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Processo n.º 1059/06
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Por decisão sumária de fls. 1034 e seguintes, não se tomou
conhecimento do recurso interposto para este Tribunal por A. e outros, pelos
seguintes fundamentos:
“[…]
5. Os recorrentes submetem quatro questões de constitucionalidade à apreciação
do Tribunal Constitucional (supra, 4.).
Duas dessas questões reportam-se ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4
de Maio de 2006 (supra, 1.); as outras duas, ao acórdão de 12 de Outubro de 2006
(supra, 3.).
6. Vejamos, em primeiro lugar, as questões que se reportam ao acórdão de 4 de
Maio de 2006.
6.1. Uma dessas questões é a da desconformidade constitucional de certa
interpretação do artigo 334º do Código Civil: a interpretação segundo a qual
este preceito não incluiria no seu âmbito de previsão «as actuações prévias
concludentes e qualquer manifestação tácita que crie no destinatário uma
legítima situação de confiança, mas somente as actuações expressas».
Percorrendo, porém, o texto do acórdão recorrido, facilmente decorre que esta
interpretação não foi adoptada: de nenhuma passagem desse acórdão resulta que o
tribunal recorrido tenha entendido que só as actuações expressas podem fundar o
abuso de direito, nele se aludindo, aliás, à relevância, para esse efeito, de
uma «convincente conduta, positiva ou negativa», bem como às «palavras ou
actos».
Ora, tendo o presente recurso sido interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, constitui seu pressuposto
processual a aplicação, na decisão recorrida, da norma ou interpretação
normativa cuja conformidade constitucional se pretende que o Tribunal
Constitucional aprecie.
Não estando este pressuposto, no caso, preenchido, não pode, desde logo por esse
motivo, conhecer-se da referida questão de constitucionalidade.
6.2. Outra dessas questões é a da desconformidade constitucional da norma do
artigo 1422º, n.º 2, alínea c), do Código Civil, também em certa interpretação:
a de que «a simples violação deste preceito é suficiente para determinar o
encerramento das instalações de uma empresa com dezenas de trabalhadores».
Independentemente de se saber se se está ou não perante uma verdadeira
interpretação normativa, ou perante o próprio juízo subsuntivo realizado pelo
tribunal recorrido (e sendo certo que o Tribunal Constitucional, como decorre
das várias alíneas do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional,
apenas pode analisar a conformidade constitucional de normas ou interpretações
normativas, sendo-lhe vedado analisar a conformidade constitucional de decisões
judiciais, em si mesmas consideradas), a verdade é que, percorrendo o texto da
decisão recorrida, dele não resulta a adopção da referida interpretação: resulta
que o tribunal recorrido considerou que o «referido normativo é imperativo, no
sentido de que não pode ser afastado por vontade das partes», mas tal não
equivale a ter considerado que a simples violação do artigo 1422º, n.º 2, alínea
c), do Código Civil «é suficiente para determinar o encerramento das instalações
de uma empresa com dezenas de trabalhadores».
Como se deixou já referido, tendo o presente recurso sido interposto ao abrigo
da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, constitui
seu pressuposto processual a aplicação, na decisão recorrida, da norma ou
interpretação normativa cuja conformidade constitucional se pretende que o
Tribunal Constitucional aprecie.
Não estando este pressuposto, no caso, preenchido, não pode, desde logo por esse
motivo, conhecer-se desta segunda questão de constitucionalidade.
7. Vejamos agora as questões que se reportam ao acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça de 12 de Outubro de 2006.
Neste acórdão, indeferiu-se um pedido de reforma de uma decisão (a decisão de 4
de Maio de 2006).
Nos termos do artigo 666º, n.º s 1 e 2, do Código de Processo Civil, proferida a
sentença, extingue-se o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa,
sem prejuízo da possibilidade de rectificação de erros materiais, suprimento de
nulidades, esclarecimento de dúvidas e reforma da decisão.
Isto significa que, no acórdão de 12 de Outubro de 2006, não era possível ao
tribunal recorrido decidir a matéria da causa, ou seja, aplicar ao caso sub
judice as normas dos artigos 334º e 829º-A, do Código Civil, que agora vêm
questionadas pelos recorrentes, numa certa interpretação: competia-lhe apenas
apreciar o pedido de reforma.
Deste modo, a terem sido aplicadas as interpretações normativas que os
recorrentes questionam, tal aplicação só poderia ter sido feita no acórdão de 4
de Maio de 2006, aquele que julgou a matéria da causa.
Não tendo o acórdão recorrido – que é (agora) o de 12 de Outubro de 2006 –
aplicado as normas dos artigos 334º e 829º-A do CC, não pode conhecer-se do
objecto do presente recurso também quanto a estas interpretações, atendendo a
que, como já se disse, a aplicação, na decisão recorrida, da norma ou
interpretação normativa cuja conformidade constitucional se pretende que o
Tribunal Constitucional aprecie constitui um dos pressupostos processuais do
recurso contemplado na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal
Constitucional (a alínea ao abrigo da qual o presente recurso foi interposto).
[…].”.
2. Notificados desta decisão sumária, A. e outros dela vieram
reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no artigo 78º-A, n.º 3, da
Lei do Tribunal Constitucional, neste termos (cfr. fls. 1054 e seguintes, com
original a fls.1066 e seguintes):
“[…]
1. A Decisão Sumária sub judice não conheceu das diversas questões objecto do
recurso interposto para este Venerando Tribunal por considerar que, tendo o
recurso sido interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70º, da Lei
do Tribunal Constitucional, constitui seu pressuposto processual a aplicação,
nas decisões recorridas, das normas ou interpretações normativas cuja
conformidade constitucional se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie, o
que no seu entendimento não aconteceu.
2. Os recorrentes aceitam essa decisão relativamente a 3 das 4 normas que
submeteram à apreciação deste Venerando Tribunal.
No entanto, relativamente à questão da desconformidade constitucional da
interpretação do artigo 1422º, n.º 2, c), do Código Civil nos termos em que foi
aplicada no Acórdão de 04.05.2006, a consideração em que assentou a Decisão
Sumária não pode proceder, motivo pelo qual os Recorrentes consideram que essa
Decisão não fez uma adequada aplicação das normas que regulam o acesso a este
Venerando Tribunal.
3. Relativamente à questão referida no ponto anterior a Decisão Sumária
reclamada referiu o seguinte: «(...) a verdade é que, percorrendo o texto da
decisão recorrida, dele não resulta a adopção da referida interpretação: resulta
que o tribunal recorrido considerou que o ‘referido normativo é imperativo, no
sentido de que não poder ser afastado por vontade das partes’, mas tal não
equivale a ter considerado que a simples violação do artigo 1422º, n.º 2, alínea
c), do Código Civil ‘é suficiente para determinar o encerramento das instalações
de uma empresa com dezenas de trabalhadores’» (cfr. ponto 6.2 da pág. 14 da
Decisão sub judice).
4. No entanto, a interpretação do artigo 1422º, n.º 2, c), do CC no sentido
invocado pelos Recorrentes foi efectivamente aplicada no Acórdão recorrido do
Supremo Tribunal de Justiça, integrando a decisão aí proferida.
Na verdade, no Acórdão de 04.05.2006 o Supremo Tribunal de Justiça teceu as
seguintes considerações:
i. «B. fez obras nas fracções de milhares de contos, emprega actualmente 60
trabalhadores, adquiriu máquinas e utensílios no montante de milhares de contos
e gastou e assumiu encargos na formação de pessoal e na aquisição de veículos a
motor, também no valor de largas dezenas de milhares de contos» (cfr. fl. 838
dos autos, ou seja, página 7 do Acórdão de 04.05.2006 – sublinhado nosso)
ii. «Sabe-se que os demandados fizeram avultado dispêndio na realização das
mencionadas obras e que a cessação da actividade de ensino da condução automóvel
no local lhes acarretará considerável gasto, mas isso, que se enquadra no risco
que assumiram com a sua decisão de investimento, não se deve sobrepor à
reposição da legalidade no quadro das relações de vizinhança no âmbito da
propriedade horizontal» (cfr. fI. 843 dos autos, ou seja, página 12 do Acórdão
de 04.05.2006 – o sublinhado é nosso)
iii. «Ademais, tendo em conta o regime específico da propriedade horizontal os
interesses que ela visa realizar, inexiste fundamento legal para que se possa
equacionar, na espécie, o desequilíbrio de posições jurídicas» (cfr. fl. 844 dos
autos, ou seja, página 13 do Acórdão de 04.05.2006)
iv. «Alegaram os demandados que a Relação, por não considerar o abuso de direito
e ao dar prevalência injusta, injustificada e desproporcional à interpretação
restrita da alínea c) do n.º 2 do artigo 1422º do Código Civil, como se fosse
norma imperativa e absoluta, infringiu os princípios da igualdade e da
proporcionalidade, restringiu o seu direito de propriedade, tratou desigualmente
as partes e violou os artigos 13º e 62º, n.º 1, da Constituição». (cfr. fl. 845
dos autos, ou seja, página 14 do Acórdão de 04.05.2006)
5. Que conclusão se pode retirar destas considerações do Supremo Tribunal de
Justiça? Salvo melhor opinião, pelo menos a seguinte: esse Supremo Tribunal de
Justiça interpretou o artigo 1422º, n.º 2, c), do CC no sentido de que se for
dado a uma fracção um uso diverso do fim a que é destinada, esse facto, por si
só, sem outras considerações, é suficiente para determinar o encerramento dessa
utilização, mesmo que aí funcionem as instalações de uma empresa com dezenas de
trabalhadores. Se não tivesse feito esta interpretação e aplicação daquele
preceito legal, o Acórdão recorrido teria obrigatoriamente de ter decidido em
sentido contrário.
Torna-se desnecessário sublinhar que os termos da aplicação de uma norma, sem
confundir a norma aplicada com a decisão proferida, não pode ser
descontextualizada da situação em que está a ser interpretada e aplicada. Foi
tendo em consideração os factos que resultam dos autos que o Acórdão recorrido
interpretou e aplicou aquela norma.
Por último, permita-se-nos uma nota final:
a. o Código do Processo Civil constitui, directa ou indirectamente, o padrão
processual da ordem jurídica portuguesa, na tramitação do processo e na análise
dos pressupostos processuais;
b. por ter constatado uma interpretação e aplicação das normas processuais menos
adequadas aos valores e interesses que se destacam nos nossos tempos, o
legislador sentiu necessidade de vincular os tribunais a uma determinada postura
perante as normas processuais, maxime relativamente aos pressupostos
processuais.
Nesse sentido, como princípios e objectivos estruturantes do processo,
prescreve-se no Preâmbulo do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, entre
outras garantias dos cidadãos, (i) a garantia da prevalência do fundo sobre a
forma, através da previsão de um poder mais interventor; (ii) obviar-se a que
regras rígidas, de natureza estritamente procedimental, possam impedir a
efectivação em juízo dos direitos e a plena discussão acerca da matéria
relevante para propiciar a justa composição do litígio. (...) Dentro da mesma
ideia base de evitar que regras de índole estritamente procedimental possam
obstar ou criar dificuldades insuperáveis à plena realização dos fins do
processo – flexibilizando ou eliminando rígidos espartilhos, de natureza formal
ou adjectiva, susceptíveis de dificultarem, em termos excessivos e
desproporcionados, a efectivação em juízo dos direitos; (iii) Visa, deste modo,
a presente revisão do Código do Processo Civil torná-lo moderno, verdadeiramente
instrumental no que toca à perseguição da verdade material; (iv) Ter-se-á de
perspectivar o processo civil como um modelo de simplicidade e de concisão, apto
a funcionar como um instrumento, como um meio de ser alcançada a verdade
material pela aplicação do direito substantivo, e não como um estereótipo
autista que a si próprio se contempla e impede que seja perseguida a justiça,
afinal o que os cidadãos apenas pretendem quando vão a juízo»; (v) «O incremento
da tutela do direito de defesa implicará, por outro lado, a atenuação da
excessiva rigidez de certos efeitos cominatórios ou preclusivos».
Assim, os princípios e direitos fundamentais aqui envolvidos determinam que, na
dúvida, perante dois cenários possíveis, este Venerando Tribunal deve considerar
a solução que melhor serv[e] a tutela constitucional, ou seja, o direito
fundamental de acesso ao Direito e ao Tribunais e a uma tutela jurisdicional
efectiva, tutelado no art. 20º da Constituição – neste caso o conhecimento do
objecto deste recurso.
Nestes termos, e nos mais de Direito que Vossas Excelências doutamente suprirão,
parece-nos que a Decisão Sumária reclamada não fez uma adequada aplicação das
normas que regulam o acesso a este Venerando Tribunal, devendo ser alterada no
sentido de os Recorrentes poderem apresentar as suas Alegações e ser conhecido o
objecto deste recurso quanto à norma que ficou referida.
[…].”.
3. Os recorridos C. e outros responderam (fls. 1072 e seguintes):
“[…]
1 – Os recorrentes restringem o objecto desta reclamação à desconformidade
constitucional da interpretação do artº […] 1422º, n.º 2, alínea c) do Código
Civil nos termos em que foi aplicada no acórdão do S.T.J. de 04.05.2006 e que,
no seu entender, se continua a verificar. Ora,
2 – Os recorridos limitam-se a reproduzir passagens descontextualizadas
procurando dessa forma construir um cenário que justificasse a interposição
desconforme do citado normativo com o texto constitucional. Todavia,
3 – A interpretação feita no [acórdão] de 04-05-2006 ponderou todos os vários
interesses que coexistem nesta demanda não podendo, de forma alguma, atender-se
apenas à situação da Sociedade Ensino de Condução Moderna, Lda, como pretendem
os recorrentes.
4 – E nem sequer os recorrentes questionam que a utilização que vinham fazendo
da fracção que está em causa viola a norma constante da alínea c), n.º 2 do artº
1422º do CC, pelo que nunca a decisão poderia ser num sentido diferente daquela
que se veio a verificar.
5 – Bem andou o Tribunal ao ajuizar na Decisão Sumária que a norma questionada
foi qualificada de imperativa apenas no sentido que não podia ser afastada pelas
partes mas que tal interpretação não tem implícita que a letra do preceito em
causa, por si só, é suficiente para levar ao «encerramento das instituições de
uma empresa com dezenas de trabalhadores». Ao contrário, o acórdão em causa
ajuizou com profundidade os vários aspectos que interferiam com a aplicação da
norma que agora se questiona e retirou as adequadas e necessárias ilações.
6 – Face ao exposto são totalmente despropositadas as considerações feitas pelos
recorrentes em jeito de nota final pois que é por demais evidente que não se
pode litigar só por litigar, já que é por demais evidente que esta reclamação é
apenas mais uma peça dilatória dos procedimentos há muito adoptados com o único
objectivo de retardar ao máximo o trânsito em julgado das decisões proferidas.
7 – Uma nota final por parte dos reclamados: A cópia de reclamação enviada ao
reclamado não se encontra assinada pelo que estando o original, em iguais
situações, de nada vale.
8 – Seja como for a presente reclamação deve ser indeferida.
[…].”.
Cumpre apreciar e decidir.
II
4. Através do presente recurso, os recorrentes, ora reclamantes,
pretendiam submeter à apreciação do Tribunal Constitucional quatro questões de
constitucionalidade, duas delas reportadas ao acórdão proferido nos autos pelo
Supremo Tribunal de Justiça em 4 de Maio de 2006, e as outras duas ao acórdão
proferido pelo mesmo Supremo Tribunal em 12 de Outubro de 2006.
Na decisão sumária reclamada, o Tribunal Constitucional decidiu
não tomar conhecimento do recurso, por ter verificado, relativamente a cada uma
dessas quatro questões de constitucionalidade, que não estavam preenchidos os
pressupostos processuais do recurso interposto (supra, 1.).
5. Na reclamação agora deduzida os reclamantes começam por declarar
que se conformam com o decidido relativamente a três das quatro questões que
haviam apresentado perante o Tribunal Constitucional.
Assim sendo, transitou em julgado, em parte, a decisão sumária
de fls. 1034 e seguintes (concretamente, os pontos 6.1. e 7. dessa decisão).
6. Os reclamantes apenas impugnam o ponto 6.2. da decisão sumária, ou
seja, o não conhecimento da questão de constitucionalidade que reportaram ao
artigo 1422º, n.º 2, alínea c), do Código Civil.
A este aspecto se limita portanto o objecto da presente
reclamação.
6.1. Tendo em conta o teor do requerimento de interposição do presente
recurso, pretendiam os recorrentes, ora reclamantes, que o Tribunal
Constitucional apreciasse a questão da desconformidade constitucional – por
violação “dos princípios constitucionais da igualdade, proporcionalidade e do
direito fundamental da propriedade privada (art. 13º, 2° e 62°, n.º 1, da
Constituição)” – da norma do artigo 1422º, n.º 2, alínea c), do Código Civil,
numa certa interpretação, que consideravam ter sido perfilhada pelo Supremo
Tribunal de Justiça no acórdão de 4 de Maio de 2006: a interpretação segundo a
qual “a simples violação deste preceito é suficiente para determinar o
encerramento das instalações de uma empresa com dezenas de trabalhadores”.
6.2. Na decisão sumária reclamada, o Tribunal Constitucional – deixando
de lado a questão de saber se os recorrentes estavam afinal a pôr em causa o
próprio juízo subsuntivo realizado pelo tribunal recorrido (o que desde logo
conduziria ao não conhecimento do recurso, atenta a natureza normativa do
recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade interposto) – verificou
que o acórdão recorrido não tinha adoptado a interpretação impugnada pelos
recorrentes: o Supremo Tribunal de Justiça entendeu que “o referido normativo [o
artigo 1422º, n.º 2, alínea c), do Código Civil] é imperativo, no sentido de que
não pode ser afastado por vontade das partes”, enquanto os recorrentes
sustentavam a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual “a simples
violação deste preceito [do artigo 1422º, n.º 2, alínea c), do Código Civil] é
suficiente para determinar o encerramento das instalações de uma empresa com
dezenas de trabalhadores”.
Não tendo o tribunal a quo aplicado a interpretação normativa
cuja conformidade constitucional se pretendia que o Tribunal Constitucional
apreciasse, concluiu-se na decisão sumária reclamada não poder este Tribunal
conhecer da questão de constitucionalidade identificada pelos recorrentes.
6.3. Vêm os reclamantes, na reclamação em apreço, transcrever certas
passagens do acórdão recorrido – algumas das quais aliás constam da decisão
sumária reclamada (as que são extraídas da fundamentação de direito do acórdão)
–, pretendendo demonstrar que o Supremo perfilhou, quanto ao artigo 1422º, n.º
2, alínea c), do Código Civil, a interpretação questionada no recurso.
Sustentam que das considerações feitas pelo Supremo Tribunal de
Justiça se pode retirar, pelo menos, a seguinte conclusão: o Supremo Tribunal de
Justiça “interpretou o artigo 1422º, n.º 2, c), do CC no sentido de que se for
dado a uma fracção um uso diverso do fim a que é destinada, esse facto, por si
só, sem outras considerações, é suficiente para determinar o encerramento dessa
utilização, mesmo que aí funcionem as instalações de uma empresa com dezenas de
trabalhadores. Se não tivesse feito esta interpretação e aplicação daquele
preceito legal, o Acórdão recorrido teria obrigatoriamente de ter decidido em
sentido contrário”.
7. Reafirma-se que o Supremo Tribunal de Justiça entendeu que “o
referido normativo [o artigo 1422º, n.º 2, alínea c), do Código Civil] é
imperativo, no sentido de que não pode ser afastado por vontade das partes, ao
que não obsta, como é natural, a possibilidade de alteração do fim de cada uma
das fracções prediais por via de alteração do título constitutivo da propriedade
horizontal, nos termos do artigo 1419°, n.º 1, do Código Civil” [frase em
itálico aditada agora].
Daqui resulta claramente que o Supremo não disse que “a simples
violação deste preceito [do artigo 1422º, n.º 2, alínea c), do Código Civil] é
suficiente para determinar o encerramento das instalações de uma empresa com
dezenas de trabalhadores” – e nada disse de que possa decorrer tal ilação.
Não tendo sido atribuído ao artigo 1422º, n.º 2, alínea c), do
Código Civil o sentido identificado pelos reclamantes e por eles reputado
contrário à Constituição, não pode ter-se por verificado um pressuposto
processual típico do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei
do Tribunal Constitucional: a aplicação, na decisão recorrida, da norma ou
interpretação normativa cuja conformidade constitucional se pretende que o
Tribunal Constitucional aprecie.
8. Acresce, de todo o modo – e tendo também em conta a “nota final”
incluída na reclamação –, que o objecto definido pelos ora reclamantes como
objecto do recurso não integra verdadeiramente uma norma ou interpretação
normativa, susceptível de ser apreciada no âmbito de um recurso de fiscalização
concreta de constitucionalidade. Com efeito, tal objecto coincide, antes, com a
própria decisão recorrida, da qual resultou, em resumo, e entre o mais, a
condenação dos ora reclamantes a absterem-se de utilizar as fracções prediais
identificadas nos autos para fim diferente da habitação e a cessarem de imediato
toda a actividade diferente da habitação.
Ora, o Tribunal Constitucional não tem competência para
apreciar a conformidade constitucional de decisões judiciais, em si mesmas
consideradas – mas apenas de normas ou interpretações normativas –, sabido como
é que, no ordenamento português, não está consagrado o recurso de amparo (cfr.
as várias alíneas do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional).
Não existe, portanto, qualquer razão para alterar a decisão
sumária reclamada.
III
9. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, indefere-se a
presente reclamação, mantendo-se a decisão sumária de fls. 1034 e seguintes, que
não tomou conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20
(vinte) unidades de conta, por cada um.
Lisboa, 27 de Fevereiro de 2007
Maria Helena Brito
Carlos Pamplona de Oliveira
Rui Manuel Moura Ramos