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Processo n.º 847/05
1ª Secção
Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
Acordam no Tribunal Constitucional
1.1. A. recorre para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b) do
n.º 1 do artigo 70° da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro (LTC) do acórdão da
Relação de Lisboa proferido em 27 de Setembro de 2005 pelo qual foi
definitivamente negada ao arguido ora recorrente, com fundamento no n.º 1 do
artigo 3º da Lei n.º 45/2004 de 19 de Agosto, a possibilidade de designar um
consultor técnico para acompanhar a realização de perícias médicas ordenadas
pela autoridade judiciária sobre a personalidade de ofendidos e assistentes que
vão depor nos autos como testemunhas ou declarantes, deferidas ao Instituto
Nacional de Medicina Legal.
Pretende ver apreciada a questão da inconstitucionalidade daquela norma,
interpretada no sentido de que a 'restrição' prevista no aludido preceito '–
quanto à possibilidade de nomeação pelo arguido de um consultor técnico para
acompanhar as perícias realizadas no IML – se aplica na fase de julgamento'.
O recurso foi admitido com efeito devolutivo.
Na sua alegação, concluiu o recorrente:
A. A diligência em causa – a realização de novas perícias a alguns assistentes –
é crucial para a defesa, podendo mesmo ser decisiva para o resultado final do
julgamento, o que decorre dos autos não revelarem outra prova que não seja a das
declarações desses jovens.
B. Essa relevância é ainda substancialmente acrescida em função das deficiências
manifestas e graves que se verificam no processo de realização das anteriores
perícias, como está reconhecido na decisão instrutória e decorre do parecer do
Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos, bem como dos pareceres médicos
entretanto juntos aos autos.
C. O direito a indicar um consultor técnico para acompanhar essa perícia nos
termos do art. 155° nº 1 do C.P.P. – com as limitações que eventualmente
decorram dos actos médicos ou de audição psicológica que tenham lugar – é
garantia fundamental da defesa, pois permitir-lhe-á verificar a idoneidade, o
rigor e os eventuais problemas que o modo de produção das perícias suscite, em
que delicadas questões legis artis se poderão colocar.
D. Esse direito é ainda uma decorrência do princípio do contraditório, que,
neste segmento, se traduz na possibilidade de efectivo controlo das provas
produzidas, verificando se o seu processo de produção é idóneo e adequado para o
fim em causa, o que, em sede de julgamento, tem consagração constitucional, nos
termos do art. 32° nº 5 da CRP.
E. Na verdade, a mera sindicância a posteriori do resultado das perícias –
quando elas já tiveram lugar – não garante o exercício cabal e pleno do
exercício do contraditório, o qual há-de compreender:
• por um lado, a possibilidade, durante o decurso da produção do
meio de prova, serem apresentadas, através de consultor técnico, as sugestões
julgadas pertinentes, que os peritos acolherão ou não;
• por outro lado, a possibilidade de, durante o decurso da
produção do meio de prova, ser fiscalizada, através de consultor técnico, a
idoneidade da metodologia adoptada, verificando o cumprimento da legis artis.
F. Deste modo, a regra resultante da interpretação conjugada do art. 155° nº 1
do C.P.P. e do art. 3° nº 1 da Lei nº 45/2004, efectuada no acórdão recorrido,
bem como no despacho da 1ª instância, no sentido de que o arguido, na fase de
julgamento, não tem o direito de designar consultor técnico para acompanhar
perícias realizadas no INML, é inconstitucional, por ofensa do art. 32° nºs 1 e
5 da CRP .
G. A falta de justificação razoável – técnica, científica ou processual – para
essa limitação é a melhor demonstração da sua natureza desproporcionada, porque
desnecessária.
H. Uma nota para o argumento inaceitável de que, admitindo-o, se poria em causa
a independência do INML, que é uma entidade equidistante da acusação e da
defesa; basta recordar que os juízes também o são e, durante o julgamento, não
podem presidir à produção de prova sem a presença das partes processuais em
disputa.
I. Finalmente, quanto ao argumento da perda de eficiência dos serviços, a que o
acórdão recorrido também recorre, repetir-se-á que não se pretende que o
consultor médico esteja presente em todas as fases da diligência,
compreendendo-se as limitações que eventualmente decorram dos actos médicos a
realizar e até da funcionalidade dos serviços, tudo no quadro da razoabilidade e
da proporcionalidade (cfr. supra nº 6).
J. A limitação que a interpretação normativa em causa consagra ofende ainda o
princípio de um processo equitativo, que a CEDH acolhe.
Termos em que deve ser dado provimento ao recurso, com as legais consequências,
designadamente quanto à declaração de inconstitucionalidade da regra resultante
da interpretação normativa em pauta.
1.2. Contra-alegou o representante do Ministério Público neste Tribunal,
nos seguintes termos:
1. Apreciação da questão de constitucionalidade suscitada
O presente recurso foi interposto pelo arguido A. do acórdão da Relação de
Lisboa, que julgou não inconstitucional a norma constante do artigo 3°, nº 1, da
Lei nº 45/04, na parte em que inviabiliza a participação de consultores técnicos
nas perícias médico-legais realizadas em delegação do Instituto Nacional de
Medicina Legal.
Implicará, como pretende o recorrente, tal especificidade do regime das perícias
médico-legais, realizadas nos gabinetes e delegações do I.N.M.L., violação do
princípio constitucional das garantias de defesa?
Como é evidente, não pode inferir-se directamente da Constituição a existência
de um direito 'absoluto' e irrestrito das partes ou sujeitos processuais a
directamente assistirem e participarem nos exames médico-legais, realizados no
âmbito do próprio I.N.M.L., por si ou através dos consultores técnicos que os
coadjuvem nas matérias técnico-científicas envolvidas na prova pericial - sendo
inquestionavelmente legítimo ao legislador moldar um regime específico ou
particular para certos aspectos dos exames realizados no âmbito daquele
Instituto, tendo em conta a sua posição institucional - e de particular
credibilidade científica - e as necessidades de eficácia e bom funcionamento dos
serviços.
Não pode, na realidade, olvidar-se que não estamos perante exames realizados por
peritos 'ocasionais', nomeados 'ad hoc' para certo acto processual, mas face a
uma diligência probatória que tem lugar, de forma institucional, num serviço
público que tem como objecto precisamente a sistemática realização de perícias
de certa natureza, em condições de particular apuro e credibilidade científica.
Como é evidente, tal natureza peculiar da entidade que funciona como “perito”
determina um regime particular e específico, no que respeita, por exemplo, à
escolha e designação dos peritos, à indicação de data, hora e local da
diligência, à assistência aos exames e perícias a realizar (cfr., artigos 3°, nº
1, parte final e 6°, nº 4, da Lei nº 45/04, em conjugação com os artigos 154°,
155° e 156°, nº 2, do Código de Processo Penal).
Daqui decorre que é incorrecto o modo como o recorrente equaciona a questão de
constitucionalidade suscitada: não podendo inferir-se directamente da Lei
Fundamental um 'direito' de assistência e participação em todos os exames
periciais (incluindo os realizados institucionalmente no âmbito do I.N.M.L.), o
que importa apurar é se as possibilidades legais de efectivo contraditório, face
ao relatório pericial que venha a ser apresentado, se conformam ou não com o
princípio constitucional das garantias de defesa do arguido em processo penal.
A resposta a esta questão é inquestionavelmente positiva: na verdade, é lícito
aos sujeitos processuais - confrontados com o relatório pericial - requerer, não
apenas a prestação de esclarecimentos complementares pelos peritos (por esta via
se obtendo subsequentemente o resultado prático que radicaria numa eventual
assistência ao acto do 'consultor técnico', face ao previsto nos nºs 2 e 3 do
artigo 155° do Código de Processo Penal), como inclusivamente obter a realização
de nova perícia ou a renovação de perícia anterior, desde que (como refere o
artigo 589° do Código de Processo Civil) aleguem 'fundadamente as razões da sua
discordância relativamente ao relatório pericial apresentado', convencendo o
tribunal da indispensabilidade da realização da nova diligência para descoberta
e 'apuramento da verdade material” suprindo ou corrigindo 'a eventual
inexactidão dos resultados' da primeira perícia.
Na verdade, a reforma do processo civil de 1995/96 eliminou a regra que constava
do nº 3 do artigo 609° do Código de Processo Civil, na redacção originária,
segundo a qual não era admissível 'segundo arbitramento' quando o exame tivesse
sido realizado por 'estabelecimentos oficiais'- assegurando-se, pois, a partir
daí, a plena possibilidade de as partes ou sujeitos processuais sindicarem o
relatório pericial, seja qual for a entidade que actuou como perito, e exercerem
amplamente o contraditório relativamente ao juízo científico nele contido.
2. Conclusão
Nestes termos e pelo exposto, conclui-se:
1 - Não pode inferir-se directamente da Constituição qual o preciso regime
processual de realização de perícias médico-legais no âmbito do I.N.M.L., sendo
lícito ao legislador estabelecer algumas particularidades na respectiva
tramitação, tendo em conta a natureza da entidade que institucionalmente realiza
o exame, desde que não afronte o 'núcleo essencial' da garantia de o arguido
contraditar o relatório pericial e sindicar a consistência científica das
conclusões nele contidas.
2 - Tais garantias de contraditório e de defesa são plenamente asseguradas pelo
facto de o arguido ter integral acesso ao relatório pericial e poder obter dos
peritos os esclarecimentos que se revelem pertinentes, bem como a eventual
realização de uma segunda perícia, quanto tal se mostre indispensável ao
apuramento da verdade material.
3- Termos em que deverá improceder o presente recurso.
2. Cumpre decidir.
2.1. O presente recurso vem interposto do acórdão da Relação de Lisboa
que, na parte agora relevante, disse:
[...] 6. O objecto do recurso, tal como se mostra delimitado pelas respectivas
conclusões, reconduz-se à questão de saber se, tendo sido determinada a
realização de perícia, a efectuar pela Delegação de Lisboa do I.N.M.L., podem,
ou não, os arguidos designar consultor técnico para assistir à realização da
mesma.
II - 1. Segundo o Prof. Manuel da Andrade, a perícia consiste num meio de prova
que se traduz na “percepção por meio de pessoas idóneas para tal efeito
designadas, de quaisquer factos presentes, quando não possa ser directa e
exclusivamente realizada pelo juiz, por
necessitar de conhecimentos científicos ou técnicos especiais, ou por motivos de
decoro ou de respeito pela sensibilidade(legítima susceptibilidade) das pessoas
em quem se verificam tais factos; ou na apreciação de quaisquer factos (na
determinação das ilações que deles se possam tirar acerca doutros factos), caso
dependa de conhecimentos daquela ordem, isto é, de regras experiência que não
fazem parte da cultura geral ou experiência comum que pode e deve presumir-se no
juiz, como na generalidade das pessoas instruídas e experimentadas'.
Por sua vez, a perícia médico-legal tem lugar quando, para a percepção e
apreciação dos factos, sejam necessários especiais conhecimentos científicos do
domínio da medicina legal.
Como meio de prova organizado e produzido no próprio processo em que se utiliza,
encontra-se expressamente previsto na legislação processual, ou seja, no Código
de Processo Civil (art.568, n.º 3), no Código de Processo do Trabalho (art.100 e
segs.) e no Código de Processo Penal (art.159).
No caso, tendo sido determinada a realização de perícia destinada a avaliar a
capacidade dos assistentes para prestarem testemunho, nos termos do art.131, do
CPP, foi deferida a sua realização à Delegação de Lisboa do I.N.M.L., nos termos
do art.159º, do CPP.
Pretende o recorrente que lhe seja reconhecido o direito de indicar consultor
técnico para acompanhar tal perícia.
O Código de Processo Penal refere-se à figura do consultor técnico, nos seus
arts. 155, 156 n.º l, 157 n.º1, 317, 318, 331 e 350.
O consultor técnico não presta compromisso de honra (art.156, nº1) e não está
sujeito ao regime dos impedimentos, recusas e escusas, só previsto para o perito
(art.153).
A função do consultor técnico é de fiscalização, que exerce assistindo à
realização da perícia, com a possibilidade de intervir nos termos do art.155,
n.º 2 e de ser ouvido em audiência (art.350).
O consultor técnico não participa na elaboração do relatório pericial (art.157),
isto é, a independência técnico-científica do perito não é beliscada, só podendo
o consultor técnico intervir na fase de realização do exame, sugerindo
diligências, formulando observações e objecções (n.º 2 do art.155), dessa forma
fazendo com que sejam trazidos ao processo mais dados para realização do
relatório e permitindo a fiscalização por parte dos intervenientes processuais
em relação à recolha dos dados que fundamentarão o mesmo relatório (por isso,
tais sugestões, observações e objecções, ficarão a constar do auto - art.155,
n.º 2).
Contudo, a designação e desempenho da função de consultor técnico, não pode
atrasar a realização da perícia e andamento normal do processo (art.155, n.º 4).
Na verdade, o estatuto conferido ao perito, sujeito a compromisso de honra
(dispensado de o prestar no caso da alínea b, do n.º 6, do art.91) e com
possibilidade de escusa e recusa (art.153, n.º 2), é uma garantia de isenção e
imparcialidade, o que aliado à qualificação técnico científica que terá de ter
(art.152, n.º 1), permitiu ao legislador presumir que está garantida a
possibilidade de ser alcançado um juízo técnico certo, razão por que em nenhuma
hipótese a intervenção de consultor técnico pode justificar qualquer atraso na
realização na perícia ou no andamento do processo.
De entre as entidades previstas no art.159, como podendo realizar a perícia
médico legal, foi esta deferida à Delegação de Lisboa do I.N.M.L.
Nos Estatutos do INML (em anexo ao Dec. Lei n.º 96/01, de 26-3), apresentam-se
como dados salientes, entre outros, os seguintes:
- caracterização do INML como 'instituto público dotado de personalidade
jurídica e de autonomia administrativa e financeira, sujeito à superintendência
e tutela do Ministro da Justiça' (art. 1º n.º1);
- enunciação de atribuições do INML, de que se destaca a de 'cooperar com os
tribunais e demais serviços e entidades que intervêm no sistema de administração
da justiça realizando os exames e perícias de medicina legal que lhe forem
solicitados, bem como prestar-lhes apoio técnico e laboratorial especializado'
(art.2 n.º1, al. b);
- definição do INML como instituição nacional de referência, no âmbito das
suas atribuições (art.2, n2);
Deste modo, o legislador coloca o INML (cujas Delegações prosseguem na área de
actuação as atribuições do Instituto - art.24, n.º2, do Estatuto), a um nível
superior (de referência), em relação às outras entidades a quem pode ser
deferida a realização das perícias médico-legais, isto é, entidades terceiras,
públicas ou privadas, contratadas ou indicadas para o efeito pelo Instituto
(art.2, n.º 2, do Regime Jurídico das perícias médico-legais e forenses- Lei n.º
45/04 de 19-8).
O reconhecimento desse estatuto de referência pelo legislador, manifesta-se na
consagração legal de particularidades quanto ao regime normativo das perícias
realizadas nas Delegações do INML, como é o caso da exclusão da possibilidade de
nomeação de consultores técnicos, consagrada pelo art. 3, n.º1, da citada Lei
n.º 45/04.
Compreende-se que assim seja, pois, considerando a referida caracterização e
definição do INML, a realização da perícia por uma delegação deste é uma
garantia acrescida para os intervenientes processuais, desse modo ficando sem
sentido o exercício de fiscalização próprio da intervenção dos consultores
técnicos. De facto, além da realização da perícia por aquela entidade
representar uma garantia acrescida, estando em causa uma instituição nacional de
referência na matéria, não seria fácil apresentar quem fosse capaz de sugerir
diligências úteis não previstas por esse serviço ou fiscalizar de forma
relevante a legis artis seguida.
A consagração do INML como instituição de referência, levou o legislador, ainda,
a assegurar um tratamento diferenciado aos peritos do INML, no art.91, n.º 6,
b), do CPP (dispensando de juramento e compromisso, por serem funcionários
públicos e intervirem no exercício das suas funções) e no art.350, n.º 3,
permitindo a sua audição por teleconferência a partir do local de trabalho
(sinal que em relação a eles não vê necessidade da imediação exigida em relação
a outros - art.350, n.º1 ).
Coloca-se, no entanto, a questão de saber se a restrição prevista no art.3,
n.º1, da Lei n.º 45/04, quando aplicada na fase do julgamento, ofende o
princípio do contraditório consagrado constitucionalmente no art.32, n.º 5, da
nossa lei fundamental.
Este princípio consiste, desde logo, no direito de contradizer ou de se
pronunciar sobre as alegações, as iniciativas, os actos ou quaisquer atitudes
processuais da autoria dos outros sujeitos processuais. Para que o juiz possa
decidir, por força do princípio do contraditório, essa decisão só pode ser
proferida após ouvir todo aquele participante processual relativamente ao qual
deva tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte.
Garantindo o processo penal a possibilidade de serem pedidos esclarecimentos aos
peritos (arts. 158 e 350, do CPP) e de em relação ao relatório pericial se
pronunciaram os intervenientes processuais (art.327, n.º 2, do CPP), está
assegurado o contraditório, definido naqueles termos, sem que para isso seja
necessário assegurar o direito de designar consultor técnico para assistir à
perícia.
Contudo, a Constituição não se limita a assegurar o direito ao contraditório,
reconhecendo a todos, no art.20, n.º 4, o direito a um processo equitativo e
estabelecendo no art.32, n.º 1, 'O processo penal assegura todas as garantias de
defesa…'.
Importa, então, analisar se a negação do direito do arguido indicar consultor
técnico para assistir à realização da perícia por uma Delegação do INML, implica
um encurtamento inadmissível dos direitos de defesa.
Admitir tal possibilidade seria pôr em causa a autonomia e a independência
técnico-científica do INML, que o legislador qualificou de instituição nacional
de referência no âmbito das suas atribuições, sujeito à superintendência e
tutela do Ministro da Justiça, intervindo no processo em execução de uma das
suas atribuições, de cooperação com o tribunal, realizando perícia de medicina
legal.
A autonomia e independência do INML, coloca-o numa posição de equidistância
entre a defesa e a acusação, tomando desnecessário qualquer controlo ou
fiscalização dos intervenientes processuais sobre a realização da perícia, como
forma de assegurar os direitos de defesa.
A pretexto de assegurar todos os direitos de defesa, não se pode chegar ao ponto
de pôr em causa a independência técnico-científica de uma instituição como INML,
que o legislador entendeu ser merecedor da dignidade consagrada no respectivo
Estatuto, permitindo a assistência de consultores técnicos (cujo direito de
indicação, nos casos em que é possível, não pertence apenas à defesa, mas também
ao Ministério Público, aos assistentes e às partes civis - art.155, n.º1, do
CPP), quando a sua intervenção não se apresenta capaz de contribuir para
melhorar a qualidade técnico-científica da perícia e iria ter efeitos negativos
nos níveis de eficiência destes serviços (no preâmbulo do Dec. Lei n.º 96/01, de
26-3, o legislador manifesta a vontade de alcançar melhores níveis de eficácia).
Com efeito, estando os peritos obrigados a fundamentar as suas respostas e
conclusões (art.157, n.º 1, do CPP), a possibilidade de serem ouvidos e
prestarem os esclarecimentos complementares (arts.158 e 350, do CPP), é
suficiente para assegurar em relação à prova pericial todos os direitos de
defesa dos arguidos, já que através daqueles esclarecimentos poderão os
intervenientes processuais conhecer o percurso seguido na recolha dos elementos
que fundamentam as conclusões do relatório, contraditando-o e, dessa forma,
contribuindo para o aperfeiçoamento do relatório pericial, com reflexos
positivos nesse meio de prova.
Em conclusão, a inadmissibilidade de indicação de consultor técnico pela defesa,
para assistir a perícia realizada na fase de julgamento, por Delegação do INML,
não ofende o princípio do contraditório, nem os direitos de defesa.
III - DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa, em
conferência, em negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.
2.2. A questão suscitada no presente recurso reporta-se aos poderes
conferidos ao arguido recorrente no domínio da prova pericial em processo penal.
Na verdade, tal como invoca o recorrente, a norma impugnada – n.º 1 do artigo 3º
da Lei n.º 45/2004 de 19 de Agosto – foi estendida à perícia ordenada ao abrigo
dos nºs 2 e 3 do artigo 131º do Código de Processo Penal, por força da
aplicação, ao caso presente, do disposto no artigo 159º do mesmo Código. Não
incumbe ao Tribunal Constitucional aferir da correcta interpretação e aplicação
da lei ordinária na decisão recorrida, mas tão somente verificar se a norma
impugnada – tal como foi aplicada naquela decisão – ofende a Constituição.
É, por isso, útil começar por sintetizar o quadro legal que disciplina esta
matéria.
O Código de Processo Penal (artigos 151º a 163º) determina que quando a
apreciação ou a percepção dos factos exigir especiais conhecimentos técnicos,
científicos ou artísticos, terá lugar a prova pericial, a ordenar oficiosamente,
ou a requerimento, pela autoridade judiciária, a quem também cabe escolher o
estabelecimento ou a pessoa 'com reconhecida competência na matéria em causa'
que, mediante prévio compromisso, há-de proceder ao exame, elaborar o relatório
com as respostas às questões formuladas e apresentar as conclusões 'devidamente
fundamentadas'.
A autoridade judiciária pode assistir à realização da perícia, podendo também
permitir a presença do arguido e do assistente.
Além disto, o Código de 1987 adoptou uma inovação: autorizou os intervenientes
processuais a designar um consultor técnico que, sem prestar qualquer
compromisso ou juramento, exerceria, por conta de quem o nomeia, uma
fiscalização privada da perícia (Simas Santos e Leal-Henriques, Código de
Processo Penal Anotado, 2ª ed. p. 804). Fê-lo através da seguinte disposição
que, aliás, ainda hoje se mantém em vigor:
Artigo 155.º
(Consultores técnicos)
1 - Ordenada a perícia, o Ministério Público, o arguido, o assistente e as
partes civis podem designar para assistir à realização da mesma, se isso ainda
for possível, um consultor técnico da sua confiança.
2 - O consultor técnico pode propor a efectivação de determinadas diligências e
formular observações e objecções, que ficam a constar do auto.
3 - Se o consultor técnico for designado após a realização da perícia, pode,
salvo no caso previsto na alínea a) do n.º 3 do artigo anterior, tomar
conhecimento do relatório.
4 - A designação de consultor técnico e o desempenho da sua função não podem
atrasar a realização da perícia e o andamento normal do processo.
Estas regras também se aplicavam às perícias médico-legais (artigo 159º)
deferidas quer aos institutos de medicina legal, quer aos gabinetes
médico-legais, quer aos médicos especialistas ou de 'reconhecida competência',
contratados ou não.
O regime radicava numa organização médico-legal cujas linhas mestras remontavam
ao Decreto com força de lei n.º 5023 de 29 de Novembro de 1918, que criara os
institutos de medicina legal, na tutela do Ministério da Justiça, completado por
um sistema de peritos médicos de lista, a funcionar na generalidade das
comarcas, instituído pelo Decreto-Lei n.º 42 216 de 15 de Abril de 1959. O
funcionamento deste sistema ressentia-se da 'deficiente preparação' de um número
elevado de médicos a desempenhar estas funções, conforme reconheceu o legislador
quando alterou este regime, através do Decreto-Lei n.º 387-C/87 de 29 de
Dezembro.
Por força deste último diploma, pretendeu-se resolver o problema da formação
científica e profissional especializada nesta área, que estaria ainda 'muito
longe' de atingir os níveis desejados, 'necessários à qualidade e rigor das
perícias médicas'. Com esse sentido, o diploma reorganizou os institutos de
medicina legal, criou os gabinetes médico-legais, a funcionar como 'guarda
avançada dos institutos de medicina legal', e instituiu unidades médico-legais
nos serviços de urgências hospitalares. Finalmente, permitiu que a autoridade
judiciária – 'em situações que ela própria avaliará' – se socorresse de clínicas
médicas e de médicos 'de reconhecida competência e honorabilidade', para efeito
de realização de perícias médicas. Foi ainda fixado o quadro de competências dos
novos serviços de acordo com o regime instituído 'pelo novo Código de Processo
Penal'.
É de reter que, na data em que entrou em vigor o referido artigo 155º do Código
de Processo Penal (1987), o próprio legislador reconhecia que a qualidade da
formação especializada nesta área estava longe de atingir o nível necessário 'à
qualidade e rigor das perícias médicas'.
2.3. A evolução favorável que o sistema médico-legal entretanto
registou justifica as alterações introduzidas, posteriormente, pelo Decreto-Lei
n.º 11/98 de 24 de Janeiro.
Continuou a atribuir-se aos institutos de medicina legal o encargo de coordenar
e dinamizar a actividade pericial dos gabinetes médico-legais. No entanto, e
pela primeira vez, foi instituída a regra do deferimento aos gabinetes
médico-legais da actividade pericial, em matéria de perícias médico-legais.
Lê-se no preâmbulo do diploma: 'numa época histórica em que todas as actividades
técnico-científicas exigem acentuada especialização profissional, bem como a
utilização de sofisticados meios materiais, e em que as deslocações das pessoas
não causam já tanto embaraço como sucedia ainda não há muitos anos, caminha-se
mais decididamente no sentido de levar à prática essas estruturas, que
funcionarão na dependência directa do instituto da circunscrição médico-legal em
que se encontrem localizadas, sob orientação e controlo de um perito
coordenador, com a progressiva extinção da figura do perito médico de comarca
contratado ad hoc, salvo a verificação de situações excepcionais'. O diploma
previa, no entanto, que enquanto não estivesse efectivamente constituída a rede
nacional de gabinetes médico-legais, as perícias médico-legais continuariam a
ser asseguradas 'por médicos contratados'.
É por força deste diploma que as perícias médicas passaram a ser deferidas, em
regra, aos serviços médico-legais, ao contrário do que até então ocorria.
Outra inovação importante foi a consagração de uma norma semelhante àquela que
constitui o objecto do presente recurso; no seu artigo 40º dispôs:
Exames e perícias médico-legais
Artigo 40.º
Realização de perícias
As perícias médico-legais são ordenadas, nos termos da lei de processo, por
despacho da autoridade judiciária competente, não lhes sendo, todavia, aplicável
o disposto nos artigos 154.º e 155.º do Código de Processo Penal.
A orgânica dos serviços de medicina legal voltou a ser alterada pelo Decreto-Lei
n.º 96/2001 de 26 de Março, diploma que criou o Instituto Nacional de Medicina
Legal e aprovou a sua lei orgânica. Aqui, reconhecendo que a medicina legal
contribui decisivamente para o correcto funcionamento da administração da
justiça, o legislador reuniu num único instituto os serviços médico-legais
existentes, por forma a garantir metodologias periciais uniformes em todo o
País, embora com expressa salvaguarda da 'independência técnico-científica
própria de cada perito na apreciação de cada processo'.
2.4. Culminando esta evolução legislativa, a Lei n.º 45/2004 de 19
de Agosto consagrou um regime específico das perícias médico-legais e forenses,
ao estabelecer a regra de que tais perícias devem obrigatoriamente ser deferidas
ao Instituto Nacional de Medicina Legal.
Para o que agora interessa, as alterações foram assim justificadas – cfr.
discussão e votação na generalidade da respectiva Proposta de Lei de que
resultou este último diploma, n.º 127/IX/2 [DAR I Série n.º 99/IX/2 2004.06.24]:
'[...]
A definição de novos critérios e regras que devem presidir à actividade pericial
surge também da imperiosa necessidade de conformar a medicina legal em Portugal
à evolução das condições tecnológicas e científicas, cuja dinâmica moderna,
poderá afirmar-se, atinge uma velocidade cada vez maior. Tratando-se de uma área
técnico-científica especializada, pressupõe conhecimentos não acessíveis à
generalidade dos cidadãos, entidades ou profissionais, pelo que se revela
particularmente importante acautelar a imparcialidade da actividade pericial,
por um lado, e garantir a qualidade e rigor científicos por outro. Pretende o
Governo com a presente proposta assegurar a dignidade e a qualidade das perícias
médico-legais e forenses, cometendo ao Instituto Nacional de Medicina Legal
atribuições e responsabilidade no domínio da creditação e controlo da realização
de perícias médico-legais. [...]
Atente-se que o Instituto Nacional de Medicina Legal consiste numa instituição
com natureza judiciária, encontrando-se os peritos abrangidos pelo segredo de
justiça bem como por um especial dever de sigilo profissional. Quanto ao regime
de prestação de esclarecimentos complementares posteriores à realização da
perícia e comunicação do respectivo relatório, estipula-se a regra que a
presença do perito em acto ou diligência processual, deverá ser, sempre que
existam meios para tal, substituída por inquirição por teleconferência ou outros
meios técnicos processualmente previstos, com vista à simplificação e celeridade
processuais com diminuição de custos. [...]
A responsabilidade decorrente da actividade pericial desenvolvida ao abrigo das
atribuições legais cometidas aos serviços médico-legais preserva a autonomia
técnico-científica dos peritos, mas determina a obrigatoriedade de respeito
pelas normas, modelos e metodologias periciais em vigor a nível nacional,
assegurando desta forma a harmonização pericial do ponto de vista técnico e
procedimental. [...]
Por outro lado, estabelece-se a regra da obrigatoriedade de as perícias
médico-legais serem realizadas nas delegações e nos gabinetes médico-legais do
Instituto Nacional de Medicina Legal e as situações em que, excepcionalmente, as
perícias poderão ser realizadas por entidades terceiras, públicas ou privadas,
contratadas ou indicadas para o efeito pelo Instituto de Medicina Legal.'
2.5. Em suma, as sucessivas alterações legislativas visaram
acompanhar a evolução tecnológica e científica na área das perícias médicas e,
pressupondo que a exigida especialização não era acessível à generalidade da
actividade médica, assumiram o objectivo de maximizar a qualidade e rigor
científicos do meio de prova, garantindo simultaneamente uma especial protecção
da imparcialidade dos peritos.
E é significativo que as perícias médico-legais tenham passado a ser deferidas
com exclusividade aos serviços de medicina legal quando estes serviços se
encontravam organizados por forma a garantir um elevado padrão de qualidade
científica e absoluta imparcialidade da actividade pericial, e que,
simultaneamente, o legislador tenha vedado aos intervenientes processuais a
possibilidade de nomearem consultores técnicos para acompanhar as perícias
médico-legais executadas naqueles serviços.
Com efeito, a Lei n.º 45/2004 de 19 de Agosto, depois de no seu artigo 2º
consagrar a regra de as perícias médico-legais deverem ser obrigatoriamente
realizadas nas delegações e nos gabinetes médico-legais do Instituto Nacional de
Medicina Legal, dispôs:
Artigo 3.º
Requisição de perícias
1 - As perícias médico-legais solicitadas por autoridade judiciária ou judicial
são ordenadas por despacho da mesma, nos termos da lei de processo, não sendo,
todavia, aplicáveis às efectuadas nas delegações do Instituto ou nos gabinetes
médico-legais as disposições contidas nos artigos 154.º e 155.º do Código de
Processo Penal.
2 - Por razões de celeridade processual, a requisição dos exames periciais deve
ser acompanhada das informações clínicas disponíveis ou que possam vir a ser
obtidas pela entidade requisitante até à data da sua realização.
2.6. É no n.º 1 desta disposição que se encontra a norma impugnada
no presente recurso, que veda a possibilidade de o arguido recorrente nomear um
consultor técnico para acompanhar as perícias médicas determinadas pela
autoridade judiciária e deferidas ao Instituto Nacional de Medicina Legal.
A sua conformidade constitucional é questionada essencialmente pela invocação de
que 'o direito a indicar um consultor técnico para acompanhar essa perícia nos
termos do artigo 155° n.º 1 do Código de Processo Penal – com as limitações que
eventualmente decorram dos actos médicos ou de audição psicológica que tenham
lugar – é garantia fundamental da defesa, pois permitir-lhe-á verificar a
idoneidade, o rigor e os eventuais problemas que o modo de produção das perícias
suscite, em que delicadas questões legis artis se poderão colocar.'
Com efeito, embora o aludido artigo 155º n.º 1 do Código de Processo Penal
permita genericamente ao Ministério Público, ao arguido, ao assistente, e às
partes civis, designar 'um consultor técnico da sua confiança' para assistir à
realização das perícias ordenadas pela autoridade judiciária, o certo é que o
citado n.º 1 do artigo 3º da Lei n.º 45/2004, tal como anteriormente o fazia o
artigo 40º do Decreto-Lei n.º 11/98, veda essa possibilidade no caso de a
autoridade judiciária solicitar a perícia médico-legal ao Instituto Nacional de
Medicina Legal.
Importa, assim, determinar se a norma viola a Constituição.
2.7. Deve esclarecer-se desde logo que, como diz o Ministério Público
na sua alegação, não pode inferir-se directamente da Constituição a existência
de um direito dos participantes processuais a acompanharem os exames
médico-legais, realizados no âmbito do próprio Instituto Nacional de Medicina
Legal, por si ou através dos consultores técnicos que os coadjuvem nas matérias
técnico-científicas envolvidas na prova pericial.
Ocorre, porém, perguntar se a Constituição consente ao legislador liberdade para
moldar um regime específico quanto àquelas perícias que devem ocorrer no
Instituto Nacional de Medicinal Legal, regime que é mais restritivo quanto ao
direito de acompanhar a diligência que é conferido aos intervenientes
processuais e, portanto, também ao arguido.
Mas a análise da evolução legislativa que esta matéria sofreu revela que não tem
verdadeiro fundamento a alegação do recorrente quanto à não existência de
'justificação razoável – técnica, científica ou processual – para essa
limitação', omissão que, em seu entender, seria demonstrativa da natureza
'desproporcionada e desnecessária' da solução legal.
É, pelo contrário, manifesto que a norma impugnada, ao introduzir uma distinção
quanto às perícias médicas realizadas no Instituto Nacional de Medicina Legal,
teve comprovadamente em conta que esta é uma instituição com natureza
judiciária, cujos peritos, para além de abrangidos pelo segredo de justiça (como
os demais), estão vinculados ao dever de sigilo profissional, e gozam de total
autonomia técnico-científica, garantindo um elevado padrão de qualidade
científica.
Ora, o Tribunal tem entendido que a proibição constitucional do arbítrio não
afasta a possibilidade de a lei permitir distinções, desde que não se apresentem
como desrazoáveis ou injustificadas (cfr. Acórdão n.º 189/2001, Ac.TC n.º 50 p.
285; Acórdão n.º 31/91 in DR II série, 25 de Junho de 1991), como é
manifestamente o presente caso.
2.8. O recorrente sustenta, porém, que 'a limitação que a
interpretação normativa em causa consagra ofende o princípio de um processo
equitativo'.
Não revela o recorrente a razão que permite acusar especificamente a norma de
ofender o princípio de um processo equitativo; admite-se, contudo, que a
alegação esteja ligada à invocada violação do princípio do contraditório. Com
efeito, o recorrente alega que 'o direito a indicar um consultor técnico para
acompanhar essa perícia nos termos do art. 155° nº 1 do C.P.P. – com as
limitações que eventualmente decorram dos actos médicos ou de audição
psicológica que tenham lugar – é garantia fundamental da defesa, pois
permitir-lhe-á verificar a idoneidade, o rigor e os eventuais problemas que o
modo de produção das perícias suscite'. E, prossegue, a mera sindicância a
posteriori do resultado das perícias 'não garante' o exercício cabal e pleno do
exercício do contraditório, o qual há-de compreender, por um lado, a
possibilidade de, durante o decurso da produção do meio de prova, serem
apresentadas, através de consultor técnico, as sugestões julgadas pertinentes,
que os peritos acolherão ou não; por outro lado, a possibilidade de, durante o
decurso da produção do meio de prova, ser fiscalizada, através de consultor
técnico, a idoneidade da metodologia adoptada. Conclui, assim, que o direito a
nomear um consultor técnico é 'uma decorrência do princípio do contraditório,
que, neste segmento, se traduz na possibilidade de efectivo controlo das provas
produzidas, verificando se o seu processo de produção é idóneo e adequado para o
fim em causa, o que, em sede de julgamento, tem consagração constitucional, nos
termos do artigo 32° n.º 5 da Constituição'.
Fica, porém, desde logo totalmente por demonstrar que a sindicância a posteriori
do resultado das perícias não garante o exercício cabal e pleno do princípio do
contraditório, assim como fica por explicar a razão pela qual o exercício do
contraditório há-de necessariamente compreender a possibilidade de serem
apresentadas, através de consultor técnico, as sugestões julgadas pertinentes,
'que os peritos acolherão ou não'; ou a possibilidade de, durante o decurso da
produção do meio de prova, ser 'fiscalizada', através de consultor técnico, a
'idoneidade da metodologia adoptada'.
São – como se verá – afirmações infundamentadas.
2.9. Decorre claramente do que já se observou que o direito de nomear
um consultor técnico permitido pelo artigo 155º do Código de Processo Penal, não
é um direito conferido especificamente a título de 'garantia de defesa', no seu
sentido mais estrito: no decurso da prova pericial não impende sobre o arguido
qualquer ónus de contradizer ou afirmar qualquer facto; não é atribuída qualquer
eficácia ao acordo expresso ou tácito sobre factos não contraditados.
O que aqui vale, seguramente, é a busca da verdade material e da realização da
justiça, do dever de investigação judicial autónoma da verdade, com
independência e imparcialidade, embora sem excluir o auxílio das partes – artigo
340º n.º 1 do Código de Processo Penal – objectivo que representa uma das
finalidades do processo penal. À autoridade judiciária incumbe rodear a produção
de prova pericial das condições necessárias a que dela se retire a verdade
material, processualmente válida. Ora, na decorrência desse grande objectivo do
processo penal, o sistema português adoptou um regime de perícia oficial – não
contraditória – essencialmente disciplinado pelos artigos 152º n.º 1 e 154º n.º
1 do citado Código, no domínio da qual o perito é um perito do Tribunal, sujeito
ao mesmo dever de imparcialidade e de busca da verdade material que oneram a
actividade judiciária.
2.10. Esclarecida a verdadeira natureza da actuação dos participantes
processuais neste âmbito, é mais fácil compreender que o direito do arguido de
acompanhar a perícia através de um consultor técnico não constitui uma imperiosa
exigência do princípio do contraditório. Com efeito, o princípio do
contraditório, na sua caracterização mais rigorosa, corresponde a uma concepção
próxima do direito de audiência e da oportunidade processual de influenciar,
através da sua audição pelo Tribunal, o resultado do processo. Ora o exercício
deste contraditório para os intervenientes processuais – e, portanto, também
para o arguido –, resulta aqui do direito que a lei lhes confere de pedir
esclarecimentos aos peritos, e até de requerer ao tribunal que determine a
realização de nova perícia, ou a renovação da anterior.
Note-se que a lei exige que os peritos apresentem um relatório no qual mencionem
e descrevam as suas respostas e conclusões 'devidamente fundamentadas'. É assim
claro que, através dos pedidos de esclarecimento, o arguido pode verificar o
método utilizado na recolha da prova e controlar as conclusões que dela os
peritos retiraram; assim como lhe permite discutir o valor probatório que há-de
ser atribuído, no julgamento, às conclusões encontradas, como aliás, sucede em
relação à generalidade dos meios de prova.
É certo que não pode nomear um consultor técnico para acompanhar a perícia
médico-legal, no caso de esta se realizar no Instituto Nacional de Medicina
Legal, diversamente do que sucede nos casos disciplinados pelo aludido artigo
155º do Código de Processo Penal. Todavia, as garantias acrescidas de qualidade
técnica que são conferidas, somadas aos poderes que a lei garante ao arguido e
que acabaram de se descrever, permitem concluir que este regime respeita as
exigências do princípio do contraditório aplicado às provas.
É, aliás, assim, que o Tribunal tem caracterizado o princípio do contraditório.
O Tribunal Constitucional tem entendido que o princípio do contraditório
imposto, quanto à audiência de julgamento em processo penal, pelo n.º 5 do
artigo 32º da Constituição, exige que ao arguido seja garantido o poder de
discutir, contestar, ou debater o valor probatório de qualquer prova utilizada
na audiência. Diz-se no Acórdão 372/2000 in DR II série de 13-11-2000:
'Acerca do conteúdo essencial do princípio do contraditório escreveu-se logo no
parecer da Comissão Constitucional nº 18/81 (Pareceres da Comissão
Constitucional, 17º vol., pp. 14 e ss.) e, mais tarde, em vários acórdãos deste
Tribunal (cfr., designadamente os acórdãos nºs 434/87 e 172/92, in Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 10º vol. pp. 502 e 503, 22º vol., p. 350 e 351,
respectivamente) que ele está, “em que nenhuma prova deve ser aceite na
audiência, nem nenhuma decisão (mesmo interlocutória) deve ser tomada pelo juiz,
sem que previamente tenha sido dada ampla e efectiva possibilidade ao sujeito
processual contra o qual é dirigida de a discutir, de a contestar e de a
valorar”.
Já sobre a extensão processual do princípio do contraditório dispõe o nº 5 do
artigo 32º da Constituição que a ele está subordinada a audiência de julgamento,
bem como os actos instrutórios que a lei determinar.
A Constituição remete assim para a lei ordinária a tarefa de concretização dos
actos instrutórios que hão-de ficar subordinados ao princípio do contraditório.
A este propósito, escreveu-se no Acórdão nº 434/87 (já citado) “Na determinação
dos actos instrutórios que hão-de ficar subordinados ao princípio do
contraditório goza, assim, o legislador de grande liberdade. Ele só não pode
esquecer que o arguido tem de ser sempre respeitado na sua dignidade de pessoa,
o que implica ser tratado como sujeito do processo, e não como simples objecto
da decisão judicial. Ou seja, tem sempre de ter presente que o processo criminal
há-de ser a due processo of law, a fair process, onde o arguido tenha efectiva
possibilidade de ser ouvido e de se defender, em perfeita igualdade com o
Ministério Público. É que, como adverte Eduardo Correia, in Revista de
Legislação e Jurisprudência, ano 114º, p. 365, o princípio do contraditório se
traduz «ao menos, num direito à defesa, num direito a ser ouvido».'
Não pode, pois, aceitar-se a acusação de que a norma em apreço viola o princípio
do contraditório, nos termos em que o n.º 5 do artigo 32º da Constituição o
consagra.
2.11. Invoca, finalmente, o recorrente, a bem da sua tese, que 'a
diligência em causa – a realização de novas perícias a alguns assistentes – é
crucial para a defesa, podendo mesmo ser decisiva para o resultado final do
julgamento, o que decorre de os autos não revelarem outra prova que não seja a
das declarações desses jovens' e que 'essa relevância é ainda substancialmente
acrescida em função das deficiências manifestas e graves que se verificam no
processo de realização das anteriores perícias, como está reconhecido na decisão
instrutória e decorre do parecer do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos,
bem como dos pareceres médicos entretanto juntos aos autos'.
O recorrente utilizou este argumento perante o tribunal comum e repete-o aqui.
É, no entanto, óbvio que esta matéria é irrelevante no âmbito do presente
recurso, disciplinado pela alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, e com
carácter normativo: nele não podem intervir considerações atinentes quer
directamente à decisão recorrida, quer indissociavelmente ligadas ao caso
concreto. A apreciação do Tribunal incide obrigatoriamente sobre uma norma, isto
é, uma regra jurídica aplicada na decisão recorrida, despida das
particularidades do caso, e dotada de força normativa geral e abstracta.
2.12. Cumpre, enfim, concluir pela total improcedência da
alegação do recorrente. Na verdade, negar a possibilidade ao arguido recorrente
de nomear, nesta fase, um consultor técnico, não ofende as garantias previstas
nos n.ºs 1 e 5 do artigo 32º da Constituição, ou qualquer outra norma
constitucional.
3. Em face do exposto, o Tribunal decide negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 27 de Fevereiro de 2007
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Maria Helena Brito
Rui Manuel Moura Ramos
Artur Maurício