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Processo n.º 896/06
1ª Secção
Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
Acordam em Conferência no Tribunal Constitucional
1. Em 27 de Novembro de 2006 foi proferida a seguinte decisão
sumária:
“A. recorre, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei 28/82, de 15
de Novembro (LTC), do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 21 de
Setembro de 2006.
Para tanto, invoca no requerimento de interposição de recurso:
“(…)
2. E visa apreciar a inconstitucionalidade das normas dos art.s 755 n.º 3, 749
n.º 1 e 751 do Código Civil.
3. Na interpretação que delas fez o acórdão recorrido, levando-as a prevalecer
sobre as normas da alínea a) do art. 12 da Lei 17/86, de 14 de Junho e do art. 4
da Lei 96/2001, de 20 de Agosto.
4. Leis que fixam as garantias especiais dos salários que o n.º 3 do art. 59 da
CRP lhes assegura.
5. Tanto mais que, como se decidiu no Ac. Trib. Constitucional n.º 498/2003, in,
DR n.º 3, de 3.1.04 “perante uma situação de conflito entre um direito de
natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias”, como é “o direito dos
trabalhadores à retribuição do trabalho”, este deverá prevalecer sobre “o
princípio da segurança jurídica e da confiança no direito”
6. Uma vez que, como ali se acrescenta, “o crédito à indemnização desempenha uma
evidente função de substituição do direito ao salário perdido “, pelo que se
reveste de um verdadeiro “carácter alimentar e não meramente patrimonial “...
“no confronto com os créditos dos titulares dos direitos reais de garantia
levados ao registo”.
7. A questão da inconstitucionalidade da interpretação que o acórdão recorrido
viria a fazer foi suscitada de modo processualmente adequado perante o tribunal
que proferiu a decisão recorrida, na contralegação do recurso de revista, nos
n.ºs 2.1, a fls 2, 3 e 4 do corpo da alegação e n.ºs 1, 2, 5, 6 e 7 das
respectivas conclusões, e sobre a qual o acórdão se pronunciou no n.º 6 do mesmo
para a afastar.”
Convidado a “enunciar o conteúdo normativo das normas que pretende impugnar”
esclareceu:
“1. Invocou-se no requerimento de interposição do presente recurso, a
inconstitucionalidade das normas dos art.s 755 n.º 3, 749 n.º 1 e 759 do Cód.
Civil, na interpretação que delas fez o acórdão recorrido, interpretação que as
fez prevalecer sobre as normas da al. a) do art. 12 da lei 17/86, de 14 de Junho
e do art. 4° da Lei 96/200 1, de 20 de Agosto.
2. Normas estas que deram execução às garantias especiais que o n.º 3 do art. 59
da CRP assegura aos salários.
3. Com efeito tais normas do Cód. Civil, interpretadas em conformidade com este
preceito constitucional não podem deixar de conduzir, diversamente do que se
decidiu no acórdão recorrido, a que os créditos laborais sejam graduados antes
dos créditos garantidos pela hipoteca.
4. A fim de dar prevalência à hipoteca, o acórdão recorrido configurou uma
lacuna na solução do conflito entre os privilégios dos créditos laborais e a
hipoteca, afastando não se percebe porquê a disposição do art. 751 do Cód. Civil
que directamente se lhe aplicava, “lacuna” essa que entendeu dever suprir “por
via de uma regra equivalente à do n.º 1 do art. 749 do Cód. Civil”.
5. Esquecendo que ao proceder desse modo no preenchimento de uma hipotética
lacuna, afrontava as disposições da Lei 17/86 e da Lei 96/2001 que dando
execução ao n.º 3 do art. 59 da CRP, obrigavam a fazer prevalecer os privilégios
dos créditos laborais.
6. A questão da inconstitucionalidade da interpretação de tais normas foi
suscitada no corpo da alegação do recurso de revista, no ponto 2.1 e n.ºs 2, 5,
6, 7 e 8 das respectivas conclusões.
Dúvidas não existem assim, a nosso ver, que obstem ao conhecimento do recurso.”
Cumpre decidir.
O recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, previsto na alínea b)
do n.º 1 do artigo 70° da LTC, incide obrigatoriamente sobre normas jurídicas
(ou a sua concreta interpretação) aplicadas na decisão recorrida como seu
fundamento jurídico, cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o
processo.
Acontece que, no presente caso, o recorrente não define, mediante um enunciado
expresso, a norma ou normas que visa impugnar.
Para este efeito, não basta invocar a inconstitucionalidade “das normas dos
art.s 755 nº. 3, 749 n. ° 1 e 759 do Cód. Civil, na interpretação que delas fez
o acórdão recorrido, interpretação que as fez prevalecer sobre as normas da al.
a) do art. 12 da lei 17/86, de 14 de Junho e do art. 4º da Lei 96/2001, de 20 de
Agosto”, pois tal fórmula identifica a própria decisão recorrida, com menção de
determinados preceitos legais, mas não o conteúdo normativo que se tem por
inconstitucional.
Por outro lado, apura-se que o recorrente não suscitou durante o processo
qualquer questão relacionada com a inconstitucionalidade de normas constantes
dos preceitos legais que identificou.
Na verdade, na contra-alegação apresentada ao Supremo Tribunal de Justiça, o
recorrente defendeu a graduação do seu direito de crédito garantido por
privilégio imobiliário geral antes do direito de crédito da entidade bancária
garantido por hipoteca, por aplicação da norma da alínea b) do n.º 1 do artigo
12° da Lei 17/86, refutando a inconstitucionalidade desta interpretação. Norma,
aliás, que o acórdão recorrido não aplicou como seu fundamento jurídico.
Deve, assim, concluir-se que o recorrente não suscitou perante o Tribunal
recorrido uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa, além de que
não definiu, no requerimento de interposição do recurso, a norma ou normas que
pretende ver apreciadas.
Não se verificam, em suma, os pressupostos que condicionam a admissibilidade
deste tipo de recurso.
Nestes termos decide-se, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78°-A da LTC, não conhecer
do objecto do recurso.”
2. Contra esta decisão reclama para a conferência o recorrente,
dizendo:
“1. Entendeu-se na douta decisão objecto desta reclamação que
a) no presente caso, “o recorrente não define, mediante um enunciado
expresso, a norma ou normas que visa impugnar”.
b) nem “suscitou durante o processo qualquer questão relacionada com a
inconstitucionalidade das normas constantes dos preceitos legais que
identificou”.
2. Cremos, porém, que lhe não assiste razão quer em um quer no outro ponto.
3. Importa começar por salientar que quer na 1ª instância quer na Relação as
decisões foram favoráveis ao ora recorrente tendo e numa e em outra o seu
crédito sido graduado antes do Crédito da Caixa Central garantido por hipoteca.
4. Assim sendo, na contra alegação do recurso de revista o ora recorrente,
porque até então vencedor, via-se em “palpos de aranha” para poder invocar a
inconstitucionalidade de alguma das disposições hipoteticamente aplicáveis ao
caso que fizessem prevalecer o crédito da Caixa sobre os créditos dos
trabalhadores.
5. Na verdade como refere o Conselheiro Guilherme Fonseca (Breviário …p. 48) “a
utilização, por parte da decisão de certa norma ou normas, há-de ser de todo
“insólita” e “imprevisível” sobre a qual seria desrazoável e inadequado exigir
ao interessado um prévio juízo de prognose relativo à sua aplicação, em termos
de se antecipar ao proferimento da decisão, suscitando logo a questão da
inconstitucionalidade”
6. Visto que nesses casos “o interessado não dispõe de “oportunidade processual”
para suscitar a questão antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal o
quo por não poder antever a possibilidade dessa aplicação” (ibidem).
7. Tal não se aplica, porém, “se a interpretação de uma norma surge como
perfeitamente lógica, senão mesmo a única compatível com o contexto normativo”,
pois nesse caso “não deve o interessado ignorar que essa será muito
provavelmente a interpretação a utilizar na decisão”.
8. Ora o que se passou no caso que analisamos?
9. O acórdão recorrido começa por afirmar que “as Leis n.ºs 17/86, de 14 de
Junho e 96/2001 de 20 de Agosto, não contêm normas reguladoras do conflito entre
o privilégio imobiliário geral garantia de direitos de crédito a que se
reportam, da titularidade dos trabalhadores, e os direitos de hipoteca garantia
dos direitos de crédito de outrem sobre os mesmos bens”
10. Devendo por isso, a referida “lacuna”, “ser suprida por via de uma regra
equivalente à do n.º 1 do art. 749 do Código Civil, segundo a qual, os direitos
de crédito da titularidade de trabalhadores garantidos por privilégios
imobiliários gerais constantes das Leis n.ºs 17/86, de 14 de Junho, e 96/2001,
de 20 de Agosto, são preteridos pelos direitos de crédito de outrem garantidos
por hipoteca”.
11. Deste modo o acórdão recorrido num insólito e de todo imprevisível salto no
desconhecido, descobre uma “lacuna” a que decisão alguma até então fizera
qualquer referência, conclui à légére que não podendo ela “ser suprida por via
da aplicação, na espécie, do disposto no artigo 751 do Código Civil, porque este
normativo se reporta a privilégios imobiliários gerais”, pelo que “atendendo ao
elemento negativo ausência de sequela, a similitude que se impõe ao intérprete é
entre privilégios imobiliários gerais e privilégios mobiliários gerais (art. 10
n.º 2 do Código Civil) “.
12.Trata-se, pois, claramente de um caso de todo “anómalo” ou “excepcional” em
que o recorrente foi confrontado com uma situação de aplicação normativa de todo
imprevista e inesperada da decisão.
13.De modo que o recorrente não podia razoavelmente contar com a interpretação
feita no acórdão recorrido.
14.”Na verdade, tendo a decisão interpretado de modo tão particular tal norma,
não era exigível ao reclamante prever que essa interpretação viria a ser a
possível e viesse a ser adoptada na decisão”.
15.Foi “inesperado e insólito” o uso de uma interpretação daquele teor, o que
“levou a que o reclamante não tivesse podido, em momento anterior ao da decisão,
representar a possibilidade de aplicação da norma com tal interpretação”
(ibidem, p. 82)
16.Não obstante o reclamante na sua contra alegação para o STJ, apesar de até
então vencedor, não deixou de algum modo, talvez impreciso, é certo, de suscitar
a questão de uma eventual interpretação inconstitucional de normas
potencialmente aplicáveis ao caso.
17.Com uma formulação vaga talvez, mas atento o exposto crê-se que maior
precisão lhe não poderia ser exigida.
18.Mas no essencial, cremos, a questão foi suscitada, nomeadamente quando se
escreveu na contra alegação:
- que a CRP no art. 59/3 assegura aos salários garantias especiais, a que a Lei
17/86, de 14 de Junho, veio dar execução
- que “nenhuma razão se descortina aliás para afastar a norma do art. 751 do
Cód. Civil que expressamente determina que os privilégios imobiliários preferem
à hipoteca, ainda que esta garantia seja anterior, implicitamente se afirmando
que interpretação diversa violaria o preceito citado do texto constitucional.
19.E ainda implicitamente escrevemos que a invocação do n.º 1 do art. 749 do
Cód. Civil e a sua interpretação prevalecente sobre a disposição do art. 751 do
mesmo diploma, conduziria à violação do princípio constitucional do art. 59/3 a
que a Lei 17/86 viria a dar execução.
20.O que significa que o acórdão recorrido ao afastar a aplicação da disposição
do art. 751 do Código Civil aos privilégios dos créditos laborais reconhecidos
pelas Leis 17/86 e 96/2001, faz daquele uma interpretação inconstitucional
porque violadora do citado principio do n.º 3 do art. 59 da CRP a que aquelas
Leis deram execução e nessa medida constitucionalizaram.
21.E voltando agora atrás, importa analisar a acusada falta de definição “sobre
um enunciado expresso” da “norma ou normas que visa impugnar”, ou seja a menção
do “conteúdo normativo que se tem por inconstitucional”.
22.Centremo-nos a este respeito na fundamentação do acórdão recorrido, o qual
como atrás dissemos, agarra na “lacuna” pretensamente existente entre o
privilégio imobiliário geral das Leis 17/86 e 96/2001 garantia dos créditos
laborais e os direitos de hipoteca garantia dos direitos de crédito dos mesmos
bens.
23.E entende dever supri-la por uma regra equivalente à do n.º 1 do art. 749 do
Cód. Civil em que se funda para preterir os créditos laborais garantidos por
privilégio imobiliário, pelos direitos de crédito garantidos por hipoteca.
24.Ora é esta aplicação do n.º 1 do art. 749 do Cód. Civil para suprir uma
lacuna pretensamente existente entre o privilégio imobiliário geral dos créditos
laborais e dos direitos de hipoteca, que não pode deixar de se ter como
inconstitucional e como tal foi suscitada, embora em termos implícitos pelas
razões atrás expostas, na contra-alegação do recurso de revista, mas por forma
suficientemente expressa no requerimento de interposição do recurso, e este é o
conteúdo normativo que se tem por inconstitucional.
Aqui chegados, resta-nos concluir que no nosso entender não se verificam os
vícios apontados na decisão reclamada, uma vez que explicitámos o conteúdo
normativo que se tem por inconstitucional e que a questão da
inconstitucionalidade normativa foi suscitada perante o Tribunal recorrido nos
termos em que era possível fazê-lo tendo em consideração a interpretação de todo
imprevisível que o acórdão recorrido viria a seguir.
Confiamos, pois, que V.Ex.as não deixarão de atender a reclamação, admitindo,
pois, em consequência o presente recurso.”
3. O representante do Ministério Público, notificado para o efeito,
respondeu da seguinte forma:
“1 — A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2 — Na verdade, a argumentação do reclamante em nada abala os fundamentos da
decisão reclamada, no que toca à evidente inverificação dos pressupostos do
recurso.
3 — Sendo evidente — face ao objecto da controvérsia — que o Supremo Tribunal de
Justiça podia ter dirimido a questão da hierarquização dos privilégios nos
termos em que o veio a fazer — não se configurando naturalmente tal decisão como
“insólita” ou objectivamente inesperada.
4 — E não traduzindo cumprimento adequado do ónus de suscitação da questão de
inconstitucionalidade, durante o processo e em termos processualmente adequados,
a arguição “implícita” de inconstitucionalidades pelo interessado sem se
socorrer da via recursória tipificada na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei
do Tribunal Constitucional.”
A recorrida pronunciou-se igualmente pela rejeição da reclamação.
4. Importa decidir.
Na decisão ora reclamada ponderou-se que o recorrente não definira, mediante um
enunciado expresso, a norma ou normas que visava impugnar perante o Tribunal
Constitucional e, ainda, que não tinha suscitado durante o processo qualquer
questão de inconstitucionalidade normativa.
Vejamos, antes de mais, se é possível dar por verificado o requisito relativo à
prévia suscitação da questão de inconstitucionalidade.
Não põe o reclamante em dúvida que o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do
artigo 70º da LTC apenas cabe das decisões que apliquem norma cuja
inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, de modo
processualmente adequado, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida;
trata-se de um recurso de carácter normativo, cujo âmbito deverá ser
antecipadamente definido perante o tribunal recorrido.
Como se disse na decisão reclamada, o recorrente não suscitou durante o
processo, designadamente na contra-alegação apresentada no Supremo Tribunal de
Justiça, qualquer questão relacionada com a inconstitucionalidade de normas
constantes dos preceitos legais que identificou. Ora, como este Tribunal tem
reiteradamente afirmado, o requerente deve colocar tal questão perante o
tribunal recorrido de forma a proporcionar‑lhe a oportunidade de a apreciar. Só
nos casos excepcionais e anómalos em que o recorrente não dispôs processualmente
dessa possibilidade, é que será admissível a arguição em momento subsequente
(cfr., a título de exemplo, os Acórdãos deste Tribunal n.º 62/85, n.º 90/85 e
n.º 160/94, publicados, respectivamente, nos Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 5.º vol., págs. 497 e 663, e no Diário da República, II Série,
de 28 de Maio de 1994).
Mas aqui não se verifica qualquer um desses casos. É que, ao contrário do
alegado pelo recorrente, o Supremo Tribunal de Justiça não aplicou as normas em
causa numa interpretação 'inesperada e insólita'; a interpretação normativa
levada a cabo na decisão recorrida era não só plausível (face à jurisprudência
nesse sentido do tribunal recorrido), como fora expressamente invocada pela
contra-parte na sua alegação. Na contra-alegação teve, assim, o ora reclamante
plena oportunidade de suscitar a questão de constitucionalidade que agora
pretende ver debatida.
Não pode, portanto, dar-se por verificado este requisito, o que dispensa o
Tribunal de averiguar se também se não verifica o restante.
5. Nestes termos, é de indeferir a presente reclamação, mantendo a
decisão sumária de não conhecimento do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 8 de Fevereiro de 2007
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria Helena Brito
Rui Manuel Moura Ramos