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Processo n.º 206/07
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal
Constitucional
1. O relator proferiu a seguinte decisão sumária, nos termos do n.º 1 do artigo
78.º-A da LTC:
“1. O arguido A., filho de B. e de C., solteiro, desempregado, nascido em Cabo
Verde, em 4 de Outubro de 1985, foi condenado no P° n° 1044/04.9PCSNT da 2ª Vara
Mista de Sintra, pela co-autoria material de dois crimes de roubo, praticados em
concurso real, p. e p., um, pelos arts. 210°, n° 2-b) e 204°, n°s 2-g) e 4, do
CPenal, (ofendido D.), o outro, pelos arts, 210°, 2-b) e 204°, n° 2-g), do mesmo
código (ofendido E.), nas penas parcelares, respectivamente, de 3 anos de prisão
e de 4 anos de prisão e, em cúmulo jurídico, na pena conjunta de 4 anos e 6
meses de prisão.
Inconformado, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa que, pelo
acórdão de 21.12.05, fls. 2055 e segs., lhe negou provimento.
De novo inconformado, recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça que, pelo
acórdão de 23.03.06, fls. 2258 e segs., declarando parcialmente nulo o acórdão
recorrido, por se não ter pronunciado sobre a concreta questão de facto objecto
de recurso, determinou «que a Relação (se possível com os mesmos juízes) o
reformule, procedendo agora, ponto por ponto, a «um exercício crítico
substitutivo do exame crítico realizado pelo tribunal de primeira instância» a
respeito das provas (oportunamente especificadas) que, segundo o recorrente,
suscitem decisão diversa da recorrida quanto a cada um dos pontos de facto que,
na motivação do recurso, se consideraram incorre incorrectamente julgados»; e,
enfim, ... que a Relação extraia, do complexo fáctico que por essa via fixar, a
solução de direito que então se impuser no contexto do recurso do cidadão A.».
O Tribunal da Relação proferiu, então, o acórdão de 24.05.06, fls. 2282 e segs.,
por que voltou a negar provimento ao recurso.
O arguido voltou a recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça, sustentando,
além do mais, o seguinte:
“Z. No caso concreto, é manifesto que o próprio teor do Acórdão da 1ª Instância,
que o Tribunal da Relação de Lisboa confirmou, conjugado com as regras da
experiência comum, se retira que os Doutos Julgadores decidiram a dúvida que o
julgamento evidencia contra o arguido e a favor da acusação, sem base sólida e
para além da dúvida razoável.
AA. Na verdade, num caso em que a única e exclusiva prova contra o arguido A. é
o reconhecimento efectuado durante o inquérito, mas que o seu autor desmente em
audiência de julgamento, devidamente conjugado com o facto de haver uma
testemunha que afirma ter estado com o arguido no período em causa – sem que
haja outro fundamento para duvidar da sua credibilidade que não sejam as
circunstâncias de a testemunha se recordar de facto ocorrido há cerca de um ano
e de o arguido só trabalhar para ela esporadicamente (então não há agendas e
outras situações particulares que nos permitem recordar de certos factos? — a
única conclusão que um homem médio pode retirar é a de que existe uma dúvida
que, de acordo com o principio in dúbio pro réu, tem que ser dirimida a favor do
arguido e não contra o arguido, como fizeram as Instâncias.
BB. Entendimento normativo distinto acerca do art. 410. n° 2 al. c) do C.P.P.
seria inconstitucional por violação do princípio da presunção da inocência, o
que se deixa arguido.
CC. E neste sentido, a decisão proferida deveria ter sido pela absolvição do
arguido pois é injusto e penoso para alguém inocente ser condenado e ficar
privado da liberdade por anos, como é o caso do Recorrente. “
2. Por acórdão de 22 de Novembro de 2006, o Supremo Tribunal de Justiça negou
provimento ao recurso.
Destaca-se deste acórdão, tendo já em vista, o que interessa ao presente recurso
de constitucionalidade, o seguinte:
“2.2.1. Quanto à decisão da matéria de facto
Entende, em síntese, o Recorrente que as instâncias julgaram erradamente os
factos que ditaram a sua condenação, designadamente por terem valorado
incorrectamente os depoimentos das duas vítimas (nenhuma delas reconheceu o
Recorrente interveniente nos factos) e da testemunha U. (afirmou que o Arguido,
no dia e hora dos factos, estava a trabalhar para ela).
Como vimos, foi a falta de pronúncia sobre essas concretas questões de facto que
determinou a anulação do primeiro acórdão da Relação, para proceder «... ponto
por ponto, “a um exercício crítico substitutivo do exame crítico realizado pelo
tribunal de primeira instância” a respeito das provas (oportunamente
especificadas) que, segundo o recorrente, suscitem decisão diversa da recorrida
quanto a cada um dos pontos de facto que, na motivação do recurso, se
consideraram incorrectamente julgados».
E o Tribunal da Relação, no novo acórdão, agora em recurso, cumpriu essa
determinação de forma essencialmente correcta.
Com efeito, depois de recordar os factos que 1ª instância havia fixado (os que
acima se transcreveram) e a respectiva motivação
[«Teve-se em consideração o depoimento de D., vítima dos factos elencados, que
os descreveu de modo sereno, isento e coerente, demonstrando deles ter
conhecimento directo pela circunstância referida.
Quanto à identificação dos agentes dos factos elencados refira-se num primeiro
momento o auto de reconhecimento fotográfico junto a fls. 612 e 613 (positivo
para os arguidos F., G. e A.), e, bem assim a fls. 616 e 617 (F. e G:) também
eles devidamente examinados em audiência de julgamento, nomeadamente com a
confrontação das testemunhas que neles tiveram intervenção.
Esta diligência foi levada a cabo em O5AGoo4, datando os factos de 23JUL04.
Num segundo momento, os autos de reconhecimento pessoal:
- fls. 627 e 628 (arguido G.);
- fls. 629 e 630 (arguido F.),
- fls. 631 e 632(arguido F.),
- fls. 634 e 635 (arguido A.).
Estas diligências, devidamente documentadas, todas elas examinadas em audiência,
foram realizadas até ao dia 12AG004.
Em audiência de julgamento a testemunha D. manifestou algumas dúvidas quanto ao
reconhecimento actual do arguido A..
A este respeito diga-se o seguinte:
À data da realização da diligência documentada a fls. 636, próxima da ocorrência
dos factos a testemunha não manifestou quaisquer dúvidas, sendo certo que já
havia procedido a idêntico reconhecimento fotográfico, em 05A0004.
Não são conhecidos outros contactos visuais que a testemunha possa ter tido com
o arguido A..
Com o passar do tempo, sobretudo ocorrendo reclusão, como é o caso, com a
mudança radical nos hábitos de vida que tal circunstância implica, é natural que
as pessoas registem alterações físicas de vária ordem (nomeadamente quanto ao
peso, forma do cabelo ou modo de vestir) que tornam o reconhecimento por quem
apenas teve contacto visual com a pessoa em causa em raras situações e em
circunstância limite, cada vez mais difícil, directamente (ou exponencialmente)
proporcional ao decurso do tempo.
As dúvidas manifestadas nestas circunstâncias são clara manifestação de isenção
da testemunha.
Em lugar de desvalorizar o reconhecimento positivo feito por ocasião da
ocorrência dos factos revela que a testemunha é criteriosa e isenta,
características que necessariamente valorizam o reconhecimento efectuado nos
termos da lei e assim documentado, sujeito a exame em fase de julgamento.
Nestes termos, há que atribuir credibilidade ao auto de reconhecimento junto a
fls. 634 e 635, não obstante as dúvidas presentes manifestadas pela testemunha
D..
Os arguidos exerceram, de um modo geral e à excepção dos arguidos H., I., G. e
A., o seu direito ao silêncio, desde o início da audiência.
Os restantes arguidos vindos de mencionar limitaram-se a negar a prática dos
factos.
Os antecedentes criminais resultam dos certificados de registo criminal juntos
aos autos.
Quanto ao facto da existência do grupo denominado … a que os arguidos pertencem,
para além dos depoimentos das testemunhas J., que declarou ter conhecimento do
grupo pela existência de grafitis nas paredes do Cacém, K., irmão de L., à data
menor com intervenção em algumas das situações descritas, que também menciona a
existência deste grupo a que pertence o irmão, M., E., N., residentes no Cacém,
que também mencionaram o grupo como associado à prática de crimes contra as
pessoas e património, foi ainda essencial, o depoimento dos elementos da PSP,
O., P., Q., R. e S:, os quais, por força do exercício das suas funções, por
inúmeras vezes tiveram contactos com os arguidos (que mencionam pelos nomes,
identificando cada um deles, o que não pode deixar de ser significativo a este
respeito).
Tal familiaridade com as forças policiais advém exactamente de um modo de vida
compatível com a formação de bando ou gang (sucessivo aparecimento público em
grupo, em situações de desordem pública ou prática de crimes contra as pessoas
ou património e adopção de símbolos que se manifestam nas paredes das zonas
habitacionais que pretendem marcar como território e influência próprio) tal
como vem sendo caracterizado pelos mais recentes estudos de carácter
sociológico.
Os factos não provados ficaram a dever-se sobretudo com a ausência de prova
produzida ou examinada em audiência de julgamento motivada pela falta de
comparência e impossibilidade de localização das testemunhas supostamente
envolvidas em cada um dos factos concretos descritos como não provados.
Em particular quanto ao afirmado de que o arguido A. estaria a trabalhar no dia
23 de Julho de 2004 pelas 15 horas e 15 minutos, para a empresa T., Lda, tal
apenas de poderá dever a inexactidão ou discrepância quanto ao momento em causa
por parte da testemunha U., face aos demais elementos probatórios quando
confrontados com a fragilidade do depoimento em causa], considerou o seguinte:
«Sem prejuízo de se considerar a Motivação da decisão de facto, ora reproduzida,
clara e consequente na demonstração dos factos dados como assentes na decisão
recorrida, face às questões em apreço no presente recurso caberá abordar alguns
pontos.
Assim, a comprovação da matéria fáctica dada como assente funda-se não apenas
nos depoimentos das testemunhas cujo depoimento o recorrente transcreve – D.,
E., U. e V. - mas sim como se apura da leitura da Motivação num conjunto mais
alargado de distintos elementos de prova, os quais se reportam à ocorrência dos
factos descritos sob a epígrafe “situação M”, à pertença do recorrente ao grupo
…, e ainda aos factos relativos ao dolo e às suas condições pessoais e sociais.
Tendo em atenção apenas os factos atinentes à mencionada “situação M”, e
concretamente à participação do recorrente na sua ocorrência, a verificação
daquela materialidade fáctica assenta no depoimento da testemunha D. e no
reconhecimento do recorrente.
Quanto a este ponto a decisão recorrida é exemplar na demonstração do modo como
a prova recolhida foi utilizada pelo Tribunal para firmar a sua convicção quanto
à realidade daqueles factos, ao explicitar de uma maneira clara como entendeu as
naturais contradições e hesitações na averiguação da identidade dos autores dos
factos.
Assim, aí se indica como, não obstante em Audiência de Julgamento a testemunha
D. tenha manifestado algumas dúvidas quanto ao reconhecimento do recorrente, o
Tribunal firmou a sua convicção da autoria daqueles factos pelo recorrente.” Á
data da realização da diligência documentada a fls. 636, próxima da ocorrência
dos factos a testemunha não manifestou quaisquer dúvidas, sendo certo que já
havia procedido a idêntico reconhecimento fotográfico, em 05AG004. Não são
conhecidos outros contactos visuais que a testemunha possa ter tido com o
arguido A.. Com o passar do tempo, sobretudo ocorrendo reclusão, como é o caso,
com a mudança radical nos hábitos de vida que tal circunstância implica, é
natural que as pessoas registem alterações físicas de vária ordem (nomeadamente
quanto ao peso, forma do cabelo ou modo de vestir) que tornam o reconhecimento
por quem apenas teve contacto visual com a pessoa em causa em raras situações e
em circunstância limite, cada vez mais difícil, directamente (ou
exponencialmente) proporcional ao decurso do tempo.
As dúvidas manifestadas nestas circunstâncias são clara manifestação de isenção
da testemunha.
Em lugar de desvalorizar o reconhecimento positivo feito por ocasião da
ocorrência dos factos revela que a testemunha é criteriosa e isenta,
características que necessariamente valorizam o reconhecimento efectuado nos
termos da lei e assim documentado, sujeito a exame em fase de julgamento.
Nestes termos, há que atribuir credibilidade ao auto de reconhecimento junto a
fls. 634 e 635, não obstante as dúvidas presentes manifestadas pela testemunha
D..”.
Assim sendo, considera-se correctamente estabelecido e demonstrado o facto em
causa, ou seja a autoria pelo recorrente dos factos atinentes à chamada
“situação M”.
O mesmo se diga quanto ao facto dado como não provado, relativo à circunstância
de, na ocasião supra-referida, o recorrente se encontrar a trabalhar por conta
da testemunha U..
Sobre esta matéria, e uma vez mais, a decisão recorrida é exemplar ao indicar
que a falta de credibilidade que lhe forneceu o depoimento daquela testemunha, é
o motivo pelo qual não poderia nunca fundar nesse elemento de prova o
estabelecimento de um facto.
Falta de credibilidade esta que é realçada pela circunstância de, declarando-se
embora que o recorrente trabalhava para si esporadicamente, um ano após os
factos se recordar com precisão que na ocasião dos Autos o recorrente se
encontraria a almoçar com a testemunha.
Nesta conformidade, outra decisão não poderá merecer a matéria fáctica dada como
assente pelo Tribunal a quo” que não seja a da sua confirmação».
Confirmada assim a decisão sobre a matéria de facto, não pode o Recorrente
pretender vê-la revogada pelo Supremo Tribunal de Justiça que, como tribunal de
revista, tem os seus poderes de cognição limitados ao exclusivo reexame da
matéria de direito – art° 432°, alínea d), do Código Penal. Nos termos do n° 2
do art° 722° do CPC, «o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos
materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo
ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a
existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova».
No caso sub judice não ocorre, está visto, qualquer daquelas circunstâncias
excepcionais que permitem ao Supremo Tribunal de Justiça alterar a matéria de
facto fixada pelas instâncias: por um lado, os factos imputados ao Recorrente
não exigiam, para serem julgados provados, a produção de um meio específico de
prova; por outro, a prova produzida, concretamente a prova testemunhal
consubstanciada nos depoimentos das vítimas e da testemunha U., não está
subtraída ao princípio geral da livre apreciação da prova, proclamado pelo art°
127° do CPP, como não o está o reconhecimento pessoal feito em sede de
inquérito. O reconhecimento fotográfico, não obedecendo obviamente ao formalismo
rescrito no art° 147°, não pode ser valorado como tal. Mas não só não inquina a
restante prova produzida como nada impede que seja valorado no conjunto das
declarações prestadas pelas vítimas.
O Recorrente alega ainda, neste domínio, que o acórdão recorrido enferma dos
vícios das alíneas a) e c) do n°2 do art° 410° do CPP.
Também esta questão foi apreciada pelo Tribunal da Relação, abordando-a e
decidindo-a do modo seguinte:
«O recorrente considera também que a decisão proferida em 1ª instância se
encontra ferida dos vícios elencados nas alíneas a) e c) do nº 2 do art. 410º do
CPP
Face ao decidido no já referido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, importa
apreciar de novo aquelas matérias.
a)
Alega o recorrente que o estabelecimento dos factos dados por assentes está
inquinado de “um vício de raciocínio”, o qual consistiria na circunstância de,
em seu entender, a prova produzida em Audiência de Julgamento atinente àqueles
factos dever conduzir a um “non liquet” e, consequentemente o não acolhimento de
tal tese, representar uma violação do princípio “in dúbio pro reo “.
Contudo, a sua argumentação carece de sustentação na medida em que não encontra
apoio na ponderação a que o Tribunal “a quo” procede sobre os elementos de prova
atinentes às “situações” mencionadas.
…Sendo que o princípio “in dubio pro reo et contra civitatem”, como ensina
G.Bettiol “(. ..) não diz respeito ao problema da livre convicção do juiz que se
manifesta no pressuposto de que se tenha constatado um facto; mas liga-se
fundamentalmente ao problema do ónus da prova e encontra o seu campo e
oportunidade de aplicação perante um facto incerto. Desde que haja incerteza
quanto ao facto, nunca poderá ter lugar uma sentença de condenação: o juiz
absolverá com fórmula dubitativa (sentença de absolvição por insuficiência da
prova), em que se traduz e manifesta uma das exigências de liberdade do processo
penal moderno.
Ora, do exame dos Autos, e designadamente da fundamentação fáctica do Acórdão,
não se reputa como uma “incerteza quanto ao facto” a circunstância de se ter
dado como provado que na ocasião de tempo e lugar dos Autos o Arguido, ora
recorrente, ter praticado os factos que lhe são imputados.
O que aqui se encontra em causa é, apenas e tão só, a discordância do recorrente
quanto à apreciação da prova feita pelo Tribunal ‘ a quo”.
Ora sobre esta matéria, cabe esclarecer que, salvo quando a lei dispuser de
diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre
convicção da entidade competente – art. ° 127° do C.P.P – e, no caso em análise,
a apreciação de todos os meios de prova coube aos três Juízes do Tribunal
Colectivo «a quo», os quais, ao decidirem segundo a sua livre convicção, não
deixaram de observar as regras da experiência comum.
O que está na base do conceito da livre apreciação da prova, segundo Alberto dos
Reis, é precisamente «o princípio da libertação do juiz das regras severas e
inexoráveis da prova legal, sem que, entretanto, se queira atribuir-lhe o poder
arbitrário de julgar os factos sem prova ou contraprova (..) Porque o sistema de
prova livre não exclui e antes pressupõe a observância de regras da experiência
e dos critérios da lógica (..)“ - (ín Código de Processo Civil Anotado, Coimbra
Editora, 1950, vol. III, pág. 245).
Alega ainda o recorrente que o invocado “vício de raciocínio” consubstanciaria
também, e, simultaneamente, os vícios elencados nas alíneas a) e c) do n°2 do
art. 410° do CPP.
Não se vislumbra como possível tal ocorrência, pois no que toca ao vício de
“insuficiência dos factos provados para a decisão” é entendimento pacífico, que
este apenas ocorre quando se verifica uma “omissão de pronúncia pelo tribunal
sobre factos alegados pela acusação ou defesa ou resultantes da discussão da
causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja a que decorre da
circunstância de o tribunal não ter dado como provados todos aqueles factos que
sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da
discussão.
Do exame do Acórdão recorrido nada aponta no sentido do cometimento de tal erro,
uma vez que nenhum dos factos essenciais integrantes dos ilícitos em causa ou
relevantes para a determinação da pena se mostra como não tendo sido apreciado
pelo Tribunal “a quo”.
O mesmo acontece quanto ao invocado vício de “erro notório na apreciação da
prova’.
Pois, como se sabe o vício de erro notório na apreciação da prova, apenas ocorre
quando “se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente
inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que
não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se
retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e
contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou
ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente
contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da
decisão recorrida.
Mas existe igualmente erro notório na apreciação da prova quando se violam as
regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis
artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos
peritos.
Mas, quando a versão dada pelos factos provados é perfeitamente admissível, não
se pode afirmar a verificação do referido erro.
Ora da análise da matéria de facto em causa não se vislumbra qualquer ocorrência
como as descritas supra, pois, o acórdão descreve factos que apresentam uma
coerência interna, estão articulados entre si de acordo com as regras da lógica,
são plausíveis de acordo com as regras da experiência comum, e não assentam em
qualquer conclusão desprovida de fundamento que não seja expressamente
mencionado, ou que sofra de falta de razoabilidade».
Pois bem.
O Supremo Tribunal de Justiça vem entendendo, de forma que pode considerar-se
pacífica, que os aludidos vícios não podem integrar o objecto do recurso
interposto de acórdão da relação proferido em recurso, designadamente se este
tribunal superior já sobre eles se pronunciou. Mas também entende que pode
declará-los oficiosamente, desde que sua verificação impeça a aplicação correcta
e segura do direito. Ponto é que, como dispõe o corpo do n° 2 do art° 410º, o
vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as
regras da experiência. Ou seja, a justificação da declaração de qualquer desses
vícios não pode apoiar-se em elementos estranhos ao texto da sentença,
designadamente no sentido em que a prova se terá desenvolvido, não reflectido na
motivação da decisão sobre a matéria de facto.
Seja como for, no caso em apreço, o que é patente é que o Recorrente confunde os
dois vícios que invocou, por um lado, com a alegada insuficiência da prova
produzida para a fixação dos factos – matéria sobre que já nos pronunciamos; por
outro, com a valoração da prova feita pelas instâncias que, em sua opinião,
deveria ter conduzida à sua absolvição.
Acresce que lendo o texto da decisão recorrida e a respectiva motivação não
topamos aí qualquer daqueles vícios. Designadamente, não vemos que os
depoimentos prestados na audiência, com a valoração que deles foi feita, de
acordo com a motivação, obstaculize a verificação de qualquer dos factos. E a
verdade é que, como se vê das conclusões X, Y, Z e AA, o Recorrente agarra-se
não ao texto da decisão mas àquilo que diz ser o sentido da prova produzida em
audiência e que é radicalmente diferente do valor que a cada um desses elementos
probatórios foi atribuído pelo Tribunal Colectivo e, depois, corroborado pelo
Tribunal da Relação.
Finalmente, acusa as instâncias de terem violado de forma flagrante o princípio
do in dubio pro reo.
Mas; mais uma vez, confunde duas realidades distintas, quando reporta essa
violação às dúvidas que, em sua opinião, a 1ª instância e o Tribunal da Relação
deviam, no mínimo ter tido, sobre a verificação dos factos. Só que, como já
vimos e emerge da motivação da decisão de facto, nem uma nem outra tiveram
qualquer dívida a esse respeito – o que, por sua vez, retira ao Supremo Tribunal
de Justiça qualquer hipótese de aí intervir.
Enfim, os factos relevantes para a aplicação do direito são os que, por
confirmados, foram definitivamente fixados pelo Tribunal da Relação e que, no
início transcrevemos.
Perante esses factos, o Arguido cometeu efectivamente os dois crimes por que foi
condenado – qualificação que também não contesta.
3. O arguido recorreu deste acórdão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da
alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC),
indicando o objecto do recurso nos seguintes termos:
“1º
Nas conclusões Z), AA) e BB) da sua motivação do recurso para o STJ, ora em
causa, o arguido invocou:
1- “Z. No caso concreto, é manifesto que o próprio teor do Acórdão da 1ª
Instância, que o Tribunal da Relação confirmou, regras da experiência comum, se
retira que os decidiram a dúvida que o julgamento evidencia contra da acusação,
sem base sólida e para além da dúvida razoável.
2- “AA. Na verdade, no caso em que a única [e exclusiva prova] contra o arguido
A. é o seu reconhecimento inquérito, mas que o seu autor desmente em audiência
devidamente conjugado com o facto de haver uma testemunha que afirma ter estado
com o arguido no período em causa – sem que haja outro fundamento para duvidar
da sua credibilidade q circunstâncias de a testemunha se recordar de facto o um
ano e de o arguido só trabalhar para ela esporadicamente (…) - conclusão que um
homem médio pode retirar é a de que existe uma dúvida que de acordo com o
princípio i dúbio pró reo, tem de ser dirimida a favor do arguido e não contra o
arguido, como fizeram as instâncias.”
2º
Acerca desse fundamento do recurso, o STJ veio dizer que as instâncias “nem uma
nem outra tiveram qualquer dúvida a esse respeito – o que, por sua vez, retira
ao Supremo Tribunal de Justiça qualquer hipótese de aí intervir” (cf. Pág. 14 de
Acórdão).
3ª
Isto é, o STJ interpretou o art. 410.º, n°2, al. c) do erro notório na
apreciação da prova) no sentido de que – mesmo que no caso em que subsista uma
dúvida significativa decorrente contra o arguido ter sido um reconhecimento
efectuado mas que o seu autor não corrobora em julgamento, devidamente conjugado
com o facto de haver uma testemunha que afirma ter estado com o arguido no
período em causa, sem que haja outro fundamento credibilidade que não sejam as
circunstâncias de a testemunha se recordar do facto ocorrido há mais de um ano e
de o arguido só ter trabalhado ela esporadicamente – não pode dirimir a dúvida
razoável que um homem médio extrai do texto dos acórdãos das instâncias a favor
do arguido, com a sua consequente absolvição, quando as instâncias afirmam não
ter qualquer dúvida a este respeito.
4º
Tal entendimento normativo viola o princípio constitucional da presunção da
inocência, consagrado no artigo 32°, n° 2 da CRP.”
4. É manifesto não poder conhecer-se do objecto do recurso, desde logo porque
não se verifica o pressuposto do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do
artigo 70.º da LTC que consiste em a norma cuja constitucionalidade se quer ver
apreciada ter sido aplicado com o sentido arguido de inconstitucional como ratio
decidendi da decisão recorrida.
Efectivamente, o acórdão recorrido não considerou subsistir dúvida acerca da
matéria de facto que tenha sido solucionada pelas instâncias em desfavor do
arguido ou que o Supremo Tribunal de Justiça não pode dirimir a favor do arguido
a dúvida razoável que um homem médio extraia do texto da decisão das instâncias.
O que considerou foi que, ao abrigo do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, não lhe
competia substituir-se às instâncias na valoração da prova produzida e que, do
texto da decisão recorrida conjugado com as regras da experiência comum, não
resultava que tivesse sido utilizado um critério de valoração da prova em
desconformidade com o princípio in dubio pro reo.
Acresce que, obviamente, nunca seria questão de constitucionalidade da
competência deste Tribunal, ao qual não cabe fixar os factos da causa nem
aplicar o direito ordinário, mas apenas apreciar a conformidade à Constituição
das normas aplicadas (ou a que foi recusada aplicação) pela decisão recorrida,
averiguar se subsiste dúvida razoável, no caso concreto, sobre os factos
imputados ao recorrente.
4. Decisão
Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso e condenar
o recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em 7 (sete) unidades de
conta.”
2. O recorrente reclamou para a conferência (n.º 3 do artigo
78.º-A da LTC), nos seguintes termos:
“Nos termos já constantes do requerimento de interposição de recurso, que se
renovam, o ASTJ interpretou efectivamente o artº 410º nº 2 do CPP no sentido
apontado no requerimento de interposição de recurso.
É que a fundamentação da decisão de facto proferida nas instâncias impunha,
tendo em cota o seu próprio teor, o julgamento de que existia uma dúvida
razoável que impunha a absolvição do arguido.
Quando o STJ afirma que não tem possibilidade de intervir, está igualmente, de
forma implícita, a entender que do texto das decisões das instâncias, com a
fundamentação identificada, não se retira a dúvida razoável que o homem médio
deve retirar desses elementos.
Isto é, o STJ entende que, quando a única e exclusiva prova contra o arguido é o
reconhecimento efectuado em inquérito, mas que o seu autor desmente em audiência
de julgamento, devidamente conjugado com a circunstância de existir uma
testemunha que afirma ter estado com o arguido no período em causa – sem que
haja outros fundamentos para duvidar da sua credibilidade que não seja a
circunstância de a testemunha se recordar de facto ocorrido há cerca de um ano e
de o arguido só trabalhar para ela esporadicamente -, o artº 410º nº 2 do CPP
não permite estabelecer a dúvida razoável que deve levar à absolvição do
arguido.
Ora, tal entendimento normativo é, ressalvado o devido respeito,
inconstitucional, por violar o princípio da presunção de inocência, ofendendo
igualmente idêntica garantia que a CEDH assegura.”
O Ministério Público respondeu que a reclamação é
manifestamente improcedente, em nada sendo abalados pela argumentação do
reclamante os fundamentos da decisão quanto à evidente inverificação dos
pressupostos do recurso de constitucionalidade.
3. A argumentação do reclamante é improcedente, merecendo a
decisão sumária confirmação, pelo essencial dos seus fundamentos.
Efectivamente, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, no critério que
enunciou sobre o alcance do controlo da decisão das instâncias sobre o “erro
notório na apreciação da prova” e na apreciação da fundamentação do acórdão da
Relação quanto à análise crítica das provas, de modo algum se retira que deva
resolver-se contra o arguido a dúvida razoável sobre os factos pertinentes. E
não cabe na competência do Tribunal Constitucional apreciar se o homem médio
valoraria de modo diverso os elementos de prova efectivamente produzidos, na sua
substância concreta, que é o que o recorrente, afinal, pretende com o presente
recurso.
4. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e condenar o recorrente nas
custas, fixando a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 2 de Março de 2007
Vítor Gomes
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Artur Maurício