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Processo n.º 912/06
Plenário
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. O Partido da Nova Democracia (PND) interpôs recurso, ao
abrigo do n.º 3 do artigo 46.º da Lei Orgânica n.º 2/2005, de 10 de Janeiro, da
seguinte decisão da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos (ECFP):
“DECISÃO
Processo 13/CPP-2006
Infractor: Partido da Nova Democracia - PND
Assunto: Não observância do dever de comunicação de dados
DOS FACTOS
A Entidade das Contas e Financiamentos Políticos constatou que o Partido da Nova
Democracia não comunicou as acções de propaganda política realizadas no decurso
do ano de 2005, bem como os meios nelas utilizados que envolveram um custo
superior a 1 salário mínimo mensal nacional, cujo cumprimento era devido até ao
dia 31 de Maio de 2006.
Nessa medida, procedeu-se ao levantamento de auto de notícia, no qual foram
indicados os factos relativos à infracção, bem como a transcrição das normas
jurídicas aplicáveis à situação - artigo 16°, n°s 2, 3 e 5, da Lei n.º 2/2005,
de 10 de Janeiro, e acessoriamente o n° 1 do artigo 26° da Lei n.º 19/2003, de
20 de Junho.
DO DIREITO
I) Entidade competente para o processamento da contra-ordenação e a aplicação da
comia.
É da competência da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos, adiante
designada por ECFP, a aplicação das sanções previstas na Lei Orgânica n.º
2/2005, de 10 de Janeiro, ou seja, a aplicação das coimas aos mandatários
financeiros, candidatos às eleições presidenciais, primeiros candidatos de cada
lista, primeiros proponentes de grupos de cidadãos eleitores e partidos
políticos, pelo incumprimento dos deveres de comunicação e de colaboração
(artigos 46°, n.º 2, e 47° da Lei n.º 2/2005 referida).
Das decisões da ECFP cabe recurso de plena jurisdição para o Tribunal
Constitucional, em plenário (artigo 46°, n° 3, do mesmo diploma).
II) As normas aplicáveis
As matérias relativas ao financiamento dos partidos políticos e das campanhas
eleitorais encontram expressão legal na Lei n.º 19/2003, de 20 de Junho, e na
Lei Orgânica n.º 2/2005, de 10 de Janeiro.
Os mencionados diplomas legais entraram em vigor no início de 2005 e
introduziram diversos aspectos inovadores comparativamente ao quadro legal
anteriormente aplicável e que consistem, entre outros, na ampliação e reforço
das atribuições da nova entidade fiscalizadora, no acréscimo de deveres e
obrigações dos partidos e candidaturas, na introdução de novos comandos ao nível
das receitas e despesas num quadro sancionatório mais penalizador, prevendo,
nalgumas situações, a pena de prisão.
No actual regime do financiamento dos partidos e das campanhas está instituído o
dever de comunicação de dados à ECFP.
Conforme o disposto no artigo 16° da Lei Orgânica n.º 2/2005, de 10 de Janeiro,
os partidos políticos estão obrigados a comunicar à Entidade as acções de
propaganda política que realizem, bem como os meios nelas utilizados, que
envolvam um custo superior a um salário mínimo, até à data de entrega das contas
dos partidos.
Tal obrigação de comunicação de dados é independente da obrigação de prestação
das contas e não se confunde com esta, quer ao nível das regras que regulam o
seu cumprimento, quer ao nível da punição, em caso de incumprimento.
Apesar de o prazo de cumprimento dessa obrigação se reportar ao limite do prazo
para entrega das contas anuais dos partidos, a comunicação de dados em causa nos
presentes autos é uma obrigação autónoma e, por isso, não integrada na prestação
de contas.
É pressuposto da vida de qualquer partido político realizar acções de propaganda
política para atingir os seus fins próprios. Estamos a falar das actividades
permanentes dos partidos políticos de difusão - nas suas variadas formas - dos
programas partidários e das ideias e posições politicas com o objectivo último
de manter a fidelidade dos seus filiados e apoiantes e de angariar a confiança
dos indecisos e restante eleitorado.
Em suma, trata-se de qualquer actividade que seja relevante para a formação ou
determinação da consciência politica de qualquer cidadão, distinguindo-se das
actividades estritamente eleitorais, necessariamente efémeras.
Se porventura não forem realizadas acções de propaganda política no seio da vida
partidária, hipótese académica que se admite, ainda assim permanece uma
obrigação declarativa de menção desse facto à ECFP, a entidade que tem a
competência de valorar essa situação, de forma a evitar a instauração de
processo de contra-ordenação.
A violação do preceito acima referido constitui contra-ordenação punível nos
termos do artigo 47° do mesmo diploma, sob a epígrafe “Incumprimento dos deveres
de comunicação e colaboração” e cujo teor é o seguinte:
«1 - Os mandatários financeiros, os candidatos às eleições presidenciais, os
primeiros candidatos de cada lista e os primeiros proponentes de grupos de
cidadãos eleitores que violem os deveres previstos nos artigos 15.º e 16º são
punidos com coima mínima no valor de 2 salários mínimos mensais nacionais e
máxima no valor de 32 salários mínimos mensais nacionais.
2 - Os partidos políticos que cometam a infracção prevista no n.° 1 são punidos
com coima mínima no valor de 6 salários mínimos mensais nacionais e máxima no
valor de 96 salários mínimos mensais nacionais.»
DA DEFESA
O Partido da Nova Democracia foi regularmente notificado nos termos e para os
efeitos do artigo 50º do DL n.º 433/82, de 27 de Outubro.
Assim, em fase de audiência escrita, o PND pronunciou-se no sentido de não ter
realizado qualquer acção de propaganda política superior a um salário mínimo
nacional durante o ano de 2005 e, por esse facto, não efectuou qualquer
comunicação à ECFP.
FUNDAMENTAÇÃO - Análise jurídica
O Partido da Nova Democracia, em resposta à contra-ordenação, nega a existência
de acções de propaganda politica no decurso do ano de 2005.
O fundamento invocado não isentava o PND de, em tempo, declarar esse facto à
ECFP de forma a cumprir a obrigação legal, conforme já referido.
Tal conduta de não observância é punida nos termos do nº 2 do artigo 47º da Lei
Orgânica n.º 2/2005, de 10 de Janeiro, e no caso em concreto não existem causas
que excluam a culpa do arguido e a ilicitude do facto.
O arguido, ao actuar do modo descrito, agiu com dolo, pelo que a sua conduta é
culposa, típica e ilícita, inserindo-se no tipo legal do n° 2 do artigo 47°
mencionado.
Preenchidos os requisitos legais determinantes da violação prevista na norma
indicada, resta determinar a punição concreta, calculada em função da gravidade
da contra-ordenação, da culpa, da situação económica do agente e do beneficio
económico que este retirou da prática da contra-ordenação, como dita o artigo
18°, n.° 1, do Regime Geral das Contra‑Ordenações (DL n.º 433/82, de 27 de
Outubro).
É evidente que o arguido, com a sua conduta, violou interesses de ordem pública
legalmente protegidos, mas a falta cometida é de gravidade reduzida e a culpa do
arguido atenuada atendendo ao facto de não terem sido realizadas acções de
propaganda politica, conforme o invocado e do qual a ECFP não tem razões para
denegar.
Nessa medida, atenta a diminuta gravidade da infracção, considera-se que as
finalidades da norma punitiva podem ser asseguradas por via da aplicação de uma
admoestação, pelo que se entende utilizar a faculdade prevista no artigo 51° do
Regime Geral das Contra-Ordenações (DL n.º 433/82, de 27 de Outubro).
CONCLUSÃO
Julga-se o Partido da Nova Democracia autor da contra-ordenação prevista e
punida no n.º 2 do artigo 47° da Lei Orgânica n.º 2/2005, de l0 de Janeiro.
Julgada verificada a infracção e ponderados os factores que devem ser atendidos,
afigura-se possível o restabelecimento da paz jurídica necessária proferindo-se
para o efeito uma admoestação, que se fará nos termos seguintes:
“Adverte-se o Partido da Nova Democracia que observe o estrito cumprimento do
preceituado no artigo 16°, n° 2, da Lei Orgânica n.º 2/2005, de 10 de Janeiro,
em toda a sua extensão e alcance jurídico.”
Esta decisão torna-se definitiva e exequível se não for judicialmente impugnada
nos termos do artigo 59° do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, com as
alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro e pela
Lei n.º 109/2001, de 24 de Dezembro, e do artigo 46°, n.° 3, da Lei Orgânica n.º
2/2005 de 10 de Janeiro.
Lisboa, 22 de Setembro de 2006
O Presidente da Entidade
[assinatura]
José Miguel Fernandes”
2. O Partido recorrente pede a revogação da decisão recorrida,
alegando, em síntese, que só existe dever de comunicação, nos termos do n.º 2 do
artigo 16.º da Lei Orgânica n.º 2/2005, quando as acções de propaganda política
envolvam um custo superior a um salário mínimo nacional. No exercício financeiro
de 2005, o PND não realizou qualquer acção de propaganda política cujo custo
tenha atingido esse limiar. Assim, a decisão recorrida tem de ser revogada
porque assenta numa interpretação extensiva da norma aplicada, o que deve
considerar-se proibido, atendendo à sua natureza sancionatória.
3. O recurso foi remetido ao Tribunal Constitucional pela ECFP,
instruído com fotocópia das peças do processo administrativo em que foi
proferida a decisão recorrida e foi objecto de distribuição.
Por despacho liminar do relator, o processo foi com “vista” ao
Ministério Público, que se pronunciou nos termos seguintes:
1. Na sequência da aplicação de admoestação em processo contra‑ordenacional,
pela Entidade das Contas e Financiamentos Políticos, veio o Partido da Nova
Democracia interpor recurso para o Tribunal Constitucional. Tal recurso foi
apresentado àquela Entidade que o enviou directamente para o Tribunal
Constitucional. É este recurso que está agora em causa, oferecendo‑se‑nos
abordar a propósito três questões:
2. A primeira tem que ver com o recurso e sua admissibilidade. Dispõe a Lei n°
2/2005, de 10 de Janeiro, no artigo 46°, n.º 3 (vide, também, artigo 23°) que
“Das decisões da Entidade previstas no n° 2 cabe recurso de plena jurisdição
para o Tribunal Constitucional, em plenário”. Tendo sido aplicada uma
admoestação, medida prevista no Regime Geral das Contra‑Ordenações (Dec.Lei n°
433/82, de 27/10), ao abrigo do artigo 51°, segundo a fundamentação da Entidade,
esta constitui a sanção que legitima, nos termos dos n°s 2 e 3 do artigo 46° da
Lei 2/2005, a via recursal.
3. Uma segunda questão tem que ver com a tramitação do presente processo. Como
já noutra ocasião se disse (P° 60/06, 3ª Secção), o envio directo do recurso ao
Tribunal Constitucional pressupõe o entendimento da não aplicação do artigo 62°
do RGCO, o qual prevê a remessa prévia dos autos ao Ministério Público. Sendo
aplicável ao presente processo, como é liminarmente admitido desde logo pela
Entidade, o Regime Geral das Contra-Ordenações, exceptuando-se, evidentemente,
normas especiais que disponham em contrário àquele, seria então aplicável a
normatividade decorrente daquele preceito do Capítulo IV daquele Regime Geral, o
que determinaria que o processo, instruído com o recurso, fosse enviado para o
Ministério Público, que o apresentaria ao juiz (leia-se, Tribunal
Constitucional).
4. Finalmente, e sem prejuízo do referido em 3., sempre se dirá que a
interpretação legal que é feita pela Entidade para sustentar a admoestação não
se nos afigura ter arrimo na letra e no espírito da lei. Para a Entidade, toda e
qualquer acção de propaganda politica deve ser-lhe comunicada, porquanto “Se
porventura não forem realizadas acções de propaganda politica no seio da vida
partidária, hipótese académica que se admite, ainda assim permanece uma
obrigação declarativa de menção desse facto à ECFP, a entidade que tem a
competência de valorar essa situação, de forma a evitar a instauração de
processo de contra-ordenação “.
O facto imputado ao ora recorrente estaria coberto pela normatividade do artigo
16°, n° 2, da Lei n.º 2/2005, de 10 de Janeiro, que dispõe:”Os partidos
políticos estão também obrigados a comunicar à Entidade as demais acções de
propaganda politica que realizem, bem como os meios nela utilizados, que
envolvam um custo superior a um salário mínimo “. Como bem se vê da leitura da
norma, a obrigação só se verifica quando as acções “envolvam um custo superior a
um salário mínimo”. Com efeito o último segmento da norma caracteriza as acções
para efeitos de determinar a sua comunicação obrigatória. Não está em causa toda
e qualquer acção, mas apenas a(s) que envolva(m) um certo valor. O que se
pretende não é fiscalizar toda e qualquer acção propagandística mas a receita e
despesa envolvidas, desprezando-se valores abaixo de certo valor. Este é, a
nosso ver, o sentido da norma.
4. O relator apresentou memorando. Concluída a discussão e
formada a decisão do Tribunal sobre as questões colocadas, cumpre elaborar o
acórdão em conformidade.
II – Os factos
5. Os factos com interesse para decisão da causa, todos
documentalmente provados, são os seguintes:
a) Por deliberação de 19 de Julho de 2006 (Acta n.º 40) a ECFP instaurou
processo de contra-ordenação contra o Partido da Nova Democracia (Proc.
13/CPP-2006), com base em auto de notícia, pelos factos seguintes:
“Factos que constituem infracção
1. Não observância do dever de comunicação de dados
Em sede de contas relativas ao ano de 2005, o Partido da Nova Democracia não
comunicou à Entidade das Contas as acções de propaganda política que realizaram
no decurso do referido ano, bem como os meios nelas utilizados, que envolveram
um custo superior a um salário mínimo, o que era obrigatório, impreterivelmente,
até ao dia 31 de Maio de 2006.”
b) Na defesa que apresentou no processo de contra-ordenação, o PND alegou
que todas as acções de propaganda política desenvolvidas no ano de 2005 tiveram
custos inferiores a um SMN ou mesmo custo zero, pelo que não havia lugar a
comunicação nos termos do n.º 2 do artigo 16.º da Lei Orgânica n.º 2/2005.
c) Na reunião de 12 de Setembro de 2006, a ECFP analisou a “metodologia
das coimas a aplicar” nos termos que constam da Acta n.º 41, tendo estabelecido,
além do mais, que “Todos os PPs que não apresentaram a Lista de acções e meios
ficam sujeitos a sanção e admoestação” e um processo de cálculo das coimas que
culmina numa tabela de sanções relativamente aos partidos com representação
parlamentar;
d) Na reunião da ECFP de 19 de Setembro de 2006, foi apreciado o assunto
“Processo de contra-ordenação – coimas a aplicar”, que ficou assim documentado
na acta respectiva (Acta n.º 42)
“(…)
Outros assuntos
1. Processo de contra-ordenação – coimas a aplicar
JG pediu a palavra, para afirmar que a solução a adoptar deveria descriminar
positivamente o PS pois tinha sido o único partido a apresentar mapa de acções e
respectivos meios.
De igual forma deveria ser aceite a proposta da nossa AJ de redução das penas a
metade.
JMF explicitou aos presentes duas tabelas de penalizações, resultantes uma, do
modelo aprovado e da forma como foi aprovado e outra das alterações nas acções
introduzidas pelos serviços.
Este facto, segundo JMF numa penalização muito agressiva de um partido político.
Desta forma compilou esse partido, apenas as acções que introduziam penalidades
e passou a descrevê-la uma a uma.
Foi unânime a concordância de uma revisão a todos os partidos dado a falta de
consistência adoptado nos vários critérios.
Dessa forma foi repetido o exercício para todos os partidos com representação
parlamentar, tendo-se decidido pela exclusão de um conjunto de acções,
interrogação a serem estudadas para outras e assinalaram-se como acções de
penalização outras ainda.
O estudo completo e pormenorizado deveria pois ser refeito pela Luísa, para a
realização de testes de consistência.
Foi decidido que o PEV deveria ser discriminado positivamente, porque embora só
tenha notificado a ECFP de duas acções e a ECFP detectou mais 5 acções foi o
único partido que teve o cuidado de notificar a ECFP ao longo do ano. Dessa
forma será o único partido sem qualquer sanção.
Todos os partidos sem representação parlamentar serão admoestados.
Dos partidos com representação parlamentar o BE será admoestado, uma vez que o
resultado acumulado dos dois braços dá 2 smn e o mínimo de pena é de 6 smn.
Os restantes quatro partidos apresentam a seguinte estrutura de penas:
Partido Socialista – 9 smn
Partido Social Democrata – 15 smn
Partido Popular – 16 smn
Partido Comunista – 26 smn”
e) Por carta de 22 de Setembro de 2006, o PND foi notificado, no âmbito
do Proc. n.º 13/CPP-2006, “da decisão proferida por esta Entidade das Contas e
dos Financiamentos Políticos, reunida em plenário no dia 19 de Setembro do
corrente ano, que junto se remete”, que incluía a “Decisão” acima transcrita,
assinada somente pelo Presidente da Entidade.
f) O PND recebeu essa notificação em 28 de Setembro de 2006.
III – O direito
6. A Entidade das Contas e Financiamentos Políticos instaurou,
contra o partido político recorrente, um processo de contra-ordenação, por
violação do dever de comunicação das acções de propaganda política estabelecido
pelo n.º 2 do artigo 16.º da Lei Orgânica n.º 2/2005, de 10 de Janeiro, que veio
a culminar numa decisão de admoestação, aplicada ao abrigo do disposto no artigo
51.º do Regime Geral das Contra-Ordenações. Como resulta da matéria de facto
provada, essa decisão foi notificada ao recorrente como tendo sido tomada por
aquele órgão colegial em reunião de 19 de Setembro de 2006, mas o que acompanhou
a notificação foi um texto datado de 22 de Setembro de 2006 e assinado, apenas,
pelo Presidente da Entidade. É desse acto, assim oficialmente comunicado, que
vem interposto o presente recurso, ao abrigo do n.º 3 do artigo 46.º da referida
Lei Orgânica n.º 2/2005.
Antes de entrar na apreciação do mérito do
recurso, na sequência do parecer do Ministério Público, importa ponderar duas
questões prévias:
- Se a decisão impugnada, consistindo numa admoestação e não na aplicação de uma
coima, é susceptível de recurso;
- Qual o regime de tramitação do recurso previsto no n.º 3 do artigo 46.º da Lei
Orgânica n.º 2/2005.
6.1. Com efeito, já se tem defendido que a decisão que aplica uma admoestação,
nos termos do artigo 51.º do Regime Geral das Contra-Ordenações (RGCO), não
constitui uma decisão impugnável jurisdicionalmente (cfr. Frederico de Lacerda
da Costa Pinto, 'O ilícito de mera ordenação social e a erosão do princípio da
subsidiariedade da intervenção penal', Revista Portuguesa de Ciência Criminal,
ano 7.º, fasc.1, pág. 89 e segs.).
Nesse sentido, pode argumentar-se, desde logo, com a letra da
lei, designadamente com o disposto no n.º 1 do artigo 58.º ('A decisão que
aplica a coima ou as sanções acessórias …') e no n.º 1 do artigo 59.º ('A
decisão da autoridade administrativa que aplica uma coima é susceptível de
impugnação judicial'), que sugerem que o legislador não considerou o acto
mediante o qual a autoridade administrativa concluiu o procedimento
contra‑ordenacional mediante a aplicação de uma admoestação como sendo uma
'decisão condenatória' e que recortou o direito de impugnação judicial em função
da aplicação de coima ou de sanções acessórias.
Adianta-se que, pelo menos quanto às decisões da EFCP do tipo
daquela que agora está em causa, esta conclusão não é aceitável.
É certo que o único efeito que a lei expressamente comina para
a admoestação é o efeito, favorável ao agente, de o facto não poder voltar a ser
apreciado como contra‑ordenação (n.º 2 do artigo 51.º do RGCO). Mas a decisão
não deixa, por isso, de constituir o acto final do processo de contra-ordenação
e de concluir esse processo com a afirmação de que a conduta do agente constitui
um facto ilícito e censurável e de tirar as respectivas consequências no
exercício de um poder público sancionatório. Embora como autor de um facto de
reduzida gravidade e praticado com culpa diminuta, o agente é censurado pela
violação de normas a que a lei faz corresponder um ilícito típico no domínio do
ordenamento em causa. A autoridade administrativa não se limita a expressar o
seu entendimento sobre um modo de agir; admoesta, censura, repreende o agente
por ter agido ilicitamente.
Deste modo, a decisão que profere uma admoestação é
materialmente sancionatória (i.e., define unilateralmente, no exercício do poder
público de aplicação de sanções por ilícito de mera ordenação social, a situação
do agente como merecedor de uma censura e advertência para que passe a agir de
outro modo) e procedimentalmente definitiva (i. e., não é preparatória de
qualquer outro acto no seio desse mesmo procedimento). Comporta, em si mesmo,
potencialidade lesiva para a esfera jurídica do destinatário, pelo que não pode
deixar de ser, em princípio, susceptível de impugnação judicial (n.º 4 do artigo
268.º da Constituição).
Não se exclui que haja situações em que à lesividade abstracta
da decisão de admoestação não corresponda a afectação, em concreto, de qualquer
aspecto da esfera jurídica do destinatário com dignidade para abrir a via de
impugnação judicial e em que, por falta de qualquer outro pressuposto processual
(v. g., o interesse em agir), deva rejeitar-se o recurso. Mas, não é o que
sucede em matéria de contas e financiamentos dos partidos políticos. Este é um
aspecto da actividade dos partidos sobre que incide a particular atenção da
opinião pública, de modo que a afirmação de que um determinado partido político
não cumpriu ou foi menos escrupuloso no cumprimento dos seus deveres nesta
matéria é susceptível de afectar a sua imagem junto do eleitorado,
fragilizando-o na prossecução dos seus objectivos.
Deste modo, entende-se que a decisão impugnada é susceptível de recurso ao
abrigo do n.º 3 do artigo 46.º da Lei Orgânica n.º 2/2005.
6.2. Poderia ainda colocar-se, na sequência do mesmo parecer do Ministério
Público, o problema da determinação do regime de processamento do recurso,
designadamente, saber se deve obedecer, com as necessárias adaptações, à
tramitação regulada nos artigos 59.º e seguintes do RGCO, ou se continua
aplicável aos recursos de decisões administrativas em matéria de ilícito de mera
ordenação social para que o Tribunal Constitucional seja competente a previsão
especial do artigo 102.º-C da LTC, numa interpretação actualista do preceito que
o adapte às decisões da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos neste
domínio.
Sucede, porém, que a concreta evolução processual e a decisão
que vai proferir‑se quanto ao mérito do recurso tornam desnecessária uma
resposta conclusiva quanto a esta matéria, porque nenhum acto deveria ser
anulado ou praticado em consequência dessa opção, nem esta é susceptível de ter
qualquer repercussão na aquisição do material de ponderação ou no sentido da
decisão da causa que se prefigura.
Com efeito, a eventual nulidade que pudesse suscitar-se, em decorrência de o
processo não ter tido o encaminhamento previsto no artigo 62.º do RGCO (suposta
a aplicabilidade deste regime, bem entendido), teria ficado sanada pelo “visto”
inicial do Ministério Público, que assim teve oportunidade de se pronunciar
quanto ao mérito nos termos sobreditos, atingindo-se o fim visado pela norma. A
circunstância de a intervenção do Ministério Público ter ocorrido depois da
distribuição não é susceptível de afectar os poderes dos sujeitos processuais no
processo de contra-ordenação ou o exame e decisão da causa, pelo que se degrada
em irregularidade irrelevante.
É certo que a opção por um ou outro regime poderá reflectir-se
no prazo de interposição do recurso (cfr. n.º 3 do artigo 59.º do RGCO e n.º 2
do artigo 102.º-C da LTC). Esse seria um dos seus aspectos mais gravosos. Porém,
também quanto a essa questão a opção é, quanto à solução última do caso,
irrelevante.
Com efeito, a inobservância do prazo de 10 dias, previsto no
n.º 2 do artigo 102.º-C da LTC sempre seria de julgar justificada, no caso
concreto, considerando que à ambiguidade do quadro normativo se soma a
informação da autoridade recorrida, prestada no cumprimento de um dever legal
específico (alínea a) do n.º 2 do artigo 58.º do RGCO) de que a impugnação se
fazia nos termos do artigo 59.º do RGCO, portanto no prazo de 20 dias
estabelecido pelo n.º 3 deste preceito, que foi efectivamente respeitado. Na
verdade, a situação agora em apreciação diferencia-se daquelas que foram
consideradas nos Acórdãos n.º 380/2003, publicado no Diário da República, II
Série, de 21 de Outubro de 2003, e 381/2003, in www.tribunalconstitucional.pt,
num aspecto essencial para considerar que, no caso concreto, a apresentação do
recurso no prazo de 10 dias não era exigível a um destinatário normalmente
diligente do acto em causa, e que consiste na evidente ambiguidade do quadro
normativo resultante desta opção interpretativa e a novidade da sua aplicação
pelo Tribunal.
Adopta-se, assim, uma solução que se insere na linha, por
exemplo, do disposto no n.º 4 do artigo 58.º do Código de Processo nos Tribunais
Administrativos ou no n.º 3 do artigo 198.º do Código de Processo Civil.
7. Isto posto, importaria passar à análise da questão colocada pelo recorrente e
que consiste em determinar a extensão do dever de comunicação das acções de
propaganda política estabelecido pelo n.º 2 do artigo 16.º da Lei Orgânica n.º
2/2005.
Sucede, porém, que uma outra questão de conhecimento prioritário e oficioso se
coloca, face aos termos em que a decisão recorrida se mostra praticada.
A competência para aplicar coimas cabe à ECFP, enquanto órgão
colegial (n.º 2 do artigo 46.º da Lei Orgânica n.º 2/2005), em deliberação
tomada, pelo menos, por dois votos favoráveis (artigo 12.º da mesma Lei).
Sucede que, apesar de o ofício dirigido ao partido político recorrente
identificar como objecto da notificação a 'decisão proferida por esta Entidade
das Contas e dos Financiamentos Políticos, reunida em plenário no dia 19 de
Setembro do corrente ano', a realidade que os autos demonstram não corresponde a
esta norma de competência. Com efeito, a decisão que acompanhou o ofício de
notificação (fls. 9-13) é datada de 22 de Setembro de 2006 e mostra-se assinada,
apenas, pelo Presidente da Entidade.
Torna-se, pois, necessário interpretar esta actuação em ordem a
determinar qual é o acto conclusivo do procedimento contra-ordenacional
instaurado contra o PND com base no auto de notícia de 20 de Julho de 2006, o
que há-de resultar do teor literal dos actos a interpretar, do seu tipo legal e
da sequência procedimental em que surgem.
Ora, como resulta da matéria de facto assente, não há
correspondência entre a autoria efectiva do acto e os termos em que se pretendeu
fazê-lo valer. A aplicação da admoestação é oficialmente imputada ao órgão
colegial, mas a decisão foi efectivamente proferida pelo Presidente. Com efeito,
é nesta decisão individual, e não na deliberação referida na acta da reunião de
19 de Setembro de 2006 (acta n.º 42), que se identifica o arguido, se descrevem
os factos imputados, se examina a defesa apresentada, se determinam as normas
aplicáveis e se procede à análise jurídica correspondente e se concluiu pela
individualização da sanção, face à gravidade do ilícito e ao grau de culpa.
É certo que da acta daquela reunião consta o seguinte: 'Todos
os partidos sem representação parlamentar serão admoestados'. E que, tratando-se
de órgão colegial que desenvolve funções materialmente administrativas, embora
não integrando a Administração Pública em sentido próprio, na falta de regime
especial, a deliberação pode ser documentada em acta, não sendo requisito de
existência ou validade do acto que este se expresse em instrumento assinado por
todos os membros que tomaram a deliberação (cfr. artigos 2.º, n.º 1, e 27.º do
Código do Procedimento Administrativo). Designadamente, não são neste domínio
aplicáveis supletivamente as regras de elaboração e assinatura da sentença em
processo penal (artigo 372.º do CPP). A remissão efectuada pelo n.º 1 do artigo
41.º do RGCO para as normas de processo criminal, que se constituem
genericamente em normas integradoras do processo contra-ordenacional, não
significa que a resposta deva ser procurada nas normas e categorias de
invalidade do Código de Processo Penal. Como se demonstrou no Acórdão n.º
50/2003, Diário da República, II Série, de 16 de Abril, é decorrência lógica da
opção legislativa de atribuir às autoridades administrativas a competência para
aplicação das coimas que, no silêncio da lei, as normas de organização e
funcionamento dos órgãos administrativos, designadamente dos órgãos colegiais,
tenham plena aplicação à decisão de aplicação de coimas. Seria, assim,
admissível, por exemplo, que a decisão se consubstanciasse na aprovação pelo
órgão colegial de uma proposta que satisfizesse os requisitos do artigo 58.º do
RGCO, com mera documentação em acta dessa aprovação.
Porém, tal manifestação de intenção punitiva não satisfaz as exigências da
decisão individualizada do processo de contra-ordenação impostas pelo artigo
58.º do RGCO. Estes requisitos essenciais para o tipo de acto em causa só vieram
a estar presentes na decisão que, três dias mais tarde, o Presidente
individualmente subscreveu, embora vindo a apresentá-la ao recorrente como sendo
a deliberação do órgão colegial. Não há naquela deliberação, sequer, a
identificação dos partidos ou dos processos de contra-ordenação que
individualmente lhes respeitam. Assim, não é possível, atendendo ao seu teor
literal (“os partidos .... serão”) e ao seu tipo legal, interpretar esta
deliberação de “admoestar” os partidos sem representação parlamentar como
contendo já a decisão do procedimento de contra-ordenação relativamente ao
Partido da Nova Democracia.
Com isto não se nega, bem entendido, ser intenção da Entidade sancionar todos
os partidos sem assento parlamentar com a medida de admoestação. Mas a
intervenção do órgão colegial ficou pelos trabalhos preparatórios e pela
apreciação genérica, não tendo havido, depois, a formação individualizada da
vontade do órgão particularmente dirigida à apreciação do caso, como é imposto
pelo artigo 58.º do RGCO. O que aparece como decisão conclusiva do processo de
contra-ordenação instaurado contra o partido político recorrente, ainda que em
correspondência com aquela intenção, é um acto elaborado apenas pelo seu
Presidente, embora notificado como se fosse do órgão colegial e para valer como
tal.
8. Importa, pois, saber qual a consequência deste vício.
O artigo 58.º do RGCO dispõe sobre o conteúdo da “decisão
condenatória” no processo de contra-ordenação, mas o diploma nada estabelece
quanto aos termos procedimentais de formação e expressão da vontade dos órgãos
colegiais, na hipótese de a decisão competir a um órgão deste tipo, pelo que lhe
são aplicáveis as regras gerais do Código do Procedimento Administrativo. Regras
que, na ausência de disciplina própria no respectivo diploma de organização e
funcionamento, se aplicam à ECFP, uma vez que, embora não integrada na
Administração Pública (artigo 2.º da Lei Orgânica n.º 2/2005), é um órgão do
Estado que, ao menos no exercício desta competência, desenvolve funções
materialmente administrativas (n.º 1, do artigo 2.º do Código do Procedimento
Administrativo).
Ora, como dizem M. Esteves de Oliveira, P. Costa Gonçalves e J.
Pacheco de Amorim, Código do Procedimento Administrativo, 2ª ed., pág. 146, “só
há vontade orgânica quando haja vontade colegial subjacente: a vontade
(pretensamente) imputada por qualquer um dos seus membros ao órgão colegial –
incluindo aquele que o representa – só tem essa qualidade se tiver sido formada
colegialmente. Caso contrário, não existe “vontade” do órgão e, portanto, não
existe acto – ou é nulo”. Este elemento essencial do acto, “não se manifesta
apenas na pluralidade de vontades, mas no próprio funcionamento do órgão: as
deliberações são apreciadas e tomadas conjunta e presencialmente pelos membros
do órgão colegial”. Assim, o facto de haver concordância entre a decisão tomada
pelo Presidente em apreciação concreta do processo de contra-ordenação
respeitante ao Partido da Nova Democracia e a manifestação de vontade anterior
no sentido de sancionar todos os partidos sem representação parlamentar com
“admoestação” não supre a falta de deliberação individualizada do órgão sobre
este concreto processo.
Deste modo, faltando-lhe um elemento essencial, o acto
recorrido enferma de nulidade, nos termos do n.º 1 do artigo 133.º do Código do
Procedimento Administrativo, base legal mais adequada à natureza do acto do que
a subsunção do defeito de formação da vontade do órgão na alínea a) do n.º 1 do
artigo 119.º do Código de Processo Penal, que seria a hipótese alternativa,
mediante a equiparação da decisão aplicativa da sanção à sentença em processo
penal. Com efeito, trata-se de infracção à disciplina respeitante ao regime
geral de funcionamento e processo decisório do órgão, enquanto órgão
administrativo, e não ao regime legal específico do procedimento de
contra-ordenação, que é o domínio de aplicação subsidiária das normas do
processo penal (artigo 41.º do RGCO).
Em qualquer dos enquadramentos, é vício de conhecimento oficioso, pelo que o
facto de não ter sido feito valer, seja pelo recorrente, seja pelo Ministério
Público, não obsta a que o Tribunal conceda provimento ao recurso com este
fundamento. Conclusão que, embora não obstando a que a que a ECFP venha a
deliberar sobre a matéria do processo de contra-ordenação em causa, prejudica a
apreciação das demais questões suscitadas.
III – Decisão
Pelo exposto, decide-se conceder provimento ao recurso,
declarando nulo o acto recorrido.
Sem custas.
Lisboa, 14 de Fevereiro de 2007
Vítor Gomes
Rui Manuel Moura Ramos
Benjamim Rodrigues
Bravo Serra
Gil Galvão
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Paulo Mota Pinto
Maria Helena Brito
Mário José de Araújo Torres
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Artur Maurício