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Processo n.º 537/99
Plenário
Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
I
O pedido e os seus fundamentos
1. O Provedor de Justiça veio, ao abrigo do disposto no artigo 281º,
n.º 2, alínea d), da Constituição da República Portuguesa, requerer a apreciação
e declaração da inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas
contidas no artigo 5º do Decreto-Lei n.º 547/74, de 22 de Outubro.
As normas em causa, na sua versão originária, tinham o seguinte
teor:
Artigo 5º
1. O rendeiro tem o direito de remir o contrato, tornando-se dono da
terra pelo pagamento do preço que for fixado pela comissão arbitral.
2. Este preço será determinado pelo valor potencial da terra,
excluídas as benfeitorias, tendo em conta o estado em que se encontrava a terra
no início do contrato.
3. Depositado na Caixa Geral de Depósitos o montante do preço
referido no número anterior, e paga a respectiva sisa, a comissão arbitral
efectuará a transferência, a favor do rendeiro, dos bens remidos.
4. As certidões ou fotocópias notariais da deliberação da comissão
referida no número anterior são havidas, para todos os efeitos, como escrituras
públicas.
2. A fundamentação do pedido é, em síntese, a seguinte:
– O n.º 1 do artigo em análise cria um direito real de
aquisição a favor do rendeiro, nos casos de arrendamento rural em que as terras
tenham sido dadas de arrendamento no estado de incultas e se tenham tornado
produtivas por acção do rendeiro.
– Este direito de remição viola a garantia constitucional de
propriedade privada prevista no artigo 62º da Constituição, dado que este
preceito estabelece que apenas podem existir limitações ao direito de
propriedade privada por requisição e expropriação por utilidade pública com base
na lei e mediante o pagamento de justa indemnização.
– No caso, verifica-se a ablação de um direito de um particular
a favor de outro particular, não havendo qualquer utilidade pública que o
justifique, dado não existirem quaisquer fins públicos mas apenas fins privados
que se destinam a proporcionar ao rendeiro e à sua família o direito às
benfeitorias realizadas e a evitar o seu despejo das terras.
– Estas finalidades são já atingidas por outras medidas
previstas no mesmo diploma: o regime da propriedade das benfeitorias (artigo 2º)
e a limitação dos casos de resolução do contrato de arrendamento, por parte do
senhorio (artigo 4º). Assim, a privação do direito de propriedade do senhorio,
contra a sua vontade, revela-se desproporcionada face aos fins que se pretende
obter.
– O direito de propriedade privada tem natureza análoga aos
“direitos, liberdades e garantias”, pelo que as restrições se devem limitar ao
necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente
protegidos, o que não se verifica no caso.
– O direito de remição do rendeiro viola quer o princípio da
exigibilidade, quer o princípio da proporcionalidade em sentido estrito, dado
que a ablação do direito de propriedade do senhorio é excessiva em relação aos
fins prosseguidos e estes podem ser atingidos por outros meios menos onerosos.
3. Notificado do pedido, nos termos e para os efeitos do disposto nos
artigos 54º, 55º e 56º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), veio o
Primeiro-Ministro pronunciar-se no sentido da não inconstitucionalidade da
norma, alegando, fundamentalmente, o seguinte:
– O direito de propriedade privada é um direito fundamental de
natureza económica, que não pode ser concebido de forma unilateral, como mero
direito de defesa oponível aos poderes públicos. A sua tutela faz-se nos termos
da Constituição e da lei, não implicando a interdição da intervenção reguladora
dos poderes públicos.
– Essa intervenção dos poderes públicos deve ter em conta a
função social que a Constituição atribui a esse direito, função neste caso
inserida na complexa estrutura das formas de propriedade dos meios de produção
constitucionalmente estabelecida.
– O normativo em causa insere-se numa transição de um estado
autoritário e corporativo para um estado de direito democrático, na qual eram
desadequadas as formas tradicionais de exploração da terra e o disposto no
Código Civil em matéria de remição nos casos de renda perpétua e renda
vitalícia, resultando a intervenção legislativa da necessidade de proteger o
mais débil em lugar do mais forte.
– O pedido funda-se numa concepção pré-constitucional do
direito de propriedade, ignorando a função social deste direito. Sendo elemento
essencial do direito de propriedade o direito a não ser privado dela, esse
direito a não ser privado da propriedade não é um direito absoluto, mas um
direito a não ser arbitrariamente privado de propriedade e a ser indemnizado ou
compensado no caso de desapropriação.
– No caso, existe um nítido e claro fundamento social, de resto
constitucionalmente previsto e explanado, que suporta a medida legislativa. Esse
suporte constitucional resulta, nomeadamente, dos preceitos contidos na alínea
d) do artigo 9º, nas alíneas a), b) e g) do artigo 81º, no artigo 88º, na alínea
b) do n.º 1 do artigo 93º, nos artigos 94º e 95º e no n.º 1 do artigo 96º. E a
intervenção legislativa em causa poderia ainda fundamentar-se no princípio geral
contido no artigo 2º da Constituição.
– Da conjugação destas normas resulta o suporte constitucional
da existência de um interesse público suficientemente preciso e relevante que
fundamenta a restrição do direito de propriedade. A medida não é, portanto nem
arbitrária nem excessiva, mas pelo contrário necessária, adequada, legítima,
admissível e razoável face ao fim de interesse público relevante que o Governo
constitucionalmente é chamado a concretizar.
4. O requerente solicita, de forma genérica, a declaração de
inconstitucionalidade “do artigo 5º do Decreto-Lei n.º 547/74, de 22 de
Outubro”.
Apesar de o artigo 5º conter quatro números, a questão de
constitucionalidade suscitada no pedido coloca-se exclusivamente quanto ao
disposto no primeiro deles. O que efectivamente se questiona é a conformidade à
Constituição do direito do rendeiro a “remir o contrato, tornando-se dono da
terra”, mediante o pagamento de um determinado preço ao proprietário/senhorio.
Ora, é o n.º 1 do artigo 5º que contém tal norma.
Assim sendo, a análise da constitucionalidade do artigo 5º
centrar-se-á, em exclusivo, na norma contida no seu n.º 1. As normas dos n.ºs 2
a 4 serão tratadas como instrumentais relativamente ao n.º 1, no sentido de
serem abrangidas por uma eventual declaração de inconstitucionalidade.
O requerente pede a declaração de inconstitucionalidade, com
força obrigatória geral, da norma identificada, por entender, com fundamento nos
artigos 18º, n.º 2, e 62º da Constituição, que existe uma restrição
“desproporcionada, excessiva e injusta” do direito de propriedade privada.
5. Discutido em Plenário o memorando apresentado pelo Presidente do
Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 63º, n.º 1, da LTC, e fixada a
orientação do Tribunal, cumpre agora decidir de harmonia com o que então se
estabeleceu.
II
Questão prévia.
A vigência da norma do n.º 1 do artigo 5º do Decreto-Lei n.º 547/74
6. Antes de conhecer da questão da conformidade constitucional da
norma contida no n.º 1 do artigo 5º do Decreto-Lei n.º 547/74, importa, em
primeiro lugar, averiguar se esta norma ainda vigora, uma vez que, desde a sua
aprovação, ocorreram diversas alterações ao regime jurídico do arrendamento
rural.
A questão da vigência é analisada tanto no pedido como na
resposta do órgão autor da norma, concluindo-se, em ambos os articulados, por
uma resposta positiva. É também essa a posição que o Tribunal adopta, pela
seguinte ordem de razões:
Em primeiro lugar, porque a legislação posterior em matéria de
arrendamento rural nunca revogou expressamente o artigo 5º do Decreto-Lei n.º
547/74.
Com efeito, o artigo 48º da Lei 76/77, de 29 de Setembro,
revogou apenas o artigo 3º daquele diploma, além de estabelecer que a
competência atribuída às comissões arbitrais nos artigos 5º, 7º e 8º transitava
para os tribunais de comarca. O restante conteúdo do Decreto-Lei n.º 547/74
manteve-se em vigor, sendo dado ao Governo um prazo de 6 meses para proceder à
sua revisão (n.º 1 do artigo 48º); mas tal revisão não chegou a ser efectuada. O
esgotamento desse prazo de seis meses não determina a cessação da vigência do
diploma, dado não se tratar de uma lei temporária nem resultar da redacção do
referido n.º 1 do artigo 48º a consequência de caducidade do Decreto-Lei n.º
547/74.
E não consta igualmente do Decreto-Lei n.º 385/88, de 25 de
Outubro, que aprovou o actual Regime do Arrendamento Rural (doravante, RAR),
qualquer disposição expressamente revogatória do Decreto-Lei n.º 547/74.
Em segundo lugar, porque se entende não ter existido revogação
tácita ou indirecta do Decreto-Lei n.º 547/74.
Na verdade, o diploma sub iudice não contém o regime geral do
arrendamento rural, sendo antes apenas aplicável, nos termos do seu artigo 1º, a
um grupo especial de casos de arrendamento, em que “as terras foram dadas de
arrendamento no estado de incultas ou de mato e se tornaram produtivas mediante
o trabalho e investimento do rendeiro”, ou seja, a casos em que o rendeiro
tornou o solo cultivável e fez plantações (isto é, efectuou trabalhos de
melhoramento e modificação do solo) que influenciaram, decisiva e positivamente,
a produtividade da terra.
Ora, a Lei n.º 76/77 ressalvou expressamente a vigência desse
regime especial e o RAR não contém normas especificamente dirigidas aos casos
delimitados pelo artigo 1º do Decreto-Lei n.º 547/74.
Por aplicação do disposto no n.º 3 do artigo 7º do Código
Civil, deve, pois, concluir-se que as regras especiais contidas no Decreto-Lei
n.º 547/74 não foram revogadas pelo regime geral instituído pelo RAR.
É este, aliás, o entendimento perfilhado no Acórdão de 14 de
Janeiro de 1993 do Tribunal da Relação de Évora (publicado em Colectânea de
Jurisprudência, 1993, Ano XVIII-Tomo 1, p. 263) que se pronunciou no seguinte
sentido:
“Por ser lei especial, o Decreto-Lei n.º 547/74, de 22 de Outubro, não foi
revogado pelo Decreto-Lei n.º 385/88, de 25 de Outubro.
Assim os contratos de arrendamento de terrenos incultos para serem desbravados e
cultivados, celebrados ao abrigo do disposto naquele Decreto-Lei n.º 547/74,
continuam a reger-se pelo regime jurídico contido neste diploma legal.”.
Diga-se, por último, que este entendimento é ainda pressuposto
na Lei n.º 108/97, de 16 de Setembro, que, no seu artigo 3º, dispõe que “para os
efeitos do disposto no Decreto-Lei n.º 547/74 […], presume-se que as terras
foram dadas de arrendamento no estado de incultas ou em mato se não houver
contrato escrito ou ele for omisso quanto ao estado de terras e o arrendamento
subsistir há mais de 50 anos”.
Deve, deste modo, considerar-se que o regime especial criado
pelo Decreto-Lei n.º 547/74 não foi revogado por legislação posterior
(designadamente, o RAR) e que esse diploma (salvo o disposto no seu artigo 3º)
continua a ser o regime legal aplicável às situações de arrendamento rural em
que “as terras foram dadas de arrendamento no estado de incultas ou de mato e se
tornaram produtivas mediante o trabalho e investimento do rendeiro”.
7. Não se deixará, também, de salientar que a norma questionada
consta de um diploma aprovado pelo Governo provisório, na vigência da Lei
Constitucional n.º 3/74, de 14 de Maio, ou seja, anteriormente à Constituição de
1976, e que, nos termos do artigo 290º, n.º 2, da Constituição, o direito
ordinário anterior se mantém em vigor, excepto quando exista contrariedade
material com a Constituição [cfr., neste sentido, entre outros, o Acórdão n.º
231/94, Acórdãos do Tribunal Constitucional (doravante, ATC), 27º vol., p. 205
ss].
A questão da vigência da norma confunde-se, assim, neste plano,
com a questão da sua compatibilidade material com a Constituição, que é uma
questão de constitucionalidade, cuja resolução compete ao Tribunal
Constitucional (cfr. os Acórdãos n.º 2/84, n.º 20/84, n.º 29/84, n.º 313/85, n.º
202/86, n.º 429/89, e, mais recentemente, o Acórdão n.º 187/01, todos em ATC,
respectivamente, 2º vol., p. 198 ss, 385 ss e 431 ss; 6º vol., p. 563 ss; 7º
vol. - II, p. 947 ss; 13º vol. - II, p. 1237 ss; e 50º vol., p. 29 ss).
Ora, o problema jurídico-constitucional suscitado no presente
processo diz respeito à alegada incompatibilidade entre a norma questionada e o
direito de propriedade, constitucionalmente tutelado no artigo 62º da Lei
Fundamental e que, na sua dimensão essencial, tem natureza análoga aos direitos,
liberdades e garantias, não podendo deixar de ser tida como
inconstitucionalidade material essa eventual violação do direito de propriedade.
Nesta perspectiva, a questão da “vigência” da norma acaba por
ser a questão da sua constitucionalidade, que o Tribunal Constitucional tem
agora que conhecer.
III
Fundamentação
A) Âmbito de aplicação e finalidades do Decreto-Lei n.º 547/74
8. As situações reguladas pelo n.º 1 do artigo 5º do Decreto-Lei n.º
547/74 são, como já se disse, casos de arrendamento rural em que, nos termos do
artigo 1º do mesmo diploma, “as terras foram dadas de arrendamento no estado de
incultas ou de mato e se tornaram produtivas mediante o trabalho e investimento
do rendeiro”.
A aplicabilidade da norma em análise supõe a existência de
benfeitorias efectuadas pelo rendeiro e que são propriedade deste, nos termos do
artigo 2º do mesmo Decreto-Lei.
O Decreto-Lei n.º 547/74 não só pretendeu garantir o direito do
rendeiro às benfeitorias realizadas como também consolidar o vínculo entre o
rendeiro e a terra por este cultivada. As razões para tal solução legal
encontram-se patentes no próprio diploma e estão directamente relacionadas com
as especificidades de um certo tipo de exploração agrícola, delimitado – ao que
tudo indica – no tempo e no espaço.
Afigura-se particularmente relevante para a apreciação da
questão suscitada determinar o âmbito de aplicação da norma em causa, tendo
especialmente em conta as circunstâncias históricas e sociais que a antecederam
e as que ocorriam à data da sua aprovação.
O Decreto-Lei n.º 547/74 teve fundamentalmente como finalidade
a resolução de um problema antigo de precariedade da posição contratual do
rendeiro, que se registava com maior gravidade em algumas explorações agrícolas
de certas zonas do país, e que motivara, duas décadas antes, a aprovação do
Decreto-Lei n.º 39917, de 23 de Novembro de 1954.
Com efeito, ele não visa regular todos e quaisquer casos de
arrendamento de terras incultas mas apenas os já existentes à data da sua
aprovação, que o Decreto-Lei n.º 39917 disciplinara, de forma ineficaz – é o que
decorre claramente do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 547/74, de onde se extrai o
seguinte trecho:
“Em certas zonas do país, particularmente no Ribatejo e na península de Setúbal,
existem situações em que a terra inculta foi totalmente aproveitada por famílias
de agricultores que, com base em contratos de arrendamento, a desbravaram,
cultivaram e valorizaram, nela se fixando com carácter de permanência. […].
A disciplina jurídica de tais situações era a do arrendamento rural que não
contemplava a situação específica de as terras se encontrarem incultas e daí
terem-se verificado, desde há dezenas de anos, graves problemas de justiça
social, quando o senhorio requeria o despejo ou exigia aumentos de renda […].
Em 23 de Novembro de 1954 foi publicado o Decreto-Lei n.º 39917, em que, a
propósito dos casos da Quinta da Torre, do concelho de Palmela, e Fernão Ferro,
do concelho do Seixal, se estatuiu o princípio de que as benfeitorias feitas nas
referidas condições eram propriedade de quem as realizou ou dos seus sucessores
na respectiva posse ou fruição.
[…]
Não obstante, a situação continuou até hoje e importa ter em conta que a
apropriação, pelo dono da terra, das benfeitorias feitas pelos rendeiros e bem
assim o despejo destes das terras que eles ou os seus antepassados cultivaram e
onde muitas vezes têm a sua habitação constituem uma forma injusta de exploração
da terra e uma violação dos princípios elementares de justiça social.
Esta situação […] tem de cessar imediatamente, o que se leva a efeito através do
presente diploma […].” [itálico aditado].
No mesmo sentido aponta o artigo 1º do citado Decreto-Lei, que
delimita o âmbito de aplicação do diploma por referência aos “casos de
arrendamento rural em que as terras foram dadas de arrendamento no estado de
incultas ou de mato e se tornaram produtivas mediante o trabalho e o
investimento do rendeiro”.
Esta conclusão é ainda reforçada pelo facto de o diploma em
análise pretender resolver o problema que esteve na origem do Decreto-Lei n.º
39917, de 1954, e este se aplicar unicamente a situações de arrendamento já
existentes, ou seja, aos rendeiros que, na data de entrada em vigor do diploma,
cultivavam as propriedades por ele visadas, situadas nos concelhos de Palmela e
Seixal (esta ideia foi confirmada pelo Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral
da República, no parecer ao Processo n.º 185/83, publicado no DR, II Série, de
25 de Maio de 1984).
Por outro lado, decorre expressamente do preâmbulo do
Decreto-Lei n.º 547/74 que as situações de arrendamento rural abrangidas se
circunscrevem espacialmente a “certas zonas do país, particularmente no Ribatejo
e na península de Setúbal”, em que se procedeu à “divisão de herdades em
courelas” (pequenas porções de terra, normalmente de formato longo e estreito) e
estas “foram entregues à exploração directa de pequenos agricultores”.
Trata-se de uma situação de exploração da terra com
características especiais, qualificada como “fenómeno de colonização espontânea”
pelo preâmbulo do Decreto-Lei n.º 39917, que ocorreu entre o final do século XIX
e o início do século XX na zona do distrito de Setúbal (cfr. o enquadramento
histórico constante do parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da
República acima citado). Segundo o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 39917, foi o
esforço destes agricultores que tornou cultiváveis os “solos arenosos” e “pouco
produtivos” da região da “margem esquerda do Tejo”.
Ainda segundo o mesmo preâmbulo, estas explorações agrícolas
“apresentam um valor económico, traduzido na mobilização de recursos, até então
inactivos, e um interesse social, representado pela estabilidade de vida de
apreciável número de famílias rurais”. Daí a preocupação do legislador em evitar
“o desaparecimento desses núcleos de povoamento” e dar “às famílias fixadas a
estabilidade indispensável à continuação do processo iniciado de valorização da
terra”.
Essa “colonização” (deve, a propósito, salientar-se que o
preâmbulo da Portaria n.º 489/77, de 1 de Agosto se refere ainda aos rendeiros
como “colonos-rendeiros”) revestiu diversas formas, tais como o aforamento, a
venda e o arrendamento, mas foram as situações de arrendamento que suscitaram o
problema da instabilidade da exploração e que o Decreto-Lei n.º 39917 e o
Decreto-Lei n.º 547/74 procuraram resolver. Como esclarece o preâmbulo do
Decreto-Lei n.º 39917:
“Em relação à maior parte da área colonizada, em que a terra foi adquirida por
compra ou aforamento, o problema da estabilidade da exploração está resolvido.
Outro tanto, porém, não sucede com os casos, aliás ainda frequentes [em 1954],
em que a posse foi titulada por arrendamento.
[…]
À data do arrendamento os terrenos encontravam-se incultos e cobertos de mato
alto, circunstância que, aliada à natural pobreza dos solos e à ausência de água
para rega, conduzia a valores da terra bastante diminutos.
[…]
Quando agora o senhorio requer o despejo ou exige aumentos de renda
correspondentes ao rendimento das benfeitorias, que, afinal, foram fruto do
trabalho e de investimentos exclusivamente da conta dos arrendatários,
encontram-se estes absolutamente desprotegidos em face da vigente legislação
sobre arrendamento, inadequada para regular fenómenos de colonização.
[…].”.
A limitação espacial do âmbito do diploma é compreensível não
só numa perspectiva social mas também económica, atendendo a que o objectivo era
contrariar o subaproveitamento agrícola das terras e este problema se punha com
especial acutilância na zona do distrito de Setúbal. Como assinala Maria João
Costa Macedo (Geografia da reforma agrária, Europa-América, 1985, p. 20 e 21), o
problema da “reduzida percentagem de solos susceptíveis de utilização agrícola”
era tão grave no distrito de Setúbal que, aí, a cultura agrícola parecia “estar
quase condenada”. O estudo desta autora confirma ainda a especial situação das
zonas geográficas identificadas pelo preâmbulo do Decreto-Lei n.º 547/74, em
função da reduzida área média das explorações agrícolas existentes (obra citada,
p. 108 e 262).
Por outro lado, importa realçar que o Decreto-Lei n.º 547/74
tem por contexto histórico a “reforma agrária” que ocorreu em Portugal em meados
da década de setenta mas enquadrando-se num período (1974) de iniciativas
reformistas moderadas que visaram a “penalização do abandono e do insuficiente
aproveitamento” dos solos agrícolas. Só numa fase posterior (em 1975 e 76) se
procedeu a uma intervenção estatal nas explorações agrícolas, ocupações,
expropriações e nacionalizações (António Barreto, Anatomia de uma revolução – a
reforma agrária em Portugal 1974-1976, Europa-América, 1987, p. 98 a 103, 193 e
256 a 258).
Aliás, as explorações agrícolas visadas pelo diploma em análise
correspondem a áreas de pequena dimensão, diferenciando-se das que constituíram
o objecto da reforma agrária (explorações capitalistas latifundiárias) – cfr.
Afonso de Barros, A reforma agrária em Portugal: das ocupações de terras à
formação das novas unidades de produção, Instituto Gulbenkian de Ciência, 1979,
p. 145 e 146.
Utilizando a síntese de António Barreto (obra citada, p. 258),
o Decreto-Lei n.º 547/74 pretendeu contrariar o “subaproveitamento dos solos
agrícolas” e revela “uma vontade de justiça social ao permitir aos rendeiros […]
o acesso à propriedade nas terras que arrotearam e valorizaram durante anos”.
Esse objectivo legal, de consolidação da posição jurídica do rendeiro face à
terra por este cultivada, reduz-se – como se viu – a um certo tipo de
explorações agrícolas, delimitadas no tempo e no espaço.
Tendo como líquido que o âmbito de aplicação temporal da norma
se limita aos arrendamentos então vigentes, há-de reconhecer-se – e apesar do
que se disse – que a letra da lei não especifica qualquer delimitação espacial
da norma, diferentemente do que sucedia com o Decreto-Lei n.º 39917, onde eram
expressamente referidas as propriedades “Quinta da Torre” e “Foros de Fernão
Ferro” (corpo do artigo 1º).
9. De todo o modo, ainda que se não delimite o âmbito de aplicação do
Decreto-Lei n.º 547/74 nos exactos termos do Decreto-Lei n.º 39917, hão-de
necessariamente ter-se como geograficamente muito circunscritas as situações
abrangidas na previsão da norma.
Note-se que está em causa – reafirma-se – um conjunto restrito
de arrendamentos rurais em que, cumulativamente, a terra (i) tenha sido dada de
arrendamento em estado de mato ou inculta e (ii) se tenha tornado produtiva
mediante o trabalho e o investimento do rendeiro (neste sentido, cfr. o Acórdão
da Relação de Lisboa, de 23 de Março de 1977, e os Acórdãos da Relação de Évora,
de 18 de Abril de 1978 e de 30 de Maio de 1978 (todos publicados em Colectânea
de Jurisprudência, respectivamente, 1977, Ano II-Tomo 2, p. 387; 1978, Ano
III-Tomo 2, p. 579; e 1978, Ano III-Tomo 4, p. 1388).
Acresce que o direito de remição consagrado no n.º 1 do artigo
5º do Decreto-Lei n.º 547/74 não é atribuído a todos os arrendatários rurais mas
apenas aos “pequenos agricultores” (terminologia do preâmbulo) que cultivem a
terra directamente ou através de membro do seu agregado familiar – vide, neste
sentido, o Acórdão da Relação de Évora, de 14 de Março de 1978 (Colectânea de
Jurisprudência, 1978, Ano III-Tomo 2, p. 544). Estão, assim, em causa apenas as
explorações agrícolas de tipo familiar, correspondentes ao conceito legal
hodierno de “agricultor autónomo” (cfr. a definição constante do n.º 4 do artigo
3º da Lei n.º 109/88, de 26 de Setembro, adoptada pelo RAR, através da remissão
material constante do artigo 39º desde último diploma).
Por outro lado, com alto grau de probabilidade, parte dos
contratos de arrendamento abrangidos pelo Decreto-Lei n.º 547/74 em que não
houve remição terão entretanto caducado, uma vez que já passaram 31 anos desde a
aprovação do diploma e a transmissão por morte da posição jurídica de
arrendatário só se opera uma vez (excepto se ela se deferir ao cônjuge
sobrevivo, caso em que se transmite, uma segunda vez, aos parentes ou afins do
primitivo arrendatário) – artigo 23º do RAR.
Num contexto em que se visa, de acordo com o preâmbulo, fazer
cessar uma “forma injusta de exploração da terra” e uma “violação dos princípios
elementares de justiça social”, consolidando a posição jurídica do rendeiro
relativamente à terra que cultiva, poderia entender-se que o direito de
aquisição da propriedade da terra contido no n.º 1 do artigo 5º do Decreto-Lei
n.º 547/74 se configura como uma forma de solucionar um conflito de direitos de
propriedade: por um lado, o direito de propriedade da terra e, por outro, o
direito de propriedade das benfeitorias realizadas, este expressamente atribuído
ao rendeiro.
10. Poderia, então, tender-se a aproximar este caso das situações de
acessão industrial, em particular das reguladas no artigo 1340º, n.º 1, do
Código Civil, nos termos do qual a realização de obras, sementeiras e
plantações, que tiverem trazido à totalidade do prédio maior valor do que este
tinha antes, confere ao seu autor a faculdade de adquirir a propriedade do
prédio mediante o pagamento de uma indemnização.
Essa aproximação justificar-se-ia não apenas por uma hipotética
situação de conflito de direitos como também pelo desvio, em ambos os tipos de
casos, à regra segundo a qual a realização de benfeitorias por pessoa diferente
do proprietário da coisa dá apenas lugar ao levantamento dessas benfeitorias
(quando possam ser levantadas sem detrimento da coisa) e a um direito de
indemnização (cfr. artigos 1273º a 1275º, 1046º, 1138º e 1450º do Código Civil e
artigo 15º do Regime do Arrendamento Rural, aprovado pelo Decreto-Lei n.º
385/88).
A verdade, porém, é que só aparentemente as situações de
remição e de acessão industrial são semelhantes.
Em primeiro lugar, a dificuldade em conciliar os direitos em
presença surge, no caso da remição, devido a acto do próprio rendeiro, ao fazer
cessar, por sua iniciativa, a relação jurídica de arrendamento.
Em segundo lugar, no caso da remição, os direitos de
propriedade não surgem em planos independentes, como sucede na acessão. Nesta
não existe um nexo jurídico entre a pessoa e a coisa beneficiada, ao contrário
do que acontece na remição, que pressupõe uma relação jurídica validamente
constituída (o contrato de arrendamento rural), anterior ao facto aquisitivo, em
que os direitos e deveres das partes se encontram previamente fixados.
Por último, no caso da remição não há rigorosamente um conflito
de direitos que demande, como na acessão, a ablação de um direito em favor do
outro – os direitos, no caso, podem subsistir sem contenderem um com o outro.
A resolução da questão de constitucionalidade deverá, pois,
assentar numa linha argumentativa diversa da que subjaz ao Acórdão n.º 205/00
deste Tribunal (ATC, 47º vol., p. 117 ss), que precisamente se pronunciou sobre
a constitucionalidade do disposto no artigo 1340º, n.ºs 1 e 4, do Código Civil.
B) O fundamento constitucional da limitação ao direito de propriedade
contida na norma questionada
11. Embora o direito fundamental de propriedade privada, previsto no
artigo 62º da Constituição, esteja integrado no Título III da Parte I da
Constituição (Direitos e deveres económicos, sociais e culturais), o Tribunal
Constitucional tem afirmado repetidamente que este direito é, numa certa
dimensão, um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias,
sendo-lhe nessa medida aplicável o respectivo regime, nos termos do artigo 17º
da Constituição.
Dessa dimensão do direito de propriedade privada que tem
natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, faz, seguramente, parte o
direito de cada um a não ser privado de modo arbitrário da sua propriedade – e,
ainda assim, tão só com base na lei e mediante o pagamento de justa
indemnização.
Neste sentido tem, aliás, decidido, de modo uniforme, o
Tribunal – cfr. os Acórdãos n.º 1/84, n.º 14/84 e n.º 329/99 (ATC,
respectivamente, 2º vol., p. 173 e 339 ss, e 44º vol., p. 129 ss), para além do
já citado Acórdão n.º 187/01.
12. O requerente questiona a conformidade constitucional da norma em
apreço, na medida em que esta configura uma “ablação de um direito de um
particular a favor de outro particular” e a Constituição só permitiria
limitações a este direito “por requisição e expropriação por utilidade pública”.
É manifesto que não estamos perante um caso de expropriação por
utilidade pública. No seu sentido técnico, a expropriação não abrange todos os
casos em que a um particular pode ser retirada a propriedade. Como se escreveu
no já mencionado Acórdão n.º 205/00:
“A expropriação não é um conceito equivalente ao de desapropriação forçada ou de
ablação de direitos sobre coisas, em todas as modalidades que estas figuras
podem apresentar. Não são actos de expropriação, por exemplo (a não ser num
sentido demasiado lato, desprovido de interesse prático), os mecanismos de
desapossamento destinados a assegurar a execução coactiva das obrigações do
devedor através da penhora e venda forçada de bens em processo civil, nem os
actos de apreensão e confisco ditados por razões penais ou de segurança.
A expropriação é um modo de aquisição de direitos sobre coisas que tem em vista
proporcionar o aproveitamento directo dos bens pela entidade expropriante,
sempre que a sua utilização se torna necessária para realizar determinados fins
de interesse geral (obras públicas, reforma agrária, controlo da economia,
protecção do património, entre os mais frequentes). É um acto, portanto, que
assenta na prevalência da utilidade administrativa de um bem, para o Estado ou
para outra entidade com atribuições de interesse público, em confronto com a
utilidade que ele representa para o seu detentor particular. Nisso reside a
justificação do sacrifício imposto ao direito do proprietário e,
simultaneamente, a raiz do perfil histórico da expropriação como ponto de tensão
especialmente sensível nas relações entre o poder público e os direitos
individuais.”.
A norma questionada no presente processo visa permitir a um
particular (o rendeiro) a aquisição da propriedade da terra por ele cultivada e
não proporcionar a uma entidade com atribuições de interesse público o
aproveitamento directo da terra, para realização de fins de utilidade pública.
Não pode, assim, qualificar-se a situação em presença como expropriação por
utilidade pública.
Em todo o caso, não pode subscrever-se a interpretação do
artigo 62º da Constituição, feita pelo requerente, segundo a qual a expropriação
e a requisição são os únicos limites constitucionalmente admissíveis ao direito
de propriedade.
Se o n.º 2 do artigo 62º estabelece as condições a que obedece
a expropriação, dele não decorre que essa seja a única limitação admissível ao
direito garantido no n.º 1 do mesmo preceito. Na verdade, aqui apenas se
estabelece que tal direito é garantido “nos termos da Constituição”, devendo
naturalmente o alcance desta garantia ser compatibilizado com outros valores
constitucionalmente consagrados.
Ou seja: a Lei Fundamental não impede a existência de outras
limitações ou restrições ao direito de propriedade (incluindo actos “ablativos”)
para além das que resultam da expropriação e da requisição.
O que a Constituição proíbe é, desde logo, a ablação do direito
de propriedade, sem que os actos que a consubstanciam estejam suficientemente
ancorados em outras normas ou princípios constitucionais dos quais resulte a
necessidade da ablação da propriedade.
Neste sentido se pronunciaram – reportando-se a limitações ao
direito de propriedade –, os Acórdãos n.º 391/02 e n.º 491/02 (ATC,
respectivamente, 54º vol., p. 323 ss e 173 ss), com apoio na doutrina e na
jurisprudência constitucional anterior, que se dispensa aqui de reproduzir.
Destaca-se da primeira decisão o seguinte:
“A tutela constitucional do direito à propriedade não significa, porém, que o
legislador não possa consagrar em determinados casos limitações ou restrições a
esse direito […]. Com efeito, não é incompatível com a tutela constitucional da
propriedade a compressão desse direito, desde que seja identificável uma
justificação assente em princípios e valores também eles com dignidade
constitucional, que tais limitações ou restrições se afiguram necessárias à
prossecução dos outros valores prosseguidos e na medida em que essas limitações
se mostrem proporcionais em relação aos valores salvaguardados. […].
Na ordem axiológica constitucional é possível, pois, encontrar fundamento
legítimo para a restrição de dimensões mais ou menos abrangentes do direito de
propriedade. Com efeito, consubstanciando a Constituição uma multiplicidade de
valores, há que proceder à compatibilização e harmonização desses valores, o que
implicará, em determinados casos, compressões ou afectações, em face de uma
ponderação de interesses assente em critérios também eles constitucionalmente
relevantes. Não é, portanto, procedente sustentar […] que a Constituição apenas
admite limitações ao direito de propriedade no caso de expropriação por
utilidade pública […].”.
À tutela do direito de propriedade consagrada na Lei
Fundamental não subjaz, portanto, uma concepção absoluta deste direito – a
extensão da protecção é necessariamente limitada pela complexa ordem de valores
constitucional. O que a este propósito transparece da Constituição é um novo
conceito do direito de propriedade que transcende as velhas concepções do
liberalismo oitocentista, como se salientou no Acórdão n.º 76/85 (ATC, 5º vol.,
p. 207 ss):
“[...] a velha concepção clássica da propriedade, o jus utendi ac abutendi
individualista e liberal, foi, nomeadamente, nas últimas décadas deste século,
cedendo o passo a uma concepção nova daquele direito em que avulta a sua função
social.”.
Ora, esta outra concepção pode considerar-se relevante nos casos de propriedade
sobre os meios de produção – como acontece na situação em apreço – pelas
seguintes razões.
Em primeiro lugar, quando está em causa a propriedade no sector
produtivo do país, é nítido o relevo da dimensão social do direito de
propriedade privada porque a utilização racional dos elementos produtivos
(nomeadamente, de um elemento radicalmente escasso, porque não reprodutível,
como é o caso da terra) tem efeitos que de algum modo ultrapassam a esfera de
interesses do seu proprietário. Os elementos produtivos são bens geradores de
rendimentos e de desenvolvimento económico, cujos benefícios não são apropriados
apenas pelo proprietário, mas se estendem a toda a colectividade. Essa
circunstância leva também a que a ordenação da propriedade dos meios de produção
– observando embora as garantias constitucionais do direito de propriedade –
tenha consequências colectivas em termos de distribuição do rendimento e,
portanto, de justiça social.
Ambos os aspectos referidos – a promoção do desenvolvimento
económico e da justiça na distribuição do rendimento – estão claramente
incluídos entre as tarefas fundamentais do Estado, consagradas no artigo 9º da
Constituição, nomeadamente, na sua alínea d).
Em segundo lugar, a especial densidade que o nosso texto
constitucional confere à estrutura económica do país leva a que a chamada
“Constituição Económica” seja uma fonte importante de limitações ao alcance do
direito de propriedade. Tais limitações podem assumir especialmente relevância
no que toca à propriedade rural, dado que os artigos 93º a 98º espelham um
objectivo constitucional de transformação da realidade agrícola e florestal,
admitindo, explicitamente, constrangimentos à propriedade fundiária, incluindo a
forma extrema de privação total.
A interacção entre a constituição económica e a garantia da
propriedade foi profusamente analisada por este Tribunal (e, antes dele, pela
Comissão Constitucional: veja-se, por exemplo, o Parecer n.º 32/82, publicado em
Pareceres da Comissão Constitucional, 21º vol., INCM, 1985, p. 63 ss, e o
Acórdão da Comissão Constitucional n.º 460, publicado em apêndice ao Diário da
República, de 23 de Agosto de 1983), a propósito da remição da colonia –
questão, de algum modo, semelhante à que aqui se analisa. De entre a
jurisprudência em questão, destaca-se o seguinte trecho do Acórdão n.º 404/87
(ATC, 10º vol., p. 391 ss):
“[A pretensa violação da garantia do direito de propriedade pela remição da
colonia] é afastada quando se considere tal garantia, consignada no artigo 62º
da Constituição, não isoladamente, mas no contexto global da lei fundamental. Na
verdade, se essa garantia exclui em princípio, atenta a sua mesma natureza e o
seu núcleo essencial (cf., de resto, artigo 62º, n.º 2), a possibilidade de um
particular obter coactivamente de outro a alienação em seu favor de coisa
pertencente ao primeiro (e a uma hipótese deste tipo, há-de reconhecer-se, se
reconduz o direito de remição em causa), ela não pode, todavia, deixar de
compaginar-se com os princípios constitucionais dos quais decorrem mais ou menos
extensos limites, ou a possibilidade de mais ou menos extensas restrições, ao
seu conteúdo e alcance – e tais princípios dão suficiente cobertura à restrição
ou limite em que se traduz o direito de remição da terra concedida ao
colono-rendeiro. Por outras palavras: o direito de propriedade só se acha
garantido, como se diz no próprio artigo 62º, n.º 1, «nos termos da
Constituição», mas estes termos autorizam aquela restrição ou limite a esse
direito.
Que é assim resulta logo do sentido geral das normas e princípios
constitucionais relativos à reforma agrária, apontando eles, como apontam, para
um profunda «transformação das estruturas fundiárias» e para a transferência
progressiva da posse útil da terra para aqueles que a trabalham, e resulta
depois, especificamente, do artigo 101º, n.º 2, que na sua redacção primitiva
determinou a extinção do regime de colonia e na actual redacção o proíbe
[artigos 93º, n.º 1, alínea b), e 96º, n.º 2, do actual texto da Constituição].
Nesta disposição, atenta aquela ideia genérica inspiradora da reforma agrária e
a natureza das situações constituídas através do contrato de colonia, não pode,
com efeito, deixar de ver-se, no mínimo, uma base constitucional bastante para o
legislador conceder aos colonos-rendeiros o direito de porem termo ao contrato
de colonia através da remição da propriedade da terra onde implantaram
benfeitorias, o que vale dizer, a «expropriarem» a terra em seu proveito. Que aí
se verifica uma excepcional restrição do direito de propriedade do senhorio é
inquestionável; só que se trata, atento o que fica dito, de uma restrição que,
porque «prevista na Constituição», cabe no elenco daquelas que a mesma consente,
nos termos do seu artigo 18º, n.º 2.”.
A invocação que aqui se faz da remição da colonia afigura-se
inteiramente pertinente.
É sabido, com efeito, que, depois de o Decreto-Lei n.º 47937,
de 15 de Setembro de 1967, ter proibido a celebração futura da colonia
(mantendo, no entanto, as situações pré-existentes), a Constituição determinou,
no seu artigo 101º, n.º 2 (versão originária), a extinção do regime da colonia.
E na sequência desta prescrição constitucional, o Decreto Regional n.º 13/77/M,
de 18 de Outubro, estabeleceu, no artigo 3º, um direito de remição em favor do
colono-rendeiro. Essa norma foi objecto de um juízo de não inconstitucionalidade
em diversos acórdãos deste Tribunal (cfr., entre outros, o já mencionado Acórdão
n.º 404/87), apesar de se reconhecer que “a remição da propriedade do solo,
oponível unilateralmente ao respectivo dono, é algo que afecta em cheio o
direito de propriedade deste último” (citado Acórdão n.º 404/87).
Ora, é patente alguma semelhança entre a remição da colonia e a
remição do arrendamento rural admitida na norma aqui em apreciação: em ambos os
casos está em causa uma “transmissão forçada” do direito de propriedade sobre a
terra, do proprietário de raiz para o cultivador; em ambos os casos existe uma
especial responsabilidade do cultivador em dotar a terra de condições
produtivas; e em ambos os casos a intervenção legislativa ocorreu num momento de
transição constitucional, visando transformar as formas de utilização produtiva
da terra em favor do cultivador. Isto não obstante – há que reconhecê-lo – o
respaldo constitucional da remição da colonia ter derivado, em grande parte, do
referido artigo 101º, n.º 2, da Constituição, sem que no entanto se tenha
deixado de ponderar os comandos constitucionais relativos à política agrícola.
É também sabido que o mesmo artigo 101º, n.º 2, da Constituição
proibiu ainda o regime de aforamento, onde se podem distinguir dois direitos de
propriedade (cfr. José de Oliveira Ascensão, Direito Civil – Reais, 4.ª edição,
Coimbra Editora, 1983, p. 572 ss), sendo certo que à data da aprovação da
Constituição já estavam extintos os foros, relativos aos prédios rústicos, por
força do Decreto-Lei n.º 195-A/76, de 16 de Março.
Nesse diploma, determina-se a transferência ope legis do
domínio directo dos prédios para o titular do domínio útil (artigo 1º, n.º 1),
sem que se conceda, em termos gerais, ao titular do domínio directo qualquer
indemnização – esta só está prevista nos casos em que o titular do domínio
directo seja pessoa singular com rendimento mensal inferior ao salário mínimo
mensal nacional (artigo 2º, n.º 1).
Ora, a posição de rejeição de formas de exploração da terra de
reconhecida injustiça social – enfiteuse e colonia – que o legislador
constituinte assume alicerça-se claramente em valores de protecção do
cultivador, plasmados na Constituição (cfr. artigos 93º, n.º 1, e 96º).
E não é ousado admitir-se que essa mesma rejeição e esses
mesmos valores legitimam constitucionalmente o disposto no artigo 5º, n.º 1, do
Decreto-Lei n.º 547/74, tendo em conta a precariedade da situação jurídica do
arrendatário rural que, nos termos do regime geral do arrendamento rural,
poderia ser despejado, com perda das benfeitorias por ele realizadas numa terra
que fora dada de arrendamento inculta e onde se instalara com carácter de
permanência.
C) As exigências do princípio da proporcionalidade, em sentido amplo
13. Estabelecida a existência de um fundamento constitucional legítimo
para a prevalência do direito do rendeiro face ao direito do
proprietário/senhorio resultante do disposto no n.º 1 do artigo 5º do
Decreto-Lei n.º 547/74, importa ainda verificar se a norma em causa, enquanto
permite que o rendeiro se torne dono da terra, respeita o princípio da
proporcionalidade.
No Acórdão n.º 634/93 (ATC, 26º vol., p. 205 ss), o Tribunal
Constitucional caracterizou o princípio da proporcionalidade nos seguintes
termos:
“[...] o princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprincípios:
princípio da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e
garantias devem revelar-se como um meio adequado para a prossecução dos fins
visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente
protegidos); princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser
exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros
meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato); princípio da justa
medida, ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adoptar-se medidas
excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos).”.
O princípio da adequação ou idoneidade exige, pois, que as
medidas restritivas “sejam aptas a realizar o fim visado com a restrição ou
contribuam para o alcançar” (Jorge Reis Novais, As restrições aos direitos
fundamentais não expressamente previstas na Constituição, Coimbra Editora, 2003,
p. 731). De acordo com este controlo de aptidão, devem apenas considerar-se
inidóneas as medidas restritivas cujos efeitos sejam “indiferentes, inócuos ou
até negativos, tomando como referência a aproximação do fim prosseguido com a
restrição” (obra citada, p. 738).
14. No caso sub iudice, o legislador teve por objectivo impedir a
apropriação pelo senhorio das benfeitorias realizadas pelo rendeiro e o despejo
deste das terras por si cultivadas, onde, muitas vezes, tinha habitação (cfr.
preâmbulo do Decreto-Lei n.º 547/74). Ora, o artigo 5º do mencionado
Decreto-Lei, ao atribuir ao rendeiro o direito de remir o arrendamento,
tornando-se proprietário do solo, obsta à apropriação das benfeitorias pelo
senhorio e, fundamentalmente, permite que o rendeiro se mantenha na propriedade
por ele cultivada. E, assim sendo, a solução legal questionada não pode
considerar-se inadequada aos fins visados pelo legislador.
No que se refere ao princípio da exigibilidade, o que está em
causa, como se disse no acima mencionado Acórdão n.º 187/01, é proceder a “uma
avaliação in concreto da relação empírica entre as medidas e os seus previsíveis
efeitos, à luz dos fins prosseguidos, para apurar a previsível maior ou menor
consecução dos objectivos pretendidos, perante as alternativas disponíveis”.
Trata-se, assim, de uma tarefa de comparação entre as alternativas, para avaliar
qual delas se apresenta menos onerosa ou restritiva.
Recorde-se, a propósito, que o requerente invoca a violação
dessa vertente do princípio da proporcionalidade, com a alegação de que a medida
questionada é desnecessária, por existirem meios menos gravosos de tutela dos
interesses do rendeiro, previstos no próprio Decreto-Lei n.º 547/74: a
consagração de que as benfeitorias são propriedade do rendeiro (n.º 1 do artigo
2º) e a limitação da possibilidade de o senhorio resolver o contrato de
arrendamento aos casos em que o rendeiro não pague a renda em dois anos
consecutivos ou em que o rendeiro prejudique gravemente a potencialidade
produtiva da terra (n.º 1 do artigo 4º).
Ora, quanto à primeira medida, não se apresenta ela, em si
mesma, como uma solução adequada. Isto, desde logo, porque não evita que o
rendeiro seja desapossado das benfeitorias, caso cesse o contrato de
arrendamento e aquelas não possam ser separadas do solo. Restar-lhe-ia apenas o
direito a ser indemnizado. Neste sentido se pronunciam Jorge Aragão Seia, Manuel
Costa Calvão e Cristina Aragão Seia (Arrendamento rural, 4ª edição, Almedina,
2003, p. 113):
“O rendeiro é sempre indemnizado pelas benfeitorias. É porque de duas uma: ou
ele faz as benfeitorias de acordo com ambas as partes, e estamos em presença de
um acordo de liberdade contratual e então tem direito à sua indemnização, ou ele
pode, em caso de denúncia do contrato, ser indemnizado pelas benfeitorias que
fez em caso de não as poder levantar.”.
Por outro lado, os interesses do rendeiro tutelados pela norma
não se resumem à obtenção do valor patrimonial das benfeitorias, abrangendo,
ainda, a estabilização da sua posição jurídica, como medida de justiça social,
pondo fim ao que se considera ser uma forma injusta de exploração dos solos.
E, sendo assim, não se vê que outros meios se pudessem
equacionar para salvaguarda daqueles interesses, designadamente num quadro de
arrendamento rural, com cláusulas especialmente protectoras da posição do
rendeiro.
Finalmente, impõe-se confrontar a medida ablativa sub iudice
com o princípio da proporcionalidade, em sentido estrito, ou seja, avaliar se a
medida e os fins obtidos se situam numa “justa medida”, ou se, pelo contrário
aquela é desproporcionada ou excessiva em relação a estes fins (cfr. J. J. Gomes
Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª
edição revista, vol. I, Coimbra Editora, 2007, p. 393).
A este propósito, o requerente sustenta que o n.º 1 do artigo
5º do Decreto-Lei n.º 547/74 viola o princípio da proporcionalidade em sentido
estrito, qualificando a ablação do direito de propriedade do senhorio como
“desproporcionada, excessiva e injusta”.
Para que se possa concluir se a norma questionada respeita o
princípio da proporcionalidade impõe-se averiguar se o prejuízo que ela causa ao
senhorio (ablação do direito de propriedade) é ou não desproporcionado em
relação ao benefício que com ela se espera obter (consolidação da posição
jurídica do rendeiro relativamente à terra que cultiva e às benfeitorias nela
realizadas).
Não se discute a gravidade do sacrifício imposto ao senhorio –
a remição do arrendamento afecta de forma extrema o direito de propriedade do
dono da terra.
Todavia, tal não basta para suportar a posição assumida pelo
requerente.
Recorde-se que a medida em causa de algum modo se configura
como sucedânea da que se previa no Decreto-Lei n.º 39917. Neste, as terras eram
expropriadas (expropriação por utilidade pública) e adjudicadas à Junta de
Colonização Interna; o valor das terras expropriadas era aquele que teriam no
estado de incultas, apenas acrescido das benfeitorias realizadas pelos
proprietários; seria também por esse valor que as terras seriam posteriormente
vendidas aos cultivadores.
Ou seja, enquanto no regime do Decreto-Lei n.º 39917 a
transmissão da propriedade para os cultivadores era intermediada por uma
expropriação e uma venda, no regime do Decreto-Lei n.º 547/74, ela é feita
através de uma relação directa proprietário/arrendatário, com o exercício do
direito de remição concedido ao arrendatário. Em ambos os casos, o senhorio
perde o direito de propriedade; em ambos os casos, o valor a pagar ao
proprietário (a indemnização ou o preço, respectivamente) corresponde ao valor
das terras no estado de incultas.
Ora, neste contexto, tratando-se de arrendamento rural em que
as terras tenham sido dadas de arrendamento no estado de incultas e se tenham
tornado produtivas por acção do rendeiro, o valor das benfeitorias realizadas
nas terras por acção do rendeiro não pode ser contabilizado como prejuízo do
senhorio. O prejuízo do senhorio apenas pode corresponder à perda do valor da
propriedade, excluídas as benfeitorias.
Caso o rendeiro pretenda remir o arrendamento (o exercício do
direito de remição é facultativo), a perda da propriedade da terra é compensada
pelo pagamento ao senhorio de um preço (n.º 2 do artigo 5º do Decreto-Lei n.º
547/74). E esse preço não pode considerar-se injusto, em face dos critérios do
citado n.º 2.
Sendo grave o sacrifício imposto ao senhorio, tal não deixa de
implicar que se avalie essa gravidade “em associação com a importância e a
imperatividade das razões que a justificam” (cfr. Jorge Reis Novais, obra
citada, p. 755).
Ora, no caso, como resulta do que atrás se disse, são, à luz da
Constituição, de extrema relevância as razões que justificam a medida, numa
linha que decorre dos já citados artigos 93º, n.º 1, alínea b), e 96º, n.º 1, da
Constituição.
Escrevem J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (obra citada, p.
1049), em comentário ao artigo 93º da Lei Fundamental:
“Entre os vários intervenientes nas relações de produção agrícolas, a
Constituição só cuida dos trabalhadores rurais e dos agricultores (n.º1/b). Essa
preferência traduz a prevalência dos interesses dos que «trabalham a terra»
(mesmo preceito) e dos «cultivadores» (artigo 96º-2) sobre os interesses dos
proprietários fundiários, os quais cedem perante aqueles (artigos 94º e 96º).
[…].
Esta preferência pelo direito do trabalho e da exploração agrícola directa sobre
o direito de propriedade fundiária bem como a protecção especial devida aos
pequenos e médios agricultores (que são coerentes com os valores gerais da
Constituição) não podem deixar de ser valorizadas no plano da interpretação das
normas da «constituição agrícola» e do seu desenvolvimento legislativo.”.
Face à nossa ordem constitucional de valores, o direito de
aquisição da propriedade conferido ao rendeiro pela norma questionada não pode,
assim, qualificar-se como excessivo ou injusto.
E, a este propósito, deve, ainda, ter-se presente que, nas
situações em que a avaliação da limitação ou restrição pelo critério da
proporcionalidade se revele complexa, como poderá ser o caso, o Tribunal
Constitucional tem reconhecido ao legislador uma prerrogativa de avaliação ou
crédito de confiança, reservando a sua intervenção apenas para as situações de
ultima ratio.
Escreveu-se no já citado Acórdão n.º 187/01:
“[…] não pode deixar de reconhecer-se ao legislador – diversamente da
administração – […] uma “prerrogativa de avaliação”, como que um “crédito de
confiança”, na apreciação, por vezes difícil e complexa, das relações empíricas
entre o estado que é criado através de uma determinada medida e aquele que dela
resulta e que considera correspondente, em maior ou menor medida, à consecução
dos objectivos visados com a medida […]. Tal prerrogativa da competência do
legislador na definição dos objectivos e nessa avaliação […] afigura-se
importante sobretudo em casos duvidosos, ou em que a relação medida-objectivo é
social ou economicamente complexa, e a objectividade dos juízos que se podem
fazer (ou suas hipotéticas alternativas) difícil de estabelecer.
[…] em casos destes, em princípio, o Tribunal não deve substituir uma sua
avaliação da relação, social e economicamente complexa, entre o teor e os
efeitos das medidas, à que é efectuada pelo legislador, e que as controvérsias
geradoras de dúvida sobre tal relação não devem, salvo erro manifesto de
apreciação – como é, designadamente (mas não só), o caso de as medidas não serem
sequer compatíveis com a finalidade prosseguida –, ser resolvidas contra a
posição do legislador.
[…] a própria averiguação jurisdicional da existência de uma
inconstitucionalidade, por violação do princípio da proporcionalidade por uma
determinada norma, depende justamente de se poder detectar um erro manifesto de
apreciação da relação entre a medida e seus efeitos, pois aquém desse erro deve
deixar-se na competência do legislador a avaliação de tal relação, social e
economicamente complexa.”.
Também no caso em apreço a qualificação da ablação do direito
de propriedade do senhorio como “justa medida” pressupõe uma avaliação material
que se encontra muito próxima dos limites do poder jurisdicional, na fronteira
com o poder legislativo. Ora, atenta a ponderação dos valores em jogo, supra
desenvolvida, e não constituindo erro manifesto de apreciação a opção tomada
pelo legislador com a aprovação do n.º 1 do artigo 5º do Decreto-Lei n.º 547/74,
entende-se que, igualmente aqui, o legislador deve beneficiar do mencionado
crédito de confiança, tudo concorrendo para se julgar isenta de
inconstitucionalidade, por violação do princípio da proporcionalidade, a norma
em causa.
IV
Decisão
15. Face ao exposto, o Tribunal Constitucional decide não declarar a
inconstitucionalidade da norma contida no n.º 1 do artigo 5º do Decreto-Lei n.º
547/74, de 22 de Outubro.
Lisboa, 6 de Março de 2007
Maria Helena Brito
Mário José de Araújo Torres
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Vítor Gomes
Rui Manuel Moura Ramos
Benjamim Rodrigues
Bravo Serra
Maria Fernanda Palma
Gil Galvão
Maria João Antunes
Paulo Mota Pinto
Carlos Pamplona de Oliveira – vencido
conforme declaração que junto.
Artur Maurício
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencido, pelas razões que passo sumariamente a expor:
I
O Decreto-Lei n.º 547/74 de 22 de Outubro, em que se inscreve a norma em apreço,
apresenta, no seu preâmbulo, a seguinte justificação:
1. Em certas zonas do País, particularmente no Ribatejo e na península de
Setúbal, existem situações em que a terra inculta foi totalmente aproveitada por
famílias de agricultores que, com base em contratos de arrendamento, a
desbravaram, cultivaram e valorizaram, nela se fixando com carácter de
permanência. Normalmente, tratou-se de divisão de herdades em courelas, que
foram entregues à exploração directa de pequenos agricultores.
A disciplina jurídica de tais situações era a do arrendamento rural que não
contemplava a situação específica de as terras se encontrarem incultas e daí
terem-se verificado, desde há dezenas de anos, graves problemas de justiça
social, quando o senhorio requeria o despejo ou exigia aumentos de renda, tendo
em conta o rendimento das benfeitorias que haviam sido fruto do trabalho e de
investimentos exclusivos dos rendeiros.
Em 23 de Novembro de 1954 foi publicado o Decreto-Lei n.º 39917, em que, a
propósito dos casos da Quinta da Torre, do concelho de Palmela, e Fernão Ferro,
do concelho do Seixal, se estatuiu o princípio de que as benfeitorias feitas nas
referidas condições eram propriedade de quem as realizou ou dos seus sucessores
na respectiva posse ou fruição. O Supremo Tribunal de Justiça, ao julgar sobre a
inconstitucionalidade daquele diploma, invocada pelos proprietários, decidiu
negativamente, acolhendo o princípio estabelecido no referido diploma legal.
2. Não obstante, a situação continuou até hoje e importa ter em conta que a
apropriação, pelo dono da terra, das benfeitorias feitas pelos rendeiros e bem
assim o despejo destes das terras que eles ou os seus antepassados cultivaram e
onde muitas vezes têm a sua habitação constituem uma forma injusta de exploração
da terra e uma violação dos princípios elementares de justiça social.
Esta situação, que está em manifesta oposição com os princípios do programa do
Governo Provisório, tem de cessar imediatamente, o que se leva a efeito através
do presente diploma, que não só atribui ao rendeiro o direito às benfeitorias,
como cria as condições para, à semelhança dos aforamentos, se poderem extinguir
os contratos existentes, através da consolidação, na pessoa do rendeiro, do
direito da propriedade do solo, mediante remição. [...]
No artigo 1º do diploma dispõe-se:
Artigo 1º
Os casos de arrendamento rural em que as terras foram dadas de arrendamento no
estado de incultas ou em mato e se tornaram produtivas mediante o trabalho e
investimento do rendeiro regem-se, além do disposto na lei sobre o arrendamento
rural, pelas disposições especiais constantes dos artigos seguintes.
A norma acabada de transcrever revela que o diploma se aplica em todo o
território nacional. Esta conclusão não é contrariada pela leitura do referido
relatório, de onde ressalta que, face às particulares circunstâncias históricas
e políticas do momento ('os princípios do programa do Governo Provisório'), o
legislador visou fazer extinguir os contratos 'em que as terras foram dadas de
arrendamento no estado de incultas ou em mato e se tornaram produtivas mediante
o trabalho e investimento do rendeiro', generalizando, para esse efeito, o
regime já anteriormente adoptado no Decreto-Lei n.º 39 917 de 23 de Novembro de
1954 em determinados casos localizados. Fê-lo – curiosamente –, com a
justificação de que tal regime se apresentava comprovadamente compatível com a
Constituição (de 1933, ainda em vigor) – 'o Supremo Tribunal de Justiça, ao
julgar sobre a inconstitucionalidade daquele diploma, invocada pelos
proprietários, decidiu negativamente, acolhendo o princípio estabelecido no
referido diploma legal'.
Ora, se não parece lícito duvidar de que o regime assim criado passaria a
aplicar-se a todos os 'casos de arrendamento rural em que as terras foram dadas
de arrendamento no estado de incultas ou em mato e se tornaram produtivas
mediante o trabalho e investimento do rendeiro', em todo o território nacional,
igualmente não oferece dúvida de que se tratava de uma medida destinada a
corrigir uma situação que, no entender do legislador de 1974, constituía 'uma
forma injusta de exploração da terra e uma violação dos princípios elementares
de justiça social', que teria 'de cessar imediatamente', através da
'consolidação, na pessoa do rendeiro, do direito da propriedade do solo,
mediante remição.'
Não é, assim, possível acompanhar o acórdão na parte em que circunscreve o
âmbito de aplicação do diploma a certas zonas do território continental,
designadamente àquelas que já eram abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 39 917 de 23
de Novembro de 1954, diploma que, aliás, se deve ter por revogado, sem
necessidade de menção expressa, pelo decreto-lei de 1974.
II
Por razões que radicam precisamente no alargamento das situações que o diploma
visava regular, face ao que passava com o diploma de 1954, também não acompanho
o julgamento que resulta do acórdão quanto à vigência da norma em apreço.
Com efeito, o aludido regime especial encontra a sua justificação, como se viu,
na vontade de extinguir (fazer 'cessar imediatamente') as situações que
importariam 'violação dos princípios elementares de justiça social'; tais
situações decorreriam da concreta conformação do regime de arrendamento rural
então existente, e não é admissível pensar que o legislador post-revolução
achasse necessário manter esta solução, depois de, ele próprio, ter construído
um quadro legal que, de forma estável e permanente, disciplinasse, de acordo com
as novas orientações políticas, o arrendamento rural, resultado que
inevitavelmente rejeitaria a tal 'forma injusta de exploração da terra'
determinante da 'violação dos princípios elementares de justiça social'.
De resto, esse momento chegou três anos depois, com a aprovação da Lei n.º 76/77
de 29 de Setembro, que passou a disciplinar o Arrendamento Rural, e revogou
'toda a legislação existente sobre arrendamento rural' (artigo 53º LAR), com
excepção de situações aqui irrelevantes, como os arrendamentos para fins
florestais e os arrendamentos em que o Estado era senhorio na zona de
intervenção da Reforma Agrária, que seriam alvo de legislação especial (artigo
47º LAR).
É neste cenário legislativo que se sistematiza o artigo 48º desta Lei n.º 76/77,
ao proclamar:
Artigo 48.º
1. O Governo, no prazo máximo de seis meses e através de decreto-lei, procederá
à revisão do Decreto-Lei n.º 547/74, de 22 de Outubro.
2. Fica desde já revogado o artigo 3.º do diploma referido no número anterior.
3. A competência atribuída às comissões arbitrais nos artigos 5.º, 7.º e 8.º do
referido diploma passa a caber ao tribunal da comarca da residência do
arrendatário, aplicando-se ao processo as normas gerais.
Acontece que o Governo, 'no prazo máximo de seis meses e através de
decreto-lei', não procedeu à revisão do de 22 de Outubro. Aliás, nunca se
procedeu a essa revisão.
A omissão tem, a meu ver, a seguinte consequência: o Decreto-Lei n.º 547/74
perdeu a sua vigência, quer se entenda que foi revogado pela cláusula geral
revogatória constante do artigo 53º da LAR já citado – uma vez que o Governo não
quis disciplinar, com especialidade, a matéria –, quer se entenda que a nova Lei
tratou in totum do arrendamento rural, caducando, pelo decurso do aludido prazo,
a possibilidade de se manter no ordenamento jurídico uma regulamentação especial
quanto a esta matéria, quer finalmente se entenda que o n.º 1 do artigo 48º deve
ser interpretado como uma norma revogatória sujeita a um certo prazo e a uma
determinada condição, que produziu os seus efeitos revogatórios com o decurso do
prazo sem que a condição se tivesse verificado.
Divirjo, portanto, do julgamento quanto à vigência da norma.
III
Todavia, admitindo que, por hipótese, a norma se mantinha em vigor, igualmente
não acompanho o acórdão quanto à questão da sua conformidade constitucional,
resolvida através da constatação de que 'o que a Constituição proíbe é, desde
logo, a ablação do direito de propriedade, sem que os actos que a consubstanciam
estejam suficientemente ancorados em outras normas ou princípios constitucionais
dos quais resulte a necessidade da ablação da propriedade', ou pela transposição
dos condicionamentos ao exercício do direito da propriedade para a própria
subsistência do direito. É que, por um lado, diversamente do que sucede com o
aforamento e a colonia (artigo 96º n.º 2 CR), a Constituição não contém uma
proibição expressa do tipo de arrendamento 'censurado' no Decreto-Lei n.º 547/74
de 22 de Outubro. Por outro lado, uma vez que este tipo de arrendamento continua
a ser admitido pelo regime de arrendamento rural em vigor, seria incompreensível
que o mesmo regime que permite a constituição de tais relações jurídicas,
preveja simultaneamente a sua extinção, através da 'consolidação, na pessoa do
rendeiro, do direito da propriedade do solo, mediante remição', para pôr fim a
'uma forma injusta de exploração da terra e uma violação dos princípios
elementares de justiça social'.
Carlos Pamplona de Oliveira