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Processo n.º 390/06
Plenário
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa, em
que são recorrentes o Ministério Público e a Fazenda Pública e recorrida A., foi
interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do
n.º1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional (LTC), da decisão daquele Tribunal de 7 de Fevereiro de 2006.
Foi determinado que o julgamento se fizesse com intervenção do plenário, ao
abrigo do n.º 1 do artigo 79.º-A da LTC.
2. Por despacho do Chefe do Serviço de Finanças, de 8 de Abril de 2002,
decidiu-se prosseguir com a reversão da execução fiscal contra a ora recorrida,
na qualidade de responsável subsidiária (fl. 29 dos autos), a qual foi citada,
nos termos dos artigos 246.º do Código de Processo Tributário e 23.º da Lei
Geral Tributária (fl. 30 dos autos).
Deduzida oposição pela ora recorrida e admitidos os respectivos autos no 2.º
Juízo do Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa, foi proferido despacho no
sentido de “as partes alegarem o que tiverem por conveniente” sobre a questão de
saber se “a reversão pode efectivar-se por efeito de um mero acto
administrativo”, atendendo ao disposto nos artigos 2.º, 13.º, 111.º, 202.º e
212.º e 20.º e 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP). O
Ministério Público e a Fazenda Pública pronunciaram-se no sentido da
improcedência da questão de inconstitucionalidade.
3. A sentença recorrida julgou procedente a oposição deduzida, anulando o
despacho de reversão em causa e extinguindo a execução contra a oponente,
decidindo a “questão prévia da inconstitucionalidade da reversão” do seguinte
modo:
“1) A fl. 113 dos autos, suscitou-se a questão de, sabendo-se que a execução
decorreu de despacho do Chefe de Serviço de Finanças/Administração Tributária
(vd. fl. 29 dos autos), se apurar se a reversão de que a oponente foi objecto
pode efectivar-se por meio de um mero acto administrativo. Note-se que não se
suscitou qualquer questão quanto à constitucionalidade da responsabilidade
subsidiária dos gerentes e administradores, mas antes quanto à conformidade dos
preceitos que autorizaram a reversão por despacho do Chefe do Serviço de
Finanças (AT) com os princípios constitucionais que garantem: a separação de
poderes; a competência dos Tribunais; a tutela jurisdicional efectiva; o direito
de defesa; e a igualdade de tratamento (tendo presente, p. ex., no direito
privado, o regime aplicável em acções de responsabilidade, e, no direito
público, a competência judicial em casos como os do direito de regresso: vd., p.
ex., Ac. STA de 2/2/1995, Proc. 035151).
Em causa estão os seguintes normativos constitucionais: os artigos 2.° (Estado
de Direito Democrático), 13.º (Igualdade de tratamento), 111.º (Separação de
poderes); 202.° e 212.° (Competência dos Tribunais), e 20.° e 268.°, n.° 4
(Tutela jurisdicional efectiva e direito de defesa).
Como se trata de questão que ainda não tinha sido levantada nos autos, as partes
foram convidadas a alegarem o que tivessem por conveniente sobre a mesma (vd.
fl. 113 dos presentes autos).
2) No caso dos autos, a reversão foi efectuada ao abrigo dos artigos 43.°, al.
g) (“Instaurar os processos de execução fiscal e realizar os actos a eles
respeitantes, salvo o que se dispõe no n.° 2 do artigo 237.°”), 239.°, n.° 2 [“o
chamamento à execução dos responsáveis subsidiários depende da verificação de
qualquer das seguintes circunstâncias: a) Inexistência de bens penhoráveis do
devedor e seus sucessores; b) Insuficiência do património do devedor para a
satisfação da dívida exequenda e acrescido.”], 13.º (n.° 1: “os administradores,
gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de
administração nas empresas e sociedades de responsabilidade limitada são
subsidiariamente responsáveis em relação àquelas e solidariamente entre si por
todas as contribuições e impostos relativos ao período de exercício do seu
cargo, salvo se provarem que não foi por culpa sua que o património da empresa
ou sociedade de responsabilidade limitada se tornou insuficiente para a
satisfação dos créditos fiscais.”) e 246.° (n.° 1: “quando a execução reverta
contra responsáveis subsidiários, o chefe de repartição de finanças mandá-los-á
citar todos, depois de obtida informação no processo sobre as quantias por que
respondem.”), todos do CPT, e ainda ao abrigo do artigo 23.º, n.º 1: “a
responsabilidade subsidiária efectiva-se por reversão do processo de execução
fiscal.”) da LGT (vd. fls. 29 dos autos).
3) Pelas razões que em seguida se expõem, entendo que estes artigos são
inconstitucionais, ao permitirem que o Chefe da Repartição de Finanças decida da
reversão, o que configura clara violação da esfera reservada de competência
judicial, e, por sua vez, a violação: a) do princípio da separação de poderes
(art. 111.º CRP) e da competência dos Tribunais (art. 202.° e 212.° CRP); b) do
princípio da tutela jurisdicional efectiva (art. 20.° e 268.°, n.° 4, CRP) e do
direito de defesa (art. 20.° CRP); e c) do princípio da igualdade (art. 13.°
CRP).
4) Tendo em consideração o regime legal donde deriva a competência do Chefe da
Repartição de Finanças para efectuar a reversão, verifica-se que, ao tempo do
CPCI, a competência do mesmo decorria do respectivo art. 16.° (se preenchidos os
requisitos constantes do art. 146.°), e que, no âmbito do CPT, a referida
competência decorria dos mencionados arts. 43.º, al. g), 239.°, n.° 2, 13.° e
246.°, n.° 1, do CPT, e art. 23.°, n.° 1, da LGT, que se consideram
inconstitucionais.
5) Com efeito, consideram-se, desde logo, inconstitucionais, porque não parece
que se possa afirmar que a reversão pode efectivar-se por meio de mero acto
administrativo. Decorre, aliás, de diversa jurisprudência, o entendimento de que
o despacho de reversão tem a natureza de uma condenação no pagamento de um
montante por responsabilidade extra-contratual – neste sentido, vd., v.g., os
seguintes arestos: “1 - A responsabilidade subsidiária dos gerentes e
administradores das sociedades de responsabilidade limitada tem natureza
extra-contratual.” (Ac. TCAN de 31/3/2005, Proc. 00144/04); “Sendo as normas
delimitadoras da responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes de
sociedades relativas a responsabilidade extracontratual não pode deixar de se
lhe aplicar a lei vigente no momento em que ocorre o facto gerador da
responsabilidade.” (Ac. STA de 27/4/2005, Proc. 0576/04); “I - A
responsabilidade subsidiária a que se refere o Dec-Lei 68/87 e o art. 78 do Cód.
Soc. Comerciais tem natureza delitual ou extracontratual.” (Ac. STA de
17/12/1997, Proc. 022075).
6) Estamos, assim, perante uma situação que a doutrina administrativa
tradicional chamaria de usurpação de poder (vd., sobre este conceito, J. J.
Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada,
3.ª Ed. Revista, 1993, p. 792). Isto porque, ainda que o acto ora sindicado seja
autorizado por lei, fica claramente levantada a questão da conformidade dos
preceitos que autorizaram a reversão por despacho do Chefe do Serviço de
Finanças com os diversos princípios constitucionais que garantem: a) a separação
de poderes e a competência dos Tribunais; b) a tutela jurisdicional efectiva e o
direito de defesa; e c) a igualdade de tratamento.
7) Por outro lado, não parecem existir dúvidas sobre a caracterização da
reversão como uma “ocorrência extraordinária que perturba o movimento normal do
processo” (José Alberto dos Reis). Assim sendo, este “incidente” deve ser
conhecido, em primeira linha, pelo órgão jurisdicional competente. A este
respeito, vd. o seguinte aresto: “como refere Jorge de Sousa, em anotação a este
artigo [art. 15l.° CPPT » art. 237.°, n.° 2, CPT], as matérias cujo conhecimento
é atribuído no n.° 1 deste artigo aos tribunais tributários são as que exigem
uma decisão de carácter jurisdicional. Assim, devem ser conhecidos pelo tribunal
os incidentes que exijam uma decisão de carácter jurisdicional, considerando-se
incidente, no dizer do Prof. José Alberto dos Reis, «uma ocorrência
extraordinária que perturba o movimento normal do processo».” (Ac. STA de
8/6/2005, Proc. 01244/04).
8) O despacho de reversão ora em causa não configura, pois, uma simples entrada
de novos sujeitos processuais, já de si contrária ao princípio da estabilidade
da instância (vd. art. 268.° CPC), ele configura uma verdadeira acção de
condenação com base em responsabilidade extra-contratual (como nota Jorge Lopes
de Sousa, em CPPT Anotado, 4.ª Ed., 2003, p. 697, “a responsabilidade
subsidiária não visa apenas a defesa directa dos interesses patrimoniais da
administração tributária, mas tem ínsita uma ideia sancionatória”); o título
executivo inicial serve apenas para determinar o montante da responsabilidade.
Verifica-se, deste modo, que, por via da reversão, temos não só novos sujeitos,
como também novos fundamentos que alteram completamente a natureza da execução:
esta passa de execução com base em dívida tributária para uma execução com base
em responsabilidade extracontratual.
9) Na aparente simplicidade do despacho de reversão, o Chefe de Serviço profere
uma condenação no pagamento de uma quantia determinada com fundamento em
responsabilidade extra-contratual. Ora, a apreciação desta responsabilidade
exige, pela sua natureza e pelas suas consequências, até para o cônjuge, uma
protecção judicial de 1.º grau. No mesmo sentido, vd. a fundamentação para um
caso relativo a custas, perfeitamente transponível para o processo sub judice:
“IV – A decisão condenatória ou absolutória em custas consubstancia em si mesma
uma «decisão jurisdicional» porque implica a determinação do respectivo
responsável e, eventualmente, a repartição dessa responsabilidade por uma
pluralidade de partes.” (Acórdão do Tribunal Constitucional de 6/6/1990,
Processo 88-0224).
10) Conclui-se, assim, que a reversão constitui acto situado na esfera de
competência da função jurisdicional. Note-se, aliás, que o STA tem entendido, de
forma pacífica, que apenas é constitucionalmente admissível a atribuição à AT da
prática de actos de natureza não jurisdicional no processo de execução fiscal –
assim, vd., p. ex.: “nos processos de execução fiscal, a administração fiscal
tributária apenas poderá praticar actos materialmente administrativos
estando-lhe vedada a prática de actos formal ou materialmente jurisdicionais,
tal como decorre do art. 103.° n.° 1 da LGT, pois «O processo de execução fiscal
tem natureza judicial, sem prejuízo da participação dos órgãos da administração
Tributária nos actos que não tenham natureza jurisdicional.», assim se revelando
clara a opção do legislador. Nestes processos, a intervenção da Administração
Tributária está, pois, confinada à participação na realização do seu escopo
judicial mas sem qualquer intervenção ou ingerência em sede de poder ou função
jurisdicional. Daí que, embora reconhecida à execução fiscal a natureza
judicial, o legislador da Lei Geral Tributária tenha sentido necessidade de
expressamente limitar a actividade da administração tributária aos actos que,
por natureza, não assumam ou revistam natureza de actos jurisdicionais.” (Ac.
STA de 26/1/2005, Proc. 01890/03).
11) No mesmo sentido, vd., p. ex., o seguinte aresto: “I - O art. 103.° da LGT
atribui ao processo de execução fiscal natureza judicial, sem prejuízo da
participação dos órgãos da administração tributária nos actos que não tenham
natureza jurisdicional, sendo garantido aos interessados o direito de reclamação
para o Juiz de execução fiscal dos actos materialmente administrativos
praticados por órgãos da administração tributária, nos termos do número
anterior. II - Este normativo revela uma opção clara do legislador pela natureza
do processo de execução fiscal como processo judicial, como processo que decorre
debaixo de um apertado controlo de legalidade do tribunal e em que a intervenção
da administração tributária está conformada como de simples participação na
realização do seu escopo judicial.” (Ac. TCAS de 16/12/2004, Proc. 00370/04).
12) A respeito do vício de usurpação de poder em que pode incorrer a AF, vd. o
seguinte aresto: “I - O vício de usurpação de poder «consiste na prática, por um
órgão da Administração, de acto incluído nas atribuições do poder legislativo ou
judicial». Reconduz-se à violação do princípio da separação de poderes,
constituindo, no fundo, uma forma de incompetência agravada. [...]. O vício de
usurpação de poder «consiste na prática, por um órgão da Administração, de acto
incluído nas atribuições do poder legislativo ou judicial» (Freitas do Amaral,
in Direito Administrativo, vol. II, pág. 295). Reconduz-se à violação do
princípio da separação de poderes, constituindo, no fundo, uma forma de
incompetência agravada, O que está em causa, no caso sub judice, é a violação da
função jurisdicional, reservada aos tribunais (artigo 202.° da CRP). De acordo
com pacífica doutrina e jurisprudência, a função jurisdicional consiste «na
actividade da resolução, com imparcialidade, à luz do direito constituído, dos
conflitos de interesses ou litígios de natureza pública ou privada», enquanto
que a função administrativa consiste «na realização, pelo Estado, do interesse
de satisfação das necessidades colectivas através da prestação de bens e
serviços» (cfr., por todos, o Parecer do Conselho Consultivo da
Procuradoria-Geral da República n.° 12/92, de 30/3/92 e os acórdãos deste STA de
13/3/2003 e de 23/3/2003, proferidos nos recursos n.°s 35 590 (Pleno) e 1
280/02, respectivamente).” (Ac. STA de 29/4/2003, Proc. 043/03). Sobre o
referido vício, vd. ainda o Ac. STA de 3/6/2003 (Proc. 045851).
13) Quanto à mencionada violação do direito de defesa, esta concretiza-se a
vários níveis, dado que à oponente são coarctadas possibilidades de defesa como
as de:
α) Provocar a intervenção de terceiros responsáveis solidários, como se prevê
nos artigos 325.° e ss. do CPC, maxime art. 329.°;
β) Discutir a concorrência de culpas (vd. art. 570.° Código Civil), nomeadamente
em casos em que a inércia da administração, deixando arrastar as diligências
necessárias para cobrança de dívidas ao devedor original, teve como consequência
facilitar o desaparecimento do património;
γ) Indeferimento liminar (a respeito desta última possibilidade de defesa,
convirá salientar que a sua limitação afecta o direito à segurança e à paz
jurídica ínsito na sua noção de Estado de Direito, e que se traduz em o cidadão
não ser incomodado na sua vida jurídica por processos infundamentados ou mesmo
absurdos – o que só se consegue evitar pelo controlo judicial, em primeira
linha, através do indeferimento liminar das pretensões que sejam manifestamente
inviáveis).
O indeferimento liminar é, recorde-se, um elemento de protecção dos cidadãos
pelo Juiz, que o defende da litigância persecutória e aleatória. Como se sabe,
todo o processo judicial implica, para o demandado, custos, ónus, riscos,
despesas, mesmo nos casos em que o demandante não tem quaisquer probabilidades
de sucesso – assim, o poder/dever do Juiz de indeferir liminarmente (vd. art.
234.°-A, n.° 1, CPC) constitui uma garantia de segurança e de paz jurídica para
o cidadão de que este só será chamado a responder em juízo em litígios
razoavelmente fundamentados. A reversão realizada por despacho administrativo
priva o cidadão desta garantia judicial de primeira linha.
Não parece, por outro lado, que se possa afirmar que a possibilidade de dedução
de oposição à execução garante à oponente a defesa necessária e, portanto, um
satisfatório controlo judicial do acto ora em causa. Com efeito, haverá que
distinguir a exigência constitucional de uma primeira decisão jurisdicional –
dado que a reversão é um acto que exige um prévio controlo judicial da
legalidade –, da mera possibilidade, ex post, de recurso do acto administrativo
ora sindicado.
14) Convirá ainda lembrar que a exigência constitucional da apreciação judicial
em primeira linha, abarca, naturalmente, casos como os da privação de liberdade,
e outros que impliquem violação ou privação de direitos, liberdades e garantias
pessoais (vd., p. ex., n.° 5 do art. 20.° da CRP), mas também outros casos em
que se configure a lesão de direitos ou interesses legalmente protegidos (vd.
n.° 1 do art. 20.° e n.° 4 do art. 268.º CRP).
É certo que a garantia das vias de recurso (que podemos designar por protecção
judicial de 2.° grau) assegura aos cidadãos que os Tribunais terão a última
palavra a dizer sobre as decisões da Administração. Situações, há, porém, em que
a efectiva protecção jurídica e a importância dos direitos dos cidadãos em causa
exigem que não apenas a última decisão mas logo a primeira (a primeira palavra)
caiba ao Juiz (o que podemos designar por protecção judicial de primeiro grau) e
não à Administração. Não basta, nestes casos, a garantia geral da existência de
vias de recurso.
A doutrina alemã utiliza, nesta matéria, o conceito de “Richtervorbehalt”, que
podemos traduzir por reserva de Juiz. Para além dos casos expressamente
previstos na Constituição, entende-se que o Juiz deve ser chamado a intervir em
primeiro lugar no interesse de uma protecção jurídica efectiva e para evitar o
risco de uma ausência de rectidão. Na formulação dada por Manfred Wolf, in
Gerichtsverfassungsrecht aller Verfahrenszweige, p. 5: “[...] é de reconhecer ao
Juiz a competência da primeira palavra, quando, no interesse de uma efectiva
protecção jurídica, devem ser evitados riscos quanto à rectidão
[Richtigkeitsrisiken] e, por isso, o Juiz que oferece garantias de rectidão
[Richtigkeitsgarantien] inerentes à «jurisdictio» deve ser chamado a intervir
tão cedo quanto possível.”
15) Note-se, também, o reconhecimento daquela exigência em vários casos
particulares de densificação do conceito de Estado de Direito, como os casos do
sigilo bancário (art. 63.°-B, n.° 7, da LGT e art. 146.°-C do CPPT), ou das
providências cautelares de natureza judicial como o arresto (art. 159.°
CPT/138.° CPPT e art. 406.°, n.° 2, CPC) e o arrolamento (art. 162.° CPT/art.
l41.° CPPT e art. 424.° CPC).
Repare-se, ainda, a respeito das acima referidas providências cautelares, que o
Juiz ordena, nesses casos, o arresto ou o arrolamento se, respectivamente,
entender que existe “uma probabilidade séria de que os patrimónios dos titulares
de bens que servem de garantia de cobrança de créditos tributários [...]
diminuam de valor a ponto de se tomarem insuficientes para cobrança de créditos
tributários” ou “se adquirir a convicção de que sem eles o interesse da Fazenda
Pública na conservação dos bens ou documentos corre sério risco (art. 423.°, n.°
2, do CPC)” (Jorge Lopes de Sousa, CPPT Anotado, 4.ª Ed., 2003, pp. 602 e 610,
respectivamente).
Por maioria de razão, tem de reconhecer-se que a reversão, porque representa
algo muito mais grave do que as supra referidas providências, requer, em 1.º
grau, a intervenção do Juiz.
16) Também no domínio do direito público, o exercício do direito de regresso do
Estado para exigir de um funcionário o pagamento de uma quantia – que o Estado
foi obrigado a pagar por culpa do funcionário – só pode ser exercido através dos
Tribunais.
O Estado não pode, por acto administrativo, fazer funcionar o direito de
regresso contra o funcionário e emitir um título executivo contra ele. Necessita
obter a sua condenação em Tribunal. Lembrando o citado Ac. STA de 2/2/1995,
Proc. 035151: “O TAC é o competente para conhecer da execução de uma sentença
desse Tribunal, que condenou, em acção de regresso, um funcionário a pagar ao
Estado determinada quantia que este teve de liquidar aos lesados, conforme fora
condenado em anterior acção, em situação de responsabilidade civil
extracontratual decorrente de conduta do Réu ora executado, solidariamente com
ele.” As mesmas razões de Direito Constitucional se impõem no caso da
responsabilidade subsidiária dos gerentes.
17) Como já se referiu, a participação do responsável subsidiário equivale a uma
alteração dos fundamentos da própria execução, pelo que o simples recurso à
oposição coloca-o numa situação de desvantagem, configurando, assim, uma clara
violação: a) do princípio da tutela jurisdicional efectiva (art. 20.° e 268.°,
n.° 4, CRP) e do direito de defesa (art. 20.° CRP); e b) do princípio da
igualdade (art. 13.° CRP) de tratamento em sede de responsabilidade
extra-contratual.
18) Note-se, por último, que a referida desvantagem é visível não só em matéria
de direito de defesa, como acima se indicou, mas também em matéria de igualdade
de tratamento, se se tiver em conta: a) no direito privado, o regime aplicável
em acções de responsabilidade; b) no direito público, a competência judicial
afirmada em casos como os do direito de regresso (como se verificou no Ac. STA
de 2/2/1995, Proc. 035151), e ainda em Acórdãos do Tribunal Constitucional
relativos a condenações em custas, de que já se fez menção.
19) Verifica-se, pelo que ficou dito, que os arts. 43.º, al. g), 239.º, n.º 2,
13.º e 246.º n.° 1, do CPT, e art. 23.°, n.°1,da LGT – ao abrigo dos quais a
reversão foi proferida pelo chefe de Repartição de Finanças –, são
inconstitucionais por violação, pelas razões supra expostas, dos seguintes
artigos da Constituição: art. l3.° (princípio da igualdade), art. 111.º
(princípio da separação de poderes), artigos 202.° e 212.° (competência dos
Tribunais), artigos 20.° e 268.°, n.° 4 (princípio da tutela jurisdicional
efectiva e direito de defesa), pelo que a sua aplicação deve ser recusada pelo
Juiz (vd. art. 204.° da CRP).
Conclui-se, assim, que a reversão, dado que se fundamenta em disposições que
violam as normas constitucionais citadas, deve ser anulada (vd. art.3.º, n.° 3,
e art. 204.° da CRP)».
4. O Ministério Público interpôs recurso desta decisão para o Tribunal
Constitucional, “porquanto [o Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa], por
considerar inconstitucionais as normas contidas nos artºs 23º e 24º da Lei Geral
Tributária e 160º do Código de Procedimento e Processo Tributário anulou o
despacho de reversão proferido com a consequente extinção da execução fiscal,
deixando de conhecer o mérito da causa”.
A Fazenda Pública, “tendo sido notificada da douta sentença que recusou a
aplicação das normas dos artigos 43º alínea g), 239º, nº 2, 13º e 246º, nº 1 do
CPT, e artº 23º da LGT, por, alegadamente, violarem os artigos 13º, 111º, 202º,
212º, artigos 20º e 268º nº 4 da CRP”, interpôs recurso daquela decisão, ao
abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
5. Notificado para alegar, o Ministério Público sustentou, para o que agora
releva, que:
«O presente recurso obrigatório vem interposto pelo Ministério Público da
decisão, proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa, que recusou
aplicar, com fundamento em inconstitucionalidade, as normas que estabelecem o
regime procedimental da efectivação da responsabilidade subsidiária dos gerentes
e administradores de sociedades, mediante reversão, operada no domínio da
execução fiscal, em consequência de despacho do Chefe do Serviço de Finanças.
Importa corrigir liminarmente um lapso manifesto do requerimento de fls. 140, no
que se refere à identificação dos preceitos legais que suportam a norma
desaplicada na decisão recorrida: na verdade, tal decisão, em termos obviamente
insindicáveis por este Tribunal Constitucional, considerou que seriam
aplicáveis, não os preceitos que regulam a figura da reversão no actual CPPT,
mas os que constavam do CPT (sendo, aliás, expressa tal decisão ao julgar
inconstitucionais os artigos 43°, alínea g), 239°, n° 2, 13° e 246°, n° 1, do
CPT, bem como o artigo 23°, n° 1, da LGT); deste modo, serão naturalmente tais
preceitos legais – para além do artigo 23° da LGT – que suportam a norma
consagradora do regime jurídico da reversão, em causa no presente processo (e
não a norma do artigo 160º do CPPT, como, por lapso, se refere no requerimento
de interposição do recurso do Ministério Público).
Note-se que esta rectificação, que ora se requer, não colide com a definição
normativa do objecto do recurso, já que – no ponto em crise nos presentes autos
– o regime que constava do CPT e o que consta do CPPT é perfeitamente idêntico –
cabendo efectivamente à administração tributária verificar os pressupostos do
“direito de reversão” e determinar (administrativamente) a consequente
modificação da instância executiva, de modo a que esta passe a correr contra os
referidos administradores ou gerentes da sociedade que, originariamente, era
devedora ao fisco».
6. Notificada para alegar, a Fazenda Pública concluiu que:
«a) A instauração da execução pela Administração Fiscal não envolve um juízo de
exequibilidade do título ou sobre a verificação dos pressupostos da acção
executiva.
b) O despacho que ordena a reversão contra o responsável subsidiário não é um
acto jurisdicional.
c) Não viola os princípios do Estado de Direito Democrático, da igualdade, da
separação de poderes, da competência dos Tribunais e da tutela jurisdicional
efectiva e do direito de defesa o regime legal estabelecido da competência dos
serviços da Administração Fiscal para instaurar os processos de execução fiscal
e realizar os actos a eles respeitantes, entre os quais se encontra o chamamento
à execução dos responsáveis subsidiários».
7. Notificada para alegar, a recorrida não respondeu.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. Atendendo ao teor do requerimento de interposição de recurso do Ministério
Público e à primeira parte das alegações produzidas (cf. pontos 4. e 5. do
Relatório), importa começar por decidir se podem ser dados como verificados os
pressupostos do recurso de constitucionalidade interposto em obediência ao
consagrado no n.º 3 do artigo 72.º da LTC.
Nos presentes autos, como a decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de
Lisboa não recusou a aplicação de normas contidas nos artigos 23.º e 24.º da Lei
Geral Tributária e 160.º do Código de Procedimento e Processo Tributário, não se
verifica o pressuposto da recusa de aplicação pelo tribunal recorrido, como
ratio decidendi, das normas cuja apreciação é requerida ao Tribunal
Constitucional (artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da LTC). Uma vez que a norma cuja
aplicação foi recusada se reporta aos artigos 43.º, alínea g), 239.º, n.º 2,
13.º e 246.º, n.º 1, do Código de Processo Tributário e 23.º da Lei Geral
Tributária, não pode conhecer-se do objecto do recurso interposto pelo
Ministério Público.
2. Não competindo a este Tribunal sindicar a decisão que considerou aplicável o
Código de Processo Tributário e, nomeadamente, o artigo 13.º deste diploma, que
já então se encontrava revogado, cumpre apreciar e decidir, conhecendo do
objecto do recurso interposto pela Fazenda Pública, se os artigos 43.º, alínea
g), 239.º, n.º 2, 13.º e 246.º, n.º 1, do Código de Processo Tributário e 23.º,
n.º 1, da Lei Geral Tributária, na parte em que permitem que, por despacho do
Chefe de Serviço de Finanças, se efective a reversão no processo de execução
fiscal contra responsáveis subsidiários por dívidas fiscais, violam os
princípios da igualdade (artigo 13.º da CRP), da separação de poderes (artigo
111.º da CRP), da competência dos tribunais (artigos 202.º e 212.º da CRP) e da
tutela jurisdicional efectiva (artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP) e o direito
de defesa (artigo 20.º da CRP).
É a seguinte a redacção dos artigos do Código de Processo Tributário (CPT),
aprovado pelo Decreto-Lei n.º 154/91, de 23 de Abril,
«Artigo 13.º
Responsabilidade dos administradores ou gerentes das empresas
e sociedades de responsabilidade limitada
1 – Os administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente
de facto, funções de administração nas empresas e sociedades de responsabilidade
limitada são subsidiariamente responsáveis em relação àquelas e solidariamente
entre si por todas as contribuições e impostos relativos ao período de exercício
do seu cargo, salvo se provarem que não foi por culpa sua que o património da
empresa ou sociedade de responsabilidade limitada se tornou insuficiente para a
satisfação dos créditos fiscais.
2 – A responsabilidade prevista neste artigo aplica-se aos membros dos órgãos de
fiscalização e revisores oficiais de contas, nas sociedades em que os houver,
desde que se demonstre que a violação dos deveres tributários das sociedades
resultou do incumprimento das suas funções de fiscalização (Redacção dada pelo
artigo 52.º da Lei n.º 52-C/96, de 27 de Dezembro; Revogado pelo artigo 2.º, n.º
1, do Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro).
Artigo 43.º
Competência da administração fiscal
Aos serviços da administração fiscal cabe:
(…);
g) Instaurar os processos de execução fiscal e realizar os actos a eles
respeitantes, salvo o que se dispõe no n.º 2 do artigo 237.º;
(…).
Artigo 239.º
Legitimidade dos executados
1 – (…).
2 – O chamamento à execução dos responsáveis subsidiários depende da verificação
de qualquer das seguintes circunstâncias:
a) Inexistência de bens penhoráveis do devedor e seus sucessores;
b) Insuficiência do património do devedor para a satisfação da dívida
exequenda e acrescido.
Artigo 246.º
Reversão no caso de pluralidade de responsáveis subsidiários
1 – Quando a execução reverta contra responsáveis subsidiários, o chefe da
repartição de finanças mandá-los-á citar todos, depois de obtida informação no
processo sobre as quantias por que respondem.
(…)».
Por seu turno, tem a seguinte redacção o artigo 23.º da Lei Geral Tributária
(LGT), aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro:
«Artigo 23.º
Responsabilidade tributária subsidiária
1 – A responsabilidade subsidiária efectiva-se por reversão do processo de
execução fiscal.
(…)».
3. Segundo a decisão recorrida, os artigos 43.º, alínea g), 239.º, n.º 2, 13.º e
246.º, n.º 1, do Código de Processo Tributário e 23.º, n.º 1, da Lei Geral
Tributária, na parte em que permitem que, por despacho do Chefe de Serviço de
Finanças, se efective a reversão no processo de execução fiscal contra
responsáveis subsidiários por dívidas fiscais, não respeitam os princípios
constitucionais da separação de poderes (artigo 111.º) e da competência dos
Tribunais (artigos 202.º e 212.º). Isto, porque “a reversão constitui acto
situado na esfera de competência da função jurisdicional”, uma vez que, “na
aparente simplicidade do despacho de reversão, o Chefe de Serviço profere uma
condenação no pagamento de uma quantia determinada com fundamento em
responsabilidade extra-contratual”.
A questão é, pois, a de saber se aquela norma viola ou não o princípio de que
compete aos tribunais o exercício da função jurisdicional e, consequentemente, a
proibição de tal função poder ser atribuída a outros órgãos.
3.1. A norma que é objecto de apreciação insere-se num modelo de repartição de
competências entre os tribunais tributários e os serviços da administração
fiscal, no que se refere à cobrança coerciva realizada através do processo de
execução fiscal, regulado nos artigos 233.º e ss. do CPT e 103.º da LGT: ao
tribunal tributário de 1ª instância da área onde correr a execução compete
decidir os incidentes, os embargos, a oposição, a verificação e graduação de
créditos e a anulação da venda, bem como os recursos referidos no artigo 355.º,
para além de lhe competir conhecer de todas as questões relativas à legitimidade
dos responsáveis subsidiários, incluindo a culpa das pessoas referidas nos
artigos 12.º e 13.º (artigo 237.º, n.ºs 2 e 3, do CPT e 103.º, n.º 1, da LGT);
aos serviços da administração fiscal cabe, ressalvado o que se dispõe
expressamente quanto à competência do tribunal tributário, instaurar os
processos de execução fiscal e realizar os actos a eles respeitantes (artigo
43.º, alínea g), do CPT e 103.º, n.º 1, da LGT).
Sobre aquele modelo e, especificamente, sobre a conformidade constitucional das
normas que estabelecem a repartição de competências que o caracteriza,
nomeadamente à luz do consagrado no artigo 202.º (Função jurisdicional) da CRP,
pode ler-se no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 331/92 (Diário da
República, II Série, de 14 de Novembro de 1992) que:
«Na realidade, ainda que se aceite que o processo de execução fiscal, tal como é
gizado no C.P.T., assumiu, como o epitetou o despacho recorrido, uma «natureza
administrativa», o que é certo é que nele se consagra que compete ao tribunal
tributário de 1ª instância (cfr. artigos 237º, números 2 e 3, e 355º) da área
onde correr a execução decidir os incidentes, embargos, oposição, verificação e
graduação de créditos, questões relativas à legitimidade dos responsáveis
subsidiários, incluindo a culpa dos titulares de estabelecimento individual de
responsabilidade limitada ou dos administradores, gerentes, pessoas que exerçam
funções de administração, membros dos órgãos de fiscalização e revisores
oficiais de contas das empresas e sociedades de responsabilidade limitada, e
recursos das decisões proferidas pelos chefes das repartições de finanças e
outras autoridades da administração fiscal que afectem os direitos e interesses
legítimos dos executados.
Portanto, no novo ordenamento adjectivo tributário, diríamos, com Lima Guerreiro
e Dias Mateus (Código de Processo Tributário, 274), que a competência meramente
administrativa foi confiada às autoridades fiscais, sendo reservada aos
tribunais tributários a decisão de 'questões de julgamento nitidamente
jurisdicionais'.
Dizem estes comentadores (loc. cit) que '[e]sta solução [a de ser confiada às
repartições de finanças a prática de funções administrativas e aos tribunais
tributários de 1ª instância a decisão de questões jurisdicionais] não contradiz
a competência atribuída pelo E.T.A.F. aos tribunais tributários de 1ª instância,
já que esta se exerce apenas nas questões jurisdicionais em caso de litígio
entre exequente e executado,...', pelo que, concluem eles, se restituiu 'a todos
os tribunais tributários de 1ª instância a sua verdadeira vocação - julgar'
(cfr. a anotação 6ª ao artº 237º e as anotações ao artº 355º do C.P.T. efectuada
por A. José de Sousa e José S. Paixão no cit. Código de Processo Tributário
Comentado e Anotado, pags. 436 e 723 e 724).
Daí que se conclua que, tendo em atenção as funções que estão reservadas aos
tribunais tributários de 1ª instância pelo C. P.T., funções essas que, como é
claro, também serão desempenhadas pelos Tribunais Tributários de 1ª Instância de
Lisboa e Porto, a par de outras que também lhes compete exercer por força da
norma em apreço, não fica despojado o cerne ou núcleo essencial da missão que a
Constituição confiou aos órgãos de soberania tribunais, e agora por referência
aos dois aludidos tribunais tributários (cfr., sobre a função jurisdicional,
Jorge Miranda, A Constituição de 1976 - Formação, Estrutura e Princípios
Fundamentais, 476 e 479, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da
República Portuguesa Anotada, 2ª edição, 2º vol., 311 e 312, Afonso Queiró,
Lições de Direito Administrativo, 1976, 41 e segs. e A função administrativa,
estudo publicado na Revista de Direito e Estudos Sociais, XXIV ano, 31,
Castanheira Neves, O Instituto dos Assentos e a Função Jurídica dos Supremos
Tribunais, 435 e segs., Pierre Moor, Droit Administratif, vol. 1º, Berna, 1988,
4 e segs., Gomes Canotilho, ob. cit., 767 e segs., e Acórdãos deste Tribunal
números 71/84 - Acórdãos do Tribunal Constitucional, 4º vol., 185 e segs., 72/82
- Diário da República, 2ª Série, de 10 de Janeiro de 1985, 104/85 - Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 5º vol., 633 e segs., 178/86 - Diário da República, 1ª
Série, de 23 de Junho de 1986, e 443/91 - Diário da República, 2ª Série,
Suplemento ao nº 78, de 2 de Abril de 1992)».
Mais recentemente, no mesmo sentido, pode ler-se no Acórdão do Tribunal
Constitucional n.º 80/2003 (Diário da República, II Série, de 21 de Março de
2003) que:
«Como é consabido, o processo de execução fiscal não é mais do que um processo
cujo escopo jurídico é o de realizar coercivamente o direito de crédito de que
goza o credor tributário, em regra, antes constitutivamente verificado - na
acepção de estar corporizado em um título formal que expressa ou declara o valor
da dívida tributária - através de um acto administrativo-tributário, dotado de
imperatividade ou de autotutela jurídicas - o acto de liquidação - , fazendo-o
valer sem uma prévia verificação judicial da sua legalidade.
Como processo que é, o processo de execução fiscal é constituído por uma série
encadeada de actos que estão funcionalmente orientados para atingir o seu fim
específico: o da cobrança da dívida tributária e o seu pagamento ao credor
tributário (…).
No domínio do Código de Processo Tributário, a que se referem as normas cuja
constitucionalidade se questiona - sendo certo que já lhe sucedeu o Código de
Procedimento e de Processo Tributário, que foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º
433/99, de 26 de Outubro, onde as questões poderão ser postas nos mesmos termos
- , o desenvolvimento e encadeamento desses actos constava dos artigos 233º e
ss..
(…) a nossa lei fundamental não obriga a que todos os actos em que se desenrola
o processo de execução fiscal devam ser obrigatoriamente praticados pelo juiz,
pese embora a jurisprudência fiscal e, hoje, abertamente a Lei Geral Tributária
(art.º 103º n.º 1), aprovada pelo Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de Outubro
atribuam ao processo de execução fiscal 'natureza judicial'.
O que a Constituição da República garante (art.º 103.º, n.º 3) é que 'ninguém
pode ser obrigado a pagar impostos... cuja liquidação e cobrança se não façam
nos termos da lei', nela se compreendendo, evidentemente, tanto a cobrança
voluntária, como a coerciva. Os actos de cobrança têm, pois, de fazer-se a
coberto da lei.
Mas dessa exigência constitucional não resulta que os actos que integram o
processo de execução fiscal hajam de ser sempre praticados por um juiz.
Ao incluir-se este tipo de processo entre os processos de natureza judicial,
apenas se pretende afirmar que os conflitos de interesses que dentro dele se
suscitem – mesmo que sejam emergentes, não só da actuação das partes ou até de
terceiros no processo, como também de qualquer decisão que nele seja tomada pela
administração fiscal, relativamente aos actos para cuja prática a lei lhe
atribui competência –, serão sindicados, no próprio processo, sempre pelo juiz
tributário.
Sendo assim, a prática dos actos do processo de execução fiscal, de natureza não
jurisdicional, bem pode ser confiada, segundo os próprios termos daquele art.
103.º, n.º 3 da Constituição à administração fiscal. Daí a razão de ser da
ressalva feita no referido art.º 103º, n.º 2 da Lei Geral Tributária [o processo
de execução fiscal tem natureza judicial,] sem prejuízo da participação dos
órgãos da administração tributária nos actos que não tenham natureza
jurisdicional'. Daí também, igualmente, a salvaguarda estabelecida na segunda
parte da acima transcrita alínea g) do art.º 43º do CPT.
Na verdade, as matérias que este preceito ressalva não podem deixar, segundo a
concepção constitucional da função jurisdicional - que de seguida se precisará -
, de ser tidas, por natureza, como abarcadas por ela: a decisão dos incidentes
(como o da incompetência do tribunal); dos embargos de terceiro; da oposição à
execução; da verificação e graduação de créditos (pelo menos quando contestada,
já que se poderá discutir essa sua qualificação quando inexistir qualquer
controvérsia sobre a sua existência e a ordem da sua chamada para pagamento); da
anulação da venda e dos recursos das decisões proferidas pelo chefe de
repartição de finanças e outras autoridades da administração fiscal que afectem
os direitos e interesses legítimos do executado (ou de outros interessados no
processo)».
3.2. Nos presentes autos o que importa, então, decidir é se o despacho do Chefe
de Serviço de Finanças que reverte a execução fiscal contra responsáveis
subsidiários por dívidas fiscais – um dos actos respeitante ao processo de
execução fiscal que a lei não inclui expressamente na competência do tribunal
tributário (artigo 237.º, n.º 2, do CPT) – tem ou não natureza jurisdicional.
O Tribunal Constitucional já se pronunciou, nos Acórdãos n.ºs 152/2002 (Diário
da República, II Série, de 31 de Maio de 2002) e 80/2003, pela conformidade
constitucional das normas que atribuem aos serviços da administração fiscal
competência para instaurar o processo de execução fiscal mediante despacho a
lavrar no ou nos respectivos títulos executivos, para efectuar o respectivo
registo e para ordenar a citação do executado (artigo 272.º, n.º 1, do CPT),
tendo em conta o consagrado nos artigos 111.º (Separação e interdependência),
202.º (Função jurisdicional) e 212.º (Tribunais Administrativos e Fiscais) da
CRP.
Decidiu no sentido da não inconstitucionalidade das normas que atribuem àqueles
serviços competência para a prática daqueles actos, a partir do critério de
distinção entre função jurisdicional e função administrativa que este Tribunal
tem seguido de forma reiterada. Sobre este critério, é de reter a seguinte
passagem do Acórdão n.º 80/2003:
“A problemática da definição da função jurisdicional e do seu confronto com as
restantes funções do Estado - mas mormente da função administrativa - tem sido,
por referência a tais preceitos, objecto de uma larga discussão, quer na
doutrina, quer na jurisprudência.
Na doutrina, A. Rodrigues Queiró procurou distingui-las a partir de um critério
teleológico. Segundo escreveu, «essencial, para que se fale de um acto
jurisdicional, parece-nos ser, para já, que um agente estadual tenha que
resolver de acordo com o direito 'uma questão jurídica', entendendo-se por tal
um conflito de pretensões entre duas ou mais pessoas, ou uma controvérsia sobre
a verificação em concreto de uma ofensa ou violação da ordem jurídica'.
E noutro passo precisava: «Ao cabo e ao resto, o quid specificum do acto
jurisdicional reside em que ele não pressupõe, mas é necessariamente praticado
para resolver uma questão de direito. Se, ao tomar-se uma decisão, a partir de
uma decisão de facto traduzida numa «questão de direito» (na violação do direito
objectivo ou na ofensa de um direito subjectivo), se actua por força da lei,
para se conseguir a produção de um resultado prático diferente da paz jurídica
decorrente da resolução dessa «questão de direito», então não estaremos perante
um acto jurisdicional: estaremos, sim, perante um acto administrativo (cfr.
Lições de Direito Administrativo, vol. I, 1976, pp. 43, 44 e 51, e «A Função
Administrativa», Separata da Revista de Direito e de Estudos Sociais, XXIV (n.ºs
1, 2 e 3), Coimbra, 1977, pp. 30-31).
O critério teleológico é igualmente o seguido por R. Ehrhardt Soares quando
afirma que, na actividade administrativa, a resolução do conflito de interesses
(da «questão de direito») é orientada por uma perspectiva de interesse público -
justamente, do interesse público específico que a norma expressa.
Também este Tribunal Constitucional tem uma abundante jurisprudência sobre o
conceito da função jurisdicional e da função administrativa (cfr., entre muitos,
e só no tomo 31º dos Acórdãos do Tribunal Constitucional, os Acórdãos n.os
225/95, 226/95, 269/95, 375/95).
Assim, no Acórdão n.º 452/95 (cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional, 31º vol,
pp. 181), que teve de se pronunciar sobre um dos casos de zona de fronteira,
acentuou-se:
«A função jurisdicional consubstancia-se, assim, numa 'composição de conflitos
de interesses', levada a cabo por um órgão independente e imparcial, de harmonia
com a lei ou com critérios por ela definidos, tendo como fim específico a
realização do direito e da justiça (cfr. o Acórdão deste Tribunal n.º 182/90,
publicado no Diário da República, II Série, de 11 de Setembro de 1990). Aquela
função estadual diz respeito a matérias em relação às quais os tribunais têm de
ter não apenas a última palavra, mas logo a primeira palavra (cfr. Acórdãos
deste Tribunal n.os 98/88 e 211/90, o primeiro publicado no Diário da República,
II Série, de 22 de Agosto de 1988, e o segundo nos Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 16º vol., pp. 575 e ss.). A função administrativa é, ao invés,
uma actividade que, partindo de uma situação de facto traduzida numa 'questão de
direito', visa a prossecução do interesse público que a lei põe a cargo da
administração e não a paz jurídica que decorre da resolução dessa questão. Daí
que, na actividade administrativa, a primeira palavra deva caber à
administração, cabendo aos tribunais a última e definitiva palavra, de acordo
com a garantia constitucional do recurso contencioso, condensada no art.º 268.º,
n.º 4, da Lei Fundamental».
Mas outras formulações poderão ser colhidas na jurisprudência deste Tribunal.
Assim, no Acórdão n.º 104/85, publicado no Diário da República, II Série, de 2
de Agosto, de 1985, afirmou-se:
«A separação real entre a função jurisdicional e a função administrativa passa
pelo campo dos interesses em jogo: enquanto a jurisdição resolve litígios em que
os interesses em confronto são apenas os das partes, a Administração, embora na
presença de interesses alheios, realiza o interesse público. Na primeira
hipótese a decisão situa-se num plano distinto do dos interesses em conflito. Na
segunda hipótese verifica-se uma osmose entre o caso resolvido e o interesse
público”.
3.3. Reiterando o entendimento de que a função jurisdicional se consubstancia
numa composição de conflitos de interesses, levada a cabo por um órgão
independente e imparcial, de harmonia com a lei ou com critérios por ela
definidos, tendo como fim específico a realização do direito e da justiça, é de
concluir que o poder que os artigos 13.º, 43.º, alínea g), 239.º, nº 2, 246.º,
nº 1, do CPT e 23.º da LGT conferem ao Chefe de Serviço de Finanças para
reverter o processo de execução fiscal contra responsáveis subsidiários por
dívidas fiscais não se traduz no exercício da função jurisdicional.
Com efeito, no despacho através do qual é revertida a execução fiscal contra
tais responsáveis não se vislumbra uma qualquer composição de interesses
conflituantes, uma qualquer resolução de um conflito que oponha o credor
tributário (ou o contribuinte directo) àquele que é chamado à execução, que
tenha como fim específico a realização do direito e da justiça. O que ocorre é
uma ampliação do âmbito subjectivo da execução, por força de lei (artigos 13.º e
239.º, n.º 2, do CPT e 24.º da LGT), relativamente a alguém que também é sujeito
passivo da relação tributária, vinculado ao cumprimento da prestação tributária
(artigo 18.º, n.º 3, da LGT), se não houver bens penhoráveis do devedor e seus
sucessores ou se o património do devedor for insuficiente para a satisfação da
dívida exequenda e acrescido.
Apesar de a execução fiscal reverter contra pessoa distinta da que figura no
título executivo como devedor e de relativamente a ela não ocorrerem os
pressupostos do facto tributário, mas sim os pressupostos da responsabilidade
(sobre isto, cf. Ana Paula Dourado, “Substituição e responsabilidade
tributária”, Ciência e Técnica Fiscal, 1998, 391, p. 50 e ss.), estamos perante
um acto respeitante ao processo de execução fiscal que visa, exclusivamente, a
prossecução do interesse público da “defesa patrimonial do Fisco”. De resto, a
extensão da obrigação de cumprimento da prestação tributária, a pessoas diversas
do contribuinte directo, tem em vista “reforçar a garantia do cumprimento da
obrigação fiscal em certos casos em que é ou pode tornar-se problemático ou
impossível fazer àquele [ao contribuinte directo] a sua cobrança”,
independentemente de também lhe poder ser associada uma ideia sancionatória
(Cardoso da Costa, Curso de Direito Fiscal, Almedina, 1972, p. 299 e s. O autor
afirma, mesmo, que o responsável subsidiário se encontra “em regra na posição
como que de um fiador legal”, p. 301).
Não obstante a circunstância de não haver no acto em causa qualquer composição
de interesses conflituantes – diferentemente da situação apreciada no Acórdão do
Tribunal Constitucional n.º 182/90, Diário da República, II Série, de 11 de
Setembro de 1990, citado pela decisão recorrida – ser, por si só, significativa
de que o Chefe de Serviço de Finanças não “profere uma condenação no pagamento
de uma quantia determinada com fundamento em responsabilidade extra contratual”,
sempre se acrescentará que é demonstrativa disso mesmo a possibilidade de
deduzir oposição (cf. infra ponto 4.). Caso em que terá lugar, então sim, uma
composição de conflitos de interesses, levada a cabo por um órgão independente e
imparcial, de harmonia com a lei ou com critérios por ela definidos, tendo como
fim específico a realização do direito e da justiça (cf. artigo 237.º, n.ºs 2 e
3, do CPT).
3.4. Tendo presente que a execução fiscal revertida contra responsáveis
subsidiários, por despacho do Chefe de Serviço de Finanças, tem por base um
título executivo extrajudicial (artigos 235.º, 248.º e 249.º do CPT), é ainda de
referir que o Tribunal Constitucional tem entendido que as normas que permitem a
criação de um título executivo extrajudicial não ofendem o princípio da “reserva
de juiz”: se, por um lado, se tem concluído que tal actividade não se traduz no
exercício de poderes característicos da função jurisdicional; por outro, tem-se
destacado que quem figura como devedor em tal título executivo poderá sempre
lançar mão de fundamentos que lhe seria lícito deduzir como defesa no processo
de declaração, momento em que ocorrerá, então, a “resolução do conflito por um
órgão independente e imparcial, de harmonia com normas ou critérios legais
pré-existentes – e tudo com vista à realização do direito e da justiça” (cf.
Acórdãos n.ºs 760/95, 761/95 e 376/96, Diário da República, II Série, de 2 de
Fevereiro e 12 de Julho de 1996, relativamente às certidões de dívida emanadas
das instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde, e
Acórdãos n.ºs 394/95, Diário da República, II Série, de 15 de Novembro de 1995,
e 398/95, não publicado, no que diz respeito à aposição pelo secretário judicial
de fórmula executória no requerimento de injunção. Cf., ainda, mais
recentemente, Acórdão nº 669/2005, Diário da República, II Série, de 2 de
Fevereiro de 2006).
4. Da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa, resulta, também,
que os artigos 43.º, alínea g), 239.º, n.º 2, 13.º e 246.º, n.º 1, do Código de
Processo Tributário e 23.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária, na parte em que
permitem que, por despacho do Chefe de Serviço de Finanças, se efective a
reversão no processo de execução fiscal contra responsáveis subsidiários por
dívidas fiscais, violam o direito de defesa e o princípio da tutela
jurisdicional efectiva, consagrados nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP.
Ainda que a argumentação constante da decisão recorrida assente,
fundamentalmente, na qualificação – já recusada – do acto de reversão da
execução fiscal contra aqueles responsáveis como acto materialmente
jurisdicional, retirando daí a necessidade do que é designado por protecção
judicial de primeiro grau, sempre se dirá que a norma que é objecto de
apreciação não viola o direito de defesa e o princípio da tutela jurisdicional
efectiva.
Por um lado, o despacho que reverte a execução fiscal é, obrigatoriamente,
precedido de audição do responsável subsidiário (artigos 23.º, n.º 4, primeira
parte, e 60.º da LGT); por outro, o responsável subsidiário pode sempre deduzir
oposição à execução, cuja decisão é da competência de um tribunal, com
fundamento na ausência dos pressupostos da responsabilidade subsidiária (artigos
237.º, n.ºs 2 e 3, e 286.º, n.º 1, alínea b), parte final, do CPT) – “uma
mini-acção declarativa enxertada no processo de execução fiscal” (Casalta
Nabais, Direito Fiscal, Almedina, 2006, p. 339, reportando-se ao direito
vigente). Devendo anotar-se, ainda, que aquele despacho e a subsequente citação
do responsável subsidiário inclui declaração fundamentada dos pressupostos e da
extensão da reversão (artigos 246.º, n.º 1, do CPT e 23.º, n.ºs 1 e 4, parte
final, da LGT).
5. De acordo com a sentença recorrida, os artigos 43.º, alínea g), 239.º, n.º 2,
13.º e 246.º, n.º 1, do Código de Processo Tributário e 23.º, n.º 1, da Lei
Geral Tributária, na parte em que permitem que, por despacho do Chefe de Serviço
de Finanças, se efective a reversão no processo de execução fiscal contra
responsáveis subsidiários por dívidas fiscais, violam, ainda, o princípio da
igualdade, contido no artigo 13.º da CRP.
Mais uma vez, a aplicação da norma em causa é recusada com fundamento na
qualificação do acto de reversão como acto materialmente jurisdicional, o que
permite a comparação, designadamente, com a norma que foi objecto de apreciação
no já mencionado Acórdão n.º 182/90, que decidiu no sentido de julgar
inconstitucional a norma constante do terceiro parágrafo da alínea b) do mapa I
anexo ao Decreto-Lei nº 376/87, de 11 de Dezembro, na parte em que confere aos
secretários judiciais competência para «proferir todas as decisões sobre matéria
de custas», com o sentido que lhe foi dado pelo juiz a quo, por violação dos
artigos 168.º, n.º 1, alínea q), 205.º e 206.º da Constituição. Apesar disso,
deve notar-se que não se vê como é que o acto de reversão da execução fiscal
contra responsáveis subsidiários por dívidas fiscais, nos termos legalmente
previstos, pode contender com as dimensões que o princípio da igualdade convoca:
a proibição do arbítrio; a proibição de discriminação; e a obrigação de
diferenciação (cf., entre outros, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º
96/2005, Diário da República, II Série, de 31 de Março).
6. Contrariamente ao decidido pelo tribunal recorrido, é de concluir que os
artigos 43.º, alínea g), 239.º, n.º 2, 13.º e 246.º, n.º 1, do Código de
Processo Tributário e 23.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária, na parte em que
permitem que, por despacho do Chefe de Serviço de Finanças, se efective a
reversão no processo de execução fiscal contra responsáveis subsidiários por
dívidas fiscais, não violam os artigos 111.º, 202.º, 212.º, 20.º, 268.º, n.º 4,
e 13.º da Constituição da República Portuguesa.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Não conhecer do objecto do recurso interposto pelo Ministério Público;
b) Conceder provimento ao recurso interposto pela Fazenda Pública, determinando
a reforma da decisão recorrida em conformidade com o decidido quanto à questão
de inconstitucionalidade.
Lisboa, 6 de Março de 2007
Maria João Antunes
Paulo Mota Pinto
Maria Helena Brito
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Vítor Gomes
Rui Manuel Moura Ramos
Benjamim Rodrigues
Bravo Serra
Gil Galvão
Carlos Pamplona de Oliveira
Mário José de Araújo Torres (vencido
quanto ao não
conhecimento do recurso do Ministério Público,
pelas razões
constantes da declaração de voto junta)
Artur Maurício
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido quanto à decisão de não
conhecimento do recurso interposto pelo Ministério Público, por o precedente
acórdão ter entendido que, no caso, “não se verifica o pressuposto da recusa de
aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, das normas cuja
apreciação é requerida ao Tribunal Constitucional”.
É para mim patente a identidade da norma cuja
aplicação foi recusada, na decisão recorrida, com fundamento em
inconstitucionalidade e a norma cuja conformidade constitucional o Ministério
Público pretende que seja apreciada pelo Tribunal Constitucional: trata‑se da
norma que atribui competência ao órgão da execução fiscal para determinar a
reversão do processo de execução contra os responsáveis subsidiários pela dívida
fiscal.
É certo que a decisão recorrida extraiu essa
norma da conjugação de diversos preceitos legais que entendeu aplicáveis (apesar
de o presente processo respeitar a execução por dívidas de IVA de 1999, à CRSS
de Lisboa no período de Fevereiro a Outubro de 1999 e de coimas fiscais de 2000,
deduzindo‑se da respectiva numeração que os processos de execução fiscal terão
sido instaurados em 2001, e sendo certo que o despacho que determinou a reversão
data de 8 de Abril de 2002) – os artigos 13.º (na redacção da Lei n.º 52‑B/96,
de 27 de Dezembro, que estabelece a responsabilidade solidária dos
administradores ou gerentes das empresas e sociedades de responsabilidade
limitada), 43.º, alínea g) (que atribui aos serviços da Administração Fiscal
competência para instaurar os processos de execução fiscal e realizar os actos a
ela respeitantes, salvo os que o n.º 2 do artigo 237.º reserva aos tribunais
tributários), 239.º, n.º 2 (que especifica as circunstâncias de cuja
verificação depende o chamamento à execução dos responsáveis subsidiários), e
246.º, n.º 1 (que prevê que, quando a execução reverta contra responsáveis
subsidiários, o chefe da repartição de finanças os mande citar a todos, depois
de obtida informação no processo sobre as quantias por que respondem), do Código
de Processo Tributário (CPT), aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 154/91, de 23 de
Abril, e 23.º, n.º 1 (que determina que a responsabilidade subsidiária se
efectiva por reversão do processo de execução fiscal), da Lei Geral Tributária
(LGT), aprovada pelo Decreto‑Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro – e que, no
requerimento de interposição de recurso, o Ministério Público reportou a mesma
norma aos preceitos constantes dos artigos 23.º e 24.º da Lei Geral Tributária e
160.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aprovado pelo
Decreto‑Lei n.º 433/99, de 26 de Outubro, sendo os artigos 24.º da LGT e 160.º
do CPPT correspondentes, respectivamente, aos artigos 13.º (este expressamente
revogado pelo artigo 2.º, n.º 1, do Decreto‑Lei n.º 398/98, que aprovou a LGT) e
246.º do CPT.
Reconhece‑se que, mesmo que se considerasse
juridicamente mais correcta a invocação dos preceitos invocados no requerimento
de interposição de recurso do Ministério Público (por ser aplicável aos autos o
CPPT, e não o CPT, e por o artigo 13.º do CPT ter sido expressamente revogado e
substituído pelo artigo 24.º da LGT), deveriam ter sido mencionados os
preceitos com base nos quais a decisão recorrida – bem ou mal – extraiu a norma
cuja aplicação recusou com fundamento em inconstitucionalidade. Mas dessa falta
de integral coincidência na enumeração dos preceitos legais que se entendeu
suportarem a norma em causa – falta de coincidência meramente parcial, pois o
artigo 23.º da LGT, mencionado no requerimento de interposição do recurso,
também viu a sua aplicação expressamente recusada pela decisão recorrida – não
resulta a falta de coincidência da norma, substancialmente considerada, cuja
aplicação foi recusada na decisão recorrida e cuja conformidade constitucional o
Ministério Público pretende ver apreciada.
A isto acresce – e decisivamente – que, não
tendo sido considerada aquela parcial falta de coincidência na identificação
dos preceitos legais donde se extraiu a norma em causa impeditiva da
apresentação de alegações pelo Ministério Público, este, nesta peça processual,
procedeu espontaneamente à correcção daquela desconformidade, passando a existir
actualmente total coincidência na referência aos preceitos legais invocados como
suporte da norma, que – repete‑se – sempre foi a mesma: a que atribui
competência ao órgão da execução fiscal para determinar a reversão do processo
de execução contra os responsáveis subsidiários pela dívida fiscal.
Neste contexto, não se vislumbrando razões
válidas para não atribuir relevância a esta espontânea “rectificação”, operada
antes de o recurso atingir a fase de julgamento, o princípio da prevalência das
decisões de mérito sobre as decisões de mera forma, que é uma decorrência
irrecusável do princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva,
impunha, a meu ver, o conhecimento do recurso interposto pelo Ministério
Público.
A circunstância de, no presente caso, graças à
paralela interposição de recurso por parte da Fazenda Pública, o Tribunal
Constitucional ter acabado por conhecer do mérito do recurso – revogando, aliás,
a decisão recorrida, por não considerar inconstitucional a norma cuja aplicação
fora por esta recusada –, não é suficiente para anular a minha discordância
quanto à decisão de não conhecimento do recurso do Ministério Público, não sendo
de excluir a eventualidade de, em casos similares, ser ele o único recorrente.
Mário José de Araújo Torres