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Processo nº 982/06
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é
recorrente A. e em que são recorridos a Câmara Municipal de Barcelos e B. e
mulher, C., foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do
disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional (LTC).
2. Em 20 de Dezembro de 2006, foi proferida decisão sumária (artigo 78º-A, nº 1,
da LTC), pela qual se entendeu não conhecer do objecto do recurso de
constitucionalidade interposto, com a seguinte fundamentação:
«1. A “norma” que o recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie
foi também a questionada durante o processo (cf. ponto 2. do Relatório).
Do enunciado acima transcrito (cf. ponto 4. do Relatório) resulta, porém, que o
que verdadeiramente se pretende questionar é, não uma norma, mas antes a decisão
do Supremo Tribunal de Justiça de, neste caso concreto, não admitir o recurso de
revista.
“A interpretação normativa sindicável pelo Tribunal Constitucional pressupõe
uma vocação de generalidade e abstracção na enunciação do critério normativo que
lhe está subjacente – de modo a autonomizá-lo claramente da pura actividade
subsuntiva, ligada irremediavelmente a particularidades específicas do caso
concreto” (Lopes do Rego, “O objecto idóneo dos recursos de fiscalização
concreta da constitucionalidade: as interpretações normativas sindicáveis pelo
Tribunal Constitucional”, Jurisprudência Constitucional, nº 3, p. 7), não se
encontrando, na formulação do recorrente, qualquer vocação de generalidade e
abstracção.
Pelo contrário, a apreciação do pretendido pelo recorrente resultaria na
apreciação da decisão de rejeitar recurso de revista em caso de acção de valor
superior à alçada da Relação, com o fundamento de que a sucumbência relativa aos
quatro pedidos objecto da revista não excede metade daquela alçada, muito embora
o valor da acção esteja originariamente errado (por defeito) e em flagrante
oposição com a realidade (sem que o Juiz da causa tenha dado cumprimento ao art.
315º.1 do CPC), não expressando tal valor quatro de cinco pedidos cumulados (não
estando esse quinto pedido sob revista), e muito embora não seja possível
definir em concreto o valor da sucumbência relativamente aos quatro pedidos sob
revista. Decisão que não cumpre apreciar, pois, conforme jurisprudência
reiterada e uniforme do Tribunal Constitucional, a este cabe admitir “os
recursos de decisões dos outros tribunais que apliquem normas cuja
constitucionalidade foi suscitada durante o processo (...), identificando-se
assim, o conceito de norma jurídica como elemento definidor do objecto do
recurso de constitucionalidade, pelo que apenas as normas e não já as decisões
judiciais podem constituir objecto de tal recurso” (cf. Acórdão nº 361/98, não
publicado, itálico nosso, e, entre outros, os Acórdãos nºs 286/93, não
publicado, 178/95, 20/96, Diário da República, II Série de 21 de Junho de 1995 e
de 16 de Maio de 1996, 702/96, 27/98 e 223/03, não publicados e as Decisões
Sumárias nºs 166/04 e 495/04, não publicadas).
Não pode, assim, este Tribunal conhecer do objecto do recurso (artigos 280º da
Constituição da República Portuguesa e 70º da LTC), justificando-se a prolação
da presente decisão (artigo 78º-A, nº 1, da LTC).
2. Ainda que se considerasse conter o requerimento de interposição de recurso a
identificação de uma norma, manter-se-ia a impossibilidade de o Tribunal tomar
conhecimento do objecto do mesmo. Isto, porque o recorrente fez expressamente
constar daquele enunciado um elemento – a impossibilidade de, no caso,
determinar o valor da sucumbência – que não foi considerado pelo Supremo
Tribunal de Justiça na aplicação que fez do artigo 678º, nº 1, do Código de
Processo Civil. Pelo contrário, considerou-se no acórdão (por decisão que não
cabe a este Tribunal apreciar) que era possível determinar o valor da
sucumbência e, por essa via, determinar a rejeição do recurso. Afirma-se na
decisão recorrida que
«Não há que chamar à liça a impossibilidade de determinação do valor da
sucumbência, pois esta verifica-se quando o autor formula um pedido ilíquido
(art. 471, n°1, al. B) e c) do C.P.C.) ou em alguns incidentes como o
indeferimento da arguição de uma nulidade processual (art. 201 do C.P.C.) ou da
impugnação da admissão de uma testemunha ( art. 617 e 618 do C.P.C.)».
Se fosse possível vislumbrar, no requerimento de interposição de recurso, a
enunciação de uma norma, sempre falharia, pois, o requisito da aplicação, pela
decisão recorrida, dessa norma, como ratio decidendi. O que igualmente
determinaria o não conhecimento do objecto do recurso».
3. Desta decisão vem agora o recorrente reclamar para a conferência, ao abrigo
do disposto no nº 3 do artigo 78º-A da LTC, para o que agora releva, com os
seguintes fundamentos:
“(...)
11. Conforme ficou exarado, entende a Exma. Conselheira Relatora que, neste
recurso, «o que verdadeiramente se pretende questionar é, não uma norma, mas
antes a decisão do Supremo Tribunal de Justiça …»
12. Para explicitar o seu douto ponto de vista, a Exma. Conselheira Relatora
cita uma autorizada fonte doutrinal e conclui que não se encontra, «na
formulação do recorrente, qualquer vocação de generalidade e abstracção».
13. Sem prejuízo de melhor opinião, afigura-se que esta forma de enfrentar a
questão e de concluir pelo não conhecimento do recurso decorre de uma
preferência por aspectos formais em detrimento de aspectos substanciais.
14. Na apreciação da admissibilidade do recurso para o TC, o que deve relevar é
a questão colocada, e não tanto o modo como foi colocada.
15. E sobre esse ponto, não há dúvidas.
16. A questão colocada foi a da constitucionalidade da norma do nº 1 do art.
678° do CPC, na interpretação que lhe foi dada pelo STJ. Gfg
17. Concede-se que o caso tem alguma singularidade, com a formulação de cinco
pedidos na petição inicial e a indicação de um valor que respeita apenas ao
quinto desses pedidos (pedido esse excluído da revista).
18. Tal singularidade é fruto de um erro do primitivo mandatário do Recorrente
(que indicou mal o valor da causa) e é fruto do incumprimento da lei pelo juiz
da causa em 1ª instância (que não providenciou pela correcção desse valor –art.
315°.1 do CPC).
19. Mas essa singularidade não impede que se possa descortinar a suficiente
“generalidade e abstracção” na delimitação do critério normativo subjacente à
decisão proferida pelo STJ.
Do modo seguinte:
20. O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA INTERPRETA A NORMA DO N° 1 DO ART. 678° DO CPC
NO SENTIDO DE QUE NÃO É ADMISSÍVEL RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
NAS ACÇÕES CUJO VALOR EXCEDA A ALÇADA DA RELAÇÃO, SE TAL VALOR APENAS EXPRESSAR
UM DOS VÁRIOS PEDIDOS FORMULADOS E ESSE PEDIDO NÃO FOR OBJECTO DE RECURSO.
21. É esta a norma que o STJ vê no n° 1 do art. 678° do CPC.
22. Tal norma, na interpretação assim adoptada, é inconstitucional, nos termos
oportunamente definidos.
23. Foi a partir dessa norma que o STJ analisou a
admissibilidade da revista.
24. Foi partindo deste critério normativo que o STJ decidiu não admitir o
recurso de revista.
25. Tal critério normativo tem “generalidade e abstracção” bastantes para tornar
sindicável a interpretação normativa em crise.
26. É esta a questão fundamental trazida ao Tribunal Constitucional, sobre a
qual o TC pode e deve pronunciar-se.
27. Os demais elementos são já suplementares ou acessórios.
28. E se foram referidos aquando da arguição da inconstitucionalidade e da
interposição de recurso para o TC, na pior das hipóteses, apenas podem ser
levados à conta de excesso, sem nunca bulir com a questão fundamental,
perfeitamente delimitada e perceptível.
29. O que não faz sentido é rejeitar um recurso nestas
circunstâncias.
30. Numa palavra, no recurso interposto foi identificada a norma com base na
qual o STJ veio a rejeitar o recurso (de revista).
31. Porque assim, deverá ser revogada a “decisão sumária” em crise e deverá
admitir-se o recurso interposto para o TC.
32. Além do mais, porque essa será a maneira de, na procedência do recurso,
criar condições para reparar um grave erro do STJ e produzir uma decisão
materialmente justa
Sem prescindir,
33. A douta “decisão sumária” – na senda da tal aptência por questões
processuais, em detrimento do mérito– ainda acrescenta que o presente recurso
nunca poderia ser admitido, a pretexto de que o Recorrente lhe introduziu um
elemento não considerado pelo STJ.
34. Com o devido respeito, tal ponto de vista também não é acertado (…)».
4. Notificados desta reclamação, os recorridos não responderam.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Nos presentes autos foi proferida decisão sumária, ao abrigo do disposto no nº 1
do artigo 78º-A da LTC, por se ter entendido que o recorrente pretendia, afinal,
que este Tribunal apreciasse a inconstitucionalidade de uma decisão e não de uma
qualquer norma, quando requereu a apreciação da inconstitucionalidade da norma
contida no nº 1 do art. 678° do CPC, na interpretação adoptada segundo a qual,
numa acção de valor superior à alçada da Relação, não é admissível recurso para
o Supremo Tribunal de Justiça, com o fundamento de que a sucumbência relativa
aos quatro pedidos objecto da revista não excede metade daquela alçada, muito
embora o valor da acção esteja originariamente errado (por defeito) e em
flagrante oposição com a realidade (sem que o Juiz da causa tenha dado
cumprimento ao art. 315º.1 do CPC), não expressando tal valor quatro de cinco
pedidos cumulados (não estando esse quinto pedido sob revista), e muito embora
não seja possível definir em concreto o valor da sucumbência relativamente aos
quatro pedidos sob revista pela decisão agora recorrida.
A presente reclamação não demonstra, de todo, que foi requerida a apreciação da
inconstitucionalidade de uma norma, contrariando, assim, o que foi anteriormente
decidido e que agora se reitera. Anote-se, até, que não foi sequer estruturada
para proceder a tal demonstração.
O reclamante opta, antes, por ensaiar uma formulação que cumpra os requisitos de
generalidade e abstracção cuja falta ficou assinalada na decisão sumária.
Sucede, porém, que, independentemente de saber se o reclamante vem agora indicar
uma norma que o tribunal recorrido aplicou, como ratio decidendi, certo é que
este já não é o momento processual adequado para o fazer (assim, entre muitos
outros, pois que constitui jurisprudência uniforme e reiterada do Tribunal
Constitucional, cfr. Acórdãos nºs 60/2004 e 405/2006, não publicados).
De resto, da presente reclamação resulta que o reclamante não tem presente que é
um ónus do recorrente indicar a norma cuja inconstitucionalidade pretende ver
apreciada, que fica definido no requerimento de interposição de recurso o
respectivo objecto e que a norma deve ser indicada de forma a poder ser
enunciada na decisão, caso o Tribunal a venha a julgar inconstitucional.
Como o fundamento da decisão sumária foi o de que o recorrente requereu a
apreciação da inconstitucionalidade de uma decisão e não de uma norma e é de
reiterar este fundamento, não se justifica apreciar a argumentação apresentada
para contrariar a afirmação feita na decisão sumária – a título de mera hipótese
– de que, ainda que se pudesse considerar que foi enunciada uma norma, falharia
sempre o requisito da aplicação dessa norma como ratio decidendi.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência,
confirmar a decisão reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte ) unidades de
conta.
Lisboa, 27 de Fevereiro de 2007
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos
Artur Maurício