Imprimir acórdão
Processo nº 1115/2006
2ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam, em Conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. Nos presentes autos foi proferida a seguinte Decisão Sumária:
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade
vindos do Tribunal da Relação do Porto, A., assistente no processo pretexto,
interpôs recurso de constitucionalidade do acórdão de 13 de Setembro de 2006,
acórdão que negou provimento ao recurso que havia sido interposto do despacho
instrutório na parte em que não pronunciou o arguido pelos factos constantes do
requerimento de abertura da instrução.
2. A. interpôs recurso de constitucionalidade nos seguintes termos:
“A., nos autos à margem referenciados, notificada do douto Acórdão de 13/9/2006,
vem interpor recurso do mesmo para o Tribunal Constitucional ao abrigo do
disposto no art. 79º nº 1 al. b) da Lei do Tribunal Constitucional.
O presente recurso tem por base a violação do princípio constitucional da tutela
jurisdicional efectiva e do direito a um processo equitativo (art. 20º CRP)
pelas normas constantes dos arts. 283º, nº 3 al. b) e 287º nº 2 e 3 do Código de
Processo Penal quando aplicadas e interpretadas com o sentido sufragado, tanto
no despacho de não pronúncia como no Acórdão Recorrido:
a) de que é de rejeitar o requerimento de abertura de instrução por
inadmissibilidade legal do mesmo, se do mesmo não constarem factos determinantes
o tipo de dolo, apesar de o tipo de crime indicado só poder ser doloso;
b) de que o requerimento de abertura de instrução que omite os factos
determinantes do tipo de dolo, apesar de o tipo de crime indicado só poder ser
doloso, não é susceptível de ser aperfeiçoado.
A Recorrente suscitou a questão da constitucionalidade nas suas alegações de
recurso para o Tribunal da Relação do Porto (arts. 6, 25, 46 e 47).
Nestes termos, requer a admissão do presente recurso.”
3. Cumpre apreciar e decidir
4. A recorrente afirma que suscitou as questões de constitucionalidade que
pretende ver apreciados nos artigos 6.º, 25.º, 46.º e 47.º das alegações de
recurso para o Tribunal da Relação do Porto.
Tais artigos têm o seguinte teor:
“6.º
Salvo o devido respeito, não podemos concordar com este entendimento: por ser
contrário à letra e ao espírito da lei, por se traduzir uma violação do
princípio constitucional da tutela jurisdicional efectivo e o direito a um
processo equitativo (art. 20 CRP); mas principalmente por ser injusto quando
comparado com outra jurisprudência relativa à sanação de nulidades constantes da
acusação.
25º
No presente caso, verificando o douto julgador a quo estarem reunidos indícios
objectivos da prática de uma agressão pela arguida, faltando determinar no
requerimento de abertura de instrução que tipo de dolo (uma vez que o crime de
ofensa à integridade física simples indicado no requerimento de abertura de
instrução afasta a punição por negligência) cabia-lhe a pronúncia da arguida
pelo tipo de crime referido, indicando modalidade do dolo, ou quando muito o
convite à assistente para aperfeiçoamento do requerimento.
46º
Assim o despacho em apreço não operou de modo satisfatório a tarefa da
concordância prática dos princípios de processo penal em conflito, optando por
sacrificar na totalidade a realização da justiça e a descoberta da verdade, em
favor da alegada defesa do princípio do acusatório e dos direitos do arguido,
que não seriam afectados.
47º
Sacrificando-se uma das finalidades primárias do processo penal ao mero
formalismo, sem se indagar se o suprimento da irregularidade constante no
requerimento de abertura de instrução seria possível.”
É manifesto que nos artigos transcritos assim como nos demais artigos das
alegações de fls. 221 e segs., não foi suscitada qualquer questão de
constitucionalidade normativa, já que a recorrente em momento algum imputa o
vício de inconstitucionalidade a uma dada norma aplicada nos autos.
Por outro lado, cabe salientar que o requerimento de abertura da instrução não
foi rejeitado, pelo que a dimensão normativa indicada na alínea a) do
requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade não se reporta ao
fundamento normativo da decisão recorrida (cfr. fls. 284).
5. Verifica-se, assim, que não foi suscitada durante o processo de modo adequado
qualquer questão de constitucionalidade normativa e que uma das dimensões
normativas impugnadas pela recorrente não foi aplicada pelo tribunal recorrido.
Não se tomará, portanto, conhecimento do objecto do recurso interposto ao abrigo
da alínea b) do n.º 1 do artigo 7º.º da Lei do Tribunal Constitucional.
6. Em face do exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do presente
recurso de constitucionalidade.
A reclamante vem agora reclamar, ao abrigo do artigo 78º‑A, nº 3, da Lei do
Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
1. A Ex.ma Conselheira Relatora decidiu não tomar conhecimento do objecto do
recurso de constitucionalidade por dois motivos:
a) Entendeu que não foi suscitada nenhuma questão de constitucionalidade
normativa nas alegações;
b) Uma das dimensões normativas impugnadas pela Recorrente não foi aplicada pelo
tribunal recorrido.
2. Salvo o devido respeito, afigura-se que esta forma de enfrentar a questão e
de concluir pelo não conhecimento do recurso decorre de uma preferência por
aspectos formais em detrimento de aspectos substanciais.
3. Na apreciação da admissibilidade do recurso para o TC, o que deve relevar é a
questão colocada, e não o modo como foi colocada.
4. A questão colocada foi a da constitucionalidade das normas constantes dos
arts. 283° n° 3 al. b) e 287° nºs 2 e 3 do C.P.P. na interpretação dada pelo
Tribunal da Relação do Porto.
5. Recordamos V.Exas que no despacho de não pronúncia o douto Julgador da 1ª
instância decidiu não pronunciar a arguida, B., pela prática dos factos que
vinham imputados à mesma no requerimento de abertura de instrução, integrantes
da prática do crime de ofensa à integridade física simples (p. e p. no art.
143°, n° 1 do Código Penal).
6. Esta decisão baseou-se em critérios formais, uma vez que se considerou que
foram recolhidos indícios da prática de uma agressão pela arguida.
7. No entanto, por não constar do requerimento de abertura de instrução a
determinação do tipo de dolo, nomeadamente a imputação à arguida de uma actuação
livre voluntária e consciente, rejeitou-se o mesmo requerimento de abertura de
instrução, por inadmissibilidade legal do mesmo.
8. Este entendimento do douto Julgador da 1ª instância fundamenta-se em
jurisprudência que considera que o requerimento de abertura de instrução
deduzido pelo assistente em relação à decisão de arquivamento do Ministério
Público, deve constituir, formal e materialmente uma verdadeira acusação.
9. Considerando também que o requerimento de abertura de instrução não é
susceptível de ser corrigido pelo Assistente.
10. O Acórdão em apreço confirmou o decidido pela 1ª instância e negou
provimento ao recurso, ou seja, rejeitou o requerimento de abertura de instrução
por inadmissibilidade legal do mesmo.
11. Ora é óbvio que a Recorrente nas suas alegações perante o Tribunal da
Relação do Porto pretendeu demonstrar que:
a) A rejeição do requerimento de abertura de instrução a que falta a indicação
do tipo de dolo constitui uma violação do princípio constitucional da tutela
jurisdicional efectiva e do direito a um processo equitativo, por a
interpretação mais correcta dos arts. 283° n° 3 al. b) e 287° n°s 2 e 3 do
Código Processo Penal dever permitir o suprimento da irregularidade;
b) Que o próprio requerimento de abertura de instrução poderia ser aperfeiçoado
sem se violar a estrutura acusatória do processo penal e as garantias de defesa
da arguida.
12. É óbvio que nesta fase do processo, embora se procurasse uma interpretação
dos arts. 283° n° 3 al. b) e 287° n°s 2 e 3 do Código Processo Penal conforme as
normas constitucionais, se deu prevalência à sua aplicação ao caso concreto e
não à sua dimensão normativa.
13. Porém, no presente recurso note-se que não é o acórdão que está directamente
em causa, mas a concreta dimensão interpretativa e aplicação feitas pelo acórdão
das normas dos arts. 283°, n° 3, al. b) e 287°, n°s 2 e 3 do Código Processo
Penal que conduz à violação do princípio constitucional da tutela jurisdicionai
efectiva e do direito a um processo equitativo.
14. No recurso apreciado pelo Tribunal da Relação do Porto apreciou‑se o modo
como as normas supra referidas foram aplicadas ao caso em concreto.
15. No presente recurso discute-se com vocação de generalidade e abstracção a
interpretação dada pelo Tribunal da Relação do Porto aos arts. 283° n° 3 al. b)
e 287°, n°s 2 e 3 do Código Processo Penal.
16. Dispõe o n° 2 do art. 75°‑A da LTC que o requerimento do recurso deve conter
a indicação da norma ou princípio constitucional que se considera violado e
indicação da peça processual em que o recorrente suscitou a questão da
inconstitucionalidade.
17. O recurso tem como fundamento a aplicação de norma cuja
inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo (art. 70º, al. b)
CTC).
18. Da análise das alegações da Recorrente perante o Tribunal Constitucional é
óbvio que se defendeu uma interpretação dos arts. 283°, n° 3, al. b) e 287° n°s
2 e 3 do Código Processo Penal de acordo com os princípios constitucionais.
19. Defendendo-se que uma interpretação divergente da apontada iria violar os
mesmos princípios constitucionais.
20. Pelo que não é verdade que não tenha sido suscitada nenhuma questão de
constitucionalidade normativa.
21. Repete-se a Recorrente imputou a inconstitucionalidade à interpretação feita
dos arts. 283° n° 3 al. b) e 287° n°s 2 e 3 do Código Processo Penal.
22. Por último, importa salientar que o acórdão recorrido, ao confirmar a
decisão da 1ª instância, decidiu pela rejeição do requerimento de abertura de
instrução.
23. Por isso, a dimensão normativa indicada na alínea a) do requerimento de
interposição do recurso de constitucionalidade reporta-se ao fundamento
normativo da decisão recorrida.
O Ministério Público pronunciou‑se do seguinte modo:
1°
A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2°
Na verdade, a reclamante não tratou de cumprir o ónus de suscitar, durante o
processo e em termos processualmente adequados, qualquer questão de
inconstitucionalidade normativa, idónea para servir de base ao recurso
interposto para este Tribunal Constitucional.
Cumpre apreciar.
2. A reclamante argumenta, no essencial, que a identificação da norma que
considera inconstitucional se justifica, sobretudo, no requerimento de
interposição do recurso de constitucionalidade, sendo predominante, durante o
processo, a impugnação da aplicação ao caso dos preceitos legais, ou seja, da
decisão.
Porém, o artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional,
determina que o objecto do recurso aí previsto é constituído por normas
jurídicas ou dimensões normativas. Este é o entendimento reiterado e uniforme do
Tribunal Constitucional quanto ao pressuposto processual em causa (cf., entre
muitos outros, o Acórdão nº 155/95 – D.R., II Série, de 20 de Junho de 1995). A
razão desta exigência é o esgotamento dos meios ordinários de recurso, isto é, a
oportunidade de o tribunal a quo apreciar previamente a questão de
constitucionalidade suscitada.
Não se verifica, portanto, o pressuposto processual da suscitação durante o
processo da questão de constitucionalidade normativa.
3. A reclamante afirma, por último, que o requerimento de abertura da instrução
foi rejeitado, o que não aconteceu.
Na verdade, apenas se realça que o Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão,
na decisão instrutória de 5 de Novembro de 2004 (fls. 197 e ss.), expressamente
assumiu que o tribunal não procedeu à rejeição do requerimento de abertura de
instrução (fls. 200, p. 4 da decisão instrutória, em especial o primeiro
parágrafo). Pelo que, como se disse na Decisão Sumária, a respectiva dimensão
normativa não foi aplicada pela decisão recorrida.
4. A presente reclamação é, pois, manifestamente improcedente.
5. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente
reclamação, confirmando, consequentemente, a Decisão Sumária reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 6 de Março de 2007
Maria Fernanda Palma
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos