Imprimir acórdão
Processo n.º 695/06
3ª Secção
Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Nos autos de um processo de inquérito, pendentes no DIAP do Porto, em que se
investigam factos que, em abstracto, são susceptíveis de integrar a prática de
dois crimes de homicídio qualificado, terão sido colhidos no local do crime
“vestígios biológicos, alguns deles referentes aos autores dos crimes”. Só
posteriormente tendo sido identificados suspeitos, entretanto ouvidos como
arguidos, foram então estes “convidados a prestar consentimento para a recolha
de zaragatoas bucais com vista à identificação do seu perfil genético [...] e
comparação com o dos vestígios biológicos acima referidos”, tendo, todavia,
negado tal consentimento. Nestas circunstâncias, considerando essencial que se
procedesse a “exame na pessoa dos arguidos tendo como finalidade a colheita de
vestígios biológicos para determinação do seu perfil genético e subsequente
comparação com o dos vestígios biológicos colhidos no local do crime” e que o
arguido “pode ser compelido por decisão da autoridade judiciária competente” à
realização do mencionado exame, foi proferido pelo Ministério Público, em 12 de
Maio de 2005, despacho determinando nomeadamente que o arguido e ora recorrente,
A., comparecesse nas instalações do Instituto Nacional de Medicina Legal do
Porto, para que aí fosse sujeito à realização de exame médico-legal com vista à
obtenção de vestígios biológicos, “sempre na medida do estritamente necessário,
adequado e indispensável à prossecução do fim a que se destinam.”
2. Em 20 de Setembro de 2005, naquele Instituto, procedeu-se à referida
diligência. Do respectivo auto consta que “foi perguntado ao arguido se o faria
voluntariamente ou se se oporia a tal diligência”, tendo o mesmo feito saber que
“havia sido dirigido aos autos [...] um requerimento para que fosse posto cobro
imediato à pretendida recolha coactiva de vestígios biológicos, uma vez que a
mesma careceria em absoluto de suporte legal [...] sendo por isso absolutamente
intrusiva e ofensiva da integridade pessoal do arguido [...] qualquer colheita
realizada contra a sua vontade e ou com uso da força [...]”. Perante esta
situação o arguido assinou uma declaração de recusa do acto, tendo, então, sido
advertido “que a diligência iria ter lugar, mesmo que para tal fosse necessário
o recurso à força.” Face a esta advertência, o arguido, “que continuou a
demonstrar que era contrário à diligência”, afirmou, contudo, que “não iria
exercer qualquer acto de violência, para quem quer que seja”, pelo que, “de
maneira ordeira e abrindo a boca deixou efectivar a recolha de saliva, não sem
antes reafirmar que o fazia contra a sua vontade. Desta forma, foi realizado o
acto em questão.”
3. No dia seguinte, o arguido requereu ao Juiz de Instrução Criminal que fosse
declarada ilegal a prova obtida através da sua sujeição coactiva à colheita de
saliva realizada no dia anterior. Por decisão daquele Juiz foi julgada
“improcedente a invocada nulidade e consequente proibição de valoração como
prova, do resultado da análise da saliva colhida através de zaragatoa bucal
efectuada ao arguido [...]”.
4. Inconformado, o arguido recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, tendo
formulado as seguintes conclusões:
“I. No direito português vigente só o consentimento livre e esclarecido do
arguido pode legitimar a sua submissão a uma colheita de vestígios biológicos
para análise de ADN;
II. Uma vez que o arguido e ora recorrente manifestou a sua expressa recusa em
colaborar ou permitir tal colheita, foi manifestamente ilegal e até
criminalmente ilícita a sua realização coactiva, por manifesta falta do
indispensável suporte legal - lacuna essa que o intérprete e aplicador da lei
não estão, por si, legitimados a colmatar;
III. Mercê disso, dever-se-ia ter reconhecido e declarado a ilegalidade da
sobredita colheita, nos termos em que a mesma teve lugar, com todas as legais
consequências, a começar pela proibição absoluta de valoração da(s) prova(s)
assim obtida(s) e sem esquecer a devida instauração do adequado procedimento
criminal contra todos quantos determinaram, efectuaram, colaboraram ou por
qualquer forma participaram na dita colheita ilegal, assim incorrendo na prática
de um crime contra a integridade pessoal do ora recorrente, em manifesta
violação do disposto, entre outros, no art. 25°, n° 1, da CRP, e no art. 143.°,
n°1, do CPen.;
IV. Decidindo de forma diversa, a Mm.a Juíza a quo violou, entre outras, as
normas contidas nos arts. 25.°, 26.°, n° 1, e 32.°. nº 8, todos da CRP, o art.
8° da CEDH, o art. 12 da DUDH, o art. 17° do PIDCP e os arts 126, n.° 1, 2 als
a) e c) e 3, bem como o art 172, n° 1, ambos do CPPen;
V. De resto, sempre estaria ferida de inconstitucionalidade a norma do art.
172.°, n.° 1, do CPPen., interpretada no sentido de possibilitar ao M° P°
ordenar a colheita coactiva de vestígios biológicos de um arguido para
determinação do seu perfil genético, quando este último tenha manifestado a sua
expressa recusa em colaborar ou permitir tal colheita;
VI. Da mesma forma que seria igualmente inconstitucional a norma do art. 126.°,
nos 1, 2 - als. a) e c), e 3, do CPPen., quando interpretada no sentido de
considerar válida e, consequentemente, susceptível de ulterior utilização e
valoração, a prova obtida através da colheita efectuada nos moldes descritos na
conclusão anterior”.
5. Em 17 de Janeiro de 2006, o recorrente juntou aos autos um parecer do
Professor Manuel da Costa Andrade, em que, no essencial se sustenta que “no
direito positivo vigente em Portugal não é juridicamente admissível impor a
recolha coactiva de substâncias biológicas nem a sua ulterior e não consentida
análise genética com vista à determinação do perfil genético para fins de
processo criminal”, uma vez que não existe “uma lei específica que as autorize e
prescrev[a] o respectivo regime”, não oferecendo “as normas da lei
processual-penal relativas a perícias [...] e exames [...], bem como [...] os
dispositivos da lei que estabelece o regime das perícias médico-legais [...],
como ainda os preceitos pertinentes (sobretudo o artigo 152º) do Código da
Estrada”, “a indispensável legitimação penal.” E, assim sendo, “no plano
processual-penal, o direito vigente em Portugal prescreve uma intransponível
proibição de produção de prova contra a recolha coerciva das substâncias
biológicas e contra a sua análise genética não consentida. Uma proibição cuja
violação só pode ter como consequência a correspondente proibição de valoração
das provas obtidas”.
6. O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 3 de Maio de 2006, decidiu
julgar o recurso improcedente. Para tanto, fundamentou, assim, a decisão:
“[…] O que aqui está em causa apreciar não é só a legalidade da decisão
impugnada enquanto acto ou meio ordenativo de produção de um meio de prova, mas
sim, a legalidade da decisão ao determinar a eventual execução forçada do exame,
isto é, ao impor coactivamente ao recorrente a sua submissão ao exame. Tal como
vem referido no Recurso n.° 3261/01 do Tribunal da Relação de Coimbra relatado
pelo Sr. Conselheiro Dr. Oliveira Mendes e que vamos seguir de perto “certo é
que o direito que vimos de analisar - à integridade corporal e à
autodeterminação corporal - conquanto a Constituição da República o declare
inviolável (art.25°, n.°1), não é absoluto, posto que o art.18° daquele diploma
legal ao estatuir que a lei só pode restringir os direitos, liberdades e
garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as
restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou
interesses constitucionalmente protegidos, deve ser interpretado no sentido de
que apenas é ilegítima toda a restrição que atinja o conteúdo essencial de cada
um dos direitos subjectivos individuais, isto é, que atente contra as exigências
(mínimas) de valor que, por serem a projecção da ideia de dignidade humana,
constituem o fundamento (a essência) de cada preceito constitucional nesta
matéria...”
“Daí que o nosso ordenamento jurídico preveja várias situações em que o direito
à integridade corporal e o direito à autodeterminação corporal cedem face a
interesses comunitários e sociais preponderantes, quer na área da saúde pública,
quer na área da defesa nacional, quer na área da justiça, quer noutras áreas.
Assim sucede quando se impõem certas condutas corporais como a vacinação
obrigatória, os radiorrastreios, o tratamento obrigatório de certas doenças
contagiosas, a proibição de dopagem dos praticantes desportivos, o serviço
militar obrigatório ou a prestação de serviço cívico e a realização de perícia
psiquiátrica e de perícia sobre a personalidade”.
Ora, embora entendamos que o exame ordenado nos autos, constitua “meio de prova
susceptível de ofender o direito à integridade corporal e o direito à
autodeterminação corporal do recorrente, designadamente no caso de este não
aderir ao exame, isto é, no caso de recusa, posto que o mesmo se traduz numa
intervenção não autorizada no seu corpo, isto é, lesiva da sua integridade
corporal e da integridade do seu sistema volitivo, quer por afectar o seu corpo
físico quer por afectar a sua capacidade de decidir e de agir, cremos que podem
e devem ser concretizados, mesmo que compulsivamente (exame e perícia), muito
embora limitados à colheita de cabelos, saliva, urina ou sangue, já que
justificados pela necessidade da descoberta da verdade material e não violadores
do conteúdo essencial daqueles direitos fundamentais do recorrente”. Vejamos.
“Como já atrás ficou consignado, apenas é ilegítima a restrição dos direitos,
liberdades e garantias constitucionalmente consagrados em caso de conflito com
direitos ou valores da mesma matriz, quando a restrição atente contra as
exigências (mínimas) de valor que, por serem a projecção da ideia de dignidade
humana, constituem o fundamento (a essência) de cada preceito constitucional
nesta matéria, sendo certo que mesmo no caso de falta de preceito constitucional
que autorize a restrição pela lei pode tal falta ser colmatada pelo recurso à
Declaração Universal dos Direitos do Homem, nos termos do n.º 2, do art.16°, da
Constituição da República [].
A Declaração Universal dos Direitos do Homem, no seu art.29° permite que o
legislador estabeleça limites aos direitos fundamentais para assegurar o
reconhecimento ou o respeito dos valores enunciados: «direitos e liberdades de
outrem», «justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar geral numa
sociedade democrática».
No caso vertente o que está em conflito é o direito à integridade corporal e o
direito à autodeterminação corporal do recorrente, por um lado, e o interesse
comunitário e o do Estado na administração da justiça penal, por outro lado,
pelo que nada obsta a que o legislador estabeleça limites àqueles direitos
fundamentais do recorrente para assegurar a execução e cumprimento da justiça
penal, isto é, para assegurar uma justa exigência da ordem pública e do
bem-estar geral, desde que, obviamente, os limites ou restrições não destruam ou
afectem o conteúdo essencial daqueles direitos”.
“É certo que Vieira de Andrade[] expressa entendimento segundo o qual há
direitos, como o direito à vida, o direito à integridade física ou o direito a
não ser condenado senão em virtude de lei anterior, cuja violação, por menor que
seja, não é admissível, pois sempre será atingido o conteúdo essencial do
preceito constitucional que os consagra[] .No entanto, estamos em crer que
relativamente ao direito à integridade pessoal (física e moral) assim não será
no caso de lesões insignificantes e reversíveis, designadamente quando em
confronto com direitos ou valores preponderantes, como o direito à vida,
segurança das pessoas ou a administração da justiça penal.
Assim o entendeu, aliás, o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 156/88 (DR,
II, de 17 de Setembro de 1988), em que apesar de se não ter tomado conhecimento
do recurso, num caso de recusa de efectuação de um teste de alcoolemia previsto
em regulamento dos Caminhos de Ferro Portugueses, em que se pretendia a
declaração de inconstitucionalidade das respectivas normas, argumentando
tratar-se de normas provenientes da autonomia privada, na respectiva
fundamentação consignou-se que o direito à integridade pessoal deveria ceder, no
caso, perante o direito à vida e à segurança das pessoas transportadas4.
Tal como assim o entendeu o legislador ordinário ao estabelecer, como já
consignado ficou, restrições ao direito à integridade corporal e à integridade
de autodeterminação corporal, mediante a imposição de certas condutas e
comportamentos, tendo em vista a salvaguarda de direitos, valores e interesses
preponderantes, designadamente nas áreas da saúde pública, da defesa nacional e
da justiça”.
“E do mesmo modo o entende Figueiredo Dias[], o qual refere que o arguido pode
constituir meio de prova, em sentido material, através das declarações prestadas
sobre os factos, e em sentido formal, na medida em que o seu corpo e o seu
estado corporal podem ser objecto de exames (arts.175° e 178º do Código de
Processo Penal), afirmando de seguida:
(...) Na medida, porém, em que o objecto do exame seja uma pessoa, que assim se
vê constrangida a sofrer ou suportar uma actividade de investigação sobre si
mesma, o exame constitui um verdadeiro meio de coacção processual - como
claramente o inculca, de resto, a 2ª parte do corpo do art.178° do CPP, ao
estatuir que, para realização de um exame, pode «o juiz (hoje o MP) tomar
efectivas as suas ordens, até com o auxílio da força...» -, tendo por isso de
submeter-se aos princípios (já acima referidos) que estritamente demarcam a
admissibilidade de tais meios de coacção.
Sendo os exames, na parte referida, um meio de coacção processual, as normas que
os permitem não poderão deixar de ser entendidas e aplicadas nos termos mais
estritos, tal como sucede com os restantes meios de coacção, maxime com a prisão
preventiva; em um como em outro caso a liberdade é a regra e a restrição daquela
a excepção. Excepção que, aliás, não deixa de ser constitucionalmente imposta:
assegurando o art.8°, n.°1, da Constituição Política a todos os cidadãos o
direito à integridade pessoal, quaisquer limitações que a tal direito sejam
feitas pela lei ordinária relativa a exames em processo penal terão de obedecer
à máxima strictissime sunt interpretanda6”.
Ora, a colheita de cabelos ou sangue, caso não consentidas, consubstanciam
intervenções no corpo que, realizadas por perito médico “com rigorosa
observância das regras das leges artis, se podem e devem graduar como ofensas
insignificantes (mínimas) do direito à integridade corporal e do direito à
autodeterminação corporal, posto que afectam, transitória e momentaneamente, de
forma muito reduzida, o corpo físico e o sistema volitivo” do interveniente.
“Quanto à recolha de saliva ou de urina afigura-se-nos que nem sequer se pode
considerar susceptível de ofensa o direito à integridade corporal do recorrente,
mas tão só o direito à autodeterminação corporal, e em grau ou medida
desprezível, isto é, irrelevante”.
Deste modo e tendo presente que o exame ordenado tem em vista a procura da
verdade material para administração da justiça penal, o que constitui uma
exigência da ordem pública e do bem-estar geral, bem como um dos pilares do
Estado de direito, há que concluir que a realização compulsiva daqueles se
mostra justificada e legitimada a significar que a decisão impugnada, proferida
ao abrigo da norma do art.172°, n.° 1, do Código de Processo Penal, que atribui
à autoridade judiciária o poder de compelir as pessoas à submissão de exame
devido ou a facultar coisa que deva ser examinada, não viola os arts.25°, n.° l
e 32°, n.° 8, da Constituição da República, na parte em que ordena o exame e
perícia mediante extracção de saliva por via de zaragatoa bucal, dado que a
mesma apenas é susceptível de ofender o direito à autodeterminação corporal do
recorrente em medida irrelevante.
Assim não nos merece, pois, qualquer censura o despacho recorrido.”
7. Desta decisão foi interposto o presente recurso, pelo seguinte requerimento:
“[…] não se conformando com o, aliás, douto acórdão proferido em 03.05.2006,
dele v[e]m interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do
disposto no art. 280°, n.° 1, al. b) e n.° 4 da C.R.P. e no art. 70.°, n.° 1,
al. b) e n.° 2 da Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro.
Esclarece que o presente recurso é limitado à parte do dito Acórdão que,
mantendo o decidido pelo Tribunal de 1ª instância, desatendeu a suscitada
questão da inconstitucionalidade:
a) da norma do art. 172.º, n.° 1, do CPPen., interpretada no sentido de
possibilitar ao M.°P.° ordenar a colheita coactiva de vestígios biológicos de um
arguido para determinação do seu perfil genético, quando este último tenha
manifestado a sua expressa recusa em colaborar ou permitir tal colheita; e,
b) da norma resultante do art. 126.°, n.°s 1, 2 — als. a) e c), e 3, do CPPen.,
quando interpretada no sentido de considerar válida e, consequentemente,
susceptível de ulterior utilização e valoração, a prova obtida através da
colheita realizada nos moldes descritos na alínea anterior.
Dando cumprimento ao disposto no art.º 75°-A da citada Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, diz o aqui recorrente:
São as normas atrás aludidas, na interpretação que delas fez o Tribunal da
Relação do Porto, que o ora recorrente pretende sejam declaradas
inconstitucionais, pois as mesmas violam frontalmente os seguintes preceitos e
princípios da nossa Lei Fundamental:
a) o art. 2.° da C.R.P., que consagra o princípio fundamental do Estado de
Direito, a que estão inerentes as ideias de jurisdicidade, constitucionalidade e
direitos fundamentais, concretizado nos seguintes subprincípios:
- no subprincípio do Estado constitucional ou da constitucionalidade, consagrado
no art. 3º, n.° 3 da C.R.P., segundo o qual, e para além do mais, a validade das
leis e demais actos do Estado depende da sua conformidade com a Constituição;
- no subprincípio da protecção dos direitos, liberdades e garantias, resultante
dos arts. 24.° e ss. da C.R.P., onde avultam, para o que aqui interessa, a
inviolabilidade do direito à integridade pessoal, à identidade pessoal (v. g.,
genética), à autodeterminação pessoal e à reserva da intimidade;
- no subprincípio da reserva de lei em matéria de restrição de direitos,
liberdades e garantias, resultante do art. 18.° da C.R.P.;
- no subprincípio da independência dos Tribunais e do acesso à justiça,
consagrado nos arts. 20.° e 205.° e ss. da C.R.P., segundo o qual, e para além
do mais, a todos é garantido o acesso ao direito e aos Tribunais para defesa dos
seus direitos e interesses legítimos, incumbindo aos Tribunais, na administração
da justiça, a defesa desses mesmos direitos e interesses legalmente protegidos;
- no subprincípio da protecção da confiança, que se encontra desde logo
manifestado no art. 18.°, n.° 3 da C.R.P., segundo o qual as leis restritivas de
direitos, liberdades e garantias, para além de deverem revestir carácter geral e
abstracto, não podem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos
preceitos constitucionais;
- no subprincípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, aflorado em
diversas normas da C.R.P. e que assume particular relevância na limitação das
restrições de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos (cír., p. ex., art.
18.°, no 2 da C.R.P.); e,
- no subprincípio das garantias processuais e procedimentais ou do justo
procedimento, aflorado em diversos preceitos da C.R.P. e segundo o qual a todos
é garantido um procedimento justo e adequado de acesso ao direito e de
realização do direito (são manifestações deste subprincípio, entre outras, as
várias garantias do processo judicial, válidas sobretudo para o processo penal,
como p. ex., o princípio da igualdade processual - art. 13° da C.R.P. -, o
princípio da conformação do processo segundo os direitos fundamentais - art. 32°
da C.R.P. - e o princípio do contraditório - ari. 32.°, n.° 3 da C.R.P.).
b) o art. 32° da C.R.P., que consagra o princípio fundamental da plenitude das
garantias de defesa, que tem como corolários lógicos o princípio da presunção de
inocência (onde se integra a “proibição da inversão do ónus da prova em
detrimento do arguido” e a “proibição de antecipação de verdadeiras penas a
título de medidas cautelares”), o princípio da estrutura acusatória do processo
penal (donde decorre a ideia de “igualdade de armas” entre a acusação e a
defesa, devendo os actos instrutórios subordinar-se ao exercício do
contraditório) e o princípio da nulidade das provas obtidas com ofensa da
integridade pessoal, da reserva da intimidade da vida privada e da
inviolabilidade do domicílio e da correspondência.
A inconstitucionalidade das referidas normas, na interpretação que delas fez o
Tribunal da Relação do Porto, foi suscitada pelo ora recorrente na motivação do
recurso dirigido a esse Tribunal de 2ª instância”.
8. Revistos os autos neste Tribunal em 19 de Setembro de 2006, foi o recorrente
notificado para alegar, o que fez, tendo afirmado, nomeadamente, o seguinte:
“[...] 27. Donde resulta à evidência estarem manifestamente feridas de
inconstitucionalidade:
a) a norma do art. 172.º, n.º 1, do CPPen., interpretada no sentido de
possibilitar ao M.°P.° ordenar a colheita coactiva de vestígios biológicos de um
arguido para determinação do seu perfil genético, quando este último tenha
manifestado a sua expressa recusa em colaborar ou permitir tal colheita; e,
b) a norma resultante do art. 126.°, n.°s 1, 2 - als. a) e c), e 3, do CPPen.,
quando interpretada no sentido de considerar válida e, consequentemente,
susceptível de ulterior utilização e valoração, a prova obtida através da
colheita realizada nos moldes descritos na alínea anterior[...]”
9. Notificado para responder, querendo, à alegação do recorrente disse o
Ministério Público, recorrido, a concluir:
“1. Não são inconstitucionais as normas dos artigos 172º, nº 1 e 126º, nºs 1, 2
alíneas a) e c) e 3, do Código de Processo Penal, interpretadas no sentido de
poder valer como prova a obtida através de exame a vestígios biológicos,
ordenada pela autoridade judiciária competente e conseguidos através de colheita
coactiva (consistente em zaragatoa bucal para extracção de saliva) para
determinação de perfil genético a arguido, contra a sua vontade e recusa
expressa em colaborar ou permitir tal colheita.
2. Termos em que não deverá proceder o presente recurso”.
10. Já após a contra-alegação do Ministério Público recorrido, o recorrente
juntou aos autos um parecer do Professor Gomes Canotilho, que, no essencial,
considerando que, “o recurso ao Ácido Desoxirribonucleico (DNA) na investigação
criminal é, pelo seu elevado grau de fiabilidade, certamente o caminho do
futuro, discutindo-se, quando muito, os limites que devem rodear a utilização da
informação assim obtida”, e que “o respeito pela dignidade da pessoa humana
obriga o legislador a disciplinar as análises genéticas com um nível de rigor e
precisão constitucionalmente adequado ao relevo dos bens susceptíveis de lesão”,
conclui que “o quadro normativo existente não é suficiente, por si só, para
legitimar a recolha compulsiva de material biológico para efeito de recolha de
DNA, sem prejuízo de a CRP não suscitar objecções de fundo à utilização deste
método de investigação, desde que disciplinado em termos constitucionalmente
adequados, salvaguardando sempre as dimensões essenciais dos direitos
fundamentais constitucionalmente tutelados”. E, sendo assim, “o recurso à
extracção de material biológico sem fundamento legal específico configura uma
intervenção restritiva dos direitos, liberdades e garantias destituída de
qualquer arrimo constitucional e legal, devendo ser julgada inconstitucional
qualquer norma legal existente — em matéria de provas, perícias e exames,
identificação civil ou verificação do estado físico e psicológico de condutores
e peões — na interpretação que eventualmente se lhe queira vir a dar no sentido
de, a partir dela, se pretender legitimar esta prática”.
Notificado o recorrido, nada disse.
Corridos os vistos, cumpre, então, decidir.
II. Fundamentação.
11. Delimitação do objecto do recurso.
É o seguinte, na parte ora relevante, o teor dos preceitos questionados:
“Artigo 172
(Sujeição a exame)
1. Se alguém pretender eximir-se ou obstar a qualquer exame devido [...] pode
ser compelido por decisão da autoridade judiciária competente”.
[...]
Artigo 126º
(Métodos proibidos de prova)
1. São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura,
coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas.
2. São ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas,
mesmo que com consentimento delas, mediante:
a) Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus-tratos,
ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou
utilização de meios cruéis ou enganosos;
[...]
c) Utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei;
[...]
3. Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas as provas obtidas
mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas
telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular.
[...]”.
Considera o recorrente, nos termos do seu requerimento de interposição do
recurso, delimitador do respectivo objecto, que o artigo 172º, nº 1, do Código
de Processo Penal é inconstitucional quando interpretado “no sentido de
possibilitar ao M.°P.° ordenar a colheita coactiva de vestígios biológicos de um
arguido para determinação do seu perfil genético, quando este último tenha
manifestado a sua expressa recusa em colaborar ou permitir tal colheita”; e que
o artigo 126º, nºs 1, 2 alíneas a) e c) e 3, é inconstitucional quando
interpretado “no sentido de considerar válida e, consequentemente, susceptível
de ulterior utilização e valoração, a prova obtida através da colheita realizada
nos moldes descritos na alínea anterior”. A exacta delimitação do objecto do
recurso exige, contudo, alguma concretização adicional. É que, como já se
referiu, por um lado, está aqui em causa a recolha de saliva através de
zaragatoa bucal contra a vontade expressa do arguido, mas sem que tivesse
existido utilização de força física - embora tenha havido ameaça de recurso à
mesma, na medida do necessário para salvaguardar a integridade de quem iria
realizar a recolha; por outro, a colheita coactiva de vestígios biológicos foi
determinada para subsequente comparação com os vestígios biológicos colhidos no
local do crime e sempre na medida do estritamente necessário, adequado e
indispensável à prossecução do fim a que se destina. Foi esta a concreta
dimensão normativa dos artigos indicados pelo recorrente que foi aplicada pela
decisão recorrida, pelo que só ela constitui objecto idóneo deste recurso de
constitucionalidade.
Assim, o que está em causa nos presentes autos é a questão da compatibilidade
com a Constituição, designadamente com os princípios e preceitos indicados pelo
recorrente, dos preceitos supra citados quando interpretados, o artigo 172º, nº
1, do Código de Processo Penal, em termos de possibilitar ao Ministério Público
ordenar a colheita coactiva de vestígios biológicos de um arguido para
determinação do seu perfil genético na medida estritamente indispensável para
posterior comparação com vestígios colhidos no local do crime, se necessário
através da ameaça da utilização do recurso à força física para salvaguarda da
integridade de quem realizar a recolha, quando aquele tenha manifestado a sua
expressa recusa em colaborar ou permitir tal colheita e, o artigo 126º, nºs 1, 2
alíneas a) e c) e 3, do mesmo diploma, em termos de considerar válida e,
consequentemente, susceptível de ulterior utilização e valoração, a prova obtida
através da colheita realizada nos termos antes descritos.
12. Julgamento do objecto do recurso.
A resposta a dar às questões de constitucionalidade colocadas pelo recorrente
pressupõe que, num primeiro momento, se determine se (e, em caso afirmativo,
quais) os direitos, liberdades e garantias fundamentais que, porventura, são
restringidos pelas normas cuja constitucionalidade vem questionada pelo
recorrente. Subsequentemente, e em caso de resposta afirmativa àquela questão,
haverá então que decidir se uma tal restrição respeita o regime constitucional
específico das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias.
12.1. A primeira questão respeita à concretização dos direitos, liberdades e
garantias eventualmente afectados pelas normas cuja constitucionalidade vem
questionada.
12.1.1. No entendimento do recorrente as normas questionadas contendem, desde
logo, com o seu direito, protegido pelo artigo 25º da Constituição, à
integridade pessoal, quer física quer moral. Vejamos se assim é.
A jurisprudência deste Tribunal sobre o âmbito da integridade pessoal (física ou
moral) protegida pelo artigo 25º da Constituição, abre algumas pistas
importantes para a questão que agora nos ocupa. Assim, no Acórdão n.º 128/92
(publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 21, 1992, pág. 481 e
seguintes), após se explicitar que o direito à integridade pessoal
constitucionalmente protegido se materializa no “direito da pessoa a não ser
agredida ou ofendida no seu corpo ou no seu espírito, seja por meios físicos
seja por meios morais”, o Tribunal acrescentou:
“[…] o mesmo preceito constitucional - dito artigo 25º - proíbe também, como já
se disse, que, na actividade indagatória do Estado, se lance mão de métodos ou
técnicas que atentem contra a integridade moral do homem, pois isso seria
desrespeitar a pessoa na sua dignidade ontológica – no que ela é, por
conseguinte.
O preceito em causa não proíbe, porém, a actividade indagatória (judicial ou
policial), em si mesma, quer o seu objectivo seja a averiguação de crimes e dos
seus autores, quer seja o apuramento de condutas que […] violam deveres
contratuais e, assim, lesam direitos alheios. E não a proíbe, porque, sendo o
Estado de Direito um Estado de justiça, o processo, tanto o criminal, como o
civil, há-de reger-se por regras que, respeitando a pessoa em si mesma (na sua
dignidade ontológica), sejam adequadas ao apuramento da verdade, pois só desse
modo se podem fazer triunfar os direitos e os interesses para cuja garantia o
processo é necessário”.
Por sua vez, no Acórdão nº 616/98 (que se pronunciou sobre a compatibilidade com
a Constituição da exigência de realização de exames de sangue para efeitos de
investigação da paternidade e está disponível, como os adiante citados que não
tenham outra indicação, na página Internet do Tribunal Constitucional no
endereço http://www.tribunalconstitucional.pt), disse este Tribunal:
“[…] Na vertente da integridade física - a que agora está em causa - o direito
à integridade pessoal traduz-se no direito de não sofrer ofensas corporais.
Sabido que as ofensas corporais se podem revestir de gravidade muito diversa,
admite-se que se questione, desde logo, se o direito consagrado na CRP abriga o
seu titular de todas as ofensas, qualquer que seja a sua gravidade, tendo em
conta a natureza, particularmente gravosa, das que o nº 2 do mesmo artigo 25º
enuncia.
Parece, no entanto, inequívoco que este nº 2 apenas se limita a concretizar
alguns casos especialmente reprováveis de ofensa à integridade física e moral,
não esgotando, nem de longe nem de perto, as situações que, por força do nº 1 se
devem julgar constitucionalmente censuradas.
Vem isto ao caso, pela circunstância de a situação em causa se traduzir num mero
exame de sangue (análise), ou seja aquilo que, nos dias de hoje, se pode
considerar, na linguagem da Decisão de 4/12/78 da Comissão Europeia dos Direitos
do Homem (in 'Decisions et Rapports' nº 16, p. 185), uma 'intervenção banal'.
Aceita-se, contudo, na linha daquela 'Decisão', que o 'exame de sangue', contra
a vontade do examinado, possa constituir, nos limites da protecção
constitucional, uma ofensa à integridade física da pessoa.”
Por último, no acórdão nº 226/2000 (que se pronunciou sobre a
constitucionalidade da norma constante do artigo 9.º, n.º 2, alínea b), da Lei
n.º 15/94, de 11 de Maio, quando interpretada em termos de considerar que uma
agressão voluntária e consciente, consubstanciada em actos de violência física,
não traduz uma violação de direitos, liberdades ou garantias pessoais dos
cidadãos quando daí não resulte qualquer lesão), o Tribunal enfrentou de novo a
questão do limiar inferior da integridade física protegida constitucionalmente,
tendo, para o que ora releva, concluído que
“[…] nada legitima uma interpretação do conteúdo constitucional do direito à
integridade pessoal, concretamente na sua componente de direito à integridade
física, em termos de apenas abranger a protecção contra um determinado grau de
ofensas corporais, designadamente as que tenham por efeito a provocação de uma
lesão ou de incapacidade para o trabalho […]”.
Por sua vez, Gomes Canotilho, na conclusão 13 do parecer junto aos autos,
afirma:
“A recolha de material biológico para análise do DNA, embora possa ser entendida
como uma restrição do direito à integridade pessoal não colide com nenhuma das
suas dimensões essenciais, podendo justificar-se de acordo com critérios de
proporcionalidade, desde em ordem à prossecução de uma finalidade
constitucionalmente legítima”.
Também Jorge Miranda e Rui Medeiros (Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I,
2005, págs. 267-279), em comentário ao artigo 25º da Constituição, se pronunciam
sobre o alcance constitucional do direito à integridade pessoal. Depois de
acentuarem que “a importância constitucional da tutela da integridade pessoal
está bem evidenciada na referência à sua inviolabilidade, na inexistência de
autorização expressa de leis restritivas, e na proibição de afectação do direito
à integridade pessoal nas situações de suspensão de direitos fundamentais em
estado de sítio ou de emergência (artigo 19º, nº 6, da Constituição)” […], bem
como na “imposição da nulidade de provas obtidas mediante violação da
integridade física e moral da pessoa”, acrescentam, sintetizando o essencial da
jurisprudência constitucional sobre a matéria, que:
“[…] Na sua expressão mais simples a protecção da integridade física e moral
consiste no direito à não agressão ou ofensa ao corpo ou espírito, por quaisquer
meios (físicos ou não). Consagra-se assim uma tutela constitucional firme, quer
contra quaisquer ofensas à integridade física – independentemente da sua
gravidade (Acórdão nº 616/98) – quer contra violações do direito à integridade
moral […].
A intensidade da tutela jusfundamental da integridade pessoal – e, em
particular, da integridade física – impõe limites estritos a quaisquer
intervenções não consentidas das autoridades públicas.[…]
O Tribunal Constitucional, no acórdão nº 319/95, concluiu, no entanto, que a
normação que admite a imposição do chamado teste do álcool […] não ofende
materialmente a Constituição […].
Todavia, se a obrigatoriedade de tais testes resiste, em si mesma, ao crivo do
juízo de inconstitucionalidade, o mesmo não se pode dizer em relação à
realização forçada dos mesmos sobre o corpo do condutor contra a vontade deste.
A questão não pode deixar de ser equacionada à luz do princípio da
proporcionalidade. […]”.
Especificamente sobre a relação entre a colheita coerciva de material genético
para efeitos de realização de testes de A.D.N. no âmbito do processo penal e a
inviolabilidade da integridade física pronunciaram-se Helena Moniz, já em 2002,
e, mais recentemente, Sónia Fidalgo.
Helena Moniz (“Os problemas jurídico-penais da criação de uma base de dados
genéticos para fins criminais”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal,
Abril-Junho de 2002, p 250) conclui, no essencial, que “a recolha de amostras do
corpo do delinquente constitui um comportamento que integra o tipo legal de
crime de violação da integridade física, a não ser que ocorra uma causa de
exclusão da ilicitude como o consentimento [...]”.
Sónia Fidalgo (“Determinação do perfil genético como meio de prova em processo
penal”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Janeiro-Março de 2006, pp.
122-123), por seu turno, concordando com Helena Moniz, acrescenta:
“[…] há que referir que os avanços tecnológicos verificados na área da
engenharia genética permitem a análise de ADN a partir de outras amostras
biológicas para além do sangue (esperma, saliva, urina, pêlos). Por este motivo,
há quem considere que a colheita de material biológico, em si mesma considerada,
não chega a constituir, verdadeiramente, um atentado à integridade física –
tratar-se-á de agressão insignificante. Haverá ofensa à integridade física
apenas no caso de o arguido recusar a colaboração e a colheita ser feita com
recurso à força sobre o corpo do arguido. Deste modo, o que poderá constituir um
atentado à integridade física não será propriamente a colheita do material, mas
o modo como a colheita é realizada.
No entanto, temos dúvidas quanto a esta posição. Entendemos, com Paula Ribeiro
de Faria, que o princípio bagatelar, enquanto critério de valoração da acção, se
transforma numa subespécie ou categoria da adequação social […]
Poderemos falar, nestes casos, de uma insignificância de lesão a que esteja
«conaturalmente ligada uma ausência de negação do sentido social contido no tipo
de ilícito? Parece-nos que não.
Deste modo, não concordamos com a ideia de que só haverá ofensa à integridade
física se houver recurso à força no momento da colheita.
[...]
Quanto à protecção da integridade moral, dada a natureza imaterial do bem
jurídico em causa, o problema torna-se ainda mais complexo. […]
No concreto âmbito da prova em processo penal, a violação da integridade moral
traduzir-se-á na perturbação da liberdade de vontade ou de decisão e da
capacidade de memória ou de avaliação.”
Sobre questão paralela à que agora nos ocupa pronunciou-se também o Tribunal
Constitucional Espanhol, em sentença proferida em 16 de Dezembro de 1996 (STC
207/1996), numa situação em que estava em causa uma determinação, contrária à
vontade do arguido, para a extracção de cabelos para posterior análise genética
e utilização como prova em processo penal. Depois de recordar a sua
jurisprudência anterior, segundo a qual através do reconhecimento do direito
fundamental à integridade física e moral se protege a inviolabilidade da pessoa
contra qualquer tipo de intervenção nesses bens que careça do consentimento,
acrescentou que, embora aquele direito se encontre relacionado com o direito à
saúde, o seu âmbito constitucionalmente protegido não se reduz exclusivamente
aos casos em que exista um risco ou dano para esta, pois tal direito é afectado
por qualquer intervenção (no corpo) que careça do consentimento do seu titular.
Protegendo o direito à integridade física o direito de uma pessoa não sofrer
lesão do seu corpo ou da sua aparência externa sem consentimento, o facto de a
intervenção coactiva no corpo poder produzir dor ou sofrimento ou um risco ou
dano para a saúde constitui um plus de afectação, mas não é condição sine qua
non para entender que existe uma intromissão no direito fundamental à
integridade física.
Esta decisão vai, porém, ainda um pouco mais longe, distinguindo, no contexto do
processo penal, dois tipos de diligências sobre o corpo do arguido, em função da
afectação, pela sua realização, de um direito. De um lado, as chamadas
inspecções e registos corporais, que consistem em qualquer género de
reconhecimento do corpo humano, quer seja para a identificação do arguido
(exames dactiloscópicos ou antropomórficos, etc.) ou de circunstâncias relativas
à comissão do facto punível (electrocardiogramas, exames ginecológicos, etc.) ou
para a descoberta do objecto do crime, nas quais, em princípio, não resulta
afectado o direito à integridade física, ao não se produzir, em geral, lesão ou
diminuição do corpo, e, por outro lado, as qualificadas pela doutrina como
intervenções corporais, isto é, as consistentes na extracção do corpo de
determinados elementos externos ou internos para serem submetidos a exame
pericial (análises de sangue, urina, pêlos, unhas, biopsias, etc.) em que, regra
geral, é afectado o direito à integridade física.
Feito este excurso, cabe voltar a perguntar: a recolha de saliva através da
utilização da técnica da zaragatoa bucal, sem efectivo recurso à força física
mas realizada contra a vontade expressa do arguido e sob a ameaça de recurso à
mesma, conflitua com o âmbito constitucionalmente protegido do seu direito à
integridade pessoal?
Considera o Tribunal que há que responder afirmativamente a esta questão.
Na verdade, a introdução no interior da boca do arguido, contra a sua vontade
expressa, de um instrumento (zaragatoa bucal) destinado a recolher uma
substância corporal (no caso, saliva), ainda que não lesiva ou atentatória da
sua saúde, não deixa de constituir uma “intromissão para além das fronteiras
delimitadas pela pele ou pelos músculos” (a expressão é de Costa Andrade,
Direito Penal Médico, 2004, p. 70), uma entrada no interior do corpo do arguido
e, portanto, não pode deixar de ser compreendida como uma invasão da sua
integridade física, abrangida pelo âmbito constitucionalmente protegido do
artigo 25º da Constituição.
Questão diversa, que oportunamente trataremos, é a de saber se, considerando,
designadamente, a sua intensidade e a finalidade a que se destina, ela não
estará constitucionalmente legitimada.
12.1.2. As normas que prevêem a possibilidade de determinação da realização
coactiva de um exame, contra a vontade do arguido e sob ameaça do recurso à
força física, contendem ainda com a própria liberdade geral de actuação.
Como se afirmou no Acórdão nº 368/2002, “há que ter presente que, após a revisão
constitucional de 1997, o artigo 26º nº 1 da Constituição passou a consagrar
expressamente o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, «englobando a
autonomia individual e a autodeterminação e assegurando a cada um a liberdade de
traçar o seu próprio plano de vida» (Acórdão nº 288/98, in Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 40º vol., pág. 61), o que implica o reconhecimento da liberdade
geral de acção, sendo certo que, nesta sua dimensão, o «direito ao
desenvolvimento da personalidade não protege, nomeadamente, apenas a liberdade
de actuação, mas igualmente a liberdade de não actuar (não tutela, neste
sentido, apenas a actividade, mas igualmente a passividade, com uma garantia não
unidimensional de actuação, mas pluridimensional, de liberdade de comportamento,
enquanto decorrente da ideia de desenvolvimento da personalidade» (Paulo Mota
Pinto, “O Direito ao Livre Desenvolvimento da Personalidade”, Portugal – Brasil,
ano 2000, Studia Juridica - Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de
Coimbra, 1999, págs. 149 e segs.)”.
Fica, porém, para já, mais uma vez em aberto a questão de saber se, atento, por
um lado, o grau de intrusividade – que é “mínimo”, nas palavras de Gomes
Canotilho (cfr. pág.. 14 do parecer junto aos autos) – e, por outro, a
finalidade da restrição, não estará a mesma constitucionalmente justificada.
12.1.3. Alega ainda o recorrente que as normas que vêm questionadas conflituam
igualmente com o seu direito à reserva da vida privada, constitucionalmente
tutelado pelo artigo 26º da Constituição. Também aqui, com razão, como veremos
já de seguida.
A jurisprudência deste Tribunal sobre o conteúdo constitucional do direito à
reserva da intimidade da vida privada é relativamente vasta. No já citado
Acórdão nº 368/2002 escreveu-se, nomeadamente:
“[…] O direito à reserva da intimidade da vida privada, entre outros direitos
pessoais, está previsto no artigo 26º da Constituição.
A caracterização deste direito, à falta de uma definição legal do conceito de
«vida privada», foi feita no Acórdão nº 355/97 (Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 37º vol., págs. 7 e segs.), seguindo o que este Tribunal
afirmara já nos Acórdãos nºs 128/92 e 319/95, in Diários da República, II Série,
de 24 de Julho de 1992 e de 2 de Novembro de 1995, respectivamente, nos
seguintes termos: «o direito a uma esfera própria inviolável, onde ninguém deve
poder penetrar sem autorização do respectivo titular».
O direito à intimidade tem sido igualmente entendido, na doutrina, como «o
direito que toda a pessoa tem a que permaneçam desconhecidos determinados
aspectos da sua vida, assim com a controlar o conhecimento que terceiros tenham
dela» (Lucrecio Rebollo Delgado, «El derecho fundamental a la intimidad»,
Dykinson, 2000, pag. 94).
Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira («Constituição da República Portuguesa
Anotada», 3ª ed. revista, Coimbra, 1993, nota VIII ao artigo 26º), este direito
«analisa-se principalmente em dois direitos menores: (a) o direito a impedir o
acesso de estranhos a informações sobre a vida privada e familiar e (b) o
direito a que ninguém divulgue as informações a que tenha sobre a vida privada e
familiar de outrem […]»”.
Na situação agora em análise, estaria, então, em causa a primeira dimensão desse
direito. A já referida realização coactiva de um exame destinado à recolha de
saliva para posterior análise genética, contra a vontade do arguido e sob ameaça
do recurso à força física, consubstanciaria uma intromissão não autorizada na
esfera privada do arguido.
12.1.4. Intimamente ligado ao direito à reserva da intimidade da vida privada,
embora frequentemente objecto de um tratamento autónomo, surge ainda o direito à
autodeterminação informacional, que uma parte da doutrina faz decorrer dos
artigos 26º e 35º da Constituição (cfr., nesse sentido, Gössel, “As proibições
de prova no direito processual penal”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal,
Julho-Setembro de 1992, págs. 431-433, Helena Moniz, “Notas sobre a protecção de
dados pessoais perante a informática”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal,
Abril-Junho de 1997, págs. 245- 261, e “Os problemas...”, cit., págs. 246-247,
Sónia Fidalgo, ob. cit., pág. 127 ) e que, em síntese, tem sido definido como o
direito de cada cidadão a “ser ele próprio a decidir quando e dentro de que
limites os seus dados pessoais podem ser revelados” (Gössel, ob. cit., p. 432).
Ora, quer se entenda que daqueles preceitos constitucionais decorre, com
autonomia, um direito, liberdade e garantia à autodeterminação informacional,
quer se veja nele apenas a configuração de um habeas data, quer se acentue a
tónica da confidencialidade, em conexão com o direito à reserva da intimidade da
vida privada, o certo é que o comportamento em causa contende, também nesta
vertente, com direitos, liberdades e garantias.
12.1.5. Alega ainda o recorrente que as normas questionadas contendem com o
privilégio contra a auto-incriminação (nemo tenetur se ipsum accusare), cuja
consagração constitucional decorre, no seu entendimento, dos artigos 2º, 26º e
32º, nºs 2 e 4, da Constituição da República Portuguesa. Vejamos, se terá aqui
razão.
Em primeiro lugar, é inquestionável que o citado princípio tem consagração
constitucional, conforme resulta da jurisprudência deste Tribunal (cfr., por
exemplo, os acórdãos 695/95, 542/97, 304/2004 e 181/2005). Não é, portanto, o
reconhecimento da consagração constitucional do princípio que suscita
dificuldades mas sim, como reconhece Costa Andrade (cfr. Sobre as proibições de
prova em processo penal, Coimbra Editora, 1992, pág. 127), “a definição da sua
compreensão e alcance”. E, aqui, como reconhece este autor, as dificuldades
aumentam à medida que nos aproximamos da “zona de fronteira e concorrência entre
o estatuto do arguido como sujeito processual e o seu estatuto como objecto de
medidas de coacção ou de meios de prova. Nesta zona cinzenta deparam-se, não
raramente, situações em que não é fácil decidir: quando se está ainda no âmbito
de um exame, revista, acareação ou reconhecimento, admissíveis mesmo se
coactivamente impostos; ou quando, inversamente, se invade já o campo da
inadmissível auto-incriminação coerciva”.
Este Tribunal já teve, como vimos, ocasião de se pronunciar sobre o princípio da
não auto-incriminação, embora em associação com o direito a não prestar
declarações. Assim, no Acórdão nº 695/95, o Tribunal pronunciou-se pela
inconstitucionalidade da norma do nº 2 do artigo 342º do Código de Processo
Penal, “enquanto impõe ao arguido, o dever de responder às perguntas do
presidente do tribunal no início da audiência de julgamento sobre os seus
antecedentes criminais e sobre outro processo penal que contra ele corra nesse
momento”. Ponderou, então, o Tribunal:
“O princípio constitucional de que o processo criminal assegurará todas as
garantias de defesa tem como conteúdo essencial a exigência de que o arguido
seja tratado como sujeito e não como objecto do procedimento penal,
garantindo-lhe a Constituição, com essa finalidade, não só um direito de defesa
(artigo 32º, nº1), a que a lei confere efectividade através de direitos
processuais autónomos a exercer durante o processo e que lhe permitem conformar
a decisão final do processo, mas também a presunção de inocência até ao trânsito
em julgado da condenação, elemento fundamental naquela perspectiva.
[…]
Este direito ao silêncio está directamente relacionado com o princípio
constitucional da presunção de inocência (artigo 32º, nº 2 da Constituição). Com
efeito, o interrogatório do arguido - exceptuadas as declarações finais antes do
encerramento da audiência de julgamento, em que é perguntado se tem mais alguma
coisa a alegar em sua defesa (artigo 361º do CPP) - pode vir a ser utilizado
como um meio de prova: as declarações do arguido podem constituir um importante
meio de obter a verdade material dos factos, ponto é que se respeite a livre
determinação da sua vontade.
Assim, o arguido deve ser informado, antes de qualquer interrogatório, de que
goza do direito ao silêncio (artigos 141º, nº 4, 143º, nº2, 144º, nº1, e
343º,nº1, do CPP), devendo também ser esclarecido de que o seu silêncio não pode
ser interpretado desfavoravelmente aos seus interesses, não podendo, por isso, o
arguido ser prejudicado por ter exercitado o seu direito a não prestar quaisquer
declarações (o silêncio não pode ser interpretado como presunção de culpa).
De facto, o princípio da presunção de inocência ínsito no nº 2 do artigo 32º da
Constituição, não só obsta a tal tipo de interpretação como também, se
conexionado com o princípio da preservação da dignidade pessoal do arguido, leva
a que a utilização do arguido (v.g., das suas declarações) como meio de prova
seja sempre limitada pelo integral respeito da sua decisão de vontade. [...]
O Tribunal entende que a imposição ao arguido do dever de responder a perguntas
sobre os seus antecedentes criminais formulada no início da audiência de
julgamento viola o direito ao silêncio, enquanto direito que integra as
garantias de defesa do arguido.
Como se referiu, o conteúdo essencial do direito de defesa do arguido assenta em
que este deve ser considerado como «sujeito» do processo e não como objecto;
ora, a obrigatoriedade de declarar, no início da audiência de julgamento, os
antecedentes criminais do arguido e bem assim, informar sobre processos
pendentes implica a transformação do arguido de sujeito em objecto do
processo.[...]”
No acórdão nº 181/05, o Tribunal decidiu “não julgar inconstitucional o artigo
133.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de não exigir
consentimento para o depoimento, como testemunha, de anterior co-arguido cujo
processo, tendo sido separado, foi já objecto de decisão transitada em julgado”.
Afirmou-se então:
“[…] 4 – A importância de que se reveste a produção de prova em processo penal,
enquanto superação de um modelo inquisitorial do processo e conquista basilar do
processo de estrutura acusatória, tem subjacente a ideia da existência de
limites intransponíveis à prossecução da verdade em processo penal, limites que
se traduzem nos conceito e regime das proibições de prova. [...]
Em particular, quanto à liberdade de declaração do arguido, ela é analisada pela
doutrina numa dupla dimensão, positiva e negativa. Pela positiva, abre ao
arguido o «mais irrestrito direito de intervenção e declaração em abono da sua
defesa», e, pela negativa, a liberdade de declaração do arguido veda todas as
tentativas de obtenção, por meios enganosos ou por coacção, de declarações
auto-incriminatórias.
A vertente negativa (nemo tenetur se ipsum accusare) assume particular
relevância em matéria de proibições de prova, não podendo o arguido ser
fraudulentamente induzido ou coagido a contribuir para a sua incriminação.
De novo com Costa Andrade, o que está em jogo “é garantir que qualquer
contributo do arguido, que resulte em desfavor da sua posição, seja uma
afirmação esclarecida e livre de autoresponsabilidade.” (cfr. ob. cit., pág.
121).
E isto porque, na liberdade de declaração espelha-se o estatuto do arguido como
autêntico sujeito processual decidindo, por força da sua liberdade e
responsabilidade, sobre se e como quer pronunciar-se.
[...]
O conteúdo material do referido princípio (nemo tenetur...) é assegurado através
da imposição dos deveres de esclarecimento ou de advertência às autoridades
judiciárias e aos órgãos de polícia criminal [cfr. artigos 58º, n.º 2; 61º, n.º
1, alínea g); 141º, n.º 4, e 343º, n.º 1], estabelecendo-se a sanção de
proibição de valoração, nos termos do artigo 58º, n.º 4, e da nulidade das
provas obtidas mediante tortura, coacção ou ofensa da integridade, física ou
moral (cfr. artigo 126º, n.º 1, todos do CPP).
[...]
A justificação do impedimento de o co-arguido depor como testemunha tem como
fundamento essencial uma ideia de protecção do próprio arguido, como decorrência
da vertente negativa da liberdade de declaração e depoimento, a que acima se fez
referência e que se traduz no brocado latino nemo tenetur se ipsum accusare, o
também chamado privilégio contra a auto-incriminação (cfr. neste sentido, Costa
Andrade, ob. cit., pág. 121).
A proibição de o arguido ser ouvido como testemunha, enquanto limitação dos
mecanismos de constrangimento inerentes à prova testemunhal, constitui expressão
do privilégio contra a auto-incriminação. [...]
A consagração do impedimento representa uma renúncia do Estado à «colaboração
forçada» na investigação de factos criminosos de quem é alvo dessa mesma
investigação.[...]”
Por seu turno, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), em sentença
proferida em 17 de Dezembro de 1996 (caso Sauders v. Reino Unido), concluiu que
o citado direito à não auto-incriminação se refere, em primeira linha, ao
respeito pela vontade do arguido em não prestar declarações, ao direito ao
silêncio, acrescentando que esse direito se não estende ao uso, em processo
penal, de elementos obtidos do arguido por meio de poderes coercivos, mas que
existam independentemente da vontade do sujeito, por exemplo as colheitas, por
expiração, de sangue, de urina, assim como de tecidos corporais com finalidade
de análises de A.D.N..
E o Tribunal Constitucional Espanhol, nomeadamente a propósito da
obrigatoriedade de submissão a testes de alcoolémia, afirmou que a realização
dos mesmos não constitui, em si mesmo, uma declaração ou incriminação, para
efeitos deste privilégio, uma vez que não se obriga o detectado a emitir uma
declaração que exteriorize um conteúdo, admitindo a sua culpa, mas apenas a
tolerar que sobre ele recaia uma especial modalidade de perícia (STC 103/1985).
E, reiterando tal doutrina, analisou em 1997 (STC 191/1997) - depois de citar
jurisprudência do TEDH, onde se reconhece que o direito ao silêncio e o direito
à não auto-incriminação, embora não expressamente mencionados pelo artigo 6º da
CEDH, se situam no coração do direito a um processo equitativo e se relacionam
estreitamente com o direito à defesa e à presunção da inocência - a questão na
perspectiva, que é também a do agora recorrente, da violação do princípio da
presunção de inocência. Neste contexto, considerou, então, que as garantias face
à auto-incriminação só se referem às contribuições do arguido de conteúdo
directamente incriminatório, não tendo o alcance de integrar no direito à
presunção da inocência a faculdade de se poder subtrair a diligências de
prevenção, indagação ou de prova. A configuração genérica de um tal direito a
não suportar nenhuma diligência deste tipo deixaria desarmados os poderes
públicos no desempenho das suas legítimas funções de protecção da liberdade e
convivência, lesaria o valor da justiça e as garantias de uma tutela judicial
efectiva […].
No mesmo sentido se pronunciou Gomes Canotilho no parecer que o ora recorrente
juntou aos autos, onde, depois de dar conta que “a doutrina dominante e uma boa
parte da jurisprudência nacional e internacional de direitos humanos têm
entendido que a presunção de inocência do arguido abrange apenas o direito a
permanecer calado e a beneficiar da existência de uma dúvida razoável, não
impedindo a recolha de material biológico para efeitos de análise de DNA” (pág.
8), conclui precisamente que “a presunção de inocência do arguido abrange apenas
o direito a permanecer calado e a beneficiar da existência de uma dúvida
razoável, não impedindo a recolha de material biológico para efeitos de recolha
de DNA” (cfr. conclusão 10).
Ora, entende o Tribunal, no seguimento da jurisprudência e doutrina acabada de
citar, que o direito à não auto-incriminação se refere ao respeito pela vontade
do arguido em não prestar declarações, não abrangendo, como igualmente se
concluiu na sentença do TEDH supra citada, o uso, em processo penal, de
elementos que se tenham obtido do arguido por meio de poderes coercivos, mas que
existam independentemente da vontade do sujeito, como é o caso, por exemplo e
para o que agora nos importa considerar, da colheita de saliva para efeitos de
realização de análises de A.D.N.. Na verdade, essa colheita não constitui
nenhuma declaração, pelo que não viola o direito a não declarar contra si mesmo
e a não se confessar culpado. Constitui, ao invés, a base para uma mera perícia
de resultado incerto, que, independentemente de não requerer apenas um
comportamento passivo, não se pode catalogar como obrigação de
auto-incriminação. Assim sendo, não se pode sustentar, ao contrário do que
pretende o recorrente, que as normas questionadas contendam com o privilégio
contra a auto-incriminação.
12.2. Constatado, porém, que determinados direitos, liberdades e garantias
fundamentais são restringidos pelas normas cuja constitucionalidade vem
questionada, há que decidir sobre a compatibilidade dessa restrição com a
Constituição. Ora, não proibindo a Constituição, em absoluto, a possibilidade de
restrição legal aos direitos, liberdades e garantias, submete-a, contudo, a
múltiplos e apertados pressupostos (formais e materiais) de validade. Da vasta
jurisprudência constitucional sobre a matéria decorre, em síntese, que qualquer
restrição de direitos, liberdades e garantias só é constitucionalmente legítima
se (i) for autorizada pela Constituição (artigo 18º, nº 2, 1ª parte) (ii)
estiver suficientemente sustentada em lei da Assembleia da República ou em
decreto-lei autorizado (artigo 18º, nº 2, 1ª parte e 165º, nº 1, alínea b),
(iii) visar a salvaguarda de outro direito ou interesse constitucionalmente
protegido (artigo 18º, nº 2, in fine); (iv) for necessária a essa salvaguarda,
adequada para o efeito e proporcional a esse objectivo (artigo 18º, nº 2, 2ª
parte); (v) tiver carácter geral e abstracto, não tiver efeito retroactivo e não
diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos
constitucionais (artigo 18º, nº 3, da Constituição).
Vejamos, pois, se, no caso, estes pressupostos da validade constitucional da
restrição legal de direitos fundamentais estão preenchidos.
12.2.1. É desde logo evidente, não carecendo aqui, por isso, de qualquer
demonstração adicional, que as normas que vêm questionadas pelo recorrente visam
a salvaguarda de interesses constitucionalmente protegidos (designadamente os
que são próprios do processo penal, como a realização da justiça e a prossecução
da verdade material), têm carácter geral e abstracto, não têm carácter
retroactivo, nem aniquilam os direitos, liberdades e garantias em causa em
causa, não atingindo o respectivo conteúdo essencial.
12.2.2. Por seguro temos, igualmente, que a Constituição não proíbe, em
absoluto, a recolha coactiva de material biológico de um arguido (designadamente
de saliva, através da utilização da técnica da zaragatoa bucal) e a sua
posterior análise genética não consentida para fins de investigação criminal, no
caso concreto para subsequente comparação com vestígios biológicos colhidos no
local do crime. Decisivo é, no entanto, verificar se os normativos que
concretizam os termos dessa possibilidade respeitam as exigências
constitucionais de adequação, de exigibilidade e de proporcionalidade em sentido
estrito que, como vimos, decorrem, designadamente, da segunda parte do nº 2 do
artigo 18º da Constituição da República Portuguesa. Ora, no caso em análise, não
se pode afirmar que isso não aconteça com as normas que aqui vêem questionadas
pelo recorrente, em termos de estas merecerem, deste ponto de vista, uma censura
constitucional.
Na verdade, da jurisprudência do Tribunal Constitucional nesta matéria, cujo
sentido foi sintetizado no acórdão n.º 187/2001, decorre, nomeadamente, que o
princípio da proporcionalidade, em sentido lato, se desdobra, como se afirmara
já no acórdão n.º 634/93, “em três subprincípios: da adequação (as medidas
restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio
adequado para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos
ou bens constitucionalmente protegidos); da exigibilidade (essas medidas
restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador
não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato);
da justa medida, ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adoptar-se
medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos)”. Há,
assim, três exigências na relação entre as medidas e os fins prosseguidos. Como
se afirmou no acórdão n.º 1182/96, “num primeiro momento perguntar-se-á se a
medida legislativa em causa […] é apropriada à prossecução do fim a ela
subjacente”; de seguida, “haverá que perguntar se essa opção, nos seus exactos
termos, significou a «menor desvantagem possível» para a posição jusfundamental
decorrente do direito […]”; finalmente, há que “pensar em termos de
«proporcionalidade em sentido restrito», questionando-se «se o resultado obtido
[...] é proporcional à carga coactiva» que comporta”.
Da mesma jurisprudência decorre, igualmente, que, estando em causa actividade
legislativa, é reconhecido ao legislador um considerável espaço de conformação,
pelo que a avaliação pelos tribunais da inconstitucionalidade de uma norma, por
violação do princípio da proporcionalidade, depende de se poder apontar uma
manifesta inadequação da medida, uma opção manifestamente errada do legislador,
o seu carácter manifestamente excessivo ou inconvenientes manifestamente
desproporcionados em relação às vantagens que apresenta.
Ora, o Tribunal não considera que as restrições aos direitos fundamentais
necessariamente implicadas pelas normas que agora estão em causa violem qualquer
dos subprincípios enunciados, uma vez que não se vislumbra que não constituam um
meio adequado para a prossecução dos fins visados, que não sejam necessárias
para alcançar esses fins, que se traduzam numa opção manifestamente errada do
legislador ou que sejam manifestamente excessivas ou desproporcionadas.
Com efeito, é hoje comummente reconhecido, entre nós, praticamente de forma
unânime, que a chamada “impressão digital genética”, constitui um auxiliar cada
vez mais imprescindível da investigação criminal. Nesse sentido se pronunciou a
Comissão encarregada de elaborar uma proposta de regime jurídico de constituição
de uma base de dados de perfis de A.D.N. para efeitos de identificação civil e
criminal. No preâmbulo da proposta que apresentou ao Governo em 18 de Dezembro
de 2006, e após afirmar que “[…] cada vez mais, as «impressões digitais
genéticas» constituem o método de investigação criminal por excelência e cuja
importância tem crescido ao longo do séc. XX, devendo ser o meio mais adequado
de identificação para os próximos tempos”, a Comissão dá conta do facto de,
desde o início dos anos 90, diversas instituições internacionais terem vindo a
aconselhar a utilização das análises de A.D.N. no sistema de justiça criminal e
mesmo - o que agora não está em causa - a criação de bases de dados
internacionalmente acessíveis que incluíssem os resultados daquelas análises
(citando, v.g., a Recomendação R (92) 1 do Comité de Ministros do Conselho da
Europa, de 10 de Fevereiro de 1992). Refere, ainda, que “em todo o mundo foram
já construídas bases de dados de perfis de A.D.N. em várias dezenas de países;
na Europa, a maioria dos países produziu legislação relativa a bases de dados de
perfis de A.D.N. com finalidades de investigação criminal e/ou de identificação
civil, designadamente, em Inglaterra (desde 1995), na Irlanda do Norte e Escócia
(desde 1996), nos Países Baixos e na Áustria (desde 1997), na Alemanha e
Eslovénia (desde 1998), na Finlândia e Noruega (desde 1999), na Dinamarca,
Suíça, Suécia, Croácia e Bulgária (desde 2000), em França e na República Checa
(desde 2001), na Bélgica, Estónia, Lituânia e Eslováquia (desde 2002) e na
Hungria e Letónia (desde 2003)”, bases que “têm amplamente evidenciado
resultados positivos no que se refere à identificação de desaparecidos,
identificação de delinquentes, exclusão de inocentes, interligação entre
diferentes condutas criminosas, colaboração internacional em processos de
identificação, contribuindo para dissuasão de novas infracções”. E, assim sendo,
seguindo a já citada Recomendação do Conselho da Europa, a “Resolução 97/C
193/02 do Conselho, de 9 de Junho de 1997 [e a] Resolução 2001/C 187/01 do
Conselho, de 25 de Junho de 2001”, propõe a criação das “normas básicas
necessárias à criação e utilização de uma base de dados de perfis de A.D.N.”
Aliás, nem outro é, neste ponto, o entendimento dos pareceres que o recorrente
juntou e que, no essencial, suportam a sua alegação. De facto, Costa Andrade
afirma ser sua “convicção segura que a Constituição não se opõe, em definitivo,
à recolha coactiva de substâncias biológicas e à sua análise genética não
consentida”, dependendo apenas da existência - o que, na sua opinião não
acontece no caso - de “uma lei específica que as autoriz[e] e prescrev[a] o
respectivo regime (pressupostos materiais, formais, orgânicos e
procedimentais)”. E Gomes Canotilho, que começa por afirmar que “o recurso ao
Ácido Desoxirribonucleico (DNA) é, pelo seu elevado grau de fiabilidade,
certamente o caminho do futuro, discutindo-se, quando muito, os limites que
devem rodear a informação assim obtida”, acrescenta que “as virtualidades das
análises de DNA como meio de investigação criminal são incontornáveis, não
podendo ser escamoteada a [sua] importância [...] para a prossecução da verdade
material em processo penal” e sublinhando mesmo que “desse objectivo
[prossecução da verdade material] depende em larga medida a legitimação do
Estado de direito material e das respectivas instituições junto da opinião
pública, condição de viabilidade a prazo de uma ordem constitucional livre e
democrática”. A questão é, para estes Autores, não a da desnecessidade ou
desproporcionalidade das restrições em causa, mas a da insuficiência da
habilitação legal [designadamente do recurso aos artigos dos artigos 61º, nº 3,
alínea d) e 172º, nº 1, do Código de Processo Penal e 6º, nº 1, da Lei nº
45/2004, de 19 de Agosto (que estabelece o regime jurídico das perícias
médico-legais e forenses)] em que as mesmas surgem formalmente suportadas,
questão que adiante abordaremos.
12.2.3. Aqui chegados, é possível reconduzir a três as questões de que depende a
resposta final às questões de constitucionalidade que vêm colocadas:
(i) A primeira será a de saber se a Constituição autoriza a restrição dos
direitos fundamentais que estão em causa - à integridade física, à liberdade
geral de actuação, à reserva da vida privada e à autodeterminação informacional
- designadamente para a prossecução das finalidades específicas do processo
penal;
(ii) A segunda impõe que se averigúe se as normas contidas nos artigos 61º, nº
3, alínea d) e 172º, nº 1, do Código de Processo Penal e na Lei nº 45/2004, de
19 de Agosto (que estabelece o regime jurídico das perícias médico-legais e
forenses) constituem habilitação legal suficiente para as restrições que aqui
estão em causa ou se, pelo contrário, seria necessária uma outra lei específica
que explicitamente autorizasse a recolha coactiva de substâncias biológicas e a
sua análise genética não consentida, ao mesmo tempo prescrevendo o respectivo
regime (i.e., estabelecendo os seus pressupostos materiais, formais, orgânicos e
procedimentais);
(iii) A estas acresce, por fim, uma terceira, decorrente do facto de a concreta
restrição agora está em causa ser realizada no contexto do processo penal e para
a prossecução das finalidades específicas deste, o que implica que se indague se
a conformidade constitucional da norma que autoriza tal restrição depende de
haver prévia autorização judicial ou se pode, como foi o caso, ser determinada
apenas pelo Ministério Público.
12.2.3.1. A primeira questão agora a resolver diz respeito à necessidade de
autorização constitucional para a restrição de direitos fundamentais.
Com efeito, o artigo 18º, nº 2, da Constituição refere, na parte que ora importa
considerar, que “a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias,
nos casos expressamente previstos na Constituição…”. E uma primeira leitura
deste preceito poderia sugerir que aqueles direitos fundamentais, como é o caso
de alguns dos que agora estão em causa (por exemplo, o direito à integridade
física), para os quais a própria Constituição não prevê expressamente a
possibilidade de restrições legais, seriam, pura e simplesmente, insusceptíveis
de ser restringidos.
O reconhecimento do carácter incomportável de uma tal leitura, designadamente do
ponto de vista das suas consequências práticas, levou, contudo, ao
desenvolvimento jurisprudencial e doutrinário de uma multiplicidade de soluções
- como o recurso, entre outros, ao artigo 29º da Declaração Universal dos
Direitos do Homem, às autorizações “indirectas ou tácitas” de restrições, às
ideias de “limites imanentes”, de “limites constitucionais não escritos”, de
“limites intrínsecos”, de “restrições implícitas”, de “limites instrumentais” -
que, de uma ou outra forma, têm afastado aquela conclusão. O Tribunal
Constitucional utilizou já diversas daquelas vias na sua jurisprudência sobre o
tema, nomeadamente nos Acórdãos nºs 6/84, 81/84, 198/85, 225/85, 244/85, 7/87
(todos publicados em Acórdãos do Tribunal Constitucional, respectivamente nos
Volumes 2º, pág. 257, 4º, pág. 225, 6º, págs. 473, 793 e 211 e 9º, pág. 7) e
254/99. Na doutrina, pronunciaram-se, por exemplo, Casalta Nabais, “Os direitos
fundamentais na jurisprudência do Tribunal Constitucional”, Separata do Volume
LXV (1989) do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, pp.
20-28; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, 3ª ed., Coimbra, 2000,
Tomo IV, pp. 296-308; Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na
Constituição Portuguesa de 1976, 2ª ed., Coimbra, 2001, pp. 288-292; Gomes
Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., Coimbra,
2003, págs. 1276-1283; Jorge Reis Novais, As restrições de direitos fundamentais
não expressamente autorizadas pela Constituição, Coimbra, 2003; José de Melo
Alexandrino, Estruturação do sistema de direitos, liberdades e garantias, na
Constituição Portuguesa, Volume II, pp. 443-482 e Gomes Canotilho e Vital
Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª ed., Coimbra, 2007,
págs. 389-391.
Ora, independentemente da questão de saber qual é, do ponto de vista dogmático,
a solução preferível, a verdade é que não pode seriamente duvidar-se – e, nessa
conclusão, não existe discordância – que a Constituição autoriza, tendo em vista
a prossecução das finalidades próprias do processo penal e respeitadas as demais
e já referidas exigências constitucionais, a restrição dos direitos fundamentais
à integridade pessoal, à liberdade geral de actuação, à reserva da vida privada
ou à autodeterminação informacional. Isso mesmo já disse o Tribunal, por
exemplo, no Acórdão n.º 254/99:
“[…] Também o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar é
consagrado à partida no nº 1 do artigo 25º da Constituição sem qualquer limite
e, no entanto, o Tribunal Constitucional admitiu que em hipóteses de grande
interesse para a descoberta da verdade ou para a prova (e, portanto, de conflito
com o interesse na prossecução penal e com o princípio da verdade material) pode
haver intercepção e gravação de comunicações telefónicas (Acórdão nº 7/87,
Acórdãos cit., 9, pp. 7 ss., 35; cfr., de modo semelhante, quanto ao uso, não
consentido pelo visado, de fotografia como prova em processo de divórcio, o
Acórdão nº 263/97, Diário da República, II série, de 1-7-1997, pp. 7567, 7569).
[…] Também o direito de acesso a cargos públicos electivos (artigo 50º, nº 1 da
Constituição) era, antes da revisão de 1989, consagrado sem limites à partida
além dos que resultavam de outros preceitos constitucionais directamente para os
magistrados judiciais (artigo 221º, nº 3, hoje 216 nº 3) ou através de reservas
de lei para os militares e agentes militarizados (artigo 270º) e para as
eleições para a Assembleia da República (artigo 153º, hoje 150º). Mas nos
acórdãos nºs 225/85 e 244/85 (Acórdãos cit., 6, pp.793 ss., 798-801 e pp. 211
ss., 217-228) o Tribunal admitiu restrições legais para os funcionários
judiciais (em vista do interesse na separação e independência das funções
autárquica e judicial) e para os funcionários e agentes da administração
autárquica directa da mesma autarquia (em vista do interesse na independência e
imparcialidade do poder local). Em ambos os casos as restrições expressas na
Constituição ou resultantes das reservas de lei em certas matérias fundaram
argumentos no sentido da admissibilidade de outras restrições, em hipóteses de
conflito de direitos ou interesses constitucionalmente reconhecidos.[…]”
12.2.3.2. Constatada assim a admissibilidade constitucional da restrição,
haverá, face aos artigos 18º, nº 2 e 165º, nº 1, alínea b) da Constituição, que
estatuem que só a lei pode autorizar a restrição de direitos, liberdade e
garantias, habilitação legal suficiente?
Ora, é principalmente neste ponto que o recorrente - apoiado nos pareceres
citados - sustenta a inconstitucionalidade das normas questionadas, resultante
da inexistência no quadro normativo português, designadamente no invocado pela
decisão recorrida, da “indispensável legitimação legal” para a restrição dos
direitos, liberdades e garantias implicada na recolha coerciva de material
biológico para posterior análise genética não consentida e valoração como prova
no processo penal. Recordemos, então, a argumentação em que, no essencial,
assentam aqueles pareceres.
Costa Andrade, admitindo “que a Constituição não se opõe, em definitivo, à
recolha coactiva de substâncias biológicas e à sua análise genética não
consentida”, considera, contudo, que “estas medidas são portadoras de um
potencial de danosidade e de devassa que está muito para além da que foi
pressuposta pelo legislador ao regular os «normais» exames e perícias ou, mesmo,
ao prescrever a recolha de sangue para determinar se um condutor está
influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas”, pelo que a sua
legitimação não pode “pura e simplesmente pedir-se às normas que prevêem a
submissão a exames da pessoa” (artigo 6º da Lei nº 45/2002, de 19 de Agosto ou
artigo 152º do Código da Estrada), sendo “indispensável”, para que aquelas
medidas fossem juridicamente admissíveis, “uma lei específica que as autorizasse
e prescrevesse o respectivo regime (pressupostos materiais, formais, orgânicos e
procedimentais)”. Gomes Canotilho, após afirmar que “o recurso ao Ácido
Desoxirribonucleico (DNA) é, pelo seu elevado grau de fiabilidade, certamente o
caminho do futuro, discutindo-se, quando muito, os limites que devem rodear a
informação assim obtida”, conclui, partindo do pressuposto de que as restrições
aos direitos liberdades e garantias estão subordinadas a “uma reserva de lei
qualificada […] devendo ser expressamente previstas, claramente determinadas,
devidamente fundamentadas e objecto de interpretação restritiva […]”, igualmente
no sentido de que “o quadro normativo existente não é suficiente, por si só,
para legitimar a recolha compulsiva de material biológico para efeito de recolha
de DNA […], já que “as diferenças que existem entre a análise de DNA e os demais
meios de prova, métodos de identificação civil de uma pessoa ou testes de
avaliação da sua condição física e psicológica são mais do que suficientes para
justificar a exigência de uma lei especial. Com efeito, a necessidade de uma lei
específica sobre a recolha de DNA assume o maior relevo, tendo em conta o facto
de que, embora se possa considerar que a extracção de material biológico não é,
em si mesma, uma actividade excessivamente intrusiva ou lesiva da privacidade ou
integridade física dos indivíduos, as utilizações potenciais que podem ser dadas
ao DNA são muitas e necessitam de ser devidamente reguladas”.
Vejamos se assim é, analisando, sucessivamente, se (a) existe no quadro
normativo português algum preceito legal a autorizar a determinação da
realização coactiva dos exames que agora estão em causa e, em caso afirmativo,
se (b) esse quadro legal existente tem suficiente densidade normativa.
(a) Para responder à primeira das questões acabadas de colocar, convém recordar
o quadro normativo existente. Assim, o artigo 172º do Código de Processo Penal
estatui que “se alguém pretender eximir-se ou obstar a qualquer exame devido […]
pode ser compelido por decisão da autoridade judiciária competente”; por sua
vez, o artigo 61º, nº 3, alínea d), do mesmo Código prescreve que “recaem
especialmente sobre o arguido os deveres de […] sujeitar-se a diligências de
prova […] especificadas na lei e ordenada e efectuadas por entidade competente”;
e, finalmente, o artigo 6º, nº 1, da Lei nº 45/2004, de 19 de Agosto (que define
o regime das perícias médico-legais e forenses), preceitua que “ninguém pode
eximir-se a ser submetido a qualquer exame médico-legal quando este se mostrar
necessário ao inquérito ou à instrução de qualquer processo e desde que ordenado
pela autoridade judiciária competente, nos termos da lei”.
Cremos, em primeiro lugar, que a tentativa de extrair daqueles preceitos do
Código de Processo Penal a norma de habilitação para a realização dos exames que
agora estão em causa assenta no vício lógico de dar por demonstrado o que se
pretende demonstrar. Com efeito, o artigo 172º, nº 1, do Código de Processo
Penal, apenas estatui que “se alguém pretender eximir-se […] a qualquer exame
devido […], pode ser compelido por decisão da autoridade judiciária competente”,
mas não esclarece, só por si, e é isso que está agora em causa, quais exames são
devidos, isto é, a que tipo de exames é que o arguido tem o dever de se
sujeitar. Dito de outra forma: o artigo 172º, nº 1, do Código de Processo Penal,
que prescreve a possibilidade de realização coactiva dos exames que sejam
devidos (i.e., que a autoridade judiciária competente possa determinar e,
consequentemente, que o arguido tenha o dever de suportar), pressupõe - mas não
permite fundamentar - o dever de o arguido se sujeitar a um concreto tipo de
exame. E, o mesmo acontece com o artigo 61º, nº 3, alínea d), quando estatui que
recai especialmente sobre o arguido o dever de se sujeitar a diligências de
prova especificadas na lei. Ora, também aqui a questão é, justamente, a de saber
se a diligência de prova agora em causa está ou não suficientemente especificada
na lei (que tem de ser, obviamente, outra lei, que não o próprio artigo 61º).
Em suma: aqueles preceitos do Código de Processo Penal pressupõem que o exame
seja devido ou que a diligência de prova esteja especificada na lei, pelo que
deles não pode, logicamente, retirar-se o dever ou a especificação que os mesmos
pressupõem.
E poderá retirar-se essa norma de habilitação do nº 1 do artigo 6º da Lei nº
45/2004, que estatui que “ninguém pode eximir-se a ser submetido a qualquer
exame médico-legal quando este se mostrar necessário ao inquérito ou à instrução
de qualquer processo e desde que ordenado pela autoridade judiciária competente,
nos termos da lei”?
Do ponto de vista que agora importa considerar, este preceito vai mais longe do
que os anteriores, podendo funcionar como norma de autorização para a
determinação de um exame “necessário ao inquérito ou à instrução de qualquer
processo” que aqueles preceitos do Código de Processo Penal pressupõem. Se o
exame médico-legal for necessário ao inquérito ou instrução do processo ninguém
pode eximir-se à sua realização, prescreve o artigo 6º, nº 1, da Lei nº 45/2004,
que o mesmo é dizer que o exame é, então, devido. E, sendo-o, poderá o arguido
ser compelido à sua realização.
Este raciocínio contém, porém, um elemento ainda não demonstrado e que é posto
em causa no parecer de Gomes Canotilho: o de que os exames genéticos estão
incluídos na referência a “qualquer exame médico-legal” feita no citado artigo
6º. Ora, no parecer, o artigo 30º da Lei nº 45/2004, que dispõe que “o acesso à
informação genética ou biológica bem como o tratamento dos respectivos dados são
regulados em legislação específica que salvaguarde os direitos fundamentais das
pessoas, nos termos da Constituição e do direito internacional aplicável”, é
entendido como demonstrando que o legislador, consciente da especificidade das
questões relativas à análise de A.D.N. e considerando que a regulamentação
contida na Lei nº 45/2004 para a realização de exames médico-legais em geral não
é ainda suficiente para salvaguardar os direitos fundamentais das pessoas no
caso de se tratar de exames genéticos, remeteu a sua regulamentação para
legislação específica.
Cremos, porém, que este argumento prova demais, uma vez que o citado artigo 30º,
inserido nas disposições finais e transitórias do diploma, apenas se refere a
dois dos aspectos que se relacionam com os exames médico-legais e perícias no
âmbito da genética, para os remeter para legislação específica: o do “acesso à
informação genética” e o do “tratamento de dados”. Quer dizer: o que o
legislador entendeu foi que, determinada a realização do exame que se mostrar
necessário ao inquérito ou à instrução do concreto processo em causa e efectuado
o mesmo - trata-se de disposição final e transitória -, há tão somente dois
aspectos do regime desse exame que ficam sujeitos a legislação específica: o
acesso à informação recolhida no exame, nomeadamente por terceiros e já
necessariamente fora do contexto da sua realização e do inquérito ou processo em
causa, e o tratamento dos dados obtidos, nomeadamente no quadro de criação de
uma eventual base dos mesmos. E, para estes efeitos, a regulamentação prevista
na Lei nº 45/2004 não será ainda suficiente, necessitando de ser desenvolvida
através de uma legislação específica que salvaguarde os direitos fundamentais
das pessoas, nos termos da Constituição e do direito internacional aplicável.
Que o legislador não pretendeu excluir, de todo, ao contrário do que é
sustentado pelo recorrente, os exames genéticos do âmbito de aplicação daquele
diploma, e, consequentemente, do âmbito de aplicação do seu artigo 6º, nº 1,
mostra-o, aliás, a existência no diploma de uma Secção - a IV - precisamente
dedicada aos “exames e perícias no âmbito da genética, biologia e toxicologia
forense”.
Do que acabamos de dizer decorre, então, que o problema não estará tanto na
falta de habilitação legal (i.e., na falta de norma que autorize a realização
coactiva do exame - essa existe e decorre da conjugação dos preceitos constantes
do artigo 6º da Lei nº 45/2004, de 19 de Agosto, e do artigo 172º do Código de
Processo Penal), mas, eventualmente, na falta de densidade normativa suficiente
desse quadro legal habilitante.
Vejamos se assim é.
(b) A questão a que, por fim e nesta parte, tudo se reconduz é, então, a do grau
de densidade normativa que tem de ter a lei habilitante da restrição de
direitos, liberdades e garantias. Como refere, por exemplo, Vieira de Andrade
(ob. cit., p. 302), “apesar de não estar expressamente referida, deve ainda
considerar-se que a lei restritiva, em função da reserva de lei formal, tem de
apresentar uma densidade suficiente, isto é, um certo grau de determinação do
seu conteúdo, pelo menos no essencial, não sendo legítimo que deixe à
Administração espaços significativos de regulação ou de decisão […]”. Ou, nas
palavras de Jorge Reis Novais (ob. cit., p. 842-843), que, entre nós, mais
recentemente se pronunciou desenvolvidamente sobre o problema, trata-se, no
fundo, de saber “a partir de que patamares é que o legislador, com uma lei
habilitante insuficientemente densa, subverte os ditames da separação e
interdependência de poderes - já que só com leis suficientemente claras e
determinadas se garante que é o próprio legislador que toma as decisões
essenciais -, as exigências de segurança próprias de um Estado de direito, bem
como o direito à tutela judicial efectiva do direito fundamental afectado, uma
vez que da densidade normativa da regulamentação legal depende também, em alguma
medida, a adequação funcional da intensidade variável do controlo judicial da
actividade administrativa”.
Na resposta a esta questão importa que se comece por sublinhar que a
Constituição não dispõe, ela própria, de preceitos conclusivos (de
“determinações acabadas”, na terminologia de Reis Novais, ob. cit., p. 827), que
concretizem exactamente o grau de densidade normativa exigível à lei habilitante
da restrição de direitos fundamentais, pelo que, como afirma o mesmo autor (ob.
cit., p. 851), em vão “se procurariam [na Constituição] critérios que
permitissem […] soluções extraídas de definições talhantes e através de
raciocínios lógico-dedutivos em ordem a habilitar uma conclusão inequívoca sobre
quando se extravasam, neste plano, os limites admissíveis em Estado de Direito”.
Neste pressuposto, cabe à jurisprudência constitucional – em última instância -
a tarefa de concretização dos critérios de decisão de cada caso concreto.
A este propósito, especificamente sobre o problema do grau de densidade
normativa exigível à lei habilitante da restrição de direitos fundamentais que
ocorra no âmbito do processo penal, pronunciou-se o citado Acórdão nº 7/87,
para, fazendo suas as palavras de Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, 1º
Vol., reimpressão, 1984, § 2, II, 1), afirmar a exigência de “uma estrita e
minuciosa regulamentação legal de qualquer indispensável intromissão, no decurso
do processo, na esfera dos direitos do cidadão constitucionalmente garantidos”.
Fora do âmbito do processo penal, a questão da restrição de direitos
fundamentais foi abordada, com mais algum desenvolvimento, no Acórdão nº 285/92,
em processo de fiscalização preventiva em que foram apreciadas normas de um
Decreto aprovado em Conselho de Ministros relativo à “Racionalização do Emprego
dos Recursos Humanos na Administração Pública”. Aí, ponderou o Tribunal: “[…] a
questão da relevância do princípio da precisão ou da determinabilidade das leis
anda associada de perto à do princípio da reserva de lei e reconduz-se a saber
se, num dado caso, o âmbito de previsão normativa da lei preenche ou não
requisitos tidos por indispensáveis para se poder afirmar que o seu conteúdo não
consente a atribuição à Administração, enquanto executora da lei, de uma esfera
de decisão onde se compreendem elementos essenciais da própria previsão legal, o
que, a verificar-se, subverteria a ordem de repartição de competências entre o
legislador e o aplicador da lei […]. Ora, atento o especial regime a que se
encontram sujeitas as restrições aos direitos, liberdades e garantias, constante
do artigo 18º da Constituição […], forçoso se torna reconhecer que […] o grau de
exigência de determinabilidade e precisão da lei há-de ser tal que garanta aos
destinatários da normação um conhecimento preciso, exacto e atempado dos
critérios legais que a Administração há-de usar, diminuindo desta forma os
riscos excessivos que, para esses destinatários, resultariam de uma normação
indeterminada quanto aos pressupostos de actuação da Administração; e que
forneça à Administração regras de conduta dotadas de critérios que, sem
jugularem a sua liberdade de escolha, salvaguardem o «núcleo essencial» da
garantia dos direitos e interesses dos particulares constitucionalmente
protegidos em sede de definição do âmbito de previsão normativa do preceito
[…]”.
Na doutrina nacional, o tema foi, como dissemos, tratado de forma desenvolvida
por Jorge Reis Novais. Este autor, após analisar as razões justificativas do
instituto da reserva de lei e não obstante assinalar que faz todo o sentido que
“a hetero e pré-determinação da actividade administrativa no que respeita aos
domínios mais sensíveis ou relevantes para a comunidade, maxime os direitos
fundamentais, se faça privilegiadamente através de decisões oriundas dos
representantes directamente escolhidos para o efeito” (ob. cit., p. 834),
reconhece a inevitabilidade de, em certos casos, a norma habilitante ter de
recorrer a “a conceitos indeterminados com remissão, expressa ou implícita, para
juízos de prognose, prerrogativas de avaliação e ponderação de caso concreto,
bem como [à] outorga de significativas margens de decisão administrativa num
domínio que, à partida e segundo os ditames clássicos da reserva de lei, lhes
seria tendencialmente avesso” (ob. cit., p. 845). E, assim sendo (ob. cit., p.
851), “a densidade normativa exigível varia em função de diferentes parâmetros
só definitivamente valoráveis nas circunstâncias do caso concreto”, pelo que o
que sempre importa apreciar é se, nas circunstâncias do caso concreto, “é
exigível, no sentido não apenas de ser objectiva e tecnicamente possível, mas,
também, constitucionalmente adequado, que o legislador dote a lei restritiva de
uma maior densificação ou determinação normativa.” Concretizando esta ideia,
Reis Novais acrescenta ainda (ob. cit., pp. 852) que, nesta tarefa, a chamada
teoria da essencialidade - as decisões essenciais nos âmbitos normativos mais
relevantes, maxime nos referentes ao exercício dos direitos fundamentais, devem
ser tomadas pelo legislador democraticamente legitimado - se tem revelado “capaz
de orientar o controlo constitucional de densidade normativa”, e conclui que
(ob. cit., págs. 854-855) “serão diferentes os patamares exigidos de densidade
consoante lidamos com restrições de direitos fundamentais que conferem uma
protecção específica a bens de liberdade precisamente delimitados ou direitos
fundamentais potencialmente receptivos aos múltiplos condicionamentos e
limitações derivados da sua necessária integração e compatibilização social com
outros bens, como sejam a liberdade geral de acção ou ao livre desenvolvimento
da personalidade; consoante se trata da afectação de aspectos essenciais da
dignidade da pessoa humana ou da restrição de faculdades marginais todavia
cobertas por protecção jusfundamental; consoante está em causa uma lei
conformadora que, incidentalmente, contém elementos restritivos ou uma lei que
se dirige, a título principal, a restringir um direito fundamental; conforme uma
restrição é controversa, grave e duradoura ou constitui uma bagatela
pacificamente tolerada. Por sua vez, na valoração do grau de densidade escolhido
pelo legislador deverão ser ponderadas, não apenas a forma como a indeterminação
normativa em apreciação afecta o direito à tutela judicial efectiva […] como
também a forma como se reflecte num exercício repartido e funcionalmente
adequado do poder público, na eficiência da administração ou na optimização das
condições orgânicas da composição dos bens em conflito.”
À luz dos critérios anteriormente mencionados, que se afiguram, no essencial,
correctos, considera o Tribunal que não se verifica, no caso dos autos, uma
ausência de pré-fixação normativa de critérios de actuação restritiva de
direitos fundamentais constitucionalmente censurável.
Na verdade, no âmbito da fiscalização concreta de constitucionalidade, como é a
que agora está em causa, há que considerar, decisivamente, a concreta dimensão
normativa aplicada. E, neste contexto, importa salientar, desde logo, que
estamos face a uma norma que permite a colheita coactiva de material biológico -
mais concretamente de saliva, através da utilização da técnica da zaragatoa
bucal - realizada apenas para efeitos de determinação do perfil genético do
arguido em termos de possibilitar a comparação com outros vestígios biológicos
encontrados no local do crime. Ora, tratando-se da mera fixação de um perfil
genético na medida do estritamente necessário, adequado e indispensável para
comparação com vestígios colhidos no local do crime, como se refere
explicitamente na decisão que determina a dita recolha coactiva, fica à partida
delimitado o âmbito do exame e excluída qualquer possibilidade legítima de
tratamento do material recolhido em termos que permita aceder a informação
sensível que exceda a absolutamente indispensável ao fim visado, ou seja, à
comparabilidade referida. É que, sendo este, e apenas este, o objectivo da
recolha, o âmbito da análise está necessariamente restringido à utilização
daqueles marcadores de A.D.N. que sejam absolutamente necessários à
identificação do seu titular, isto é, aos que, segundo os conhecimentos
científicos existentes, permitem a identificação mas não permitem a obtenção de
informação de saúde ou de características hereditárias específicas do indivíduo;
ou seja, a análise tem de se restringir ao chamado A.D.N. não codificante.
Delimitado assim, como não pode deixar de o ser, no caso concreto, o âmbito do
exame normativamente autorizado, verifica-se, então, que a potencialidade lesiva
dos comportamentos em causa, por todos em geral reconhecida e que se verifica
não tanto no momento da recolha do material biológico com base no qual será
feito o exame, mas, fundamentalmente, na quantidade e qualidade de informação a
que a análise poderia permitir aceder, fica significativamente reduzida. E,
reduzida a potencialidade lesiva do comportamento, diferente será também o
patamar de densidade normativa que é constitucionalmente exigível à
regulamentação que o autorize. Ora, neste contexto, verifica-se que a Lei n.º
44/2005, de 19 de Agosto, nos quadros da qual são realizados os exames e
perícias médico-legais, nomeadamente no âmbito da genética (cfr. artigo 23º), já
contém aquele grau mínimo de concretização normativa dos termos da possibilidade
da sua realização que permite afastar, também sob este ponto de vista, um juízo
de censura constitucional. Destaca-se, a este propósito, além do facto de os
exames se realizarem no Instituto de Medicina Legal, por técnicos devidamente
credenciados para tal, o já referido artigo 6º - que condiciona o dever de
submissão ao exame à demonstração da sua necessidade para o inquérito ou
instrução e de que decorre, no caso concreto, que o mesmo se tem de cingir ao
A.D.N não codificante -, o artigo 25º - que, sobre o destino dos objectos e
produtos examinados estatui, no seu nº 1, que “após a realização do exame [...]
o perito procede à recolha, acondicionamento e selagem de uma amostra
susceptível de possibilitar a realização de nova perícia no caso de os objectos
e produtos examinados o permitirem e à destruição do remanescente” - e o próprio
artigo 30º - que expressamente salvaguarda que o acesso à informação,
designadamente por terceiros e fora do contexto do processo em que é autorizado,
ou a constituição de uma base de dados estão ainda dependentes da legislação
específica que salvaguarde os direitos fundamentais das pessoas.
Não é esta situação, aliás, substancialmente diversa da que foi desenvolvida em
Espanha ou na Alemanha, modelos citados pelo recorrente.
Na verdade, em Espanha, depois de o Tribunal Constitucional (STC 207/1996, de 16
de Dezembro) ter explicitamente afirmado que os preceitos do processo penal
espanhol (concretamente os artigos 311 e 339 da Ley de Enjuiciamento Criminal,
então invocados) não conferiam a esta concreta medida restritiva dos direitos à
intimidade e à integridade física a cobertura legal requerida pela doutrina
daquele tribunal para qualquer acto limitativo de direitos fundamentais, o
Governo, através da Ley Orgânica n.º 15/2003, de 25 de Novembro, limitou-se,
para o que agora importa, a acrescentar um parágrafo 3º ao artigo 326º e um
parágrafo 2º ao artigo 363º, ambos da referida Ley de Enjuiciamento Criminal,
onde se dispõe, no primeiro, que quando seja evidente que a análise biológica de
vestígios pode contribuir para o esclarecimento do facto investigado, o juiz de
instrução adoptará ou ordenará à polícia judicial ou ao médico forense que
adopte as medidas necessárias para que a sua recolha, custódia e exame se
verifique em condições que garantam a sua autenticidade e, no segundo, que,
sempre que ocorram fundadas razões que o justifiquem, o juiz de instrução poderá
determinar, em decisão fundamentada, a obtenção de amostras biológicas do
arguido que sejam indispensáveis à determinação do seu perfil de ADN, podendo,
para esse efeito, determinar a prática daqueles actos de inspecção,
reconhecimento ou intervenção corporal que resultem adequados aos princípios da
proporcionalidade e razoabilidade. Também na Alemanha, face à controvérsia
doutrinária sobre a questão de saber se o § 81 a) do Código de Processo Penal
(StPO), que expressamente autorizava a recolha coactiva de sangue para fins de
processo penal, podia ser interpretado em termos de permitir igualmente essa
colheita para efeitos de determinação do perfil genético do arguido, o
legislador, em 1997, limitou-se o legislador a acrescentar um novo parágrafo ao
StPO - o § 81 e) - onde passou a autorizar expressamente que o sangue assim
recolhido pudesse ser geneticamente analisado para fins de investigação
criminal.
A concluir sempre se dirá, no entanto, que uma maior densidade ou concretização
normativa nesta matéria é, seguramente, não somente possível - como o demonstra
a proposta de regime jurídico de constituição de uma base de dados de perfis de
A.D.N., já referida – mas, porventura, desejável. Com efeito, nesta proposta, na
sequência dos instrumentos internacionais já citados, diversos aspectos (não
apenas relativos à constituição da base de dados, mas também relativos à recolha
coerciva de material biológico no âmbito da investigação criminal para posterior
análise genética não consentida) aparecem desenvolvidamente regulamentados. É
assim que, por exemplo, no artigo 8º daquela Proposta, que dispõe sobre a
“Recolha de amostras com finalidades de investigação criminal”, se estatui, no
nº 1, que “a recolha de amostras em processo-crime é realizada a pedido do
arguido ou ordenada, oficiosamente ou a requerimento, por despacho do juiz, a
partir da constituição de arguido, ao abrigo do disposto no artigo 172º do
Código de Processo Penal”; que, no artigo 10º, que dispõe sobre o modo de
recolha da amostra, se salvaguarda que “a mesma é realizada através de método
não invasivo, que respeite a dignidade humana e a integridade física e moral
individual, designadamente pela colheita de células da mucosa bucal ou outro
equivalente”; que, no artigo 11º, se garante a possibilidade de contraditório,
estatuindo-se, no nº 1, que “salvo casos de manifesta impossibilidade, é
preservada uma parte bastante e suficiente da amostra para a realização de
contra-análise”, e, no nº 2, se explicita ainda que “quando a quantidade da
amostra for diminuta deve ser manuseada de tal modo a que não impossibilite a
contra-análise”; e que, no artigo 12º, se estatui que o âmbito da análise se
restringe “[...] àqueles marcadores de A.D.N. que sejam absolutamente
necessários à identificação do seu titular para os fins da presente lei”, isto
é, como se define no nº 5 do artigo 2º, os que “[...] segundo os conhecimentos
científicos existentes não permite[m] a obtenção de informação de saúde ou de
características hereditárias específicas […]” do indivíduo; ou seja,
preceitua-se que a análise efectuada para efeitos de investigação criminal se
tem de restringir ao chamado A.D.N. não codificante. E que, finalmente, há
preceitos relativos ao acesso de terceiros à informação (art. 24º e seguintes),
à conservação dos perfis de A.D.N. (artigo 28º), ao dever de segredo (artigo
30º), ou à protecção (artigo 33º) e destruição (artigo 34º) das amostras.
Mas, se uma regulamentação genérica mais desenvolvida é possível e, porventura,
desejável, o que não pode é, no caso concreto e perante a dimensão normativa
verdadeiramente em causa, pelas razões que acima já foram enunciadas,
censurar-se tal dimensão do ponto de vista jurídico-constitucional, por
insuficiente densificação.
12.2.3.3. Vejamos, por último, a questão da necessidade de prévia autorização
judicial. Na verdade, na concreta dimensão normativa que agora está em causa,
não seria necessária a prévia autorização do juiz de instrução para a realização
dos exames, sendo suficiente, na fase de inquérito, a sua determinação pelo
Ministério Público. Importa, porém, averiguar se esta solução é compatível com o
disposto no artigo 32º, nº 4, da Constituição, que dispõe que “toda a instrução
é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras
entidades a prática dos actos instrutórios que não se prendam directamente com
direitos fundamentais” (itálico aditado).
O Tribunal Constitucional já teve ocasião, na vigência do Código de Processo
Penal de 1987, de amplamente se pronunciar sobre o estatuto do Ministério
Público na fase de inquérito e sobre a articulação desses poderes com a
exigência constitucional, constante do n.º 4 do art.º 32º da Constituição, de
que a instrução é da competência do juiz. Fê-lo, mais desenvolvidamente, no
Acórdão n.º 7/87, publicado no Diário da República, I Série, Suplemento, de 9 de
Fevereiro de 1987, no Acórdão n.º 23/90, publicado no Diário da República, II
Série, de 4 de Julho de 1990, nos Acórdãos n.º 581/2000 e 395/2004. E muitos
outros se podem citar, como, por exemplo, os Acórdãos n.º 517/96, 610/96, 694/96
e 691/98. Sobre a autonomia do Ministério Público, a sua competência para a
direcção do inquérito e para determinar a prática dos actos necessários à
recolha de prova nessa fase afirmou-se, designadamente, naquele Acórdão n.º
7/87, a propósito da conformidade constitucional do artigo 263º do CPP:
“[…] Que dizer agora do «inquérito» do novo CPP ou, mais precisamente, da norma
que atribui a sua direcção ao MP (n.º 1 do artigo 263.º) e da que dá carácter
facultativo à instrução (primeira parte do n.º 2 do artigo 286.º)?
[…]
Diga-se desde já que, na sua actual redacção, esse n.º 4 é menos exigente que na
anterior: permite-se agora expressamente que o juiz delegue noutras entidades -
em termos a fixar por lei - a prática dos actos instrutórios que se não prendam
directamente com os direitos fundamentais.
Mas fica sempre o princípio: a competência para a instrução pertence a um juiz.
E que a finalidade do «inquérito» é a mesma que as leis anteriores atribuíam ao
«corpo de delito» e à «instrução preparatória» parece fora de dúvida: o
inquérito compreende, nos precisos termos da nova lei, o conjunto de diligências
que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a
responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão
sobre a acusação. Simplesmente, a instrução de que se fala no citado n.º 4 pode
ser entendida - era nesse sentido a jurisprudência da Comissão Constitucional -
como não abrangendo «todas as formas de averiguação, investigação ou corpo de
delito suficientes para apresentação do feito em juízo». A intervenção do juiz -
lê-se no Acórdão n.º 6 - justifica-se «para salvaguardar a liberdade e a
segurança dos cidadãos no decurso do processo crime e para garantir que a prova
canalizada para o processo foi obtida com respeito pelos direitos fundamentais».
Se esses valores forem respeitados, não há obstáculo à admissibilidade de uma
«fase pré-processual» ou «extraprocessual».
[…]
Tornando-se necessária, nesta fase, a prática de actos que directamente se
prendam com a esfera dos direitos fundamentais das pessoas, tais actos deverão
ser autorizados - e alguns deles (os que deverem constituir «actos judiciais»
para efeitos dos artigos 205.º e 206.º da Constituição) mesmo praticados - pelo
juiz de instrução.» Ora, apesar de, pelo novo Código, a direcção do inquérito
caber ao MP, há actos que competem exclusivamente ao juiz de instrução nos
termos dos artigos 268.º e 269.º[…]”
No mesmo sentido, e a propósito do mesmo preceito, o artigo 263º do Código de
Processo Penal, escreveu-se no já referido acórdão n.º 23/90:
«[...] 2.2. – No fundo, a dicotomia investigação criminal - instrução do
processo criminal (neutramente nos exprimindo sem compromisso terminológico, por
desnecessário) funde-se em interdependência e complementaridade: a fase prévia
serve para criar a convicção da entidade titular da acção penal, a subsequente
destina-se a moldar a convicção do julgador. A garantia da natureza judicial
desta última expande-se aos actos praticados na primeira sempre que equacionados
os direitos fundamentais do arguido, implicando a intervenção do juiz-garante.
[…]
Por outras palavras e no concreto caso, o n.º 4 do artigo 32º da CRP prossegue a
tutela de defesa dos direitos do cidadão no processo criminal e, nessa exacta
medida, determina o monopólio pelo juiz da instrução, juiz-garante dos direitos
fundamentais dos cidadãos (“reserva do juiz”).
Intervenção do juiz que vale - e só vale no âmbito do núcleo da garantia
constitucional.
Assim ocorre em toda a fase de inquérito ao Ministério Público confiada pelo CPP
actual, compreendendo o conjunto de diligências que visam investigar a
existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles,
descobrir e recolher provas em ordem à decisão sobre a acusação (artigo 262º,
n.º 1), justificando-se a intervenção do juiz-garante sempre que afectado aquele
núcleo - consoante o elenco de situações descritas nos artigos 268º e 269º.”
Finalmente, o Acórdão nº 395/2004, após citar os acórdãos referidos,
acrescentou:
“[…] o reconhecimento da competência do Ministério Público para dirigir o
inquérito não poderá ser visto desligadamente da autonomia que a Lei Fundamental
lhe reconhece. Deste modo, caber-lhe-á a competência para decidir e proceder à
prática dos actos de investigação ou de recolha das provas, com a única ressalva
dos que importem ofensa ou restrição de direitos fundamentais que carecem,
segundo os casos, de ser ordenados ou autorizados ou até realizados
exclusivamente pelo juiz (cfr. art.ºs 268º e 269º do CPP).
Mesmo no caso destes últimos actos, não deixa de ser reconhecido ao Ministério
Público um poder de impulso processual ad actum, reconhecendo-se-lhe a faculdade
de requerer a sua autorização e/ou a sua prática ao juiz competente.
A atribuição de competência para decidir e proceder à prática dos actos de
investigação e de recolha de provas durante o inquérito, com a ressalva
resultante das limitações apontadas relacionadas com a salvaguarda de direitos
fundamentais, não pode deixar de ser acompanhada do reconhecimento ao Ministério
Público do poder de decidir com autonomia sobre a necessidade da prática dos
actos de investigação ou de recolha das provas.[…]”
Face ao exposto, só pode concluir-se que, contendendo o acto em causa, de forma
relevante, com direitos, liberdades e garantias fundamentais, a sua
admissibilidade no decurso da fase de inquérito depende, pelas mesmas razões que
justificam essa dependência no caso dos actos que constam da lista constante do
artigo 269º do Código de Processo Penal, isto é, por consubstanciar intervenção
significativa nos direitos fundamentais do arguido, da prévia autorização do
juiz de instrução. E, nem se diga que será suficiente, como aconteceu nos
presentes autos, uma intervenção a posteriori daquele juiz, tomada na sequência
de requerimento apresentado após a decisão do Ministério Público que determinou
a realização dos exames que agora estão em causa, uma vez que a mesma não
poderia desfazer a restrição de alguns dos direitos (v.g., o direito à
integridade física ou o direito à reserva da vida privada) entretanto
irremediavelmente afectados com a medida.
Isso mesmo foi, entretanto, expressamente reconhecido na Proposta de Lei de
revisão do Código de Processo Penal (Proposta de Lei nº 109/X), actualmente em
discussão na Assembleia da República, onde, logo na exposição de motivos, se
refere que, “nas perícias sobre características físicas ou psíquicas das pessoas
que não consintam na sua realização, [se exige] despacho do juiz, uma vez que
estão em causa actos relativos a direitos fundamentais que só ele pode praticar,
por força do nº 4 do artigo 32º da Constituição”. E, assim sendo, é proposto que
os artigos 154º (perícias) e 172º (exames) do Código de Processo Penal, passem a
exigir a autorização do juiz, “que pondera a necessidade da sua realização,
tendo em conta o direito à integridade pessoal e à reserva da intimidade do
visado”, sempre que se trate de exame ou perícia a “características físicas ou
psíquicas de pessoa que não haja prestado o consentimento”, acrescentando, logo
a seguir, nos nºs 3 e 4 do artigo 154º, aplicáveis aos exames por força do nº 2
do artigo 172º, que as perícias e exames em causa “são realizadas por médico ou
por outra pessoa legalmente autorizada e não podem criar perigo para a saúde do
visado”. E, consequentemente, é proposta também a alteração ao disposto no
artigo 269º do Código de Processo Penal, que se refere aos actos a ordenar ou
autorizar pelo juiz durante a fase de inquérito, preceito a que se acrescenta,
nas alíneas a) e b) do nº 1, a necessidade de ordem ou autorização do juiz para
a realização de perícias e exames sobre características físicas ou psíquicas das
pessoas que não consintam na sua realização”.
12.3. Em face do que se deixa exposto, nada mais resta do que, na ausência de
autorização do juiz, concluir pela inconstitucionalidade das normas
questionadas, ainda que na dimensão normativa que se deixou identificada.
III – Decisão
Nestes termos, o Tribunal decide:
i) julgar inconstitucional, por violação do disposto nos artigos n.ºs 25.º, 26.º
e 32.º, nº 4, da Constituição, a norma constante do artigo 172.º, nº 1, do
Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de possibilitar, sem
autorização do juiz, a colheita coactiva de vestígios biológicos de um arguido
para determinação do seu perfil genético, quando este último tenha manifestado a
sua expressa recusa em colaborar ou permitir tal colheita;
ii) consequencialmente, julgar inconstitucional, por violação do disposto no
artigo 32.º, nº 4, da Constituição, a norma constante do artigo 126º, nºs 1, 2
alíneas a) e c) e 3, do Código de Processo Penal, quando interpretada em termos
de considerar válida e, por conseguinte, susceptível de ulterior utilização e
valoração a prova obtida através da colheita realizada nos moldes descritos na
alínea anterior.
iii) Consequentemente, conceder provimento ao recurso e ordenar a reforma da
decisão recorrida em conformidade com o juízo de inconstitucionalidade que agora
se formula.
Sem custas.
Lisboa, 2 de Março de 2007
Gil Galvão
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Vítor Gomes
Bravo Serra
Artur Maurício
4 Em sentido coincidente pronunciou-se a Comissão Europeia dos Direitos do Homem
- decisão de 4 de Dezembro de 1978, em Décision e Rapports, 16, decembre 1979,
págs. 184 e sgs. - ao considerar legal e justificada a sujeição a «exame de
sangue», por parte de condutor suspeito de conduzir embriagado, como medida
necessária à protecção dos direitos e liberdades de terceiros, não havendo,
nessa medida, ofensa da norma do art.8°, da Convenção Universal dos Direitos do
Homem.
6 Os preceitos legais mencionados no texto transcrito referem-se, obviamente, ao
Código de Processo Penal de 1929 e à Constituição de 1933