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Processo n.º 642/06
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Por acórdão do 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Torres Vedras de 22
de Novembro de 2005, de fls. 403, os arguidos A. e B. foram condenados pela
prática, em co-autoria material e na forma continuada, de um crime de abuso de
confiança fiscal, previsto e punido no artigo 105.º, n.º 1, do RGIT (Regime
Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho),
nas penas de, respectivamente, 9 e 7 meses de prisão; os mesmos arguidos foram
ainda condenados, pela prática, em co-autoria material e na forma continuada, de
um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido no
artigo 107.º, n.º 1, do RGIT, nas penas de, respectivamente, 10 e 8 meses de
prisão; em cúmulo jurídico das referidas penas, A. foi condenada na pena única
de 14 meses de prisão e B.foi condenado na pena única de 12 meses de prisão.
A execução das referidas penas foi suspensa pelo período de 4 anos,
'suspensão condicionada à obrigação de os arguidos procederem, no mesmo prazo, à
reposição aos ofendidos das prestações omitidas'.
A arguida C., Lda., foi condenada pela prática de um crime de abuso de
confiança fiscal, cometido na forma continuada, previsto e punido no artigo
105.º, n.º 1, do RGIT, na pena de 200 dias de multa à taxa diária de 25 euros e
ainda, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social,
cometido na forma continuada, previsto e punido no artigo 107.º, n.º 1, do RGIT,
na pena de 200 dias de multa à taxa diária de 25 euros. Em cúmulo jurídico, foi
condenada na pena única de 300 dias de multa à taxa diária de 25 euros.
Finalmente, todos os arguidos foram solidariamente condenados a pagar
ao demandante Instituto da Segurança Social, IP, a quantia de 241.048,13 euros,
acrescida de juros vencidos desde Fevereiro de 2005 e vincendos até integral
pagamento.
Inconformados, os arguidos A. e B. recorreram para o Supremo Tribunal
de Justiça, Tribunal que, por acórdão de 31 de Maio de 2006, de fls. 516,
concedeu parcial provimento ao recurso e alterou a decisão recorrida, alargando
o prazo de suspensão da execução para 5 anos.
Para o que agora releva, o Supremo Tribunal de Justiça afirmou o
seguinte:
«IV. No plano do direito e a respeito da inconstitucionalidade material dos
artºs 105° e 107°, do RGIT (Regulamento Geral das Infracções Tributárias) (…), a
consciência colectiva adquiriu o sentimento de que o não pagamento de impostos é
ofensivo da igualdade tributária dos cidadãos, da proporcionalidade
contributiva, inviabilizando a fuga aos impostos a realização das finalidades do
Estado, fazendo-as recair agravadamente sobre outros, inscrevendo-se o direito
penal fiscal num movimento de eticização, obediente aos princípios da
legalidade, igualdade e justiça social, com apoio nos art.°s 101º a 104°, da
CRP.
O sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e
outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza; a
tributação do património pessoal ou real deve concorrer para a igualdade entre
os cidadãos ( art.°s 103º nº 1 e 104° n° 3, da CRP).
Nestes termos é da maior evidência, quer no plano teórico quer no plano prático,
que o lançamento dos impostos, mostrando-se a coberto da tutela da lei ordinária
e sustentada pela lei fundamental, reclama para sua cobrança um regime punitivo
deferido ao Estado, sem o qual aquela superior e pública finalidade se mostraria
seriamente comprometida integrando-se, como se integra, o delito de fuga aos
impostos naquilo que se apelida de “delinquência patrimonial de astúcia” (cfr.
Ac. deste STJ, de 9.3.2005, P.° n.° 346/05, desta 3.ªSec.) O revigoramento do
direito a essa cobrança através do recurso a reacções sejam de índole criminal
ou contraordenacional, não surge desproporcionado (…)..
Nos termos do art. 2.° do RGIT as infracções tributárias dividem-se em crimes e
contra-ordenações, estas simples ou graves, nos termos do art. 23°, do RGIT. (…)
V. Transpondo o que se invoca para justificação do problema “desesperadamente
controverso” da justificação das escutas telefónicas, se poderá afirmar que,
sendo ou tendo sido causa de ruína nacional a fuga aos impostos, se assiste a um
momentoso “estado de necessidade” de punição, face à “dramatização” do fenómeno,
sensibilizando o legislador (…), apontando para a adopção de medidas severas.
Por isso o “jus puniendi” de que o Estado se mostra detentor na luta contra os
devedores de impostos e contribuições devidas à Segurança Social, quando aos
credores particulares do Estado lhes é denegada igual tutela, enquanto figura
incumpridora e em mora nas suas obrigações, não reveste qualquer tratamento
chocante, forma diferenciada ou desproporcionada, em colisão com os princípios
com dignidade constitucional sedeados ao nível da igualdade dos cidadãos e da
menor compressão dos direitos fundamentais – art.°s 13.° n.° 1 e 18.°, n.° 2, da
CRP.
Trata-se de assegurar tratamento diferenciado e desigual, de todos aceite,
justificado e inteiramente compreensível, numa área e a uma entidade vocacionada
à realização de fins públicos, de prossecução de incontornáveis interesses de
índole financeira, nacionais e comunitários, de subsistência colectiva, de justa
repartição dos rendimentos, objectivos ocupantes na pirâmide de interesses
posição de topo, superiorizando-se aos privados, que extrapolam, em muito, a
mera responsabilidade contratual, caso em que, se fosse essa tal natureza, então
existiria manifesto excesso se se privasse de liberdade o agente da infracção,
em derrogação do princípio estabelecido no art.° 1.º do Protocolo n.°4,
Adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, proibindo a privação de
liberdade pela única razão de se não poder cumprir uma obrigação contratual.
Ora a obrigação em causa não emerge de um contrato, mas antes deriva da própria
lei estabelecendo a obrigação de pagamento de impostos, achando-se o seu devedor
em posição aproximada à de fiel depositário, no caso particular do IVA e do
Imposto sobre os Rendimentos Singulares, sendo de “levar em conta este aspecto
peculiar da posição dos responsáveis tributários, que não comporta uma pura
obrigação contratual porque decorre da lei”, além de que a impossibilidade de
incumprimento não é elemento constitutivo do crime de abuso de confiança fiscal
previsto no art.° 105.°, do RGIT (o mesmo se podendo dizer quanto ao art.° 24.°,
do RJIFNA) escreveu-se no Acórdão do TC n.° 312/00, in DR II Série, de
17.10.2000, seguido, de perto pelo AC. do TC n.° 54/2004, de 20.1.2004, P.° n.°
640/03, onde – como em outros, cfr. os n.°s 663/98 e 516 /00, in DR II Série, de
15.1.99 e 31.1.2001, daquele TC, respectivamente –, se teve como pressuposto
legal a falta dolosa de entrega de prestações à administração fiscal e a sua não
correspondência à consagração de um caso de prisão por dívidas.
O Estado, consoante a sensibilidade à natureza e grandeza dos interesses a
acautelar, ao seu grau e prática de ofensividade, na abertura e compreensão à
realidade (…) assim lhes confere tutela penal ou, reconhecendo a sua marca de
ausência de associalidade, descriminaliza ou, e ainda, atenta a sua repercussão
ética, mas de grau menor, relega para o mundo das contra-ordenações certos
comportamentos (…).
É ao poder político-legislativo, segundo a premência, importância, gravidade e
reiteração de lesividade de interesses, que cabe definir a natureza do ilícito,
incumbindo ao poder judicial somente aplicar a lei, de que aquele é único fautor
e responsável.
VI. A descriminalização é a forma mais radical de extinção do procedimento
criminal, por essa via se significando que, da parte do Estado, perdeu o facto a
carga de associalidade, da necessidade de intervenção, ainda que subsidiária, do
direito penal, e opera tanto por via de determinação expressa ou inferência
tácita da lei ou por manipulação dos elementos da factualidade típica.
Vejamos o que o artº 24º do RJIFNA preceitua:
'1. Quem se apropriar, total ou parcialmente, de prestação tributária deduzida
nos termos da lei e que estava legalmente obrigada a entregar ao credor
tributário será punido com pena de prisão até 3 anos ou multa não inferior ao
valor da prestação em falta nem superior ao dobro, sem que possa ultrapassar o
limite máximo abstractamente estabelecido.
2. Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação
tributária a que foi deduzida por conta daquela que, tendo sido recebida, haja
obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.
3. É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação tenha
natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.'
Do artº 105 do RGIT respiga-se que:
'1. Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente,
prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado
a entregar é punido com pena de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias.
2. Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se, também,
prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que,
tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei
o preveja.
3. É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida
tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente'.
O abuso de confiança fiscal contra a segurança social mostrava-se previsto nos
art.°s 27.º B e 6.º do Dec.°-Lei n.° 20-A/90, de 15/1, alterado pelo Dec.°-Lei
n.° 394/93, de 24/3 e Dec.°-Lei n.° 140/95, de 14/6, a que corresponde no quadro
do RGIT o art.° 107.°, cujo n.° 1 dispõe que as entidades empregadoras que,
tendo deduzido do valor das remunerações devidas aos trabalhadores e membros dos
órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o
entregam, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são
punidas com as penas previstas nos n.°s 1 e 5, do art.° 105.°”.
Do simples confronto entre os dois preceitos dos art.°s 24.° do RJIFNA e 105.°,
do RGIT, alcança-se, desde logo, a identidade da pena (prisão até 3 anos), e
que, ainda assim o escopo visado no tipo previsto no art.° 105.°, do RGIT,
continua a ser a punição do que, estando legalmente obrigado a entregar
prestação tributária à administração fiscal, deixe de o fazer.
No RJIFNA, segundo orientação pacífica, exigia-se a apropriação indevida por
inversão do título de posse, com censurável “animus rem sibi habendi”, a mutação
de possuidor precário “alieno domini” em possuidor “animo proprio”; no RGIT
basta-se a não entrega, mas subjacentemente, como se sublinhou no Ac. deste STJ,
de 24.3.2003, in CJ, STJ, Ano XXVIII, 1, 2003, 235, embora a tónica se tenha, na
lei nova, deslocado para a simples não entrega, continua a estar a presente a
ideia de apropriação, pois que quem recebe das mãos de terceiro prestações
tributárias, ficando investido na sua qualidade de depositário, e não as
entrega, em via de regra é porque delas se apropriou, conferindo-lhes um destino
não legal.
Dificilmente se concebe e acha explicação para diverso fim, a menos que a
contrariar as regras de experiência comum, conforme ao que é usual suceder, com
foros de normalidade e de probabilidade habitual, e a nortear a não entrega, que
não seja a apropriação.
( … )
O preceito do art.° 105.º, do RGIT, apresenta menor compreensão, menor
“exigência normativa”, abrangendo, claramente, não só as situações de indevida
apropriação mas também as de intencional não entrega, mostrando-se norteado por
uma comum filosofia de protecção dos interesses da administração fiscal, embora
mais exigente por alargamento da malha legal.
(…) O núcleo duro do tipo, conclui-se, acaba por manter-se idêntico, na
sequência de leis penais e o legislador por fidelizar-se às linhas programáticas
de combate à fuga de impostos e às contribuições à Segurança Social, sendo de
afastar a intercessão de uma relação de penalização – despenalização entre os
dois tipos legais em presença.
VII. O Colectivo configurou como crime continuado a descrita conduta dos
arguidos, nos termos do art.° 30.° n.° 2, do CP, esclarecendo que ela foi
facilitada àqueles pela ausência de atempada fiscalização tributária, criadora
de um clima favorecente de repetição, sem consequências agravadas, funcionando
como contramotivação ética.
E, em função desse designativo, prevalecendo-se de uma regra de contagem da
prescrição do procedimento criminal nos crimes perdurantes no tempo – art.°s
119.° n.° 2 b) e 2.° n.°1, ambos do CP – teve por consumados os ilícitos com a
prática do seu último acto, momento idóneo para escolha da lei aplicável, pelo
recurso à lei então vigente.
( … )
Nos termos do art.° 3.º, do CP, o crime considera-se praticado no momento em que
o agente actuou, mas a conduta dos arguidos desenvolve-se sob a égide do RJIFNA
e do RGIT, interessando indagar qual, dentre elas, na sucessão penal
estabelecida é a aplicável, no caso concreto, nos termos do art.° 2.° n.º 4, do
CP.
O arguido sustenta, louvando-se na posição do Prof. Figueiredo Dias, in Direito
Penal, Parte Geral, TI, 2004, 183, que, sendo caso de crime duradouro – igual
solução devendo adoptar-se para o crime continuado –, no pressuposto de que o
momento decisivo para a consumação é o da prática do último facto integrado na
perduração ou continuação, segue-se que, registando-se alteração da lei penal, e
sendo mais desfavorável a lei nova, só aos factos praticados após a sua vigência
ela teria aplicação, não já às anteriores.
( … )
Já se teve ensejo de afirmar que entre os dois tipos legais de crime, quer o
previsto à face do RJIFNA quer o configurado no RGIT, não intercede uma relação
de descontinuidade normativo-típica; o legislador não criou, no RGIT, um tipo
legal novo, vocacionado para protecção de distintos interesses, mantendo, no
plano dos seus elementos típicos uma persistente identidade.
Relevou-se, agora, a exigência da retenção da prestação ficar a dever-se, não a
apropriação, para se cair na da sua não entrega nos cofres do Estado, num caso e
noutro, sempre dolosa, e em detrimento da Fazenda Nacional, mas sem alteração
significativa dos dados do problema.
De realçar que do quadro factual resulta provado que os arguidos, na sua
qualidade de sócios gerentes da “C., Ldª”, não entregaram as prestações devidas
a título de impostos e de contribuições à Segurança Social, nem dentro ou fora
de 90 dias sobre o seu vencimento, concorrendo para que aquela empresa delas se
apropriasse, revertendo em favor daquela sociedade, nestes termos sequer se
colocando, como problemático, o preenchimento dos elementos do tipo ante as duas
leis em presença: é que tanto à face de uma como de outra é, categoricamente,
visível a sua ocorrência, a sua persistência.
(…) Conclui-se que, tendo os actos lesivos do fisco sido praticados ao longo de
anos (1999 e 2002) em moldes reiterados, mantendo-se a penalização das suas
condutas, à face das leis em sucessão exclusivamente integrantes de crime, a
punibilidade por força da lei vigente na data da prática do último acto, já sob
a alçada da lei nova, embora iniciada à face da lei antiga, se mostra sem razão
para censura e sem afronta os direitos dos recorrentes – art.°s 2.° n.º 1 e 3,
do CP.
VIII. Os recorrentes suscitam a desconformidade do art.° 14.°, do RGIT,
regulamentando a aplicação do instituto da suspensão da execução de pena de
prisão imposta às infracções tributárias, à Constituição, muito embora “se
conheça Jurisprudência que tem vindo a reconhecer a constitucionalidade desta
disposição” (sic), mas, dizem, cremos “que por razões idênticas às acima
apontadas na conclusões 16, 17 e 18, ela pode ser posta em crise (...)”.
Tais conclusões são as que encerram o privilégio do Estado-Fisco em mobilizar o
seu “jus puniendi”, pondo em campo o arsenal de meios sancionatórios de que está
“armado” (sic) em defesa dos seus créditos tributários, e “denegar o mesmo
tratamento aos credores privados, com muito menos meios de reacção
contrafáctica”, não dispensando tutela idêntica aos seus credores quando ele
próprio se acha em mora.
Não se detecta se os recorrentes intentam demonstrar que, também, os credores
privados deveriam dispor de medidas detentivas da liberdade, para cobrança dos
seus créditos, no retorno a um passado indesejável, de qualquer sorte essa
problemática escapa à questão que nos ocupa, nada tendo que ver como ela os
recorrentes, como igualmente deles se dissocia a falta de protecção que o Estado
proporciona aos seu credores quando ele próprio se toma um seu devedor relapso.
Igualmente se não vê como, pelo recurso ao instituto da suspensão da execução da
pena de prisão imposta ao devedor tributário, o Estado trate sem a
“superioridade ética” exigida no tratamento penal dos cidadãos, por forma a
actuar, então, “um encurtamento da diferença ética que deve persistir entre a
perseguição do crime e o próprio Estado”, violando o princípio da proibição do
excesso no uso de meios ou tratando desigualmente que o não deva.
Bem, ao invés, o tratamento penal despojado desse instituto é que se mostraria à
margem da superioridade ética que deve envolver o poder punitivo do Estado; sem
ele os arguidos corriam risco, quase imediato, de privação de liberdade.
( … )
X. A suspensão da execução da pena, nos termos do art.° 14.°, do RGIT, por prazo
que pode atingir os 5 anos, condicionada ao pagamento da prestação tributária,
acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o
juiz o entenda, do pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a
pena de multa – n.° 1.
O juiz pode, em caso de incumprimento, exigir garantias de cumprimento,
prorrogar o prazo de suspensão até metade do inicialmente previsto, mas sem
exceder o prazo máximo ou revogar a suspensão – n.° 2 als. a), b) e c).
Essa exigência de pagamento, à margem da condição económico-pessoal do
responsável tributário, nada tem de desmedida, justificando-se pela necessidade
da eficácia do sistema penal tributário e o tratamento diferenciado –
desligadamente de outros interesses a ponderar, ao invés do que sucede na
sujeição a deveres impostos como condição de suspensão da execução da pena, nos
termos do art.° 51.°, n.° 1, do CP, aqui se cuidando “ao mesmo tempo da vítima e
do delinquente” – Cons.° Manso Preto, Textos – Centro de Estudos Judiciários,
1990-91, 173 –, face ao interesse preponderantemente público, a acautelar.
E semelhante inconsideração de possibilidade, pressuposta legalmente, mesmo
assim tem sido havida como conforme à CRP porque a lei não exclui a suspensão,
porque mesmo parecendo impossível a satisfação da prestação não é de excluir
que, por mudança de fortuna, o devedor esteja em condições de arcá-la, porque só
o incumprimento doloso determina a revogação, por fim porque sempre restam, em
casos de dificuldades de cumprimento, alternativas, já que no regime rege o
princípio “rebus sic stantibus”, norteado pelos princípios da culpa e da
adequação, não se apresentando com a rigidez que aparenta.
Os Acs. do TC, de 21.5.2003, sob os n.°s 256/03, in P.° n.° 647/02, de 7.7.2003,
335/03, P.° n.° 282/03, de 20.1.2004 e 54/2004, in P.° n.° 640/03 (este citando
os Acs. n.°s 312/00, in DR., II Série, de 17.10.2000, 389/01, DR., II Série,
683/98, in DR., II Série, de 15.1.98 e 516/00, DR, II Série, de 31.1.2001),
inscrevem-se numa linha de orientação uniforme daquele Tribunal em favor da
conformidade constitucional e que a argumentação dos recorrentes não comporta
virtualidade para afastar em sede de conformação da lei tributária ao diploma
fundamental.
(…)»
2. Ainda inconformados, A. e B. recorreram para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei
nº 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo a apreciação das seguintes normas:
'- as dos artigos 114.º, 105.º e 107.º do Regime Geral das Infracções
Tributárias (RGIT);
- as dos artigos 119.º, n.º 2, alínea b), artigo 2.º, n.º 1, do Código Penal;
- as dos artigos 105.º e 107.º do RGIT;
- a do artigo 14.º do RGIT;
Com a interpretação que lhes foi dada e com que forma aplicadas na decisão
recorrida'.
Dizem ainda que, em seu entender, 'As normas e princípios
constitucionais que foram violados são as dos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 13.º e
29.º da Constituição, tal como referido nas conclusões 15 a 18, 30 a 38 e 48 e
49 do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça'
O recurso foi admitido, por decisão que não vincula este Tribunal (nº 3 do
artigo 76º da Lei nº 28/82). .
3. Notificados para o efeito, os recorrentes apresentaram as suas
alegações, que concluíram da seguinte forma:
«…
4. As disposições dos artigos 114.º e 105.º e 107.º do RGIT, ao
sancionar um facto como ilícito contra-ordenacional e ao tratá-lo ao mesmo tempo
como ilícito criminal, violam o disposto nos artigos 18.º, n.º 2, 2.º e 13.º da
CRP, incorrendo, por via disso, em inconstitucionalidade material: tratam como
ilícito criminal um facto a que não reconhecem a marca constitucionalmente
exigida da dignidade penal, pois, de outro modo, não o tratariam também como
ilícito contra-ordenacional;
5. Acresce que as disposições em causa criam um privilégio do
Estado-Fisco, que vê os seus créditos garantidos pelo jus puniendi de que o
próprio Estado está armado, sem suficiente justificação ética, pois não pode o
Estado mobilizar o arsenal de meios sancionatórios criminais em defesa da
efectivação tempestiva dos seus créditos tributários ou da segurança social e
denegar o mesmo tratamento aos credores privados, apesar de tudo com muito menos
meios de reacção contrafáctica.
6. Mais incriminando e punindo estes seus devedores em mora, o Estado
não dispensa idêntica tutela privilegiada aos seus credores quando se constitui
ele próprio em devedor em mora – escolhas que não são legitimadas à vista dos
princípios de igualdade e proporcionalidade e onde falta a “superioridade ética”
do Estado, imanente ao Estado de Direito, tudo com violação dos princípios
constitucionais contidos nos artigos 2.º e 13.º da CRP.
(…)
8. A decisão recorrida entendeu também que as datas a considerar para
efeitos de determinação da lei aplicável ao que considerou ser um crime
continuado eram as da prática do último acto – Maio de 2002 e Outubro de 2001,
respectivamente – e que, assim, as disposições aplicáveis eram as dos artigos
105.º e 107.º da nova lei, ou seja, do RGIT, pelo que não se trataria de um caso
de sucessão de leis no tempo, mas de considerar-se que, estando em causa um
crime continuado, ele apenas se consumou com a prática do último acto e que,
assim, aplicável seria, nos termos do n.º 1 do artigo 2.º/ CP, a lei então
vigente, que era a Lei Nova.
9. Discorda-se, com o devido respeito, desse entendimento, pois não
pode dizer-se que a alínea b) do n.º 2 do artigo 119.º/CP, regulando o momento a
partir do qual corre o prazo de prescrição do procedimento criminal, no crime
continuado, disponha sobre a sua consumação.
10. E o n.º 1 do artigo 2.º/CP, sobre a aplicação no tempo da lei
penal, dispõe que as penas são determinadas pela lei vigente no “momento da
prática do facto”.
11. Ora, o artigo 3.º/CP, precisamente sob a epígrafe “momento da
prática do facto”, dispõe que o facto se considera praticado no momento em que o
agente actuou!
12. Sucede que, no caso concreto dos autos, os agentes actuaram entre
1999 e 2002 e entre 1999 e 2001, ou seja, ao longo do tempo em que duas leis
diferentes vigoraram, sucessivamente, o que sempre coloca o problema de
determinar-se qual a lei aplicável.
13. A melhor doutrina é a de que qualquer agravação da lei ocorrida
antes do término da consumação só pode valer para aqueles elementos típicos do
comportamento verificados após o momento da modificação legislativa – o que não
foi feito na decisão recorrida, que valorou todos os actos à luz da Lei Nova.
14. A Lei Nova, no pressuposto de que o momento decisivo é o da
consumação da conduta e esta só se verifica com a prática do último acto, só
poderia aplicar-se às condutas praticadas sob a sua vigência e não às
anteriores, sob pena de retroactividade da lei penal menos favorável e da
consequente inconstitucionalidade das disposições dos artigos 119.º, n.º 2, al.
b)/CP e 2.º, n.º 1/CP e dos artigos 105.º e 107.º do RGIT quando aplicadas com
tal alcance e sentido, como o foram no acórdão recorrido.
15. De facto, no caso concreto, e na solução jurídica encontrada, o
douto acórdão acabou por valorar à luz da Lei Nova – menos exigente quanto aos
elementos do tipo objectivo dos crimes em causa e, por isso, menos favorável que
a lei antiga – também as condutas ocorridas antes da sua entrada em vigor!
16. O artigo 14.º do RGIT dispõe que: “a suspensão da execução da pena
de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao
limite de cinco anos subsequente à condenação, da prestação tributária e
acréscimos legais…”
17. Embora se conheça a jurisprudência que tem vindo a reconhecer a
constitucionalidade desta disposição, cremos que, por razões idênticas às acima
apontadas nas conclusões 5, 6 e 7 ela pode ser posta em crise, porque também
aqui aplicáveis e do que resulta também a inconstitucionalidade material daquela
disposição.»
Por seu turno, o Ministério Público concluiu as sua alegações nos
seguintes termos:
«1 – Não há diminuição de dignidade penal pelo facto de uma mesma
conduta, tida por criminosa, poder simultaneamente integrar uma
contra-ordenação, nem são violadas normas ou princípios constitucionais pela
circunstância dos artigos 105.º e 107.º do RGIT criminalizarem situações de não
entrega dolosa de prestações tributárias e relativas à segurança social, face,
designadamente, às finalidades visadas pelo credor Estado nas áreas de
redistribuição de riqueza através da recolha de impostos e de protecção social,
sendo ainda certo que não se mostra ultrapassada a margem de discricionariedade
que é reconhecida ser concedida ao legislador ordinário pela Lei Fundamental.
2 – Não se verifica ter a decisão recorrida interpretado e aplicado as
normas dos artigos 2.º, n.º 1, e 119.º, n.º 2, alínea b), do Código Penal, de
forma a merecer qualquer censura constitucional.
3 – A norma do artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, ao condicionar sempre a
suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento, em prazo a fixar até ao
limite de cinco anos, de prestação tributária e legais acréscimos, não é
inconstitucional.
4 – Termos em que não deverá proceder o presente recurso.»
4. A fls. 593 foi proferido o seguinte despacho:
'1. A. e B. recorreram para o Tribunal Constitucional do acórdão do
Supremo Tribunal de Justiça, de fls. 516, nos seguintes termos:
«(…)
b) – As normas jurídicas cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada
são:
- as dos artigos 114.º, 105.º e 107.º do Regime Geral das Infracções Tributárias
(RGIT);
- as dos artigos 119.º, n.º 2, alínea b), artigo 2.º, n.º 1, do Código Penal;
- as dos artigos 105.º e 107.º do RGIT;
- a do artigo 14.º do RGIT,
com a interpretação que lhes foi dada e com que forma aplicadas na decisão
recorrida.
(…)
2. Relativamente às normas contidas no segundo grupo de preceitos, como
explicam no requerimento de interposição de recurso e repetem nas alegações, a
inconstitucionalidade consiste, em seu entender, no seguinte:
'A Lei Nova, no pressuposto de que o momento decisivo é o da consumação
da conduta e esta só se verifica com a prática do último acto, só poderia
aplicar-se às condutas praticadas sob a sua vigência e não às anteriores, sob
pena de retroactividade de lei penal menos favorável e da consequente
inconstitucionalidade das disposições dos artigos 119º, n.º 2, al. b)/CP e 2º,
n.º 1/CP e dos artigos 105º e 107º do RGIT quando aplicadas com tal alcance e
sentido, como o foram no acórdão recorrido'.
Ora o acórdão recorrido afirma o seguinte, a fls. 536:
«Já se teve ensejo de afirmar que entre os dois tipos legais de crime,
quer o previsto à face do RGIFNA, quer o configurado no RGIT, não intercede uma
relação de descontinuidade normativo-típica; o legislador não criou, no RGIT, um
tipo legal novo, vocacionado para protecção de distintos interesses, mantendo,
no plano dos seus elementos típicos uma persistente identidade.
Revelou-se, agora, a exigência da retenção da prestação ficar a
dever-se, não a apropriação, para se cair na da sua não entrega nos cofres do
Estado, num caso e noutro, sempre dolosa, e em detrimento da Fazenda Nacional,
mas sem alteração significativa dos dados do problema.
De realçar que do quadro factual resulta provado que os arguidos, na
sua qualidade de sócios gerentes da “C., Lda.”, não entregaram as prestações
devidas a título de impostos e de contribuições à Segurança Social, nem dentro
ou fora de 90 dias sobre o seu vencimento, concorrendo para que aquela empresa
delas se apropriasse, revertendo em favor daquela sociedade, nestes termos
sequer se colocando, como problemático, o preenchimento do tipo ante as duas
leis em presença: é que tanto à face de uma como de outra é, categoricamente,
visível a sua ocorrência, a sua persistência.»
Parece, assim, que, do ponto de vista do acórdão recorrido, não releva,
para o efeito pretendido pelos recorrentes, a opção pela aplicação da lei antiga
ou da lei nova, já que, em qualquer caso, ocorreria 'o preenchimento do tipo
ante as duas leis em presença'.
Isto significa – e cumpre recordar que, no âmbito do recurso de
constitucionalidade, o Tribunal Constitucional não pode, como se sabe, apreciar
o modo como foi interpretada e aplicada a lei ordinária para determinar se
poderia ou deveria tê-lo sido de outra forma –, que é possível que o Tribunal
venha a concluir no sentido da inutilidade do conhecimento do respectivo objecto
na parte correspondente.
Com efeito, e como o Tribunal Constitucional já observou inúmeras vezes, o
recurso de constitucionalidade tem natureza instrumental, o que implica que é
condição de conhecimento do seu objecto a possibilidade de repercussão do
julgamento que nele venha a ser efectuado na decisão recorrida (ver, por
exemplo, o acórdão deste Tribunal com o nº nº 463/94, publicado no Diário da
República, II Série, de 22 de Novembro de 1994).
Ora, no caso presente, admite-se que, ainda que o Tribunal
Constitucional se pronunciasse no sentido da inconstitucionalidade, nenhuma
repercussão teria tal julgamento no acórdão recorrido.
3. É, pois, possível que o Tribunal Constitucional venha a não conhecer
parcialmente do presente recurso, nos termos expostos.
Assim, nos termos do disposto no artigo 69º da Lei nº 28/82 e no n.º 1
do artigo 704º do Código de Processo Civil, notifique as partes para se
pronunciarem, querendo.'
Nenhuma das partes se pronunciou, não obstante terem sido ambas
notificadas.
5. Passando à análise do objecto do recurso, tal como vem definido no
respectivo requerimento de interposição, cumpre começar por verificar que, nos
termos e pelas razões constantes do despacho de fls. 593, acabado de
transcrever, o Tribunal Constitucional não pode conhecer da questão colocada
pelos recorrentes relativamente às normas conjugadas dos artigos 119.º, n.º 2,
al. b) e 2.º, n.º 1 do Código Penal com as dos artigos 105.º e 107.º do RGIT.
6. Os recorrentes sustentam que as normas dos artigos 114º, 105º e 107º
do RGIT violam o disposto nos artigos 2º, 13º e 18º, n.º 2 da Constituição por
sancionaram o mesmo facto, simultaneamente, como ilícito criminal e como ilícito
contra-ordenacional, nos termos expostos.
No âmbito de vigência do RJIFNA, o Tribunal Constitucional teve já
oportunidade de se pronunciar sobre a admissibilidade constitucional desta
mesma possibilidade, embora, no caso, sob a perspectiva da alegação de violação
do princípio ne bis in idem, consagrado no n.º 5 do artigo 29º da Constituição
(acórdão n.º 244/99, Diário da República, II série, de, 12 de Julho de 1999).
Tratava-se, então, da apreciação da norma constante do artigo 14º do RJIFNA,
cujo texto – “Se o mesmo facto constituir simultaneamente crime e
contra-ordenação previstos neste Regime Jurídico, será o agente punido apenas
pelo crime' – corresponde ao que hoje consta do n.º 3 do artigo 2º do RGIT ('Se
o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contra-ordenação, o agente será
punido a título de crime, sem prejuízo da aplicação das sanções acessórias
previstas para a contra-ordenação').
O Tribunal considerou, então, que tal norma do artigo 14º do RJIFNA havia sido
implicitamente aplicada com o 'sentido de permitir a cumulação da punição a
título de crime e a título de contra-ordenação, pelas normas do RJIFNA, pelos
mesmos factos', e que, a ser esse o seu sentido, seria efectivamente violado o
referido princípio, princípio que, afirmou-se, 'pode ter aplicação, por
analogia, em hipóteses de concurso de crimes e contra-ordenações, quando os bens
jurídicos tutelados pelas respectivas normas sejam idênticos'. E disse-se ainda
que 'no fundo, é o reconhecimento de que estão em causa os mesmos bens jurídicos
nas infracções correspondentes a factos que, pelo mesmo diploma, o RJIFNA,
'constituem simultaneamente crime e contra-ordenação' que justifica o artigo
14º, e não qualquer desvio às regras de concurso de crimes (…)'.
Assim, o Tribunal recorreu ao n.º 3 do artigo 80º da Lei nº 28/82 e interpretou
'a norma constante do artigo 14º do RJIFNA como apenas permitindo a pronúncia,
em alternativa, pelo crime de fraude fiscal ou pelas contra-ordenações referidas
no despacho respectivo, previstas e punidas pelos artigos do mesmo RJIFNA que
indica, na medida em que correspondam aos mesmos factos'.
7. No presente recurso, a questão de constitucionalidade não é suscitada nesta
perspectiva. A verdade, todavia, é que os recorrentes incluem no objecto do
recurso o artigo 114º do RGIT, preceito manifestamente não aplicado no acórdão
recorrido, mas cuja invocação torna necessário relembrar a interpretação então
definida.
No fundo, os agora recorrentes consideram que, ao admitir a hipótese de o mesmo
facto ser havido como crime ou como contra-ordenação, a lei, por um lado,
reconhece a falta de dignidade penal do mesmo, assim violando o artigo 2º e o
n.º 2 do artigo 18º da Constituição e, por outro, cria um privilégio
injustificado para os créditos de que é titular o Estado, agora ofendendo o
artigo 13º, também da Constituição.
O Tribunal Constitucional já por diversas vezes afirmou que cabe no âmbito da
liberdade de conformação do legislador a determinação das condutas que devem ser
criminalizadas. Necessário é, naturalmente, que a opção se não faça em violação
das regras e princípios constitucionais relevantes na matéria. Assim, por
exemplo, no acórdão n.º 134/2001 (www.tribunalconstitucional.pt), neste ponto
transcrevendo o acórdão n.º 604/99 (Diário da República, II série, de 26 de Maio
de 2000), relembrou-se o seguinte:
«Como se observou noutro aresto (…), o nº 1142/96, “se é sabido que o direito
penal de um Estado de Direito visa a protecção de bens jurídicos essenciais ao
viver comunitário, só estes assumindo dignidade penal, o certo é que a
Constituição não contém qualquer proibição de criminalização, e, observados que
sejam certos princípios, como sejam o princípio da justiça, o princípio da
humanidade e o princípio da proporcionalidade [...] 'o legislador goza de ampla
liberdade na individualização dos bens jurídicos carecidos de tutela penal (e,
assim, na decisão de quais os comportamentos lesivos de direitos ou interesses
jurídico-constitucionalmente protegidos que devem ser defendidos pelo recurso a
sanções penais)', (na linguagem do acórdão nº 83/95, publicado no Diário da
República, II Série, nº 137, de 16 de Junho de 1995, que seguiu na linha dos
acórdãos nºs. 634/93 e 650/93, publicados no Diário da República, II Série,
Suplemento, nº 76, de 31 de Março de 1994).
'É evidente – lê-se no citado acórdão nº 634/83 – que o juízo sobre a
necessidade do recurso aos meios penais cabe, em primeira linha, ao legislador,
ao qual se há-de reconhecer, também nesta matéria, um largo âmbito de
discricionariedade. A limitação da liberdade de conformação legislativa, nestes
casos, só pode, pois, ocorrer quando a punição criminal se apresente como
manifestamente excessiva'».
Ora, tal como se concluiu no acórdão n.º 604/99 e se reproduziu no acórdão n.º
134/2001, também as normas em apreciação no presente recurso não infringem os
limites constitucionalmente impostos à criminalização, não envolvendo, como ali
se escreveu, 'uma situação reconduzível, pela sua excessividade, à violação do
princípio da proporcionalidade e ao desrespeito do artigo 18º da CR'.
Com efeito, e tal como o acórdão recorrido claramente explica e o Tribunal
Constitucional já também afirmou, as condutas incriminadas (actualmente) pelos
artigos 105º (abuso de confiança fiscal) e 107º (abuso de confiança contra a
segurança social) põem em causa interesses de tal forma relevantes que legitimam
a opção do legislador.
Assim, e por exemplo, no acórdão n.º 312/2000 (Diário da República, II série, de
17 de Outubro de 2000) escreveu-se, a propósito do crime de abuso de confiança
fiscal, então previsto no artigo 24º do RJIFNA:
«5. – No caso em apreço nos presentes autos, deve entender-se que a
norma penal incriminadora do crime de abuso de confiança fiscal não viola o
princípio de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de
não poder cumprir uma obrigação contratual, princípio implicado no direito à
liberdade e segurança (artigo 27º, n.º1, da Constituição).
Antes de mais, importa analisar os valores e os bens jurídicos em causa
na criminalização das infracções fiscais.
O entendimento tradicional do nosso direito penal é o de que só certas
formas de ofensas aos bens jurídicos tutelados que se revestem de particular
gravidade, pelo alarme social que a sua prática justificadamente causa,
necessitam da intervenção do direito penal, assim realizando o princípio
constitucional da necessidade da pena.
No caso das infracções fiscais, a publicação em 1988 e 1989 dos Regimes
Jurídicos dos imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS), do
imposto sobre os rendimentos das pessoas colectivas (IRC), da contribuição
autárquica (CA) e do Estatuto dos Benefícios Fiscais induziu a reforma do
tratamento normativo das infracções fiscais não aduaneiras, tendo o Governo
pedido e obtido autorização da Assembleia da República para legislar em tal
matéria, relativamente a todos os impostos, contribuições parafiscais e demais
prestações tributárias e, bem assim, quanto aos benefícios fiscais.
A autorização concedida permitia ao Governo, em matéria penal, adaptar
os princípios gerais, os pressupostos da punição, as formas do crime e as causas
de suspensão do procedimento e da extinção da responsabilidade criminal, podendo
tipificar novos ilícitos penais e definir novas penas, tomando como referência o
Código Penal, mas podendo alargar ou restringir a respectiva dosimetria.
Define-se, em seguida, o sentido da autorização através da definição dos tipos
de ilícito e dos respectivos elementos do tipo, bem como dos valores máximos e
mínimos das penas e coimas. Seguidamente, prevê-se na lei de autorização
legislativa a adequação do processo penal aos novos tipos de ilícito (penal e
contraordenacional) criados.
A Lei de Autorização n.º89/89, de 11 de Setembro veio a dar origem ao
Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, posteriormente alterado, na parte
agora em causa, pelo Decreto-Lei n.º 394/93, de 24 de Novembro, aprovado na
sequência da Lei n.º 61/93, de 20 de Agosto.
Este tratamento sistemático da punição das infracções fiscais não
aduaneiras mostra bem o relevo que o legislador pretendeu atribuir à defesa dos
interesses subjacentes a tal normação e cuja violação a mesma pretende evitar –
os interesses da Fazenda Nacional.
Num Estado de direito, social e democrático, a assunção pelo Estado da
realização do bem estar social, através da concretização de uma democracia
económica, social e cultural, com respeito pelos direitos e liberdade
fundamentais, legitima-se pela necessidade de garantir a todos uma existência em
condições de dignidade.
A realização destas exigências não só confere ao imposto um carácter de
meio privilegiado ao dispor de um Estado de direito para assegurar as
necessárias prestações sociais, como também alarga o âmbito do que é digno de
tutela penal.(…)
De facto, um Estado para poder cumprir as tarefas que lhe incumbem tem
de recorrer a meios que só pode exigir dos seus cidadãos. Esses meios ou
instrumentos de realização das suas finalidade são os impostos, cuja cobrança é
condição da posterior satisfação das prestações sociais. Compreende-se, assim,
que o dever de pagar impostos seja um dever fundamental (cf. Casalta Nabais, “O
dever fundamental de pagar impostos”, Livraria Almedina, 1998, pág. 186,ss) e
que a violação deste dever, essencial para a realização dos fins do Estado possa
ser assegurado através da cominação de sanções criminais.
No caso em apreço, a obrigação em causa não é meramente contratual, mas
antes deriva da lei – que estabelece a obrigação de pagamento dos impostos em
questão. Por outro lado, nestas situações, o devedor tributário encontra-se
instituído em posição que poderemos aproximar da do fiel depositário. Na
verdade, no IVA e no imposto sobre os rendimentos singulares (IRS), os
respectivos valores, são deduzidos nos termos legais, devendo depois o
respectivo montante ser entregue ao credor tributário que é o Estado.
Perante a norma em questão há assim que levar em conta este aspecto peculiar da
posição dos responsáveis tributários, que não comporta uma pura obrigação
contratual porque decorre da lei fiscal.
Finalmente, relevar-se-á que a impossibilidade do cumprimento não é elemento do
crime de abuso de confiança fiscal; a não entrega atempada da prestação, torna
possível a instauração do procedimento criminal nos termos do nº 5 do artigo
24º, mas o que importa para a punibilidade do comportamento, como se referiu, é
a apropriação dolosa da referida prestação.
Tem assim de se concluir que a norma constante do artigo 24º do RJIFNA não viola
o princípio de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de
não poder cumprir uma obrigação contratual, implicado pelo direito à liberdade e
segurança consagrado no artigo 27º, nº 1, da Constituição, em consonância com o
previsto no artigo 1º do Protocolo nº 4 adicional à Convenção Europeia dos
Direitos do Homem.»
Este mesmo entendimento foi posteriormente perfilhado pelo acórdão n.º 389/2001
(disponível em www.tribunalconstitucional.pt) e pelo acórdão n.º 516/2000
(Diário da República, II série, de 31 de Janeiro de 2001), no qual estava em
causa a norma do artigo 27º-B do RJIFNA (Abuso de confiança em relação à
segurança social), posteriormente seguido pelos acórdãos n.ºs 427/2002 e
494/2004 (ambos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt):
«7.Os fundamentos utilizados no citado acórdão nº 312/00 são
transponíveis para o presente processo: em primeiro lugar, porque as sanções
estabelecidas para o abuso de confiança fiscal e para o abuso de confiança em
relação à segurança social são as mesmas – as que constam da norma do artigo 24º
do RJIFNA, apreciada naquele acórdão; em segundo lugar, porque as considerações
feitas a propósito da tipificação do crime abuso de confiança fiscal valem
igualmente para o crime de abuso de confiança em relação à segurança social.
Assim, e resumidamente:
A solução de punir criminalmente as infracções às normas reguladoras
dos regimes de segurança social revela a importância atribuída à defesa dos
interesses públicos subjacentes à legislação em causa, em consonância aliás com
a incumbência atribuída ao Estado, pelo artigo 63º, nº 2, da Constituição da
República Portuguesa, de “organizar, coordenar e subsidiar um sistema de
segurança social”.
Nos termos do artigo 27º-B do RJIFNA – e do mesmo modo que perante a
norma apreciada no acórdão nº 312/00 –, são elementos constitutivos do crime de
abuso de confiança em relação à segurança social: a apropriação, total ou
parcial, pelas entidades empregadoras, das contribuições que tenham deduzido do
valor das remunerações pagas aos trabalhadores e que por estes sejam legalmente
devidas; a não entrega do respectivo montante às instituições de segurança
social, no prazo de 90 dias. Não estando expressamente prevista a punição por
negligência, os factos integradores do crime só podem ser punidos se praticados
com dolo (artigo 13º do Código Penal); se não se provar o dolo mas apenas a
negligência, pode existir a contraordenação prevista no artigo 29º, nº 2, do
RJIFNA.
A obrigação em causa não é meramente contratual, antes deriva da lei – que impõe
a entrega pelas entidades empregadoras às instituições de segurança social do
montante das contribuições que aquelas entidades tenham deduzido do valor das
remunerações pagas aos trabalhadores e que por estes sejam legalmente devidas.
Nestas situações, as entidades empregadoras encontram-se instituídas “em posição
que poderemos aproximar da do fiel depositário”.
A mera impossibilidade do cumprimento não é elemento do crime de abuso de
confiança em relação à segurança social. A não entrega atempada da prestação
torna possível a instauração do procedimento criminal nos termos do nº 5 do
artigo 24º do RJIFNA, mas o que importa para a punibilidade do comportamento,
como se referiu, é a apropriação dolosa da referida prestação.
A situação pode aproximar-se do crime de abuso de confiança previsto e
punido pelo Código Penal (artigos 205º a 207º), que é um crime contra o
património, cuja consumação ocorre com a apropriação ilegítima de coisa móvel
alheia entregue por título não translativo de propriedade.
8.Concluindo, pois:
A Constituição não contém, para este tipo de casos, proibição de criminalização
e reconhece a necessidade de, em Estado de direito democrático, se protegerem
penalmente os bens e interesses jurídicos essenciais à vida em comunidade.
A proibição de “prisão por dívidas” é indiscutivelmente princípio
decorrente da Constituição da República Portuguesa (cf. acórdão nº 440/87,
Acórdãos do Tribunal Constitucional, 10º vol., p. 521 ss).
Porém, como se escreveu no acórdão nº 663/98 (Diário da República, II Série, nº
12, de 15 de Janeiro de 1999, p. 592 ss), “a privação da liberdade não é
proibida se outros factos se vêm juntar à incapacidade de cumprir uma obrigação
contratual”. Nestes casos, e no caso de a impossibilidade de cumprir não ser
devida a negligência, o direito penal pode prever tipos de crimes puníveis com
prisão.
Por outro lado, entre nós sempre se entendeu que o princípio da
proibição de “prisão por dívidas” só se aplicava aos “devedores de boa fé”, dele
se excluindo os casos de provocação dolosa de incumprimento (cfr. o mencionado
acórdão nº 663/98) e considera-se que as razões aduzidas para a proibição da
«prisão por dívidas» não se aplicam quando a obrigação não deriva de contrato
mas da lei (neste sentido e desenvolvidamente, o acórdão nº 663/98 e, mais
recentemente, o acórdão nº 312/00).
A norma constante do artigo 27º-B do RJIFNA não viola portanto o
princípio segundo o qual ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única
razão de não poder cumprir uma obrigação contratual, implicado pelo direito à
liberdade e segurança consagrado no artigo 27º, nºs 1 e 2, da Constituição da
República Portuguesa.
Não existe na solução da lei qualquer medida discriminatória,
desnecessária ou excessiva, susceptível de constituir violação do artigo 18º, nº
2, da Constituição ou de contrariar o direito à segurança social consagrado no
artigo 63º da Constituição.»
Por fim, no acórdão n.º 54/2004 (disponível em
www.tribunalconstitucional.pt) o Tribunal veio considerar estas considerações
acabadas de transcrever plenamente transponíveis para a incriminação hoje
constante do artigo 105º do RGIT, orientação que novamente se reitera e que vale
igualmente para o artigo 107º do RGIT.
8. Os recorrentes apontam ainda a violação do princípio da igualdade,
quando sustentam que as normas em análise criam para o Estado um privilégio
inadmissível, nos termos já indicados.
Como se sabe, o Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado, que «É
sabido que o princípio da igualdade, tal como tem sido entendido na
jurisprudência deste Tribunal, não proíbe ao legislador que faça distinções –
proíbe apenas diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, sem
uma justificação razoável, segundo critérios objectivos e relevantes. É esta,
aliás, uma formulação repetida frequentemente por este Tribunal (cf., por
exemplo, os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 39/88, 325/92, 210/93, 302/97, 12/99 e
683/99, publicados em Acórdãos do Tribunal Constitucional, respectivamente,
vols. 11º, pp. 233 e ss., 23º, pp. 369 e ss., 24º, pp. 549 e ss., 36º, pp. 793 e
ss., e no Diário da República, 2ª série, de 25 de Março de 1999 e de 3 de
Fevereiro de 2000).
Como princípio de proibição do arbítrio no estabelecimento da distinção, tolera,
pois, o princípio da igualdade a previsão de diferenciações no tratamento
jurídico de situações que se afigurem, sob um ou mais pontos de vista,
idênticas, desde que, por outro lado, apoiadas numa justificação ou sob um ponto
de vista que possa ser considerado relevante.
(…) O princípio da igualdade apresenta-se, assim, como um limite à liberdade de
conformação do legislador.
(…) Todavia, a vinculação jurídico-material do legislador a este princípio não
elimina a liberdade de conformação legislativa, pois lhe pertence, dentro dos
limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as
relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar
igual ou desigualmente.
Só existe violação do princípio da igualdade enquanto proibição de arbítrio
quando os limites externos da discricionariedade legislativa são afrontados por
carência de adequado suporte material para a medida legislativa adoptada.
Por outro lado, as medidas de diferenciação devem ser materialmente fundadas sob
o ponto de vista da segurança jurídica, da praticabilidade, da justiça e da
solidariedade, não se baseando em qualquer razão constitucionalmente imprópria»
(Acórdão n.º 187/2001 (Diário da República, II Série, de 26 de Junho de 2001).
Considera-se, todavia, que a justificação atrás apresentada para não julgar
contrária à Constituição a incriminação constante dos artigos 105º e 107º do
RGIT vale ainda para afastar qualquer violação do princípio da igualdade, não
sendo claramente arbitrário distinguir, para este efeito, os créditos
correspondentes ao incumprimento de obrigações fiscais ou a dívidas à segurança
social com os créditos da titularidade de particulares.
9. Finalmente, os recorrentes sustentam que é inconstitucional o artigo 14.º do
RGIT, ao condicionar a suspensão da execução da pena ao pagamento da prestação
tributária e acréscimos legais, por violação do disposto nos artigos 2.º, 13.º e
18.º, n.º 2, da Constituição.
Não apresentam, todavia, uma justificação autónoma para o efeito, limitando-se a
remeter para a argumentação expendida a propósito da questão tratada nos pontos
anteriores.
Como os próprios recorrentes observam, o Tribunal Constitucional já por diversas
vezes se pronunciou no sentido da não inconstitucionalidade da norma do artigo
14.º do RGIT – cfr. Acórdãos n.º 256/03, n.º 335/03 e n.º 500/05, o primeiro
publicado no Diário da República, II Série, de 2 de Julho de 2003, e os outros
disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Assim, no acórdão n.º 335/03 escreveu-se o seguinte:
«7. O artigo 14º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado
pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, dispõe como segue:
“Artigo 14º
Suspensão da execução da pena de prisão
1 – A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao
pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à
condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos
benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de
quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.
2 – Na falta do pagamento das quantias referidas no número anterior, o tribunal
pode:
a) Exigir garantias de cumprimento;
b) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas
sem exceder o prazo máximo de suspensão admissível;
c) Revogar a suspensão da pena de prisão.”
8. O Tribunal Constitucional teve, muito recentemente, oportunidade de se
pronunciar sobre a questão de constitucionalidade que agora, mais uma vez, vem
colocada à sua consideração. Fê-lo, concretamente, no Acórdão n.º 256/03 (ainda
inédito), onde concluiu pela não inconstitucionalidade daquele artigo 14º do
RGIT (bem como do artigo 11º, n.º 7 do RJIFNA, preceito que antecedeu este
artigo 14º). Para decidir dessa forma, o Tribunal escudou-se na seguinte
fundamentação:
“[...]
10.4. Comparando o artigo 11º, n.º 7, do RJIFNA com o (posterior) artigo 14º do
RGIT, verifica-se que ambos condicionam a suspensão da execução da pena de
prisão ao pagamento das quantias em dívida.
Não sendo pagas tais quantias, o primeiro preceito remetia (em parte) para o
regime do Código Penal relativo ao não cumprimento culposo das condições da
suspensão; já o segundo preceito – que englobou tal regime do Código Penal – é
mais dúbio, porque não faz referência à necessidade de culpa do condenado.
De qualquer modo, deve entender-se que a já referida aplicação subsidiária do
Código Penal, prevista no artigo 3º, alínea a), do RGIT (cfr. os artigos 55º e
56º do referido Código), bem como a circunstância de só o incumprimento culposo
conduzir a um prognóstico desfavorável relativamente ao comportamento do
delinquente implicam a conclusão de que o artigo 14º, n.º 2, do RGIT, quando se
refere à falta de pagamento das quantias, tem em vista a falta de pagamento
culposa (refira-se, a propósito, na sequência de Jorge de Figueiredo Dias,
Direito Penal Português / Parte Geral, II – As Consequências Jurídicas do Crime,
Aequitas, 1993, pp. 342-343, que pressuposto material de aplicação da suspensão
da execução da pena de prisão é a existência de um prognóstico favorável a esse
respeito).
[...]
10.7. A questão que ora nos ocupa tem algumas afinidades com uma outra que já
foi discutida no Tribunal Constitucional.
Assim, no acórdão n.º 440/87, de 4 de Novembro (publicado em Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 10º volume, 1987, p. 521), o Tribunal Constitucional
não julgou inconstitucional a norma do artigo 49º, n.º 1, alínea a), do Código
Penal de 1982 (versão originária), na parte em que ela permite que a suspensão
da execução da pena seja subordinada à obrigação de o réu “pagar dentro de certo
prazo a indemnização devida ao lesado”. Nesse acórdão, depois de se ter
salientado que se deve considerar como princípio consagrado na Constituição a
proibição da chamada “prisão por dívidas”, entendeu-se, para o que aqui releva,
o seguinte:
“(...)nos termos do artigo 50º, alínea d), do actual Código Penal, o tribunal
pode revogar a suspensão da pena, «se durante o período da suspensão o condenado
deixar de cumprir, com culpa, qualquer dos deveres impostos na sentença», v.g.,
o de «pagar dentro de certo prazo a indemnização devida ao lesado» [artigo 49º,
n.º 1, alínea a), primeira parte]. Nunca, porém, se poderá falar numa prisão em
resultado do não pagamento de uma dívida: – a causa primeira da prisão é a
prática de um «facto punível» (artigo 48º do Código). Como se escreveu no
acórdão recorrido, «o que é vedado é a privação da liberdade pela única razão do
não cumprimento de uma obrigação contratual, o que é coisa diferente».
Aliás, a revogação da suspensão da pena é apenas uma das faculdades concedidas
ao tribunal pelo citado artigo 50º para o caso de, durante o período da
suspensão, o condenado deixar de cumprir, com culpa, qualquer dos deveres
impostos na sentença: – na verdade, «conforme os casos», pode o tribunal, em vez
de revogar a suspensão, «fazer-lhe [ao réu] uma solene advertência [alínea a)],
exigir-lhe garantias do cumprimento dos deveres impostos» [alínea b)] ou
«prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas
não por menos de um ano» [alínea c)].”
Por outro lado, no acórdão n.º 596/99, de 2 de Novembro (publicado no Diário da
República, II Série, n.º 44, de 22 de Fevereiro de 2000, p. 3600), o Tribunal
Constitucional não considerou inconstitucional, designadamente por violação do
artigo 27º, n.º 1, da Constituição, a norma constante do artigo 51º, n.º 1,
alínea a), do Código Penal, na parte em que permite ao juiz condicionar a
suspensão da execução da pena de prisão à efectiva reparação dos danos causados
ao ofendido. Foram os seguintes os fundamentos dessa decisão:
“(...) 8. A alegada inconstitucionalidade do artigo 51º, nº 1, alínea a) do
Código Penal, na redacção do Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março.
Dispõe o artigo 51º, nº 1, alínea a) do Código Penal que «a suspensão da
execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres
impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente pagar
dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a
indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução
idónea».
Trata-se mais uma vez, no entender do recorrente, da previsão de uma situação de
«prisão por dívidas», proibida pela Constituição.
Desde logo deve notar-se que tem inteira razão o Ministério Público quando
refere que, a proceder, a argumentação do recorrente acabaria por redundar em
seu próprio prejuízo, «na medida em que a considerar-se inconstitucional a norma
ora objecto de recurso, estaria afastada a possibilidade de suspensão da
execução da pena – que só se justifica pela ‘condição’ estabelecida naquele
preceito – restando-lhe o inexorável cumprimento da pena de prisão que a decisão
recorrida, em primeira linha, lhe impôs...».
É, no entanto, manifestamente improcedente a alegação de que a norma que se
extrai do artigo 51º, nº 1, alínea a) do Código Penal, traduz uma violação do
princípio de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de
não poder cumprir uma obrigação contratual, implicado pelo direito à liberdade e
à segurança (artigo 27º, n.º 1 da Constituição).
Na realidade, e mais uma vez, não se trata aqui da impossibilidade de
cumprimento como única razão da privação da liberdade, mas antes da consideração
de que, em certos casos, a suspensão da execução da pena de prisão só permite
realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição se a ela –
suspensão da execução – se associar a reparação dos danos provocados ao lesado,
traduzida no pagamento (ou prestação de garantia de pagamento) da indemnização
devida.(...).”
Apesar da afinidade com a questão de que ora cumpre apreciar, nos arestos
citados não estava em causa o problema da conformidade constitucional (à luz dos
princípios da adequação e da proporcionalidade) da imposição de uma obrigação
que, no próprio momento em que é imposta, pode ser de cumprimento impossível
pelo condenado, mas um outro (que Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 353,
aliás, considerou absolutamente infundado), que era o de “saber se o
condicionamento da suspensão pelo pagamento da indemnização não configuraria,
quando aquele pagamento não viesse a ser feito, uma (inconstitucional) prisão
por dívidas”.
De qualquer modo, dos arestos citados extrai-se uma ideia importante para a
resolução da presente questão: é ela a de que não faz sentido analisá-la à luz
da proibição da prisão por dívidas. Na verdade, mesmo que se considere – e é
isso que importa determinar – desproporcionada a imposição da totalidade da
quantia em dívida como condição de suspensão da execução da pena, o certo é que
o motivo primário do cumprimento da pena de prisão não radica na falta de
pagamento de tal quantia, mas na prática de um facto punível.
10.8. A questão em análise tem também algumas afinidades com a questão da
conformidade constitucional do estabelecimento dos limites da pena de multa em
função do valor da prestação em falta, analisada pelo Tribunal Constitucional a
propósito dos artigos 24º, n.º 1, e 23º, n.º 4, do RJIFNA (cfr., por exemplo, os
acórdãos n.ºs 548/01, de 7 de Dezembro, e 432/02, de 22 de Outubro,
respectivamente publicados no Diário da República, II Série, n.º 161, de 15 de
Julho de 2002, p. 12639, e n.º 302, de 31 de Dezembro de 2002, p. 21183).
Neste último aresto, disse-se nomeadamente o seguinte:
“(...) Por outro lado – e sendo certo que o legislador goza de ampla margem de
liberdade na fixação dos limites mínimo e máximo das molduras penais –, não se
afigura que o critério da vantagem patrimonial pretendida pelo agente, adoptado
na norma em apreço, se revele ofensivo dos princípios da necessidade,
proporcionalidade e adequação das penas. Contrariamente ao que sustenta o
recorrente, a adopção de um tal critério não significa que a pena aplicável ao
crime de fraude fiscal prossiga o fim da retaliação ou da expiação. É que a
conduta que lhe subjaz é tanto mais grave e socialmente mais lesiva quanto mais
elevado for o montante envolvido: como tal, é ainda a protecção de um bem
jurídico o que se visa e não a mera censura do agente. (...).”
Desta passagem retira-se uma importante consideração para o problema que nos
ocupa.
É ela a de que, podendo a realização dos fins do Estado – dependente do
cumprimento do dever de pagar impostos – justificar a adopção do critério da
vantagem patrimonial no estabelecimento dos limites da pena de multa, não há
qualquer motivo para censurar, como desproporcionada, a obrigação de pagamento
da quantia em dívida como condição da suspensão da execução da pena. As razões
que, relativamente à generalidade dos crimes, subjazem ao regime constante do
artigo 51º, n.º 2, do Código Penal [...] não têm necessariamente de assumir
preponderância nos crimes tributários: no caso destes crimes, a eficácia do
sistema fiscal pode perfeitamente justificar regime diverso, que exclua a
relevância das condições pessoais do condenado no momento da imposição da
obrigação de pagamento e atenda unicamente ao montante da quantia em dívida.
[...]
10.9. As normas em apreço não se afiguram, portanto, desproporcionadas, quando
apenas encaradas na perspectiva da automática correspondência entre o montante
da quantia em dívida e o montante a pagar como condição de suspensão da execução
da pena, atendendo à justificável primazia que, no caso dos crimes fiscais,
assume o interesse em arrecadar impostos.
Cabe, todavia, questionar se não existirá desproporção quando, no momento da
imposição da obrigação, o julgador se apercebe de que o condenado muito
provavelmente não irá pagar o montante em dívida, por impossibilidade de o
fazer.
Esta impossibilidade, que não chegou a ser declarada pelo tribunal recorrido –
pois que este analisou a questão em abstracto, sem averiguar se o ora recorrente
efectivamente estava impossibilitado de cumprir [...] –, não altera, todavia, a
conclusão a que se chegou.
Em primeiro lugar, porque perante tal impossibilidade, a lei não exclui a
possibilidade de suspensão da execução da pena.
Dir-se-á que tal exclusão se encontra implícita na lei, atendendo a que não
seria razoável que a lei permitisse ao juiz condicionar a suspensão da execução
da pena de prisão ao cumprimento de um dever que ele próprio sabe ser de
cumprimento impossível.
Todavia, tal objecção não procede, pois que traz implícita a ideia de que o juiz
necessariamente elabora um prognóstico quanto à possibilidade de cumprimento da
obrigação, no momento do decretamento da suspensão da execução da pena. Ora,
nada permite supor a existência de um tal prognóstico: sucede apenas que a lei –
bem ou mal, mas este aspecto é, para a questão de constitucionalidade que nos
ocupa, irrelevante –, verificadas as condições gerais de suspensão da execução
da pena (nas quais não se inclui a possibilidade de cumprimento da obrigação de
pagamento da quantia em dívida), permite o decretamento de tal suspensão. O
juízo do julgador quanto à possibilidade de pagar é, para tal efeito,
indiferente.
Em segundo lugar, porque mesmo parecendo impossível o cumprimento no momento da
imposição da obrigação que condiciona a suspensão da execução da pena, pode
suceder que, mais tarde, se altere a fortuna do condenado e, como tal, seja
possível ao Estado arrecadar a totalidade da quantia em dívida.
A imposição de uma obrigação de cumprimento muito difícil ou de aparência
impossível teria assim esta vantagem: a de dispensar a modificação do dever
(cfr. artigo 51º, n.º 3, do Código Penal) no caso de alteração (para melhor) da
situação económica do condenado. E, neste caso, não se vislumbra qualquer razão
para o seu tratamento de favor, nem à luz do princípio da culpa, nem à luz dos
princípios da proporcionalidade e da adequação.
Em terceiro lugar, e decisivamente, o não cumprimento não culposo da obrigação
não determina a revogação da suspensão da execução da pena. Como claramente
decorre do regime do Código Penal para o qual remetia o artigo 11º, n.º 7, do
RJIFNA, bem como do n.º 2 do artigo 14º do RGIT, a revogação é sempre uma
possibilidade; além disso, a revogação não dispensa a culpa do condenado (supra,
10.4.).
Não colidem, assim, com os princípios constitucionais da culpa, adequação e
proporcionalidade, as normas contidas no artigo 11º, n.º 7, do RJIFNA, e no
artigo 14º do RGIT.
[...]”.
Esta conclusão, e a fundamentação que a sustenta, além de aplicáveis ao caso que
ora nos ocupa, merecem concordância, pelo que, reiterando-a, importa concluir,
uma vez mais, pela não inconstitucionalidade do artigo 14º do RGIT.»
É esta orientação que, mais uma vez, se reitera.
10. Assim, decide-se:
a) Não conhecer do objecto do recurso na parte respeitante à conjugação das
normas dos artigos 119.º, n.º 2, al. b) e 2.º, n.º 1 do Código Penal com as dos
artigos 105.º e 107.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela
Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho;.
b) Quanto ao mais, negar provimento ao recurso, confirmando a decisão
recorrida no que respeita às questões de constitucionalidade.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 ucs.
Lisboa, 30 de Janeiro de 2007
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Vítor Gomes
Bravo Serra
Gil Galvão
Artur Maurício