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Processo n.º 522/06
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A: foi condenado por sentença do 2.º Juízo do Tribunal Judicial da
Comarca de Ílhavo de 13 de Junho de 2005, de fls. 167, como autor material de um
crime de ofensas à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo
143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de cem dias de multa à taxa diária de €
15, perfazendo a quantia de € 1.500,00, e ainda a pagar à assistente B. a
indemnização de € 500.
Inconformado, o arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação de
Coimbra que, por acórdão de 15 de Março de 2006, de fls. 269, negou provimento
ao recurso.
Afirmou-se no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra o seguinte:
«Por outro lado, também não tem fundamento a censura da factualidade
dada como provada. A convicção do tribunal não tem de coincidir com a do
recorrente e, estando, como está, a sentença fundamentada, indicando-se donde o
tribunal retirou os factos, haverá este Tribunal de, desde logo, verificar se da
prova transcrita se pode concluir que os dados objectivos indicados na
fundamentação da sentença, foram colhidos da prova produzida: feito o cotejo
responde-se afirmativamente.
Ora, vem sendo decidido nesta Relação, em matéria de formação da
convicção, como consta, entre muitos, no Acórdão publicado em www.trc.pt , n.º
05261, com o seguinte sumário:
I - O acto de julgar é do Tribunal, e tal acto, tem a sua essência na operação
intelectual da formação da convicção. Tal operação não é pura e simplesmente
lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objectivos para
uma formulação lógico-intuitiva.
II - Na formação da convicção haverá que ter em conta o seguinte:
2.1. - a recolha de elementos – dados objectivos – sobre a existência ou
inexistência dos factos e situações que relevam para a sentença; dá-se com a
produção da prova em audiência;
2.2 - sobre esses dados recai a apreciação do Tribunal – que é livre, art. 127º
do Código Processo Penal – mas não arbitrária, porque motivável e controlável,
condicionada pelo principio de persecução da verdade material;
2.3 - a liberdade da convicção, aproxima-se da intimidade, no sentido de que o
conhecimento ou apreensão dos factos e dos acontecimentos não é absoluto, mas
tem como primeira limitação a capacidade do conhecimento humano, e portanto,
como a lei faz reflectir, segundo as regras da experiência humana;
III - A convicção assenta na verdade prático-juridica, mas pessoal, porque
assume papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também
elementos racionalmente não explicáveis – como a intuição.
IV - Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza
de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou
probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado
objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).
V - Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como sejam
as da experiência, a percepção da personalidade do depoente (impondo-se por tal
a mediação e a oralidade), a da dúvida inultrapassável (conduzindo ao principio
in dubio pro reo).
VI - A lei impõe princípios instrumentais e princípios estruturais para formar a
convicção como sejam:
VII - O principio da oralidade, com os seus corolários da imediação e
publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das
provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade
juridico-prática e com o da liberdade de convicção – princípios estruturais; com
efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não
objectiváveis atinentes com a valoração da prova.
VIII - A Constituição da República Portuguesa impõe a publicidade da audiência
(art. 206º) e, consequentemente o Código Processo Penal pune com a nulidade a
falta de publicidade (art. 321º); publicidade essa que se estende a todo o
processo – a partir da decisão instrutória ou quando a instrução já não possa
ser requerida (art. 86º) querendo-se que o público assista (art. 86º/a); que a
comunicação social intervenha com a narração ou reprodução dos actos (art.
86º/b); que se consultem os autos, se obtenha cópias, extractos e certidões (art
86º/c)). Há um controlo comunitário quer da comunidade jurídica quer da social,
para que se dissipem dúvidas quanto à independência e imparcialidade.
IX - A oralidade da audiência que não significa que não se passem a escrito os
autos, mas que os intervenientes estejam fisicamente perante o Tribunal (artº
96º do Código Processo PenaI) permite ao Tribunal aperceber-se dos traços do
depoimento denunciadores da isenção, imparcialidade e certeza que se revelam por
gestos, comoções e emoções da voz, p. ex.:
X - A imediação que vem definida como a relação de proximidade comunicante entre
o tribunal e os participantes no processo, de tal como que, em conjugação com a
oralidade, se obtenha uma percepção própria dos dados que haverão de ser a base
da decisão. É pela imediação, também chamado de princípio subjectivo, que se
vincula o juiz à percepção, à utilização, à valoração e credibilidade da prova.
XI - A censura da forma de formação da convicção do tribunal não pode
consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação
dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na
violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente
porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se
violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não
houve liberdade na formação da convicção.
XII - Doutra forma, como se faz aqui neste recurso, pretende-se uma inversão da
posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de
quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão.
Deste modo é infundamentado o recurso.»
2. Novamente inconformado, veio A. interpor recurso para o Tribunal
Constitucional, nos termos seguintes:
«1 – O presente recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
art. 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (…).
2 – Pretende ver-se apreciada a constitucionalidade da norma constante
do artigo 428.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na interpretação seguida
pelo Tribunal da Relação de Coimbra, segundo a qual apreciando o Tribunal de 1.ª
Instância livremente a prova que perante ele é produzida (cfr. art. 127.º do
Código de Processo Penal), o tribunal de Recurso apenas poderá/deverá sindicar a
matéria de facto que aquele considerou provada quando o mesmo (Tribunal de 1.ª
Instância) haja violado qualquer dos passos para a formação da sua convicção,
designadamente quando não existam os dados objectivos que se apontam na
motivação, quando se hajam violado os princípios para a aquisição desses dados
objectivos ou quando não tenha existido liberdade na formação da convicção.
3 – Como a interpreta o douto acórdão proferido nestes autos, a norma
do artigo 428.º, n.º 1, do Código de Processo Penal viola os artigos 32.º, n.º
1, e 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
4 – Tal norma, onde se estipula que as relações conhecem de facto e de
direito, na mencionada interpretação, viola os ditos artigos 32.º, n.º 1, e
20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, uma vez que cerceia de
forma drástica, grosseira e intolerável as garantias de defesa do arguido,
restringindo de maneira insuportável o núcleo essencial do seu direito ao
recurso em matéria de facto, violando de igual modo a garantia constitucional do
duplo grau de jurisdição, também nesta matéria.
5 – Não se conformando com a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª
Instância, dela interpôs o arguido pertinente recurso, impugnando, ao abrigo e
nos termos do disposto no artigo 412.º, n.º 1, 3 e 4, do Código de Processo
Penal, a matéria de facto por aquele considerada provada, especificando os
pontos de facto que considerava incorrectamente julgados, as provas que impunham
decisão diversa e aquelas que deveriam ser renovadas, fazendo a necessária
referência aos suportes técnicos, nos termos do n.º 4 da citada norma legal, uma
vez que a prova havia sido gravada.
6 – Admitido tal recurso, foi ordenada a transcrição da prova (tendo,
aliás, o recorrente suportado os correspondentes custos) e subiram os autos ao
Tribunal da Relação de Coimbra.
7 – Aqui, e para surpresa do recorrente, negou-se o douto Tribunal de
recurso a sindicar os pontos da matéria de facto por si impugnados (!) sob
pretexto de que, valendo, em matéria de prova (e em processo penal), o Princípio
da Livre Apreciação da Prova (cfr. artigo 127.º do Código de Processo Penal), e
sendo a audiência de julgamento regida pelos princípios da publicidade,
oralidade e imediação, apenas lho caberia fazer se o tribunal de 1.ª Instância
tivesse violado qualquer dos passos para a formação da sua convicção,
designadamente se não existissem os dados objectivos apontados na motivação, se
tivesse violado os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou se não
tivesse formado livremente a sua convicção, alegando não poder a censura da
forma de formação da convicção do tribunal a quo “assentar de forma simplista no
ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova”
(?!)
8 – Esta questão – a possibilidade/obrigatoriedade de os Tribunais de
Relação conhecerem tanto da matéria de direito, como da matéria de facto –
encontra-se regulada na disposição legal objecto do presente recurso (o artigo
428.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), para a qual remete necessariamente o
acórdão recorrido (pese embora ali não se identifique expressamente o artigo da
lei a que se reporta).
9 – Esta norma legal, na interpretação que dela faz o acórdão recorrido
limita de forma insuportável o núcleo essencial do direito ao recurso em matéria
de facto para Tribunal da Relação, bem como a garantia constitucional do duplo
grau de jurisdição também em matéria de facto, deturpando mesmo, infundada e
insustentavelmente, a ratio daquela norma legal, defraudando as expectativas dos
recorrentes.
10 – A questão de constitucionalidade é suscitada no presente
requerimento ao abrigo da uniforme jurisprudência do Tribunal Constitucional que
excepcionalmente admite o recurso, dispensando o interessado de a ter suscitado
durante o processo, até à decisão de que se recorre, porquanto se afigura não
lhe ser exigível que antevisse a possibilidade de aplicação daquela norma ao
concreto de modo a impor-se-lhe o ónus de suscitar a questão (da
inconstitucionalidade) antes da decisão.
11 – O recorrente não dispôs de qualquer oportunidade processual para
suscitar anteriormente a inconstitucionalidade aqui em causa, quer pela forma
inesperada como a questão surge no acórdão recorrido, quer pela forma ainda mais
inesperada como ali é tratada.
12 – Atento o disposto no art. 428.º, n.º 1, do Código de Processo
Penal (conjugado, aliás, com o disposto no art. 412.º, n.º 1, 3 e 4 do mesmo
diploma legal), era impossível ao recorrente prever ou admitir, sequer – tal
como a qualquer pessoa com normal discernimento – que com os aludidos
fundamentos – insólitos e imprevisíveis – o Tribunal da Relação se abstivesse de
sindicar a matéria de facto impugnada em sede de recurso.»
O recurso foi admitido, por decisão que não vincula este Tribunal (nº 3
do artigo 76º da Lei nº 28/82).
3. Notificadas para o efeito, as partes apresentaram alegações, que o
recorrente concluiu da seguinte forma:
«1.ª) Não se conformando com a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª
Instância, que o condenava, como autor material de um crime de ofensas à
integridade física simples, na pena de 100 dias de multa à taxa diária de 15€,
dela interpôs o ora apresentante recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra,
impugnando na sua motivação, ao abrigo e nos termos do disposto no artigo 412.º,
n.º 1, 3 e 4, do Código de Processo Penal, a matéria de facto por aquele
considerada provada, especificando os pontos de facto que considerava
incorrectamente julgados, as provas que impunham decisão diversa e aquelas que
deveriam ser renovadas, fazendo a necessária referência aos suportes técnicos,
nos termos do n.º 4 da citada norma legal, uma vez que a prova havia sido
gravada.
2.ª) Admitido tal recurso, foi ordenada a transcrição da prova (tendo, aliás, o
recorrente suportado os correspondentes custos) e subiram os autos àquele
Tribunal da Relação.
3.ª) Aqui, e para surpresa do recorrente, negou-se o douto Tribunal de Recurso a
sindicar os pontos da matéria de facto por si impugnados, decidindo que,
valendo, em matéria de prova (e em processo penal), o Princípio da Livre
Apreciação da Prova (cfr. artigo 127.º do Código de Processo Penal), e sendo a
audiência de julgamento regida pelos princípios da publicidade, oralidade e
imediação, apenas lho caberia caso o tribunal de 1.ª Instância tivesse violado
qualquer dos passos para a formação da sua convicção,
4.ª) Designadamente caso não existissem os dados objectivos apontados na
motivação, caso tivesse violado os princípios para a aquisição desses dados
objectivos ou caso não tivesse formado livremente a sua convicção, alegando não
poder a censura da forma de formação da convicção do Tribunal a quo “assentar de
forma simplista no ataque da fase final da formação da convicção, isto é, na
valoração da prova” (…).
Ora,
5.ª) A norma do artigo 428.º, n.º1, do Código de Processo Penal – norma onde se
estipula que as relações conhecem de facto e de direito, e para a qual remete
necessariamente o acórdão recorrido – viola, na interpretação que dela faz o
Tribunal da Relação de Coimbra, as disposições conjugadas dos artigos 32.º, n.º
1, e 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
Na verdade,
6.ª) Tal norma viola os ditos artigos 32.º, n.º 1, e 20.º, n.º 1, da
Constituição da República Portuguesa, uma vez que cerceia de forma drástica,
grosseira e intolerável as garantias de defesa do arguido, restringindo de
maneira insuportável o núcleo essencial do seu direito ao recurso em matéria de
facto para o Tribunal da Relação, violando de igual modo a garantia
constitucional do duplo grau de jurisdição, também nesta matéria, deturpando o
mesmo, infundada e insustentavelmente, a ratio e até a letra daquela norma
legal, defraudando as expectativas dos recorrentes e, porque não dizê-lo, a
vontade expressa do legislador.»
O Ministério Público apresentou as suas alegações, tendo formulado as
seguintes conclusões:
«1 – Não configurando a decisão recorrida uma tomada de posição
insólita ou inesperada, não estava o recorrente dispensado do ónus de ter
suscitado a questão de inconstitucionalidade de forma adequada no processo,
perante o tribunal que a proferiu, de modo a este estar obrigado a dela
conhecer, nos termos do artigo 72.º, n.º 2, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro,
motivo pelo qual, não o tendo feito, não deverá conhecer-se do recurso.
2 – A não entender-se assim, deverá o recurso improceder, uma vez que a
interpretação acolhida do artigo 428.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, não
viola o núcleo essencial do direito ao recurso, não padecendo de qualquer
inconstitucionalidade.»
Notificado para se pronunciar sobre o obstáculo ao conhecimento do
recurso suscitado pelo Ministério Público, o recorrente veio, em síntese,
reiterar que não era razoável exigir-lhe que antecipasse a interpretação com que
o Tribunal da Relação de Coimbra veio aplicar o n.º 1 do artigo 428º do Código
de Processo Penal.
4. Cumpre começar por determinar se o Tribunal Constitucional pode
conhecer do recurso, nomeadamente por ocorrer motivo suficiente para dispensar o
recorrente do ónus de suscitar a inconstitucionalidade 'durante o processo'
(artigo 70º, n.º 1, b) da Lei nº 28/82), ou seja, 'perante o tribunal que
proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela recorrer'
(n.º 2 do artigo 72º da mesma Lei).
Conforme o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, o recorrente só
pode ser dispensado do ónus de invocar a inconstitucionalidade ”durante o
processo” nos casos excepcionais e anómalos em que não tenha disposto
processualmente dessa possibilidade, sendo então admissível a arguição em
momento subsequente (cfr., a título de exemplo, os acórdãos deste Tribunal com
os nºs 62/85, 90/85 e 160/94, publicados, respectivamente, nos Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 5º vol., págs. 497 e 663 e no Diário da República, II,
de 28 de Maio de 1994).
Ora, no caso, o Ministério Público sustentou que a interpretação perfilhada pelo
acórdão recorrido para o n.º 1 do artigo 428º do Código de Processo Penal, e
que, nas alegações, descreve como tendo sido a de que 'a competência dos
Tribunais da Relação nos recursos interpostos que versem matéria de facto não
pode sobrepor-se e desrespeitar o princípio da livre apreciação da prova
concretizado no julgamento da 1ª instância e sujeito aos princípios da
oralidade, imediação, contraditório e publicidade', 'é a interpretação corrente
na nossa jurisprudência, embora, eventualmente, com formulações não
integralmente coincidentes'.
O n.º 1 do artigo 428º do Código de Processo Penal tem a seguinte redacção:
'1. As relações conhecem de facto e de direito'.
Como se viu, o acórdão recorrido fez a transcrição do sumário de um outro
acórdão do mesmo Tribunal sobre o significado do julgamento da matéria de facto
pelo tribunal de primeira instância, e, embora não explicitamente, sobre o
âmbito do recurso de uma decisão sobre tal matéria de facto. Nesse sumário
chama-se particularmente a atenção para a necessidade de articulação com os
princípios da oralidade, da imediação e da publicidade da audiência,
reconhecidamente só observáveis no julgamento em primeira instância e todos eles
'instrumental' ou 'estruturalmente' ligados ao princípio da livre apreciação da
prova.
A verdade, todavia, é que, muito embora o referido acórdão perfilhe as
considerações ali expendidas, limitou-se, ao julgar o recurso, a afirmar que
apenas lhe cabia 'verificar se da prova transcrita se pode concluir que os dados
objectivos indicados na fundamentação da sentença foram colhidos da prova
produzida' e que, 'feito o cotejo', respondia afirmativamente.
Verifica-se, assim, que o acórdão recorrido, muito embora se não tenha afastado
da jurisprudência corrente ao afirmar em abstracto como se articulam
determinados princípios relativos à produção e à apreciação da prova, revelou
que, na sua óptica, tal afirmação de princípio permitia um julgamento de facto
resumido àquela afirmação de que o 'cotejo' foi efectuado, não sendo exigível ao
tribunal de recurso que demonstre que, no caso concreto, a matéria de facto
dada como provada tinha efectivamente suporte objectivo na fundamentação da
sentença recorrida.
Considera-se, nestes estritos limites, que não era exigível ao recorrente que
antecipasse esta interpretação do n.º 1 do artigo 428º do Código de Processo
Penal, enquanto articulado com os referidos princípios.
Assim sendo, entende-se não existir qualquer impedimento ao conhecimento do
recurso.
5. Antes, porém, há que fazer duas observações, com o objectivo de
clarificar o que está em causa no presente recurso.
Em primeiro lugar, a de que se trata de um caso em que as declarações oralmente
produzidas em audiência foram documentadas, não havendo portanto obstáculo,
deste ponto de vista, a que o tribunal de 2ª instância conheça do recurso
relativo à decisão sobre a matéria de facto (n.ºs 1 e 2 do artigo 428º do Código
de Processo Penal).
Em segundo lugar, a de que não está em causa qualquer renovação de prova,
prevista no artigo 430º do Código de Processo Penal, mas tão somente uma
impugnação por via de recurso.
6. Não é naturalmente a primeira vez em que o Tribunal Constitucional é
confrontado com a extensão dos poderes de conhecimento do tribunal de recurso
quando o mesmo versa sobre a matéria de facto, e com a necessidade de
articulação desses poderes com os princípios relativos à produção e à valoração
da prova no tribunal de 1ª instância, especialmente com o princípio da livre
apreciação da prova (consagrado, para o Processo Penal, no artigo 127º do
respectivo Código e, para o Processo Civil, no artigo 655º do Código
correspondente). Princípio esse que, não esqueçamos, vale também para o tribunal
de recurso.
Com efeito, e em síntese, tal articulação há-de necessariamente ter em conta que
as condições de que beneficia a primeira instância – em particular, a oralidade
e a imediação – para avaliar os depoimentos prestados no contexto de toda a
prova produzida se não verificam quando o tribunal de recurso vai julgar,
dispondo apenas de um registo dos depoimentos (aliás, no caso, objecto de
transcrição).
Isso mesmo se salienta no sumário do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
de 21 de Novembro de 2001, proferido no recurso n.º 926/2001, transcrito no
acórdão recorrido.
Não é pois de considerar lesiva do direito ao recurso garantido pelo n.º 1 do
artigo 32º da Constituição uma interpretação no n.º 1 do artigo 428º do Código
de Processo Penal que, no fundo, restrinja o âmbito do julgamento do recurso da
matéria de facto à verificação de que as conclusões a que chegou o tribunal de
primeira instância são ou não racionalmente suportáveis nos meios de prova em
que se baseou. É aliás esse um dos objectivos apontados à obrigatoriedade de
fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, como se sabe (cfr., quanto à
jurisprudência do Tribunal Constitucional, o acórdão n.º 680/98, Diário da
República, II série, de 5 de Março de 1999, por exemplo).
A verdade é que essa verificação tem de ser efectuada pelo tribunal de recurso.
Como escreveu no acórdão n.º 415/2001 (Diário da República, II série, de 30 de
Novembro de 2001), embora a propósito do artigo 712º do Código de Processo
Civil, 'é manifesto que, para julgar um recurso de uma decisão sobre matéria de
facto, interposto com o fundamento de que tal decisão resulta de uma errada
apreciação de depoimentos testemunhais em que se baseou, o tribunal de 2ª
instância tem, naturalmente, que proceder à apreciação desses depoimentos. Nessa
apreciação, igualmente feita nos termos do princípio da livre apreciação da
prova, mas obtida apenas a partir do registo de depoimentos que a 1ª instância
pode valorar com respeito pela regra da imediação, o tribunal de recurso forma
a sua própria convicção. Essa convicção pode, naturalmente, coincidir ou não com
a que se formou na 1ª instância (…)'.
O mesmo se pode dizer, como é evidente, de outros meios de prova sujeitos à
regra da livre apreciação (como documentos sem valor probatório tabelado)
utilizados pela 1ª instância e apontados pelo recorrente como levando a
conclusão diversa, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 412º do Código de
Processo Penal.
7. Assim, tal como se considerou, no citado acórdão n.º 680/98, que era
inconstitucional a interpretação do n.º 2 do artigo 374º do Código de Processo
Penal de 1987 (versão originária) segundo a qual a fundamentação das decisões em
matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados
em 1ª instância, não exigindo a explicitação do processo de formação da
convicção do tribunal, já que vinha, 'na prática, inviabilizar o direito ao
recurso ou ao duplo grau e jurisdição em matéria de facto, consagrados no n.º 1
do artigo 32º da Constituição, ainda que se conceba esta garantia e aquele
direito como tendo um âmbito e uma dimensão reduzidos por comparação com a
matéria de direito', também agora se julga inconstitucional a norma objecto do
presente recurso, por igualmente inutilizar a garantia de recurso relativo à
decisão sobre a matéria de facto (nos termos e com o âmbito permitidos pela
versão actual do Código de Processo Penal).
8. Nestes termos, decide-se:
a) Julgar inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 428º do Código de Processo
Penal, quando interpretada no sentido de que, tendo o tribunal de 1ª instância
apreciado livremente a prova perante ele produzida, basta para julgar o recurso
interposto da decisão de facto que o tribunal de 2ª instância se limite a
afirmar que os dados objectivos indicados na fundamentação da sentença objecto
de recurso foram colhidos na prova produzida, transcrita nos autos;
b) Conceder provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformulada
de acordo com o julgamento de inconstitucionalidade.
Lisboa, 16 de Fevereiro de 2007
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Vítor Gomes
Bravo Serra
Gil Galvão
Artur Maurício