorrido, ao adoptar um entendimento das
disposições conjugadas do artigo 119.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, e do
artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na redacção originária,
segundo o qual a prescrição do procedimento criminal se suspende com a
declaração de contumácia, respeitou o princípio da legalidade, previsto no
artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição da República.
8.Entende-se que a resposta à pergunta que se formulou é negativa, por razões
semelhantes às que levaram este Tribunal a censurar, sob o ponto de vista da sua
constitucionalidade, “interpretações actualistas”, posteriores ao Código de
Processo Penal de 1987, de outras normas do Código Penal de 1982 relativas à
prescrição – isto é, por razões estruturalmente paralelas às que (embora para
norma diversa da que está agora em causa) foram invocadas nos citados Acórdãos
n.ºs 205/99, 285/99, 122/2000, 317/2000, 494/2000, 557/2000, 585/2000 e
412/2003. Trata-se, neste sentido, de conclusão que decorre desta anterior
jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre questão paralela, e da exigência
de que também ele se mantenha fiel à sua própria jurisprudência.
Na verdade, no artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal previa-se que a
declaração de contumácia teria como consequência “a suspensão dos termos
ulteriores do processo até à apresentação ou à detenção do arguido”. A
declaração de contumácia, e tal consequência, assentam no pressuposto da
impossibilidade de realização de julgamento “à revelia”, mas não se referiu o
legislador a qualquer afectação do decurso da prescrição do procedimento
criminal. E a suspensão dos termos ulteriores do processo tem, com aquele
fundamento, um sentido, antes de mais, jurídico-processual, pelo que não se pode
concordar com a afirmação de que a suspensão dos termos ulteriores do processo
até à apresentação do arguido “só poderá querer ter tido em vista” uma suspensão
relacionada com a prescrição do procedimento criminal. Sob este aspecto também
não pode, aliás, retirar-se nada da previsão, no n.º 3 (hoje n.º 1) do artigo
336.º do Código de Processo Penal de 1987, da caducidade da declaração de
contumácia.
Da perspectiva do respeito pelo princípio da legalidade, o que importa antes
perguntar é se, depois de prevista esta declaração de contumácia na redacção
originária do Código de Processo Penal, e antes de alterado o Código Penal de
1982, podia já dizer-se que correspondia ao significado comum atribuível às
palavras utilizadas pelo legislador de 1987 no artigo 336.º, n.º 1 (“suspensão
dos termos ulteriores do processo”) ou se ultrapassava tal significado entender
que aí se compreendia, não só a suspensão do processo como a consequência de
suspensão da prescrição do procedimento criminal.
Ora, entende-se que não pode deixar de responder-se à pergunta formulada neste
último sentido: isto é, que o significado comum e literal da expressão empregue
pelo legislador de 1987 era ultrapassado pelo entendimento de que a declaração
de contumácia importava a suspensão também da prescrição do procedimento
criminal, e não apenas dos “termos ulteriores do processo”. Tal diversidade de
sentido literal é, aliás, acompanhada da diferença de consequências da
“suspensão dos termos ulteriores do processo” e da suspensão da prescrição do
procedimento criminal.
Na verdade, e como se disse na declaração de voto aposta ao “Assento” n.º
10/2000, a “suspensão dos termos processuais ulteriores” não prejudicava, «nem
“a realização de actos urgentes” ([actual] artigo 335.º, n.º 3) nem, tampouco,
as diligências processuais que tivessem em vista a apresentação ou a detenção do
arguido em ordem, exactamente, à caducidade da declaração de contumácia e à
activação dos “termos ulteriores do processo”». Por outro lado, as expressões
“suspensão do processo” e “suspensão da prescrição” do procedimento não são
sinónimas, nem sequer existe entre si qualquer relação de implicação: não existe
norma, ou qualquer princípio geral, no sentido de que qualquer suspensão da
instância (suspensão do processo) conduz a uma suspensão da prescrição (e, por
definição, esta começa mesmo a correr antes do início do procedimento criminal,
“desde o dia em que o facto se consumou” – artigo 118.º, n.º 1, do Código Penal,
na redacção de 1982), e há também casos de suspensão da prescrição que se não
ligam a qualquer suspensão do processo. Como se salientou no acórdão que
constitui o fundamento para o recurso de fixação de jurisprudência que deu
origem ao dito “Assento” n.º 10/2000, “se é certo que o instituto da suspensão
da prescrição, para além do mais, ‘radica na ideia segundo a qual a produção de
determinados eventos, que excluem a possibilidade de o procedimento se iniciar
ou continuar, deve impedir o decurso do prazo da prescrição’ (Figueiredo Dias,
Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, p. 711), já parece
não poder afirmar-se, peremptoriamente, que qualquer suspensão da instância deve
originar a suspensão da prescrição pelo correspondente tempo: é, do ponto de
vista teórico, perfeitamente admissível que algumas causas de suspensão do
processo não tenham eficácia suspensiva da prescrição. E, assim, cabe ao
legislador optar por erigir em causa de suspensão da prescrição toda e qualquer
suspensão do processo ou escolher casuisticamente quais os casos de suspensão do
processo que devem relevar para esse efeito. E a verdade é que não encontramos
no Código Penal de 1982 qualquer indício de que o legislador fez a primeira
opção”.
Não podia, pois, entender-se que a previsão de “suspensão dos termos ulteriores
do processo até à apresentação ou à detenção do arguido”, como efeito da
declaração de contumácia, incluía, como seu sentido comum e literal, a suspensão
da prescrição do procedimento criminal, a qual começava a correr antes do
processo e podia não ser afectada por uma sua suspensão. Tal interpretação,
implicando uma “interpretação ‘criadora’, que no caso foi tornada indispensável
pela falta de adequada previsão legal inequívoca” (expressão do citado Acórdão
n.º 285/99), é, nesta medida, incompatível com a Constituição, pois viola o
princípio da legalidade a que está também sujeita a definição das causas de
suspensão da prescrição do procedimento criminal.
9.Em face disto, tem de concluir-se que a norma resultante das disposições
conjugadas dos artigos 119.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal de 1982, e
336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal de 1987, na redacção originária,
interpretadas no sentido de que a declaração de contumácia constituía causa de
suspensão de prescrição do procedimento criminal, é inconstitucional, por
violação do princípio da legalidade constitucionalmente consagrado (n.ºs 1 e 3
do artigo 29.º da Constituição).
Alcançada esta conclusão, torna‑se dispensável a análise de outros fundamentos
de inconstitucionalidade, igualmente invocados pelo recorrente.
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Julgar inconstitucional, por violação do
artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição da República, a norma extraída das
disposições conjugadas do artigo 119.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, e do
artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ambos na redacção originária,
na interpretação segundo a qual a prescrição do procedimento criminal se
suspende com a declaração de contumácia.
b) Consequentemente, conceder provimento ao
recurso, revogando a decisão recorrida, que deverá ser reformulada de acordo com
o presente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 15 de Fevereiro de 2007
Paulo Mota Pinto
Mário José de Araújo Torres
Maria Fernanda Palma
Benjamim Rodrigues (vencido nos termos da declaração anexa)
Rui Manuel Moura Ramos
Votei vencido quanto ao conhecimento do recurso de constitucionalidade, por
entender que não constitui uma questão de constitucionalidade normativa a
apreciação da correcção do processo hermenêutico desenvolvido pelo tribunal a
quo, tendente a determinar o sentido das normas, bem como do resultado a que o
mesmo chegou.
O princípio da legalidade penal (ou fiscal) opera como mero
limite constitucional à admissibilidade do resultado interpretativo a que se
chegou no processo de interpretação, obrigando o intérprete a excluir aqueles
resultados que não tenham na letra da lei um mínimo de correspondência verbal.
Deste modo, ele não é portador de qualquer sentido axiológico substancial com o
qual possa ser contrastado directamente certa norma de direito
infra-constitucional, para aferir da sua validade, mas tão só para excluir o
resultado de um processo concreto de conhecimento judicial do sentido da norma.
No presente caso, essa natureza mostra-se espelhada com extrema
nitidez no modo como o Tribunal Constitucional resolveu a questão, pois este não
fez mais do que refazer e sindicar a correcção do processo intelectual de
apuramento do sentido da lei levado a cabo pelo tribunal a quo, manejando as
mesmas regras técnicas hermenêuticas.
Essa actividade do Tribunal Constitucional apenas teria sentido
dentro do sistema do recurso de amparo, o qual, porém, não foi acolhido pela
nossa Constituição.
Assim, renovo aqui o essencial do meu voto de vencido aposto no
Acórdão n.º 412/03.
Congruentemente não há que tomar posição quanto ao fundo.
Benjamim Rodrigues
[1] O CPP revisto determina agora, no artigo 337.º, n.º 1, que «a declaração de
contumácia implica para o arguido a passagem imediata de mandado de detenção
para efeitos do disposto no n.º 2 do artigo anterior.» («Logo que se apresente
ou for detido, o arguido é sujeito a termo de identidade e residência.»).
[2] «Os processos prescrevem [...], também e principalmente, porque foi cometido
um grande erro legislativo entre 1988 e 1995, com transformações estruturais nas
leis penais, em que não foram acauteladas as figuras da interrupção/suspensão da
prescrição, que constavam da legislação revogada. Eis em poucas palavras o que
aconteceu: a interrupção/suspensão da prescrição estava contemplada no Código
Penal, que remetia a sua verificação quando ocorressem alguns actos previstos no
Código de Processo Penal; em Janeiro de 1988 entrou em vigor um novo Código de
Processo Penal que não previa uma série dos actos interruptivos da prescrição;
não houve uma alteração simultânea do Código Penal no sentido de se adequarem as
suas disposições sobre prescrição ao novo Código de Processo Penal, e as figuras
da interrupção/suspensão quase desapareceram porque os actos que as determinavam
desapareceram do novo Código; essa situação durou até Outubro de 1995 - e
durante quase oito anos tal omissão legislativa foi o pano de fundo do regime
legal da prescrição.» (Francisco Bruto da Costa, O Independente, de 21 de
Janeiro de 2000).
[3] «Procurando minimizar os efeitos da jurisprudência obrigatória [fixada pelo
assento do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/99, de 5 de Janeiro], a
jurisprudência tem vindo a considerar constituir causa interruptiva da
prescrição o interrogatório judicial o arguido na fase da instrução. É
orientação sem qualquer fundamento legal.» (Germano Marques da Silva, Direito
Penal Português, III, 1999, Verbo, p. 234, n. 1).
[4] «Como hoje se sabe, houve um escandaloso erro legislativo em 1987, só
corrigido em 1995 e que atinge todos os casos verificados nesses oito anos.»
(Ministro António Santos Costa, Público, de 17 de Janeiro de 2000).