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Processo nº 711/06
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da
alínea b) do art.º 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual
versão (LTC), do acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 16 de Março de
2006, que decidiu julgar improcedente a apelação interposta pelo ora recorrente
da sentença proferida pela 3.ª Secção do 3.º Juízo Cível do Tribunal Judicial da
Comarca de Santarém e procedente parcialmente a apelação interposta da mesma
decisão de 1.ª instância por banda do A. B..
2 – O ora recorrente foi demandado, em acção declarativa com
processo sumário, e pedida, aí, a sua condenação a reconhecer o direito de
propriedade do A. sobre a fracção autónoma, identificada nos autos, bem como a
entregar-lha livre e desocupada de pessoas e bens e a pagar-lhe uma indemnização
correspondente a 200 € mensais desde 1 de Abril de 2001 até à efectiva entrega
do prédio.
O ora recorrente contestou, alegando, além do irrelevante para
a questão a decidir aqui, que o entendimento normativo nos termos do qual o
arrendamento se não transmite da pessoa do cônjuge supérstite do primitivo
arrendatário, para quem haja sido transmitido, para a pessoa do novo cônjuge com
quem aquele venha posteriormente a tal transmissão a casar é inconstitucional.
Tal tese não foi, porém, acolhida pelo tribunal de 1.ª
instância, que, após audiência de julgamento e face à materialidade de facto
apurada, decretou a procedência da acção, salvo no que respeita à indemnização
pedida.
Inconformado com esta decisão, o ora recorrente recorreu para o
Tribunal da Relação de Évora, suscitando, entre o mais, a questão da
inconstitucionalidade do art.º 85.º do RAU, porquanto, no seu entender, o
“colocando [esse preceito] o apelante em desvalor relativamente aos restantes
herdeiros que ali figuram e que poderiam beneficiar de nova transmissão, quer
mesmo quanto a quem viva em simples união de facto que mais protegido ficaria
que ele próprio”, o mesmo “seria violador de preceitos constitucionais (…),
ofuscando o direito à igualdade, a protecção da família e o direito à
habitação”.
Por seu lado, recorreu, também, o A. para o referido tribunal
de 2.ª instância, batendo-se pela revogação do julgado relativo à absolvição do
pedido de indemnização.
O acórdão recorrido julgou improcedente a apelação do ora
recorrente e parcialmente procedente a do A., condenando aquele, para além do
que vinha já da decisão da 1.ª instância, a pagar ao referido senhorio o
montante correspondente ao valor das rendas mensais desde Dezembro de 2001 até
efectiva entrega do prédio.
Considerou tal acórdão, na parte que importa à questão agora em
apreço, que, não existindo convenção escrita que previsse a transmissão do
arrendamento nos termos do art.º 1059.º, n.º 1, do Código Civil (CC), o [tipo
de] contrato de arrendamento em causa estava sujeito à regra da caducidade por
morte estabelecida no art.º 1051.º, alínea d), do mesmo CC, aplicável por via do
disposto no art.º 66.º, n.º 1, do Regime de Arrendamento Urbano, aprovado pelo
Dec.-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro (RAU), por não estar abrangido pelas
excepções contempladas no artigo 85.º, nºs 1 e 3 do mesmo RAU, e, quanto à
alegada questão de constitucionalidade, que “não se descortina qualquer
inconstitucionalidade (por violação do art.º 13.º e 65.º da CRP) do preceito em
apreço na interpretação que dele fez a decisão recorrida, que aqui se
acompanhou, apoiada pela doutrina, e jurisprudência uniformes”.
3 – É desta decisão que foi interposto o presente recurso de
constitucionalidade, pretendendo o recorrente, como ficou explícito na resposta
ao convite do relator efectuado no Tribunal Constitucional, que este aprecie a
inconstitucionalidade da «norma extraída, por interpretação, do n.º 3 do art.º
85.º do Regime de Arrendamento Urbano, conjugadamente com o disposto nos nºs 1 e
2 do mesmo preceito, (…) segundo a qual “se o cônjuge do arrendatário
pré-defunto, encabeçado na posição contratual de arrendatário por força do
disposto no art.º 85.º, n.º 1, alínea a) do mesmo Regime de Arrendamento Urbano,
voltar a casar, a posição contratual que adquiriu não se transmite, por sua
morte, a este novo cônjuge”».
4 – Alegando, no Tribunal Constitucional, assim concluiu o
recorrente o seu discurso argumentativo:
«1º - A norma extraída, por interpretação, do nº 3 do art. 85º do Regime do
Arrendamento Urbano, conjugadamente com o disposto nos nºs 1 e 2 do mesmo
preceito, na acepção segundo a qual: “se o cônjuge do arrendatário pré-defunto,
encabeçado na posição contratual de arrendatário por força do disposto no art.
85º, nº1, alínea a) do mesmo Regime de Arrendamento Urbano, voltar a casar, a
posição contratual que adquiriu não se transmite, por sua morte, a este novo
cônjuge” viola a CRP, concretamente os princípios fundamentais da igualdade, da
protecção da família e o direito à habitação;
2º - Viola, tal norma, os arts. 13º e 65º da CRP;
3º - Pelo que deverá a mesma ser declarada inconstitucional;
4º - E reconhecendo-se essa inconstitucionalidade, devem os autos ser remetidos
à instância, para que seja aplicado o direito nessa conformidade e ser
reconhecido o direito do recorrente a nova transmissão do arrendamento, por via
dos mencionados preceitos constitucionais e princípios fundamentais acima
elencados».
5 – A parte contrária não contra-alegou.
B – Fundamentação
6.1 – O artigo 85.º do RAU, ao qual se reporta a norma
constitucionalmente impugnada, dispõe do seguinte jeito:
Artigo 85.º
Transmissão por morte
1 – O arrendamento para habitação não caduca por morte do
primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição
contratual, se lhe sobreviver:
a) Cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou de
facto,
b) Descendente com menos de um ano de idade ou que com ele
convivesse há mais de um ano;
c) Pessoa que com ele viva em união de facto há mais de dois
anos, quando o arrendatário não seja casado ou esteja separado judicialmente de
pessoas e bens;
d) Ascendente que com ele convivesse há mais de um ano;
e) Afim na linha recta, nas condições referidas nas alíneas b)
e c);
f) Pessoas que com ele convivessem em economia comum há mais de
dois anos.
2 – Caso ao arrendatário não sobrevivam pessoas na situação
prevista na alínea b) do n.º 1, ou estas não pretendam a transmissão, é
equiparada ao cônjuge a pessoa que com ele convivesse em união de facto;
3 – Nos casos do número anterior, a posição do arrendatário
transmite-se, pela ordem das respectivas alíneas, às pessoas nele referidas,
preferindo, em igualdade de condições, sucessivamente, o parente ou afim mais
próximo e mais idoso.
4 – (…).
Como decorre do relatado, o objecto do recurso é a norma
extraída, por interpretação, do n.º 3 deste art.º 85.º do RAU, conjugadamente
com o disposto nos seus nºs 1 e 2, segundo a qual “se o cônjuge do arrendatário
pré-defunto, encabeçado na posição contratual de arrendatário por força do
disposto no art.º 85.º, n.º 1, alínea a) do mesmo Regime de Arrendamento Urbano,
voltar a casar, a posição contratual que adquiriu não se transmite, por sua
morte, a este novo cônjuge”.
O recorrente sustenta que este critério normativo viola o
princípio da igualdade, consagrado no art.º 13.º da Lei Fundamental, na medida
em que trata diferentemente o cônjuge que recebeu a sua posição de arrendatário
do cônjuge primitivo arrendatário em relação àquele cônjuge que a recebe já da
pessoa do cônjuge para quem a mesma haja sido transmitida, bem como o art.º 65.º
da Constituição da República Portuguesa.
6.2 – O art. 1.º do RAU define o arrendamento urbano como “o
contrato pelo qual uma das partes concede à outra o gozo temporário de um prédio
urbano, no todo ou em parte, mediante retribuição”.
Do próprio conceito legal resulta, pois, que a cedência
ajustada entre as partes tem a natureza de uma cedência temporária: por força do
contrato, o senhorio assume a obrigação de proporcionar ao arrendatário o gozo
do prédio a fim deste, bem como as pessoas que a tanto sejam autorizadas por via
do contrato ou da lei, o possam habitar.
Deste modo, como se diz no Acórdão n.º 130/92, publicado no
Diário da República II Série, de 24 de Julho de 1992; Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 21.º vol. p. 495, e BMJ, 416.º, p. 158, tendo por pano de fundo
a apreciação da questão de constitucionalidade da norma constante do art.º
1051.º, n.º 1, alínea d) do Código Civil,
“apresentando-se a satisfação da necessidade de habitação do
arrendatário – e da sua família – como um dos fins essenciais do contrato de
arrendamento habitacional, justifica‑se que, com o falecimento do arrendatário,
caduque o contrato, já que com aquele evento deixa de subsistir o motivo
profundo que tinha justificado a sua celebração. Quer isto dizer que o princípio
da caducidade do contrato de arrendamento urbano, por morte do arrendatário,
encontra a sua razão de ser na própria essência do contrato de arrendamento e,
em último termo, no direito de propriedade do senhorio que, com a caducidade do
contrato, vê o seu direito de propriedade sobre o prédio desonerado do direito
obrigacional ao arrendamento”.
Não obstante, como se acentua no mesmo arresto,
“a lei não deixa, porém, de prever um quadro de situações em
que o arrendamento para habitação não caduca por morte do arrendatário (cfr. o
antigo artigo 1111º do Código Civil e, hoje, os artigos 85º e 86º do Regime de
Arrendamento Urbano para Habitação, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15
de Outubro). As várias hipóteses de transmissão por morte do arrendatário visam
proteger os direitos e os interesses das pessoas que viviam com aquele e que
ficaram numa posição económica debilitada ou enfraquecida em consequência do
falecimento do arrendatário, tais como o cônjuge não separado judicialmente de
pessoas e bens ou de facto, descendentes com menos de um ano de idade ou que com
aquele convivessem há mais de um ano, ascendentes que com ele convivessem há
mais de um ano, afins na linha recta que com o arrendatário convivessem há mais
de um ano, etc..
As excepções ao princípio da caducidade do arrendamento por
morte do arrendatário encontram a sua credencial constitucional não só no
próprio direito à habitação do artigo 65º, mas também nos artigos 67º e 69º, que
versam sobre o direito que a família e as crianças têm a protecção da sociedade
e do Estado”.
Em reforço da legitimidade constitucional da previsão
legislativa de excepções ao princípio da caducidade do arrendamento por morte do
arrendatário, poder-se-á, ainda, numa certa perspectiva, convocar a função
social que tem sido reconhecida ao direito de propriedade (cf., entre outros, os
art.ºs 9.º, 62.º, 81.º e 82.º da CRP; Acórdão n.º 76/85, publicado nos Acórdãos
do Tribunal Constitucional, 5.º vol., p. 207; Jorge Miranda e Rui Medeiros,
Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, p. 628 e J. J. Gomes Canotilho e Vital
Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição revista, p.
332).
O art.º 85.º do RAU rege sobre as excepções ao princípio da
caducidade do arrendamento por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem
tiver sido cedida a sua posição contratual que está assumido como regra geral
para os contratos de locação, em cujo tipo, o do arrendamento se insere, no
art.º 1051.º, n.º 1, alínea d), do Código Civil.
Um dos casos de não caducidade do arrendamento previstos
naquele art.º 85.º do RAU é, precisamente, o de sobreviver ao primitivo
arrendatário ou àquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual cônjuge
não separado judicialmente de pessoas e bens ou de facto [alínea a)].
Como se viu, a decisão recorrida, interpretando este preceito,
conjugadamente com o disposto nos nºs 2 e 3 do mesmo artigo, entendeu,
abonando-se, na doutrina que cita, que a transmissão do arrendamento entre
cônjuges só opera em favor do cônjuge do primitivo arrendatário, ou seja apenas
em um grau de transmissão, e não também em favor do cônjuge sobrevivo que casou
com o cônjuge para quem o arrendamento fora já transmitido.
Ofenderá este regime de transmissão do arrendamento entre
cônjuges apenas em um grau o princípio da igualdade, consagrado no art.º 13.º da
Constituição?
Reflectindo sobre o estado actual do problema da igualdade, e com
ponderação da doutrina e jurisprudência nacionais e estrangeiras, afirmou-se no
Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 232/2003 (publicado no Diário da
República I Série-A, de 17 de Junho de 2003), recuperando, em diversos passos do
seu discurso, abundante argumentação de jurisprudência anterior:
“[...]
Princípio estruturante do Estado de Direito democrático e do
sistema constitucional global (cfr., neste sentido, Gomes Canotilho e Vital
Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993,
pág. 125), o princípio da igualdade vincula directamente os poderes públicos,
tenham eles competência legislativa, administrativa ou jurisdicional (cfr. ob.
cit., pág. 129) o que resulta, por um lado, da sua consagração como direito
fundamental dos cidadãos e, por outro lado, da 'atribuição aos preceitos
constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias de uma força
jurídica própria, traduzida na sua aplicabilidade directa, sem necessidade de
qualquer lei regulamentadora, e da sua vinculatividade imediata para todas as
entidades públicas, tenham elas competência legislativa, administrativa ou
jurisdicional (artigo 18º, nº 1, da Constituição)”(cfr. Acórdão do Tribunal
Constitucional nº 186/90, publicado no Diário da República II Série, de 12 de
Setembro de 1990).
[…]
1.2.- O princípio não impede que, tendo em conta a liberdade de conformação do
legislador, se possam (se devam) estabelecer diferenciações de tratamento,
“razoável, racional e objectivamente fundadas”, sob pena de, assim não
sucedendo, “estar o legislador a incorrer em arbítrio, por preterição do
acatamento de soluções objectivamente justificadas por valores
constitucionalmente relevantes”, no ponderar do citado Acórdão nº 335/94. Ponto
é que haja fundamento material suficiente que neutralize o arbítrio e afaste a
discriminação infundada (o que importa é que não se discrimine para discriminar,
diz-nos j.c.vieira de andrade – Os Direitos Fundamentais na Constituição
Portuguesa de 1976, Coimbra, 1987, pág. 299).
Perfila-se, deste modo, o princípio da igualdade como “princípio
negativo de controlo” ao limite externo de conformação da iniciativa do
legislador - cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág. 127 e, por
exemplo, os Acórdãos nºs. 157/88, publicado no Diário da República, I Série, de
26 de Julho de 1988, e os já citados nºs. 330/93 e 335/94 - sem que lhe
retire, no entanto, a plasticidade necessária para, em confronto com dois (ou
mais) grupos de destinatários da norma, avalizar diferenças justificativas de
tratamento jurídico diverso, na comparação das concretas situações fácticas e
jurídicas postadas face a um determinado referencial (“tertium comparationis”).
A diferença pode, na verdade, justificar o tratamento desigual, eliminado o
arbítrio (cfr., a este propósito, gomes canotilho, in Revista de Legislação e de
Jurisprudência, ano 124, pág. 327; alves correia, O Plano Urbanístico e o
Princípio da Igualdade, Coimbra, 1989, pág. 425; Acórdão nº 330/93).
Ora, o princípio da igualdade não funciona apenas na vertente
formal e redutora da igualdade perante a lei; implica, do mesmo passo, a
aplicação igual de direito igual (cfr. gomes canotilho, Constituição Dirigente e
Vinculação do Legislador, Coimbra, 1982, pág. 381; alves correia, ob. cit.,
pág. 402) o que pressupõe averiguação e valoração casuísticas da 'diferença'” de
modo a que recebam tratamento semelhante os que se encontrem em situações
semelhantes e diferenciado os que se achem em situações legitimadoras da
diferenciação.
[…]
“[...] O Tribunal Constitucional tem considerado que o princípio da
igualdade impõe que situações da mesma categoria essencial sejam tratadas da
mesma maneira e que situações pertencentes a categorias essencialmente
diferentes tenham tratamento também diferente. Admitem-se, por conseguinte,
diferenciações de tratamento, desde que fundamentadas à luz dos próprios
critérios axiológicos constitucionais. A igualdade só proíbe discriminações
quando estas se afiguram destituídas de fundamento racional [cf., nomeadamente,
os Acórdãos nºs 39/88, 186/90, 187/90 e 188/90, Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 11º vol. (1988), p. 233 e ss., e 16º vol. (1990), pp. 383 e ss.,
395 e ss. e 411 e ss., respectivamente; cf., igualmente, na doutrina, jorge
miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, 2ª ed., 1993, p. 213 e ss.,
gomes canotilho, Direito Constitucional, 6ª ed., 1993, pp. 564-5, e gomes
canotilho e vital moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 1993,
p.125 e ss.]”.
[…]
Assente a possibilidade de estabelecimento de diferenciações,
tornar-se-á depois necessário proceder ao controlo das normas sub judicio, feito
a partir do fim que visam alcançar, à luz do princípio da proibição do arbítrio
(Willkürverbot) e, bem assim, de um critério de razoabilidade.
Com efeito, é a partir da descoberta da ratio da disposição em
causa que se poderá avaliar se a mesma possui uma “fundamentação razoável”
(vernünftiger Grund), tal como sustentou o “inventor” do princípio da proibição
do arbítrio, Gerhard Leibholz (cf. f. alves correia, O plano urbanístico e o
princípio da igualdade, Coimbra, 1989, pp. 419ss). Essa ideia é reiterada entre
nós por maria da glória ferreira pinto: “[E]stando em causa (...) um determinado
tratamento jurídico de situações, o critério que irá presidir à qualificação de
tais situações como iguais ou desiguais é determinado directamente pela 'ratio'
do tratamento jurídico que se lhes pretende dar, isto é, é funcionalizado pelo
fim a atingir com o referido tratamento jurídico. A 'ratio' do tratamento
jurídico é, pois, o ponto de referência último da valoração e da escolha do
critério” (cf. Princípio da igualdade: fórmula vazia ou fórmula 'carregada' de
sentido?, sep. do Boletim do Ministério da Justiça, nº 358, Lisboa, 1987, p.
27). E, mais adiante, opina a mesma Autora: “[O] critério valorativo que permite
o juízo de qualificação da igualdade está, assim, por força da estrutura do
princípio da igualdade, indissoluvelmente ligado à 'ratio' do tratamento
jurídico que o determinou. Isto não quer, contudo, dizer que a 'ratio' do
tratamento jurídico exija que seja este critério, o critério concreto a adoptar,
e não aquele outro, para efeitos de qualificação da igualdade. O que, no fundo,
exige é uma conexão entre o critério adoptado e a 'ratio' do tratamento
jurídico. Assim, se se pretender criar uma isenção ao imposto profissional,
haverá obediência ao princípio da igualdade se o critério de determinação das
situações que vão ficar isentas consistir na escolha de um conjunto de
profissionais que se encontram menosprezados no contexto social, bem como haverá
obediência ao princípio se o critério consistir na escolha de um rendimento
mínimo, considerado indispensável à subsistência familiar numa determinada
sociedade” (ob. cit., pp. 31-32)”.
Ora, tendo em conta esta compreensão do sentido material do
princípio da igualdade, consagrado no art.º 13.º da CRP, a resposta à questão
colocada acaba por depender de saber se a diferenciação entre o tratamento
jurídico que é conferido ao cônjuge que sucede, na relação locatícia, ao cônjuge
primitivo arrendatário, em relação ao que é dado ao cônjuge que se apresenta a
“suceder” no arrendamento já em um segundo grau de transmissão, por o cônjuge
arrendatário já o haver recebido por transmissão do cônjuge primitivo
arrendatário, se pode considerar constitucionalmente “razoável, racional e
objectivamente fundada” ou, ao invés, se deve ter por arbitrária.
A não caducidade dos arrendamentos por morte do primitivo
arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual que se
encontra prevista nas diversas situações recortadas no art.º 85.º do RAU não
deixa de traduzir uma limitação aos poderes do proprietário do prédio de poder
dispor novamente do seu gozo e, consequentemente, uma contracção ao princípio da
autonomia contratual.
Em vez de poder dispor novamente do gozo do prédio, o
proprietário é obrigado a que o mesmo passe a caber, por força da lei e da
vontade da pessoa que se encontre na situação nela prevista, a uma outra pessoa
diferente daquela com quem contratou.
Deste modo, a não caducidade traduz-se numa imposição legal de
um outro contraente na posição de arrendatário.
Como é óbvio, não pode, todavia, deixar de considerar-se que
uma transmissão do arrendamento para o cônjuge “em segundo grau”, ou uma
transmissão do arrendamento para um cônjuge por morte do cônjuge arrendatário em
favor de quem já se operara uma transmissão por morte do cônjuge primitivo
arrendatário, é material ou substancialmente diferente quando se tenha em conta
o grau de afectação da autonomia contratual e dos poderes do senhorio de poder
dispor do gozo do prédio, da que ocorre quando se verifica apenas a transmissão
do arrendamento do primitivo arrendatário para o respectivo cônjuge.
Quanto mais transmissões forçosas sucessivas do arrendamento
fossem admitidas, mais comprimidos ficariam a autonomia contratual e os poderes
de disposição do gozo do prédio e mais excluídas ou afastadas estariam elas da
motivação para contratar.
Assim sendo, e estando confrontado com a necessidade de
conciliar os interesses contrapostos do senhorio e dos “sucessores” do primitivo
arrendatário, não se pode censurar ao legislador o ter-se quedado pela não
caducidade do arrendamento apenas nas situações estipuladas no referido artigo
85.º do RAU, entre as quais se conta a referente à dimensão normativa que está
aqui em causa.
Existe, assim, fundamento material bastante para diferenciar a
posição do cônjuge do primitivo arrendatário relativamente à do cônjuge de
arrendatário que foi investido nessa posição por força de uma anterior
transmissão do arrendamento.
Temos, pois, de concluir que não ocorre a violação do princípio
da igualdade.
6.3 – Alega, ainda, o recorrente que a norma impugnada viola o
art. 65.º da Constituição.
Discorrendo sobre este parâmetro constitucional, a propósito da
norma constante do artigo 1051.º, n.º 1, alínea d) do Código Civil, disse-se no
referido Acórdão n.º 132/92:
“9. O artigo 65º da Constituição dispõe como segue:
1. Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão
adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal
e a privacidade familiar.
2. Para assegurar o direito à habitação, incumbe ao Estado:
a) Programar e executar uma política de habitação inserida em planos de
reordenamento geral do território e apoiada em planos de urbanização que
garantam a existência de uma rede adequada de transportes e de equipamento
social;
b) Incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações,
tendentes a resolver os respectivos problemas habitacionais e a fomentar a
criação de cooperativas de habitação e a auto-construção;
c) Estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o
acesso à habitação própria.
3. O Estado adoptará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda
compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria.
4. O Estado e as autarquias locais exercerão efectivo controlo do parque
imobiliário, procederão às expropriações dos solos urbanos que se revelem
necessárias e definirão o respectivo direito de utilização.
O preceito transcrito da Constituição reconhece a todos os cidadãos o direito a
uma morada decente, para si e para a sua família; uma morada que seja adequada
ao número dos membros do respectivo agregado familiar, por forma a que seja
preservada a intimidade de cada um deles e a privacidade da família no seu
conjunto; uma morada que, além disso, permita a todos viver em ambiente
fisicamente são e que ofereça os serviços básicos para a vida da família e da
comunidade.
Para a efectivação de um tal direito, a Constituição comete ao Estado as
seguintes tarefas:
a) 'programar e executar uma política de habitação', devidamente articulada com
uma 'adequada rede de transportes e de equipamento social';
b) 'incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações',
que visem 'resolver os respectivos problemas habitacionais' e 'fomentar a
criação de cooperativas de habitação e a auto-construção';
c) 'estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o
acesso à habitação própria [cfr. artigo 65º, nº 2, alíneas a), b) e c)].
O Estado há-de, além disso, 'adoptar uma política tendente a estabelecer um
sistema de renda compatível com o rendimento familiar' (cfr. artigo 65º, nº 3);
e, juntamente com as autarquias locais, há-de exercer um 'efectivo controlo do
parque imobiliário', procedendo 'às expropriações dos solos que se revelem
necessárias' e definindo 'o respectivo regime de utilização' (cfr. artigo 65º,
nº 4).
10. O 'direito à habitação', ou seja, o direito a ter uma morada condigna, como
direito fundamental de natureza social, situado no Capítulo II (direitos e
deveres sociais) do Título III (direitos e deveres económicos, sociais e
culturais) da Constituição, é um direito a prestações. Ele implica determinadas
acções ou prestações do Estado, as quais, como já foi salientado, são indicadas
nos nºs 2 a 4 do artigo 65º da Constituição (cfr. J. J. Gomes Canotilho, Direito
Constitucional, 5ª ed., Coimbra, Almedina, 1991, pp. 680 - 682). Está-se perante
um direito cujo conteúdo não pode ser determinado ao nível das opções
constitucionais, antes pressupõe uma tarefa de concretização e de mediação do
legislador ordinário, e cuja efectividade está dependente da chamada 'reserva do
possível' (Vorbehalt des Möglichen), em termos políticos, económicos e sociais
[cfr. J.J. Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador,
Coimbra, Coimbra Editora, 1982, p. 365, e Tomemos a Sério os Direitos
Económicos, Sociais e Culturais, Separata do Número Especial do Boletim da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - 'Estudos em Homenagem ao Prof.
Doutor António de Arruda Ferrer Correia' - 1984, Coimbra, 1989, p. 26; J.C.
Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976
(Reimpressão), Coimbra, Almedina, 1987, p. 199 ss., 343 ss.]
O direito à habitação, como um direito social que é, quer seja entendido como um
direito a uma prestação não vinculada, recondutível a uma mera pretensão
jurídica (cfr. J. C. Vieira de Andrade, ob. cit., p. 205, 209) ou, antes, como
um autêntico direito subjectivo inerente ao espaço existencial do cidadão (cfr.
J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., p.680), não confere a este
um direito imediato a uma prestação efectiva, já que não é directamente
aplicável, nem exequível por si mesmo.
O direito à habitação tem, assim, o Estado – e, igualmente, as regiões autónomas
e os municípios – como único sujeito passivo – e nunca, ao menos em princípio,
os proprietários de habitações ou os senhorios. Além disso, ele só surge depois
de uma interpositio do legislador, destinada a concretizar o seu conteúdo, o que
significa que o cidadão só poderá exigir o seu cumprimento, nas condições e nos
termos definidos pela lei.
Em suma: o direito fundamental à habitação, considerando a sua natureza, não é
susceptível de conferir por si mesmo, e para além do quadro das soluções legais,
à pessoa residente no prédio um direito, judicialmente exercitável, de impedir a
caducidade do contrato de arrendamento para habitação por morte do arrendatário.
Estas considerações são suficientes para demonstrar que o direito à habitação,
condensado no artigo 65º da Lei Fundamental, não é beliscado pela norma do
Código Civil que consagra o princípio da caducidade do arrendamento para
habitação por morte do arrendatário, desde que não se verifique nenhuma das
excepções previstas no artigo 1111º daquele Código, possibilitando ao
proprietário a recuperação da faculdade de gozo do prédio urbano que tinha sido
cedida – ainda que temporariamente – ao arrendatário, por efeito do contrato de
arrendamento”.
Esta fundamentação é totalmente transponível para a situação
recortada pela concreta norma que está aqui em causa.
Deste modo, falece, também, este fundamento do recurso.
C – Decisão
7 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma extraída, por
interpretação conjugada, dos nºs 1, 2 e 3 do art.º 85.º do Regime Jurídico do
Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro,
segundo a qual se o cônjuge do arrendatário pré-defunto, encabeçado na posição
contratual de arrendatário por força do disposto no art.º 85.º, n.º 1, alínea a)
do mesmo Regime de Arrendamento Urbano, voltar a casar, a posição contratual que
adquiriu não se transmite, por sua morte, a este novo cônjuge;
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso;
c) Condenar o recorrente em custas, fixando a taxa de justiça
em 20 UCs.
Lisboa, 28 de Fevereiro de 2007
Benjamim Rodrigues
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos