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Processo n.º 707/06
1ª Secção
Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
Acordam no Tribunal Constitucional
1. A. recorre para este Tribunal do acórdão da Relação de Lisboa,
impugnando a conformidade constitucional da norma constante do artigo 40º do
Código de Processo Penal, quando aplicada no sentido 'de que a circunstância de
a juíza-presidente do colectivo intervir em julgamento, depois de ter procedido
ao primeiro interrogatório do arguido e lhe ter decretado prisão preventiva, bem
como a circunstância de a juíza-adjunta do mesmo colectivo intervir no
julgamento, quando, em fase de inquérito, procedeu ao reexame da prisão
preventiva, mantendo-a, e já após a acusação, indeferiu um pedido de alteração
dessa medida de coacção, não violam as garantias de defesa do arguido', regra
que, em seu entender, está em desconformidade com os n.ºs 1 e 5 do artigo 32º da
Constituição.
Admitido o recurso, concluiu o recorrente a sua alegação nos seguintes termos:
I. A M.ma Juiz Presidente do Tribunal Colectivo, ao presidir ao
primeiro interrogatório judicial e decidir a prisão preventiva, como medida
coactiva a aplicar ao caso, conheceu dos factos indiciários que o arguido vinha
denunciado. Analisou-os e valorou-os.
II. Da mesma forma a M.ma Juíza Adjunta deste Tribunal Colectivo,
reexaminou os pressupostos de facto e de direito que foi necessário tomar em
conta, valorou-os e decidiu pela manutenção da medida coactiva mais gravosa:
prisão preventiva.
III. Posteriormente, a mesma M.ma Juiz decidiu do requerimento de
alteração da medida de coacção apresentado pelo arguido, quando já estava
formulada a acusação, quando existiam no processo todos os elementos que é
possível carrear sobre a autoria dos crimes imputados ao arguido. Tomou em conta
os factos trazidos pelo arguido no seu requerimento e articulou-os com os factos
existentes no processo: “Todavia dos autos resulta, outrossim...” (sic.) e
noutra parte, o mesmo despacho remete para “os depoimentos de fls. 4 e 5 dos
autos, de B. e C., ...“ (sic.)
IV. As M.mas Juizes não se limitaram a praticar, no processo, actos de
mero expediente. Ao invés, tomaram conhecimento de elementos fulcrais dos autos
e praticaram actos materiais no processo.
V. Sobre ambas as M.mas Juízes recaem fortes suspeições de
independência (imparcialidade) quando é sabido que ambas já formularam juízos de
valor sobre a factologia nuclear do processo.
VI. A intervenção do Juiz que, em sede de inquérito ou instrução, não
se traduza na realização de meros actos de expediente e implique uma tomada de
decisão, com valoração dos indícios recolhidos, designadamente aplicando prisão
preventiva ao arguido, fica impedido de participar no julgamento e, se o fizer,
verifica-se uma nulidade insanável determinante da anulação do julgamento
VII. Com o n.° 5, do art. 32.°, da CRP, o que se pretende é que o arguido
a ser submetido a julgamento, tenha um julgamento independente e imparcial.
VIII. Para decretar qualquer medida de coacção, o julgador tem de fazer
uma avaliação/valoração dos actos de investigação já realizados e dos indícios
já recolhidos para optar e determinar qual a gravidade da medida a decretar.
Nessa medida, formula um juízo ainda que provisório, que perdurará na sua mente
e que tornará mais difícil, ainda que involuntariamente, estar disponível (mente
aberta) para uma inversão dos elementos que a prova efectuada em julgamento
permita coligir e para efectuar o bom controlo dos fundamentos da ideia de
condenar (ainda que involuntariamente).
IX. No espírito dos julgadores perdurará, ainda que por acto
involuntário seu, um contacto anteriormente travado com a realidade que vai
julgar; ainda que não por acto voluntário do julgador, o arguido (defesa) fica à
partida em situação de inferioridade/desigualdade face à acusação, logo no
início do julgamento (por isso, o arguido suscitou desde logo o incidente de
impedimento).
X. O reexame da medida deve legitimar o impedimento da intervenção do
juiz no processo — reanalisar ou reavaliar, reiteradamente, os indícios antes do
julgamento, mais não é do que criar, em relação a esses factos e valoração
respectiva, uma memória, ainda que involuntária, mas que se vai traduzir em
desigualdade de armas na audiência de discussão e julgamento.
XI. Tomando por base os actos praticados pela M.ma Juiz Adjunta pode,
seguramente, dizer-se que ela fica com uma convicção de tal modo arreigada
quanto a esses aspectos do processo que, objectivamente, e sem prejuízo da
independência interior que for capaz de preservar, fica inexoravelmente
comprometida a sua independência e imparcialidade na fase do julgamento.
XII. O julgamento independente e imparcial é, também, uma dimensão do
princípio das garantias de defesa, consagrado no art. 32°, n.º 1, da CRP.
XIII. O preceito ínsito no art. 40°, do CPP, ao permitir o entendimento
(restritivo) de que apenas o Juiz que no inquérito ou instrução tiver aplicado e
posteriormente mantido a prisão preventiva do arguido está impedido de
participar no julgamento é inconstitucional por violação do disposto nos art.
32°, n.º 5 e 1, da Constituição de República e ainda a de que a sua aplicação,
apenas com esse âmbito, é de recusar, por inconstitucional.
XIV. Disposições violadas: arts. 40°, 41º, 119° e 122° do C. Processo
Penal; art. 32°, nº 1 e nº 5, da CRP;
art. 6°, nº 1 da Conv. Europeia dos Direitos do Homem.
termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência,
ser apreciada e declarada com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade
da norma constante do artigo 40.°, do CPP,
na parte em que permite a intervenção no julgamento, do juiz que decretou a
prisão preventiva,
na parte em que permite a intervenção no julgamento do juiz que manteve e
posteriormente indeferiu, a alteração dessa mesma medida coactiva de prisão
preventiva e
na parte em que permite a intervenção no julgamento de um tribunal colectivo
composto pelo juiz que, findo o primeiro interrogatório judicial, decretou a
prisão preventiva (juiz presidente desse mesmo colectivo) e, simultaneamente,
pela juiz que lhe manteve e posteriormente indeferiu essa mesma medida coactiva
de prisão preventiva.
tudo com as consequências legais.
O representante do Ministério Público apresentou alegação em que concluiu:
Nesta conformidade e face ao exposto, conclui-se:
1. A norma do artigo 40º do Código de Processo Penal não é inconstitucional
quando interpretada no sentido de permitir a intervenção no julgamento de juiz
que na fase inicial do inquérito procedeu ao interrogatório judicial do arguido
detido, tendo-lhe aplicado a medida de coacção de prisão preventiva.
2. Já o é, porém, por violar as garantias de defesa do artigo 32º, nºs 1 e 5 da
Constituição, na interpretação em que permite a intervenção de juiz que na fase
de inquérito, em momento imediatamente antecedente ao da formulação de acusação,
manteve a medida de prisão preventiva, tendo posteriormente, a requerimento do
arguido, tomado idêntica posição, analisando os autos e os indícios recolhidos,
em data próxima da do inicio do julgamento.
3. Termos em que deverá o presente recurso proceder parcialmente.
2. Cumpre decidir.
2.1. É impugnada a norma que se contém no artigo 40º do Código de
Processo Penal, resultante da alteração introduzia pelo artigo 134º da Lei de
Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, na redacção resultante da
Lei n.º 3/99 de 13 de Janeiro, com a seguinte redacção:
Artigo 40.º
(Impedimento por participação em processo)
Nenhum juiz pode intervir em recurso ou pedido de revisão relativo a uma decisão
que tiver proferido ou em que tiver participado ou no julgamento de um processo
a cujo debate instrutório tiver presidido ou em que, no inquérito ou na
instrução, tiver aplicado e posteriormente mantido a prisão preventiva do
arguido.
O Tribunal recorrido retirou do preceito e aplicou na decisão uma norma segundo
a qual podem simultaneamente intervir no tribunal colectivo que procedeu ao
julgamento o juiz que, durante o inquérito, aplicou ao arguido a prisão
preventiva e, ainda um outro juiz que, durante o inquérito, e depois da
acusação, manteve a medida. É, no essencial, esta a norma impugnada, contida no
40º do Código de Processo Penal e aplicada no sentido 'de que a circunstância de
a juíza-presidente do colectivo intervir em julgamento, depois de ter procedido
ao primeiro interrogatório do arguido e lhe ter decretado prisão preventiva, bem
como a circunstância de a juíza-adjunta do mesmo colectivo intervir no
julgamento, quando, em fase de inquérito, procedeu ao reexame da prisão
preventiva, mantendo-a, e já após a acusação, indeferiu um pedido de alteração
dessa medida de coacção não violam as garantias de defesa do arguido'.
2.2. A Relação de Lisboa decidiu a questão que lhe foi suscitada da
seguinte forma:
As questões suscitadas pelo recorrente são duas:
a) A da constitucionalidade do art. 40 do Código Processo Penal;
b) A nulidade do julgamento.
Segundo o recorrente o art. 40º do Código Processo Penal, ao permitir o
entendimento de que apenas o juiz que no inquérito ou instrução tiver aplicado e
posteriormente mantido a prisão preventiva do arguido está impedido de
participar no julgamento, é inconstitucional por violação do disposto nos art.
32º, n.º 5 e n.º 1 da Constituição.
No caso, como vimos, a Ex.ma juíza presidente procedeu ao primeiro
interrogatório judicial do arguido e no seu final decidiu aplicar-lhe a medida
de coacção de prisão preventiva. Não teve outra intervenção antes da fase de
julgamento.
A Ex.ma juíza adjunta, procedeu, ainda em fase de inquérito, a um reexame dos
pressupostos da prisão preventiva, nos termos do art. 213º do Código Processo
Penal, mantendo-a; depois apreciou requerimento apresentado pelo arguido,
visando a alteração da medida de coacção de prisão preventiva, que indeferiu,
mantendo-o em prisão preventiva.
Do exposto se conclui que nem a Ex.ma juíza presidente do colectivo nem a Ex.ma
juíza adjunta aplicaram e posteriormente mantiveram prisão preventiva do arguido
em fase de inquérito ou em instrução. Com efeito a Ex.ma juíza presidente
aplicou ao arguido a medida de coacção de prisão preventiva, em inquérito, não
mais sendo chamada a pronunciar-se nos autos sobre tal medida coactiva, e a
Ex.ma juíza adjunta manteve a prisão preventiva em inquérito, depois de ter
reapreciado os seus pressupostos e pronunciou-se, já após o encerramento do
inquérito, sobre requerimento apresentado pelo arguido visando a sua revogação,
requerimento que indeferiu, pelo que não aplicou sequer a medida de prisão
preventiva. Não se mostra, assim, violado o artigo 40º, do Código de Processo
Penal, ou dito de outro modo, não se verificam os requisitos exigidos nesse
dispositivo legal para declarar impedida qualquer das Ex.mas juízas que
constituem o tribunal colectivo que procede ao julgamento. Bem andou pois, pelo
menos de um ponto de vista estritamente processual penal, a decisão recorrida ao
indeferir os deduzidos impedimentos por participação em processo.
O arguido reconhece esta realidade, mas não se conforma, pois, no seu modo de
ver, a intervenção do juiz que, em fase de inquérito ou instrução, não se
traduza na realização de meros actos de expediente e implique uma tomada de
decisão, com valoração dos indícios recolhidos, designadamente aplicando prisão
preventiva ao arguido, deve desencadear impedimento de participar no julgamento.
É este entendimento restritivo que quer ver seguido, sustentando que de outro
modo se viola o art. 32º n.º1 e 2 da Constituição. Segundo o recorrente como as
Ex.mas juízas não se limitaram a praticar, no processo, actos de mero
expediente, antes tomaram conhecimento de elementos fulcrais dos autos e
praticaram actos materiais no processo, sobre ambas recaem fortes suspeitas de
independência (imparcialidade) quando é sabido que ambas formularam juízos de
valor sobre a factologia nuclear do processo. Os juízos, ainda que provisórios,
que formularam perdurarão na sua mente, ficando o arguido à partida em situação
de inferioridade/desigualdade face à acusação, fica inexoravelmente comprometida
a sua independência e imparcialidade na fase do julgamento. Ora o julgamento
independente e imparcial é, também, uma dimensão do princípio das garantias de
defesa, consagrado no art.32 º, n.º1 da Constituição.
Importa, assim, decidir se a concreta aplicação do art 40º do Código Processo
Penal ofende a Constituição ou o art. 6º n.º l da CEDH.
Dispõe o art. 32º da Constituição:
1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o
recurso.
(...)
5. O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de
julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao
princípio do contraditório
Artigo 6 da CEDH [direito a julgamento justo]
1. Na determinação dos seus direitos e obrigações civis ou de qualquer acusação
criminal contra si, qualquer pessoa tem direito a um julgamento e audiência
pública dentro de um prazo razoável por um tribunal independente e imparcial
estabelecido por lei (...).
A fórmula da primeira parte do n.º l do art. 32 da Constituição não traduz uma
norma meramente programática. O preceito deve ser interpretado — o art. l6º da
Constituição a tanto obriga - à luz do denominado processo equitativo, na
designação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e do Pacto Internacional
sobre Direitos Civis e Políticos ou do due process of law, na fórmula da
jurisprudência norte-americana, envolvendo como aspectos fundamentais a
consideração do arguido, como sujeito processual a quem devem ser assegurados
todas as possibilidades de contrariar a acusação, a independência e
imparcialidade do juiz ou tribunal e a lealdade do procedimento.
No que ao n.º 5 respeita, cumpre dizer, no essencial, que a estrutura acusatória
do processo significa o reconhecimento do arguido como sujeito processual a quem
é garantida efectiva liberdade de actuação para exercer a sua defesa face à
acusação que fixa o objecto do processo e é deduzida por entidade independente
do tribunal que decide a causa.
Cabendo no caso, já que não se trata de crimes particulares, a acusação ao
Ministério Público, art. 283º do Código Processo Penal, sujeito processual
distinto do tribunal, art. 10º e segts. e 48 e segts. do Código Processo Penal,
não vislumbramos a violação do princípio do contraditório: a acusação que fixa o
objecto do processo foi deduzida por entidade autónoma e totalmente independente
do tribunal. Há uma separação absoluta entre a entidade que acusou e a que
julga. As Ex.mas juízas não carrearam para os autos elementos de prova
susceptíveis de serem utilizados pela acusação, nem sequer dissentiram da medida
de coacção — para mais grave — requerida pelo Ministério Público. A intervenção
da Ex.mas juízas ocorreu numa veste garantística dos direitos do arguido.
A questão suscitada pelo recorrente parece-nos que se situa com mais propriedade
no âmbito da imparcialidade.
Dispõe o artigo 40º do Código de Processo Penal que “nenhum juiz pode intervir
em recurso ou pedido de revisão relativos a uma decisão que tiver proferido ou
em que tiver participado ou no julgamento de um processo a cujo debate
instrutório tiver presidido ou em que, no inquérito ou na instrução, tiver
aplicado e posteriormente mantido a prisão preventiva do arguido.”
Já vimos que a actuação concreta das Ex.mas juízas não chega a preencher a
previsão do art. 40º do Código Processo Penal, ficando aquém daquilo que o
legislador estabeleceu como limite a partir do qual, fundada e objectivamente,
há impedimento legalmente tipificado. Por outro lado o recorrente não lança mão
do instituto da recusa do art. 43º n.º 2 do Código Processo Penal, sabido que
pode constituir fundamento de recusa a intervenção do juiz em fases anteriores
do mesmo processo fora dos casos do art. 40º quando correr o risco de ser
considerada suspeita por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar
desconfiança sobre a sua imparcialidade. Nem alega violação da dimensão
subjectiva do dever de imparcialidade, v.g. qualquer afirmação produzida pelas
Ex.mas juízas susceptível de ser interpretada como pré-juízo desfavorável em
violação do dever de neutralidade. Não resulta dos autos que as Ex.mas juízas
fizeram v.g. uso indevido dos elementos a que tiveram acesso nas suas
intervenções anteriores à fase de julgamento no processo, v.g. que a Ex.ma juíza
presidente se tenha prevalecido contra o legalmente estabelecido das declarações
que ouviu ao arguido no primeiro interrogatório.
O recorrente tem todo o cuidado em situar a questão que suscita a nível
objectivo, no entendimento que faz dos dispositivos constitucionais. Se esse foi
o caminho escolhido pelo arguido podemos concluir que não vislumbrou fundamento
subjectivo para suspeitar da sua imparcialidade. De outro modo o arguido teria
deitado mão do incidente de recusa.
É conhecida a história legislativa do art. 40º do Código Processo Penal. A
redacção inicial foi declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, na
parte em que permitia a intervenção no julgamento do juiz que, na fase de
inquérito, decretou e posteriormente manteve a prisão preventiva do arguido, por
violação do art. 32º n.º 5 da Constituição, pelo Acórdão do Tribunal
Constitucional n.º 186/98, DR I-A série, de 20 de Março de 1998. Logo de seguida
a Lei n. 59/98, de 25 de Agosto, introduziu na versão originária a alternativa
final — ou em que tiver aplicado e posteriormente mantido prisão preventiva do
arguido. Por sua vez a Lei 3/99, de 13 de Janeiro, aditou a expressão no
inquérito ou na instrução, visando assim, como esclarece Maia Gonçalves,
clarificar o que já antes se afigurava óbvio, pois que o juiz do julgamento não
toma posição sobre prova indiciária. Solução contrária conduziria ao absurdo de
o juiz do julgamento ter de mudar pelo menos trimestralmente por via da
aplicação do art. 2l3º n.º l do Código Processo Penal.
A alteração legislativa teve em vista sanar o vício de inconstitucionalidade
declarado pelo Tribunal Constitucional tendo o legislador ponderado na solução
legislativa os pronunciamentos da jurisprudência constitucional seguindo o
caminho aberto pela jurisprudência do Tribunal Constitucional. Acontece que da
génese legislativa do actual preceito, fez o recorrente tábua rasa, batendo na
tecla já reparada pelo legislador, como se ela ainda estivesse gasta.
A questão aqui posta - saber se viola o artigo 32° n.°s 1 e 5 da Constituição, a
interpretação do artigo 40° do Código de Processo Penal, que permita a
intervenção no julgamento da juíza que, na fase inicial do inquérito, procedeu
ao interrogatório inicial do arguido e decretou a prisão preventiva desse
arguido; saber se viola o artigo 32° n.°s 1 e 5 da Constituição, a interpretação
do artigo 40° do Código de Processo Penal que permita a intervenção no
julgamento de outra juíza que em cumprimento do disposto no art. 213° do Código
Processo Penal procedeu ao reexame da prisão preventiva mantendo-a e já após a
acusação indeferiu um pedido de alteração dessa medida de coacção - não é nova
mas recorrente e simétrica àquela que foi colocada e respondida nos Acórdãos do
Tribunal Constitucional n.º 338/99 e 297/2003:
Como se acentua no Acórdão n.º 135/88, do Tribunal Constitucional, in ATC, 11º
vol., p. 945 e segs. a independência dos juízes é, antes do mais, uma
responsabilidade que terá a “dimensão” ou a “densidade” da fortaleza de ânimo do
carácter e da personalidade moral de cada juiz. Esta é a vertente subjectiva da
imparcialidade, o que se presume segundo o entendimento do TEDH, até que algo
indicie o contrário. Isto não invalida a necessidade de existir um quadro legal
que “promova” e facilite aquela “independência vocacional”, garantindo a
imparcialidade do julgador e assegurando a confiança geral, a confiança do
público naquela imparcialidade. Neste último sentido fala-se de imparcialidade
objectiva. Nesta perspectiva o que se impõe indagar é se o juiz em virtude de
considerações de carácter orgânico ou funcional não apresenta qualquer pré-juízo
ou preconceito em relação à matéria a decidir.
A jurisprudência do TEDH sobre o art. 6 n.º l da CEDH reflecte a exigência de um
juiz imparcial não apenas numa perspectiva subjectiva, mas também numa visão
objectiva. Como se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 297/2003,
deve ser ponderado e avaliado o tipo concreto de intervenção do julgador na fase
do inquérito, relevando a sua dimensão (garantística, ou não) e a fase em que
ela ocorre. Daí que não releve toda e qualquer intervenção no inquérito. Como se
disse no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 935/96, a solução de estender o
impedimento do artigo 40º do Código de Processo Penal a todos os actos isolados
susceptíveis de serem praticados pelo juiz de instrução na fase preliminar do
processo penal, como no caso presente pretende o recorrente, apresentar-se-ia,
na generalidade dos casos, totalmente inadequada e desnecessária, em virtude de
muitos deles não colocarem minimamente em causa as garantias de independência e
de imparcialidade do tribunal, ínsitos no princípio da acusação, consagrado no
artigo 32º, n.º 5 da lei fundamental. Exemplificando: ordenar o contraditório
para a admissão de assistente, proferir despacho a admitir o ofendido a intervir
como assistente, será que contaminam a imparcialidade do juiz que os profere de
modo a impedir a sua intervenção no julgamento?
Dos sucessivos pronunciamentos do Tribunal Constitucional sobre esta questão há
uma linha de raciocínio que se mantém, deles se retirando com interesse para o
caso que, é do tipo e frequência da intervenção que o julgador teve, na fase do
inquérito, com especial relevância do momento em que. dentro dessa fase, ela
ocorreu (o mesmo acto pode ser valorado de modo diverso consoante o
desenvolvimento da investigação), que há-de resultar o juízo sobre a isenção,
imparcialidade e objectividade do juiz enquanto julgador.
Refere o Acórdão 297/03 que, na vigência da versão originária do artigo 40º do
Código Processo Penal, também o Acórdão n.º 338/99 (inédito), se debruçou sobre
questão idêntica à que nos ocupa nos autos, estando em causa uma interpretação
da norma constante daquele preceito legal em termos de permitir a intervenção no
julgamento do juiz que, presidindo ao primeiro interrogatório dos arguidos, lhes
decretou a prisão preventiva. Esse acórdão salienta, desde logo, a diferença
substancial entre esse caso e o que determinara a declaração de
inconstitucionalidade com força obrigatória geral do art. 40º do Código Processo
Penal, no Acórdão n.º 186/98 - neste último estava em causa uma dupla
intervenção sucessiva do juiz na fase de inquérito e, no caso do Acórdão 339/99,
uma intervenção isolada - evidenciando que tal acórdão expressamente alerta
“para a relevância da circunstância, entendida como decisiva na sua própria
lógica argumentativa, de a intervenção do juiz na fase de inquérito não ser uma
intervenção esporádica ou isolada, mas ser, pelo contrário, uma intervenção
reiterada ou repetida” e “de o juiz não se ter limitado a, findo o primeiro
interrogatório judicial do arguido, decretar a respectiva prisão preventiva”,
mas “ter, em data posterior, já bem próximo da data da acusação, confirmado essa
mesma prisão preventiva”.
Tem sido entendimento constante do Tribunal Constitucional que “não é qualquer
intervenção na fase de inquérito por parte do juiz que depois há-de participar
no julgamento que é apta a justificadamente pôr em causa a sua independência e
imparcialidade - ou a confiança do arguido e do público nessa mesma
independência e imparcialidade - em termos de dever considerar-se que a norma
que a permita é inconstitucional por violação do disposto no artigo 32º n.º 5 da
Constituição”, Acórdão n.º 338/99. Acompanhando o Acórdão do Tribunal
Constitucional 297/2003 diremos que o acervo jurisprudencial do Tribunal
Constitucional sobre a matéria permite identificar uma orientação clara e firme
(em especial, a partir do Acórdão n.º 935/96, se não já do Acórdão n.º 114/95)
sobre os imperativos constitucionais em matéria de impedimentos do julgador,
decorrentes do princípio do acusatório, em processo penal, assente em critérios
que mantêm plena validade e, por isso, devem, também aqui, ser aplicados.
Questiona o recorrente, a dimensão normativa do artigo 40º do CPP que no
despacho impugnado indeferiu a verificação de impedimento por intervenção
anterior no processo - a Ex.ma Juíza presidente decretou a prisão preventiva
após primeiro interrogatório; a Ex.ma juíza adjunta em cumprimento do disposto
no art. 213º do Código Processo Penal procedeu ao reexame da prisão preventiva
mantendo-a e já após a acusação indeferiu um pedido de alteração - importando
saber se tal viola as garantias de independência, imparcialidade e objectividade
do julgador, asseguradas pelo princípio constitucional que impõe a estrutura
acusatória no processo criminal. Como vimos a resposta que o Tribunal
Constitucional tem vindo a dar a situações similares é negativa, foi negativa
nos Acórdão 297/03 e no Acórdão 338/99.
Negativa tem sido também a resposta do TEDH. O TEDH tem procurado estabelecer
que não é qualquer acto ou decisão tomada em momento anterior ao do julgamento
por parte do juiz de julgamento que tem a virtualidade para fazer surgir uma
legítima desconfiança na sua imparcialidade no acto de julgar. Tem entendido
este Tribunal que o envolvimento em decisões pré-julgamento não justifica só por
si o receio quanto à imparcialidade. As respostas positivas do TEDH, declarando
que há violação do art. 6º n.º l, aconteceram em casos excepcionais: no caso
Piersach o presidente do tribunal criminal belga que julgou o arguido tinha a
certa altura sido promotor público e membro do departamento que tinha
investigado o caso do requerente e iniciado a acção judicial contra ele. Nos
casos De Haan e Castilio Algar porque os juízes nestes casos estavam não
meramente a tratar de procedimentos em diferentes fases, mas eram efectivamente
solicitados a rever as suas próprias decisões.
A este propósito cumpre lembrar que o TEDH no caso Saraiva de Carvalho c.
Portugal entendeu não estar em causa o princípio da imparcialidade, nem no
sentido objectivo nem subjectivo, quando o mesmo juiz produz o despacho de
pronúncia e integra o julgamento — como acontecia nas querelas no Código de
Processo Penal de 1929 a que se reporta o caso — pois o juiz não praticou acto
de instrução. Se isso era formalmente assim, o certo é que na vigência do
anterior Código de Processo Penal era a pronúncia que delimitava o objecto do
processo tendo o juiz amplos poderes podendo inclusive pronunciar por crime mais
grave que o constante da acusação.
Negativa também será a nossa resposta no caso:
Quanto à única intervenção da Ex.ma juíza presidente em inquérito — ouviu o
arguido em primeiro interrogatório decretando a sua prisão preventiva — é
patente que ocorreu numa fase embrionária do processo, sendo um pré-juízo, a
roçar quase o preconceito, sustentar que logo aí a Ex.ma juíza formulou uma
convicção segura sobre a culpabilidade do arguido. Perdoe-se-nos a franqueza tal
entendimento demonstra fundamentalmente um desconhecimento das finalidades do
processo penal, do que é o inquérito e o julgamento, dos pressupostos de
aplicação de medida de coacção e da decisão final, da apreciação crítica da
prova e dos deveres acrescidos de fundamentação, como adiante iremos realçar. A
sua intervenção teve um condão garantístico, apreciou indícios tendo em vista a
aplicação de medida de coacção. Trata-se, no entanto, de uma avaliação
perfunctória e que, ao ser realizada numa fase inicial do inquérito -
consideravelmente afastada do momento do julgamento - e sem repetições, é
insusceptível de afectar a imparcialidade do julgador, como se decidiu no citado
Acórdão n.º 338/99, e não mais teve contacto com o inquérito que decorreu sob a
direcção do Ministério Público.
A Ex.ma juíza adjunta limitou-se a verificar se os pressupostos que determinaram
a prisão preventiva se tinham alterado ou se mantinham e depois apreciou,
indeferindo requerimento do arguido, para alteração da medida de coacção. Não
deixa de ser curioso – simplesmente curioso – que o primeiro desses despachos,
proferido em 13.12.2005 mereceu do arguido a seguinte consideração: não revela
especial esforço na ponderação da alteração da medida aplicada, limitando-se
displicentemente a juntar uma adição de frases feitas e estereotipadas, cfr. fl.
76. Se assim foi, parece-nos que o recorrente, em vez de se preocupar com a
contaminação das julgadoras derivada do contacto com o inquérito, devia antes,
perante esse fugaz e displicente contacto - são as suas palavras - ter reagido
contra esses despachos em sede de inquérito. Como o não fez, parece-nos que em
julgamento, se a coerência é aquilo que julgamos, só pode ter motivos de
contentamento pois a Ex.ma juíza adjunta não terá um conhecimento aprofundado do
inquérito.
Como facilmente se intui a questão é diversa, até porque o inquérito, todo o
inquérito está acessível às Ex.mas juízas. O que as Ex.mas juízas fizeram e
decidiram em inquérito é diverso do que vão ter que decidir em julgamento, não
tendo o menor ponto de contacto. Recorrendo aos dizeres do Acórdão 297/2003 do
Tribunal Constitucional, as intervenções processuais das julgadoras na fase de
inquérito não as converteram em órgão de acusação, nem pela sua frequência,
intensidade ou relevância, as conduzem a pré-juízos ou pré-compreensões sobre a
culpabilidade do arguido que firam a sua objectividade e isenção.
Aqui é que bate o ponto. Os mais distraídos ainda não se deram conta que a
intervenção do juiz de instrução criminal no inquérito obedece hoje a paradigma
diverso do consagrado no Código de Processo Penal de 1929. Acompanhamos, assim,
a posição de F. Dias que reconduz esta questão, quando não está em causa o
respeito do contraditório, ao instituto da recusa e da escusa. A sua crítica ao
entendimento do Tribunal Constitucional parece-nos correcta. Refere ele
reportando-se à revisão de 1998 que a AR tendo aceite a alteração do art. 43º
simultaneamente alterou o texto do art. 40°, no sentido de considerar o juiz
impedido de intervir «no julgamento de um processo (...) em que tiver aplicado e
posteriormente mantido a prisão preventiva do arguido».
E continua isto significa, a meus olhos, uma pobre tentativa — impossível — de
todos contentar: com a redacção do art. 43° reafirma-se a boa doutrina de
considerar a intervenção anterior do juiz relativa a actos isolados no quadro
das recusas e escusas, não nos impedimentos; com a nova redacção do art. 10°
pretende salvar-se, em todo o caso, a jurisprudência (errada, em meu parecer,
como salientei) do Tribunal Constitucional em matéria de efeito da intervenção
judicial na prisão preventiva. O quadro daqui resultante é teleologicamente
contraditório e racionalmente insustentável. E tanto mais o é quanto, suponho,
ficará definitivamente por se compreender porque fique impedido o juiz que
aplique e mantenha a prisão preventiva do arguido, mas já não o que só a aplique
(mas não a mantenha, inclusivamente porque o incidente não chega a ser
suscitado) ou o que só a mantenha (mas não a tenha aplicado....); como
definitivamente ficará por compreender, atento o fundamento político-criminal
subjacente, porque haja o impedimento de valer relativamente à prisão preventiva
mas não já, por exemplo, à obrigação de permanência na habitação. O que tudo só
mostra uma vez mais, em meu juízo, como em matéria de legislação penal nunca é
de bom conselho e rendimento tersiversar sobre proposições político‑criminais
básicas em favor de compromissos que nem respeitam as finalidades do processo
penal, nem as exigências da sua concordância prática. (...) a prática pelo juiz
de instrução de actos isolados não deve constituir causa de impedimento, mas tão
só, como previa a lei anterior e a proposta de revisão tornou claro, motivo de
eventual suspeição. E isto porque só a decisão que o juiz de instrução tome
afinal — a de pronunciar ou não pronunciar o arguido — contende directa e
necessariamente com o objecto do processo, por isso que também a pronúncia serve
para limitar e fixar os poderes de cognição do tribunal de julgamento. Só um
mecanismo como o da suspeição (...) responde satisfatoriamente — por que depende
de uma avaliação das circunstâncias concretas da intervenção do juiz de
instrução num momento anterior ao julgamento — à razão de ser da não intervenção
daquele no julgamento: a garantia da imparcialidade e da objectividade da
decisão final, a garantia, afinal, que está mesmo no cerne da acusação.
Por mais que me esforce, continua a não conseguir divisar que «direitos
liberdades e garantias» do arguido serão de outro modo mais justamente
defendidos, face à tensão em que estes têm de existir e à composição em que têm
de entrar com as necessidades de realização do ius puniendi estadual e com as
exigências da sua eficiência e efectividade num processo justo e equitativo. Em
vão continuo a perguntar-me que sentido garantístico para as liberdades do
arguido pode ter que um juiz de instrução que aplique e mantenha na fase de
inquérito uma prisão preventiva requerida pelo Ministério Público (...) fique
automaticamente impedido de participar no futuro julgamento. Como continuo a
pensar que afirmar que o juiz fica deste modo (...) preso a pré- juízos
constitui um prejuízo tão grande, pelo menos, como pretender que o juiz do
julgamento ficará agarrado ao pré-juízo que lhe advém do facto de já outro juiz,
o de instrução, ter pronunciado o arguido.
No fundo — e aqui julgo eu divisar o essencial e o mais preocupante -, uma
solução que veja em toda e qualquer intervenção do juiz de instrução causa de
impedimento mal encobrirá a atribuição àquele de um papel que o Código, na
formulação de 1987, intencionalmente decidiu não lhe conferir: um papel que vai
muito para além do que lhe é fixado no art. l7º e se mostra mesmo, a diversos
títulos, com ele incompatível. Uma solução, esta, dizendo-o franca e
abertamente, que deixaria a descoberto um outro modelo de juiz de instrução,
através do qual se lograria dar razão ao velho e gasto requisitório da submissão
hierárquica e funcional, no processo, do Ministério Público ao juiz de
instrução; e que constituiria uma via ínvia (...) de subverter o modelo e a
estrutura basicamente acusatórias do processo penal português.
Finalmente dizer que qualquer intervenção do juiz em sede de inquérito, que não
se traduza em actos de mero expediente contraria e põe em causa a imparcialidade
do juiz é amalgamar realidades distintas, quão distintas são as finalidades do
inquérito e do julgamento e finalisticamente diversas as intervenções que
ocorrem numa e noutra fase. São diversos os papeis do juiz de instrução criminal
e do juiz do julgamento E ter olhos e teimar em não querer ver que hoje existe
um reforço das garantias do arguido contra uma possível contaminação do juiz do
julgamento, em consequência de intervenções pontuais em inquérito, realidade nem
sempre ponderada ou simplesmente esquecida, mesmo nas decisões do Tribunal
Constitucional, como realça F. Dias. É que hoje não valem em julgamento,
nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer
provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência, art. 354º n.º
l do Código Processo Penal. As declarações que o arguido presta em primeiro
interrogatório não são um meio de prova. A produção da prova, que deva servir
para fundar a convicção do julgador, tem de ser realizada na audiência e segundo
os princípios naturais de um processo de estrutura acusatória: os princípios da
imediação, da oralidade e da contraditoriedade na produção dessa prova. Por
outro lado o juiz tem de motivar a sua convicção não valendo hoje a sua íntima
convicção, pelo que o arguido está a coberto das puras subjectividades dos
julgadores. O art. 374° n.º 2 do Código Processo Penal, não se basta com a
simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1ª instância, exigindo ainda
a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal. Não basta
mostrar os meios de prova através do seu elenco é preciso demonstrar por que
razão se chegou a determinado resultado. E nessa tarefa importa ter presente que
o paradigma da íntima convicção, relativamente ao qual com propriedade se podia
dizer — não escutando [o juiz] senão os ditames da consciência— que a culpa
estava na cabeça do juiz, está felizmente ultrapassado, sendo incompatível com o
figurino que a nossa Constituição desenhou ao processo penal. Hoje vigora o
sistema da livre apreciação da prova, art. 127° do Código Processo Penal, que
pressupõe e exige uma indicação dos meios de prova e um complementar exame
crítico, de modo a que permita avaliar o porquê da decisão e o processo lógico
mental que possibilitou a decisão da matéria de facto. A motivação da decisão do
tribunal não é nem pode ser mais um acto de fé, um puro exercício de íntima
convicção. A convicção tem de ser uma demonstração feita com absoluto respeito
pelas regras e princípios legais pertinentes em sede de prova, de acordo com as
regras da experiência e da lógica. Em conclusão na motivação tem o juiz de
explicar por que considerou provados uns factos e não provados outros, em termos
claros e precisos, enfim de prestar as devidas contas.
Neste contexto e com esta exigência o perigo de contaminação é reduzido. E não
se vislumbra no caso concreto.
Em conclusão: não viola o artigo 32º n.ºs 1 e 5 da Constituição, a interpretação
do artigo 40º do Código de Processo Penal, que permita a intervenção no
julgamento da juíza que, na fase inicial do inquérito, procedeu ao
interrogatório inicial do arguido e decretou a prisão preventiva desse arguido,
nem a interpretação do mesmo artigo 40º que permita a intervenção no julgamento
de outra juíza que em cumprimento do disposto no art. 213º do Código Processo
Penal procedeu ao reexame da prisão preventiva mantendo-a e já após a acusação
indeferiu um pedido de alteração dessa medida de coacção, nem se verifica
nulidade insanável.
2.3. A questão que nos ocupa tem sido estudada a propósito do dever de
imparcialidade que, por força do princípio retirado do artigo 32º da
Constituição, marca especialmente a actividade dos tribunais criminais.
A verdade, porém, é que a imparcialidade dos tribunais é uma exigência não
apenas contida no artigo 32º da Constituição, mas uma decorrência do Estado de
direito democrático (artigo 2º), na medida em que se inscreve na garantia
universal de defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, através de
um órgão de soberania com competência para administrar a justiça (artigo 202º
n.º 1 Constituição). Ora, neste dever genérico de imparcialidade do tribunal
inclui-se uma exigência de não suspeição subjectiva do juiz; a actividade do
juiz não pode apresentar-se contaminada por circunstâncias geradoras de
desconfiança quanto à sua imparcialidade.
Todavia, do citado artigo 32º retira-se, para além disto, uma exigência de
imparcialidade objectiva do tribunal, decorrente da estrutura acusatória do
processo penal, circunstância que impede que o juiz do julgamento esteja
envolvido na actividade instrutória, quer carreando para os autos elementos de
prova susceptíveis de serem utilizados pela acusação, quer envolvendo-se em
actos que possam significar dirigir a investigação. Esta exigência de
imparcialidade objectiva do juiz, justifica-se do ponto de vista das garantias
da defesa, é certo, mas igualmente pela necessidade de proporcionar ao juiz as
condições de isenção requeridas pelo exercício das suas funções. Assim se
explica que seja confiado ao próprio juiz o dever de se declarar impedido, a par
de se permitir aos restantes sujeitos processuais a iniciativa de suscitar no
processo o reconhecimento do impedimento do juiz (artigo 41º do Código de
Processo Penal).
É no domínio desta exigência que se coloca a questão suscitada pelo recorrente,
que acusa a Relação de Lisboa de ter aplicado uma norma inconstitucional,
retirada do 40º do Código de Processo Penal, segundo a qual podem
simultaneamente intervir no tribunal colectivo que procedeu ao julgamento uma
juíza que, durante o inquérito, aplicou ao arguido a prisão preventiva e, ainda,
uma outra juíza que durante o inquérito, e depois da acusação, manteve a medida,
norma essa que ofenderia o artigo 32° n.ºs 1 e 5 da Constituição.
2.4. O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre esta matéria,
conforme amplamente refere a Relação de Lisboa na decisão em causa.
Começou por entender (Acórdão n.º 186/98, in DR I-A de 20 de Março de 1998) que
o artigo 40º do Código de Processo Penal, na sua anterior versão, na parte em
que permitia a intervenção no julgamento do juiz que, na fase de inquérito,
decretou e posteriormente manteve a prisão preventiva do arguido, era
inconstitucional por violação do artigo 32º nº 5 da Constituição da República.
Para justificar o juízo de inconstitucionalidade, o citado Acórdão n.º 186/98,
recorrendo fundamentalmente ao texto de um dos três acórdãos invocados como
fundamento para o pedido de generalização então apreciado, o Acórdão nº 935/96
(Diário da República, II Série, de 11 de Dezembro de 1996), considerou que “ao
consagrar o nº 5 do artigo 32º da Constituição uma tal garantia – a garantia do
processo criminal de tipo acusatório –, o que, pois, a lei fundamental pretende
assegurar é que a entidade que julga (o juiz) não tenha funções de investigação
e acusação: esta última tarefa há-de ser levada a efeito por uma outra entidade
(em regra, o Ministério Público); e, no julgamento do feito penal, há-de o juiz
mover-se dentro dos limites postos pela acusação”. Salientou-se que, como se
sabe, o que está em causa é a garantia de um “julgamento independente e
imparcial”, e que essa independência e imparcialidade há-de ser traduzida em
regras que também a tornem acessível à comunidade em geral, como forma de
garantir a confiança social na administração da justiça.
Assim sendo, e considerando ainda que o impedimento previsto no artigo 40º, na
parte relevante, se destinava a evitar que, no julgamento, o juiz pudesse ser
influenciado pelo conhecimento anteriormente adquirido sobre os factos em causa
no processo, entendeu-se não respeitar os princípios constitucionais acima
indicados uma norma que permitisse a participação, no julgamento, de um juiz que
interviera na fase do inquérito de forma particularmente intensa. Considerou-se
como tal a intervenção que se traduziu em decretar a prisão preventiva, findo o
interrogatório judicial do arguido e, em, já na fase final do inquérito, “já bem
perto da data da acusação, confirm[ar] a prisão preventiva. Ora, aplicada nesta
dupla dimensão”, decidiu-se, “a norma do artigo 40º do Código de Processo Penal
infringe claramente o princípio da imparcialidade objectiva do juiz, ínsito no
princípio do acusatório, constante do nº 5 do artigo 32º da Constituição”
(transcrição feita pelo acórdão nº 186/98 do acórdão nº 935/96).
No Acórdão n.º 29/99 (Diário da República, II Série, de 12 de Março de 1999),
julgou-se não inconstitucional “a norma do artigo 40º do Código de Processo
Penal, na versão dada pelo Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de Fevereiro, quando
interpretada no sentido de não prescrever sempre o impedimento de intervenção no
julgamento do juiz que determinou, anteriormente, a manutenção da prisão
preventiva aplicada ao arguido, ao abrigo do disposto no artigo 213º do mesmo
Código”.
Estava então em causa a manutenção da prisão preventiva decretada por outro juiz
“no segundo reexame trimestral, após a dedução da acusação na fase final do
inquérito”, que se entendeu que “não conduz, por si só, a essa intensa convicção
de que o crime foi praticado nem exige, constitucionalmente, pelo seu grau, a
criação de obstáculos formais a que, por essa via, se produzam pré-juízos
relativamente à culpabilidade do arguido”.
No Acórdão nº 338/99 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), julgou-se
não inconstitucional a norma, contida na mesma versão do artigo 40º, “quando
interpretado no sentido de permitir a intervenção no julgamento do juiz que,
findo o primeiro interrogatório judicial do arguido detido, decretou a prisão
preventiva, não tendo tido ulteriormente qualquer outra intervenção no decurso
do inquérito”.
O Acórdão n.º 423/2000 (Diário da República, II Série, de 20 de Novembro de
2000), tomando já como referência a redacção dada ao artigo 40º pelo Decreto-Lei
nº 58/95, de 25 de Agosto, julgou não inconstitucional a norma dele constante
“quando interpretado no sentido de permitir a intervenção no julgamento do juiz
que, findo o primeiro interrogatório judicial do arguido detido, determinou a
respectiva libertação, mediante a adopção de medidas de coacção não privativas
da liberdade, medidas de coacção que posteriormente manteve no momento em que
recebeu a acusação e marcou o dia para o julgamento”.
Frisando que nos anteriores acórdãos se tinha entendido “repetidamente” que “um
juízo de inconstitucionalidade da norma que permita a intervenção no julgamento
do juiz que participou numa fase anterior, por violação do artigo 32º, nº 5, da
Constituição, pressupõe que as intervenções do juiz - pela sua frequência,
intensidade ou relevância - sejam aptas a razoavelmente permitir que se formule
uma dúvida séria sobre as condições de isenção e imparcialidade desse mesmo juiz
ou a gerar uma desconfiança geral sobre essa mesma imparcialidade e
independência”, observou-se que “a simples decisão pela manutenção do quadro
existente em termos de medidas de coacção, no momento do recebimento da
acusação, não é suficiente para, por si só ou em conjugação com a intervenção
anterior, conduzir à formulação de uma dúvida séria, razoável, objectiva sobre
as condições de isenção e imparcialidade do juiz ou a gerar uma desconfiança
geral da comunidade sobre essa mesma isenção e imparcialidade, termos em que não
se verifica a alegada violação inconstitucionalidade.”
Mais recentemente, no Acórdão n.º 297/2003 (DR II Série de 3 de Outubro de
2003), o Tribunal manteve o entendimento de julgar não inconstitucional a norma
do mencionado artigo 40º do Código de Processo Penal interpretada no sentido de
permitir a intervenção em julgamento do juiz que, no início do inquérito,
interrogou os arguidos que lhe são apresentados detidos e decretou prisão
preventiva desses arguidos, autorizando no mesmo dia uma busca domiciliária.
Neste acórdão, sublinhando que as duas intervenções do juiz – interrogatório do
arguido e autorização da busca – tiveram uma função predominantemente
garantística que visaram assegurar a tutela dos direitos fundamentais dos
arguidos, o Tribunal ponderou:
Em suma, as intervenções processuais do julgador na fase de inquérito nem o
converteram em órgão de acusação, nem pela sua frequência, intensidade ou
relevância, o conduzem a pré-juízos ou pré-compreensões sobre a culpabilidade
dos arguidos que firam a sua objectividade e isenção.
O artigo 40º do Código de Processo Penal, na interpretação que levou o acórdão
recorrido à recusa da sua aplicação, e em contrário do aí decidido, não ofende,
pois, o artigo 32º, n.ºs 1 e 5 da Constituição.
2.5. Pode, portanto, concluir-se que o Tribunal Constitucional tem
mantido o entendimento de que a prática de actos isolados durante o inquérito
não constitui, em princípio, causa de quebra objectiva da imparcialidade do
juiz, determinante do seu impedimento no julgamento.
O recorrente baseia a acusação de inconstitucionalidade da norma em
circunstâncias objectivas que nada têm a ver com a pessoa das juízas envolvidas,
e nunca suscitou o incidente previsto no artigo 43º do Código de Processo Penal,
que permite recusar a intervenção de um juiz quando houver desconfiança quanto à
sua imparcialidade. É, em seu entender, o exercício da actividade de juiz na
fase anterior do processo que determina o impedimento, na medida em que a
juíza-presidente procedeu ao primeiro interrogatório do arguido, decretando
prisão preventiva, e uma juíza-adjunta, em fase de inquérito, procedeu ao
reexame da prisão preventiva, mantendo-a, e já após a acusação, indeferiu um
pedido de alteração dessa medida de coacção.
Sustenta, portanto, que a prática de determinados actos gera, automaticamente, o
impedimento.
Mas esse não é, como se viu, o entendimento que o Tribunal tem perfilhado.
Uma das juízas procedeu ao primeiro interrogatório do arguido que lhe foi
apresentado detido. Na sequência dessa diligência, e mediante prévia promoção do
representante do Ministério Público no Tribunal de Mirandela no mesmo sentido,
determinou a prisão preventiva do arguido. Não voltou a ter intervenção no
inquérito. Não pode, nos termos já expostos, julgar-se quebrada a sua
imparcialidade.
A segunda juíza procedeu à reapreciação oficiosa da prisão preventiva aplicada
ao arguido (13 de Dezembro de 2005) concluindo 'que se mantêm inalterados os
pressupostos de facto e de direito que determinaram a aplicação da medida de
coacção', razão pela qual determinou 'que o arguido continue a aguardar os
ulteriores termos do processo sujeito à medida de prisão preventiva'. Em 13 de
Janeiro de 2006 o arguido apresentou um requerimento a solicitar a revisão da
medida de prisão preventiva. A juíza apreciou o requerimento e indeferiu-o. Ora,
estas intervenções não indiciam que a juíza se tivesse envolvido na actividade
instrutória, carreando para os autos elementos de prova susceptíveis de serem
utilizados pela acusação, ou envolvendo-se em actos que possam significar
dirigir a investigação; ao invés, tiveram uma função predominantemente
garantística, visando assegurar a tutela dos direitos fundamentais do arguido e
não podem ter-se como geradores da quebra do dever de imparcialidade que impende
sobre o julgador.
Mas o caso em análise apresenta, ainda, um lado curioso e original: é que são
duas as juízas que, integrando o colectivo que procedeu ao julgamento do
recorrente, praticaram actos jurisdicionais durante o inquérito. Ora, se
isoladamente consideradas, nenhuma das juízas se pode considerar impedida de
participar no julgamento, que dizer de um tribunal colectivo em que ambas
participam, e que, portanto, dois dos seus três elementos praticaram os ditos
actos?
A resposta não poderá deixar de ser negativa: os impedimentos não se somam,
porque obviamente atingem um determinado juiz e é isoladamente em relação a cada
juiz, a cada elemento do tribunal colectivo, que deve aferir-se da existência
das circunstâncias impeditivas de participação no julgamento.
Conclui-se, portanto, pela não inconstitucionalidade da norma em apreciação.
3. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide não julgar
inconstitucional a norma do artigo 40º do Código de Processo Penal, na versão
resultante da Lei n.º 3/99 de 13 de Janeiro, enquanto interpretada no sentido de
permitir a intervenção simultânea, no julgamento, de juiz que, findo o primeiro
interrogatório judicial do arguido detido, decretou a sua prisão preventiva e de
juiz que, no decorrer do inquérito, manteve a prisão preventiva e,
posteriormente à acusação, indeferiu o pedido da sua revogação.
Consequentemente, nega-se provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida
quanto à questão de inconstitucionalidade.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 27 de Fevereiro de 2007
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Maria Helena Brito
Rui Manuel Moura Ramos
Artur Maurício