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Processo n.º 54/07
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
A. requereu, em 12 de Dezembro de 2006, ao
Supremo Tribunal de Justiça (STJ) a concessão da providência de habeas corpus,
ao abrigo do artigo 222.º, n.ºs 1 e 2, alínea c), do Código de Processo Penal
(CPP), alegando, em suma, encontrar‑se detido à ordem dos presentes autos desde
22 de Agosto de 2005 e, tendo por ele sido requerida a abertura de instrução, o
respectivo debate instrutório ter sido marcado para 13 de Dezembro de 2006, pelo
que qualquer decisão instrutória que pudesse ser tomada só poderia ser
proferida depois de ultrapassado o prazo máximo de um ano de prisão preventiva
fixado no artigo 215.º, n.º 2, alínea b), do CPP (que determina que, nos casos
dos crimes aí previstos – sendo certo que o recorrente se encontra acusado de
18 crimes de sequestro, 16 crimes de roubo agravado, 1 crime de falsificação de
documento agravado e 1 crime de detenção ilegal de arma –, a prisão preventiva
não pode excede um ano sem que, havendo instrução, tenha sido proferida decisão
instrutória).
A pretensão foi indeferida por acórdão de 20 de
Dezembro de 2006 do STJ, com a seguinte fundamentação:
“De acordo com a informação a que se refere o artigo 223.º, n.º 1, [do CPP] o
peticionante A. encontra‑se preso preventivamente à ordem do referido processo
desde 22 de Agosto de 2005, tendo sido detido na véspera, dia 21, posto o que
foi apresentado em juízo para primeiro interrogatório judicial.
No dia 19 de Abril de 2006, foi deduzida acusação contra o peticionante, pela
prática de crimes agravados de roubo e de sequestro, de falsificação de
documento e de detenção de arma ilegal, acusação recebida em 7 de Setembro de
2006, com designação do dia 7 de Novembro para julgamento.
Entretanto, na data do início do julgamento, foi arguida pelo peticionante a
nulidade do acto de notificação da acusação contra si deduzida, na sequência do
que veio a ser declarada inválida a notificação da acusação e determinada nova
notificação; na mesma data foi reavaliada e mantida a medida de coacção de
prisão preventiva.
Mediante requerimento apresentado pelo peticionante, datado de 6 do corrente
mês, foi requerida a instrução, fase processual que foi declarada aberta
imediatamente, tendo‑se realizado o respectivo debate no dia 13, com prolação
imediata da decisão instrutória, ditada para a acta e notificada ao arguido e
seu Ex.mo Mandatário, decisão que pronunciou aquele nos termos da acusação
deduzida e manteve a prisão preventiva.
Entretanto, no dia 11, mediante despacho, foi declarada a especial complexidade
do processo.
Convocada a secção criminal, com notificação do Ministério Público e do Ex.mo
Defensor do peticionante, realizou‑se audiência, cumprindo agora decidir.
*
A providência de habeas corpus constitui um procedimento extraordinário, com
natureza de acção autónoma com fim cautelar, destinada a assegurar de forma
especial o direito à liberdade constitucionalmente garantido, reconduzindo‑se
todos os seus fundamentos à ilegalidade da prisão, designadamente, por via da
sua efectuação ou determinação por entidade incompetente, por motivada por facto
que a lei não permite ou por se manter para além dos prazos fixados na lei ou
por decisão judicial – alíneas a) a c) do n.º 2 do artigo 222.º.
Para além da verificação de um dos transcritos fundamentos, certo é que o pedido
de habeas corpus pressupõe que a ilegalidade da prisão seja actual, actualidade
reportada ao momento em que é apreciado aquele pedido.
Tem sido esta a posição constante e pacífica assumida por este Supremo Tribunal
de Justiça.
Por isso, a providência de habeas corpus não se destina à sindicação de outros
motivos ou fundamentos susceptíveis de pôr em causa a legalidade da prisão,
nomeadamente a sindicação dos motivos ou fundamentos da decisão que ordenou a
prisão ou a detenção e a emissão dos respectivos mandados, a apreciação de
eventuais irregularidades processuais a montante ou a jusante da prisão ou a
verificação da legalidade da prisão reportada a momentos anteriores,
designadamente o cumprimento dos respectivos prazos de duração máxima em fases
processuais já ultrapassadas.
Entrando no concreto dos autos verificamos que no dia 13 do corrente foi
proferida decisão instrutória que pronunciou o peticionante, entre outros, pelos
crimes agravados de roubo e de sequestro, crimes puníveis com pena de prisão de
máximo superior a oito anos.
Por outro lado, no dia 11, mediante despacho, foi declarada a especial
complexidade do processo.
O peticionante, como já se consignou, encontra-se preso desde o dia 21 de Agosto
de 2005.
Atento o que preceitua a lei adjectiva penal em matéria de prazos de duração
máxima da prisão preventiva, temos que o prazo de prisão preventiva a atender na
concreta situação ou caso dos autos é o de 3 anos – artigo 215.º, n.ºs 1, alínea
c), 2 e 3.
Deste modo e conquanto o peticionante tenha estado transitoriamente preso
ilegalmente, a verdade é que actualmente tal não sucede, visto que o prazo de
prisão preventiva só terminará no dia 21 de Agosto de 2008.
*
Termos em que se acorda indeferir o pedido de habeas corpus.”
É deste acórdão que vem interposto o presente
recurso, tendo, a convite do relator no Tribunal Constitucional, o recorrente
explicitado que o mesmo era interposto ao abrigo das alíneas b) e g) do n.º 1 do
artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada,
por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), pretendendo ver
apreciada a inconstitucionalidade, por violação dos artigos 28.º, n.º 4, e 32.º,
n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), da norma do artigo 215.º,
n.ºs 1 e 2, do CPP, na interpretação que lhe foi dada pelo STJ, que, ao exigir a
actualidade da ilegalidade da prisão, para concessão do habeas corpus, teria
atribuído eficácia retroactiva ao despacho que declarou a especial complexidade
do processo, proferido quando já tinha sido ultrapassado o prazo legal de prisão
preventiva, adoptando, assim, interpretação já julgada inconstitucional pelo
Acórdão n.º 13/2004 do Tribunal Constitucional. Mais referiu que só no
requerimento de interposição de recurso teve oportunidade de suscitar a questão
de inconstitucionalidade que pretende ver apreciada, “dado que o problema só se
suscitou na altura em que foi proferida a decisão do habeas corpus”, atenta a
superveniência do despacho de declaração da especial complexidade do processo.
O recorrente apresentou alegações, que terminam
com a formulação das seguintes conclusões:
“1 – Repetimos. O STJ achou por bem fazer aquilo que censura ao cidadão
indefeso.
Salvo o muito respeito devido, o princípio da Dura Lex, Sed Lex só se aplica ao
cidadão comum. E a litigância fraudulenta e a má fé, igualmente. Porque o
«cozinhado» que feito, foi escandalosamente para disfarçar uma negligência
indesculpável e ilegal – manutenção da prisão contra a lei, conforme o entende
o próprio STJ.
2 – O artigo 215.º é bem explícito e não admite interpretações com efeitos
retroactivos. A interpretação que emerge do douto acórdão recorrido fere de
morte o artigo 32.º, n.º l, da Lei Fundamental.
3 – O já invocado douto acórdão proferido pelo mais Alto Tribunal (Acórdão n.º
13/2004, proc. 925/2003, da 3.ª Secção, em que foi relator o Exmo. Cons. Bravo
Serra) dá‑nos a direcção certa da legalidade e do respeito pelos direitos dos
cidadãos.
4 – É extremamente censurável que ao STJ, como contrapartida de o juiz titular
do processo na 1.ª instância ter mantido preso o ora recorrente ilegalmente,
lhe baste uma participação ao Conselho Superior da Magistratura.
Como se o cidadão ora recorrente não contasse para coisa nenhuma
«espezinhando‑se», dessa maneira, o seu direito à liberdade.
5 – Ao arguido não lhe resta o seu advogado que constituiu. Resta‑lhe o douto
Tribunal Constitucional para ficar a saber em que país vivemos, como se
«fabrica» a justiça em Portugal.”
O representante do Ministério Público no
Tribunal Constitucional contra‑alegou, suscitando a questão prévia do não
conhecimento do recurso interposto, por falta dos respectivos pressupostos: (i)
quanto ao recurso interposto ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da
LTC, por falta de “completa e adequada identidade e coincidência” entre “o bloco
normativo julgado inconstitucional” pelo Acórdão n.º 13/2004 e a norma que agora
é objecto do recurso; e (ii) quanto ao recurso interposto ao abrigo da alínea b)
do mesmo preceito, por a questão de inconstitucionalidade que se pretende ver
apreciada não ter sido suscitada perante o STJ em termos de este ficar obrigado
a dela conhecer.
Determinada, pelo relator, a notificação do
recorrente para se pronunciar sobre as questões prévias suscitadas pelo
Ministério Público “e ainda para se pronunciar sobre a eventualidade de esse não
conhecimento se basear na falta de coincidência entre o critério normativo
aplicado no acórdão recorrido (não ultrapassagem do prazo de prisão preventiva,
posterior ao proferimento da decisão instrutória – artigo 215.º, n.º 1, alínea
c), e 3, do Código de Processo Penal) e o critério normativo acusado de
inconstitucional (prorrogação do prazo de prisão preventiva anterior ao
proferimento da decisão instrutória, por força do «efeito retroactivo» que teria
sido atribuído ao despacho que declarou a especial complexidade do processo”, o
mesmo respondeu:
“1 – Nas doutas contra‑alegações apresentadas pelo Ilustre
Magistrado do Ministério Público, afirma‑se que «relativamente à alínea g) do
artigo 70.º, n.º 1, da LTC, verifica‑se que não há uma completa e adequada
identidade e coincidência entre o bloco normativo julgado inconstitucional pelo
Acórdão em referência, com o n.º 13/2004, do Tribunal Constitucional e a norma
que é agora objecto de recurso».
Com acentuado e exagerado formalismo, o mui Ilustre Magistrado
do Ministério Público, «foge» deliberadamente da questão de fundo – pois, no
fim, o que mais interessa é a verdade material.
Veja‑se só:
2 – Salvo o muito respeito devido, o Ministério Público implica com o facto de
invocarmos o artigo 215.º, no seu todo e não as diversas alíneas aplicadas in
casu.
Quando, no fundo, das nossas modestas peças processuais produzidas é bem
explícito o caso concreto e normativo legal aplicável.
3 – O douto acórdão deste Alto Tribunal, com o n.º 13/2004, inspira‑se nos
mesmíssimos princípios que aqui devem ser aplicados.
Respigamos, no que interessa, parte deste acórdão:
Das alegações do recorrente:
«1.º – Do princípio constitucional afirmado pelo n.º 4 do
artigo 28.º da Constituição da República Portuguesa decorre que os prazos legais
da prisão preventiva – para além de deverem revelar‑se proporcionais e
adequados à natureza excepcional de tal medida de coacção – não podem conter
‘hiatos’ de que decorra a potencial ampliação da duração máxima global da medida
de coacção, privativa da liberdade, aplicada ao arguido.
2.º – Tal princípio constitucional implica que, uma vez
consumado o prazo máximo da prisão preventiva, estabelecido na lei para certa
fase processual, a medida se extingue imediatamente, devendo o arguido ser logo
posto em liberdade, apenas podendo ser submetido a alguma das medidas de coacção
não detentivas (previstas nos artigos 197.º a 200.º do Código de Processo
Penal), mas não a prisão preventiva ‘adicional’.
3.º – É incompatível com o princípio constitucional da sujeição
da prisão preventiva aos prazos previstos na lei a interpretação normativa dos
artigos 215.º e 217.º, n.ºs 1 e 2, que admite a manutenção do arguido em
situação de prisão preventiva, com base na prolação – em momento ulterior àquele
em que ocorreu a medida de coacção – de um despacho a declarar o processo de
especial complexidade, cuja eficácia – no que se refere à prorrogação dos
prazos legais da prisão preventiva – não vale apenas para o futuro, aplicando‑se
também retroactivamente, em termos de convalidar a ilegalidade decorrente de a
prisão preventiva se mostrar irremediavelmente extinta em momento anterior à
prolação de tal despacho.»
4 – E na parte decisória do douto acórdão do Tribunal Constitucional lê‑se:
«Isso significa que, volens nolens, o Supremo Tribunal de Justiça, no feito ora
em apreciação veio a conferir aos normativos ínsitos nos artigos 215.º, n.ºs 1 a
3, e 217.º, uma dimensão normativa de acordo com a qual a prolação de despacho
judicial a declarar de excepcional complexidade do procedimento por um dos
crimes referidos no n.º 2 daquele artigo 215.º, prolação essa efectuada após
ter decorrido o prazo máximo de duração da prisão preventiva previsto nos n.ºs 1
e 2 do mesmo artigo, não implica a extinção daquela medida de coacção.
E, por isso, se entrará no conhecimento do objecto desta impugnação.
4. De harmonia com o que se consagra no n.º 1 do artigo 31.º da Constituição, é
imposta a providência de habeas corpus em face, inter alia, de prisão ilegal.
Como sublinham Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República
Portuguesa Anotada, 3.ª edição, p. 199), a ‘prisão ou detenção é ilegal quando
... tenham sido ultrapassados ... os prazos estabelecidos na lei para a duração
da prisão preventiva’.
Por outro lado, o artigo 28.º, n.º 4, da mesma Lei Fundamental prescreve que a
prisão preventiva está sujeita aos prazos estabelecidos na lei.
Para se saber quais sejam esses prazos, necessário é buscar no ordenamento
jurídico infraconstitucional as regras que comandam a duração máxima da mais
severa medida de coacção processual penal, sendo que tais regras, como sabido é,
se encontram consagradas nos n.ºs 1 a 4 do artigo 215.º do diploma adjectivo
criminal, aí se diferenciando variados prazos em função das fases processuais,
de determinadas espécies de crimes e em razão da sua punibilidade abstracta e,
por fim, da existência de recurso para o Tribunal Constitucional ou da
suspensão do processo para julgamento, em outro tribunal, de uma questão
prejudicial.
Por seu turno, o n.º 1 do artigo 217.º do mesmo corpo de leis consagra a regra
segundo a qual o arguido será posto em liberdade logo que a medida de prisão
preventiva se extinguir.
A concatenação deste n.º 1 do artigo 217.º com os n.ºs 1 a 4 do artigo 215.º
inculca, numa leitura que atenda ao seu teor literal, que, esgotado que esteja o
prazo fixado nestes últimos números, não se poderá manter a prisão preventiva
imposta ao arguido no procedimento concreto a que ela respeitava, sendo de
anotar que, no vertente caso, nos situamos perante uma hipótese em que cobrava
aplicação a alínea d) do n.º 1, em conjugação com o n.º 2, ainda do mesmo
artigo.
Ora, conquanto, in casu, o prazo máximo de duração da prisão preventiva
correspondente à fase processual, ao crime e à sua punibilidade, tudo nos
termos dos n.ºs 1 e 2 do citado artigo 217.º, se encontrasse já excedido, o
acórdão em análise entendeu que a prolação de um despacho judicial, tirado
posteriormente ao esgotamento daquele prazo, e por intermédio do qual foi
declarada a excepcional complexidade do procedimento, tinha a virtualidade de
fazer elevar tal prazo de acordo com o preceituado no seu n.º 3.
É esta, pois, a questão de constitucionalidade que ora se aprecia.
5. Este Tribunal, a propósito da norma vertida no § 1.º do artigo 273.º do
Código de Processo Penal aprovado pelo Decreto n.º 16 489, de 15 de Fevereiro de
1929 (redacção conferida pelo Decreto‑Lei n.º 402/82, de 23 de Setembro), teve
ocasião de referir no seu Acórdão n.º 137/92 (publicado nos Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 21.º volume, pp. 549 a 581, e rectificado pelo Acórdão n.º
144/93) que se o limite da restrição à liberdade operada por uma determinada
norma (no caso então a decidir a norma acima apontada) perde todo o efeito útil
– deixando de acautelar os interesses da realização da justiça – então a mesma
deixará de legitimar‑se no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, não
configurando a restrição uma qualquer exigência de concordância prática com
outros valores constitucionalmente protegidos.
E, mais, adiante, asseverou que, se se criar (nomeadamente por interpretação das
regras legais) um hiato no sistema de contagem dos prazos de prisão preventiva,
isso redunda numa subversão da limitação legal do tempo de prisão preventiva
imposta pelo n.º 4 do artigo 28.º do Diploma Básico, por isso que, dessa sorte,
se alcança um tempo de prisão preventiva sem tutela de lei.
Se, como este Tribunal entende, são de aceitar estas conclusões que se extraem
do mencionado Acórdão n.º 137/92, resulta manifesto que, em face do prescrito
nos n.ºs 1 e 2 do artigo 217.º do vigente Código de Processo Penal, estava já
extinto o prazo máximo de prisão preventiva imposta ao arguido … (e isto, claro
está, para quem perfilhe o entendimento de que o procedimento pelo crime pelo
qual se encontrava condenado não é de considerar, tão‑só por força do
estabelecido no n.º 3 do artigo 54.º do Decreto‑Lei n.º 15/93, ou seja, sem
necessidade de despacho judicial em tal sentido, como um procedimento ao qual
se deve conferir a característica de excepcional complexidade).
Ora, a interpretação normativa levada a efeito pelo Supremo Tribunal de Justiça,
volens nolens, repete‑se, conferiu à prolação do despacho de 10 de Outubro de
2003 um ‘efeito retroactivo’, assim, e para se utilizarem as palavras da
entidade recorrente, ‘legitimando a manutenção da medida de coacção extrema
quando a mesma já se havia extinguido’.
Seguramente que o legislador constituinte, ao afirmar no n.º 4 do artigo 28.º da
Lei Fundamental que a prisão preventiva está sujeita aos prazos estabelecidos na
lei ordinária, não desejou que, esgotados que fossem eles em face dos preceitos
nesta consagrados, pudesse manter‑se a mais penalizante medida de coacção por
efeito de uma (re)apreciação posterior que viesse a conferir ao procedimento uma
característica que, aquando do esgotamento do prazo, ainda não estava
declarada.»
5 – Falando-se, nas peças produzidas, em «prazo decorrido sem que tenha sido
proferida decisão instrutória», é o mesmo que aludir ao artigo 215.º, n.º 1,
alínea b), e n.º 2 do CPP.
Aliás, existe uma perfeita equipolência de critérios entre o adoptado no dito
acórdão 13/04 e a situação sub judice.
Ambos tratam do excesso de prisão preventiva, em que estão incluídos todos os
casos enumerados no artigo 215.º do CPP. Não importa, pois, a fase processual. A
lei ou o princípio aplica‑se aos prazos excedidos em qualquer das fases aludidas
no artigo 215.º.
6 – O significado nas nossas palavras pensamos que são suficientemente claras.
Importa, sim, que não foi respeitado o comando legal ínsito no artigo 217.º, n.º
1, da lei adjectiva penal quando manda libertar «logo que a medida se extinga».
O caso em apreço nos presentes autos é um dos contemplados pelo artigo 215.º do
mesmo diploma – tendo nós exaustivamente referido que foi ultrapassado o prazo
de decisão instrutória.
E escrevemos até à exaustão a interpretação correcta a dar ao n.º 3 do mesmo
artigo 215.º, quanto à inadmissibilidade da retroactividade do despacho a
declarar a excepcional complexidade.
Quando esse famigerado despacho apareceu nos autos, já o recorrente deveria
estar em liberdade. Será ou não será?
7 – Quanto à pretensa «tábua de salvação» a que alude o Digno Magistrado do
Ministério Público no 1.3 é cegar‑nos a todos.
O problema da constitucionalidade não foi suscitado no STJ porque,
ardilosamente, a questão da declaração da excepcional complexidade só foi
colocada após os articulados admitidos naquele Alto Tribunal. A culpa é, como é
evidente, da 1.ª instância que introduziu no processo o despacho quando estava a
ser decidido o habeas corpus.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
Começando – como cumpre – pela apreciação das
questões prévias suscitadas pelo Ministério Público e pelo relator, há que
aferir: (i) se existe identidade entre a norma anteriormente julgada
inconstitucional pelo Tribunal Constitucional e a norma aplicada na decisão ora
recorrida; (ii) se o recorrente suscitou adequadamente, perante o tribunal
recorrido, a questão de inconstitucionalidade que pretendia ver sindicada ou se
estaremos perante uma daquelas situações excepcionais em que se deve considerar
o recorrente dispensado desse ónus; e (iii) se a decisão recorrida aplicou, como
ratio decidendi, o critério normativo arguido de inconstitucional pelo
recorrente.
2.1. Relativamente à primeira questão, aduz o
representante do Ministério Público que o objecto do presente recurso “está
circunscrito ao artigo 215.º do Código de Processo Penal, enquanto que no
aludido acórdão foram julgadas inconstitucionais, por violação do artigo 28.º,
n.º 4, da Constituição, as normas dos artigos 215.º, n.ºs 1 a 3, e 217.º, ambas
daquele diploma legal, uma dimensão normativa interpretativa de acordo com a
qual a prolação do despacho judicial a declarar a excepcional complexidade do
procedimento por um dos crimes referidos no n.º 2 daquele artigo 215.º, prolação
essa efectuada após ter decorrido o prazo máximo de duração da prisão preventiva
previsto nos n.ºs 1 e 2 do mesmo artigo, não implica a extinção daquela medida
de coação”.
Na situação sobre que recaiu o Acórdão n.º
13/2004, o arguido estava preso preventivamente desde 6 de Abril de 2001 e
estava pendente recurso da condenação em 1.ª instância, por crime punível com
pena de prisão de 4 a 12 anos, quando, em 9 de Outubro de 2003, veio requerer a
concessão de habeas corpus, por então já ter perfeito 30 meses e 2 dias de
prisão preventiva e ser de trinta meses o prazo máximo de prisão preventiva sem
que tenha havido condenação com trânsito em julgado (artigo 215.º, n.ºs 1,
alínea d), e 2, do CPP). O STJ, no acórdão então recorrido, indeferiu a
providência impetrada por (de acordo com a interpretação dele feita no Acórdão
n.º 13/2004) em 10 de Outubro de 2004 ter sido proferido despacho a declarar a
especial complexidade do processo em causa, o que teve por efeito a elevação
para 4 anos (artigo 215.º, n.º 3, do CPP) daquele prazo de 30 meses. Desse
acórdão interpôs recurso para o Tribunal Constitucional a representante do
Ministério Público junto do STJ, pretendendo a apreciação da
inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 215.º, n.ºs 1, 2 e 3, e
217.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPP, na interpretação de que “a prolação de
despacho a declarar o procedimento de excepcional complexidade, apesar de
posterior ao decurso do prazo de duração máxima da prisão preventiva, sana a
ilegalidade da prisão preventiva que se mostrava já extinta por decurso desse
prazo”.
Nesse Acórdão n.º 13/2004, o Tribunal
Constitucional consignou:
“O que resulta do acórdão de 16 de Outubro de 2003 – e é
tornado nítido no subsequente acórdão de 20 de Novembro do mesmo ano, que
indeferiu a arguição de nulidade assacada ao primeiro – é que o Supremo
Tribunal de Justiça ponderou a circunstância de ter sido proferido despacho a
declarar a especial complexidade do processo e, muito embora o proferimento
tivesse ocorrido quando já estava esgotado o prazo máximo de prisão preventiva
estabelecido em abstracto no n.º 2 do artigo 215.º do Código de Processo Penal
para um ilícito tal como aquele pelo qual o arguido veio a ser condenado,
entendeu que com tal proferimento, no momento da proferenda decisão sobre o
habeas corpus, não seria possível dizer‑se que a prisão padecia de ilegalidade.
Isso significa que, volens nolens, o Supremo Tribunal de
Justiça, no feito ora em apreciação veio a conferir aos normativos ínsitos nos
artigos 215.º, n.ºs 1 a 3, e 217.º, uma dimensão normativa de acordo com a qual
a prolação de despacho judicial a declarar de excepcional complexidade do
procedimento por um dos crimes referidos no n.º 2 daquele artigo 215.º, prolação
essa efectuada após ter decorrido o prazo máximo de duração da prisão
preventiva previsto nos n.ºs 1 e 2 do mesmo artigo, não implica a extinção
daquela medida de coacção.
E, por isso, se entrará no conhecimento do objecto desta
impugnação.
4. De harmonia com o que se consagra no n.º 1 do artigo 31.º da
Constituição, é imposta a providência de habeas corpus em face, inter alia, de
prisão ilegal.
Como sublinham Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da
República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, p. 199), a «prisão ou detenção é
ilegal quando ... tenham sido ultrapassados ... os prazos estabelecidos na lei
para a duração da prisão preventiva».
Por outro lado, o artigo 28.º, n.º 4, da mesma Lei Fundamental,
prescreve que a prisão preventiva está sujeita aos prazos estabelecidos na lei.
Para se saber quais sejam esses prazos, necessário é buscar no
ordenamento jurídico infraconstitucional as regras que comandam a duração
máxima da mais severa medida de coacção processual penal, sendo que tais regras,
como sabido é, se encontram consagradas nos n.ºs 1 a 4 do artigo 215.º do
diploma adjectivo criminal, aí se diferenciando variados prazos em função das
fases processuais, de determinadas espécies de crimes e em razão da sua
punibilidade abstracta e, por fim, da existência de recurso para o Tribunal
Constitucional ou da suspensão do processo para julgamento, em outro tribunal,
de uma questão prejudicial.
Por seu turno, o n.º 1 do artigo 217.º do mesmo corpo de leis
consagra a regra segundo a qual o arguido será posto em liberdade logo que a
medida de prisão preventiva se extinguir.
A concatenação deste n.º 1 do artigo 217.º com os n.ºs 1 a 4 do
artigo 215.º inculca, numa leitura que atenda ao seu teor literal, que, esgotado
que esteja o prazo fixado nestes últimos números, não se poderá manter a prisão
preventiva imposta ao arguido no procedimento concreto a que ela respeitava,
sendo de anotar que, no vertente caso, nos situamos perante uma hipótese em que
cobrava aplicação a alínea d) do n.º 1, em conjugação com o n.º 2, ainda do
mesmo artigo.
Ora, conquanto, in casu, o prazo máximo de duração da prisão
preventiva correspondente à fase processual, ao crime e à sua punibilidade,
tudo nos termos dos n.ºs 1 e 2 do citado artigo 217.º, se encontrasse já
excedido, o acórdão em análise entendeu que a prolação de um despacho judicial,
tirado posteriormente ao esgotamento daquele prazo, e por intermédio do qual
foi declarada a excepcional complexidade do procedimento, tinha a virtualidade
de fazer elevar tal prazo de acordo com o preceituado no seu n.º 3.
É esta, pois, a questão de constitucionalidade que ora se
aprecia.
5. Este Tribunal, a propósito da norma vertida no § 1.º do
artigo 273.º do Código de Processo Penal aprovado pelo Decreto n.º 16 489, de 15
de Fevereiro de 1929 (redacção conferida pelo Decreto‑Lei n.º 402/82, de 23 de
Setembro), teve ocasião de referir no seu Acórdão n.º 137/92 (publicado nos
Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21.º volume, pp. 549 a 581, e rectificado
pelo Acórdão n.º 144/93) que se o limite da restrição à liberdade operada por
uma determinada norma (no caso então a decidir, a norma acima apontada) perde
todo o efeito útil – deixando de acautelar os interesses da realização da
justiça – então a mesma deixará de legitimar‑se no n.º 2 do artigo 18.º da
Constituição, não configurando a restrição uma qualquer exigência de
concordância prática com outros valores constitucionalmente protegidos.
E, mais, adiante, asseverou que, se se criar (nomeadamente por
interpretação das regras legais) um hiato no sistema de contagem dos prazos de
prisão preventiva, isso redunda numa subversão da limitação legal do tempo de
prisão preventiva imposta pelo n.º 4 do artigo 28.º do Diploma Básico, por isso
que, dessa sorte, se alcança um tempo de prisão preventiva sem tutela de lei.
Se, como este Tribunal entende, são de aceitar estas conclusões
que se extraem do mencionado Acórdão n.º 137/92, resulta manifesto que, em face
do prescrito nos n.ºs 1 e 2 do artigo 217.º do vigente Código de Processo Penal,
estava já extinto o prazo máximo de prisão preventiva imposta ao arguido B. (e
isto, claro está, para quem perfilhe o entendimento de que o procedimento pelo
crime pelo qual se encontrava condenado não é de considerar, tão‑só por força
do estabelecido no n.º 3 do artigo 54.º do Decreto‑Lei n.º 15/93, ou seja, sem
necessidade de despacho judicial em tal sentido, como um procedimento ao qual se
deve conferir a característica de excepcional complexidade).
Ora, a interpretação normativa levada a efeito pelo Supremo
Tribunal de Justiça, volens nolens, repete‑se, conferiu à prolação do despacho
de 10 de Outubro de 2003 um «efeito retroactivo», assim, e para se utilizarem as
palavras da entidade recorrente, «legitimando a manutenção da medida de coacção
extrema quando a mesma já se havia extinguido».
Seguramente que o legislador constituinte, ao afirmar no n.º 4
do artigo 28.º da Lei Fundamental que a prisão preventiva está sujeita aos
prazos estabelecidos na lei ordinária, não desejou que, esgotados que fossem
eles em face dos preceitos nesta consagrados, pudesse manter‑se a mais
penalizante medida de coacção por efeito de uma (re)apreciação posterior que
viesse a conferir ao procedimento uma característica que, aquando do esgotamento
do prazo, ainda não estava declarada.
Uma linha de raciocínio interpretativo das normas ordinárias que
a isso conduzisse retiraria eficácia prática àquele comando constitucional – que
se ateve tão‑só aos prazos que a lei infraconstitucional dispusesse –, pois que
dessa linha decorre inelutavelmente a potencialidade de ampliação daqueles
prazos.
6. Em face do exposto, o Tribunal decide:
a) Julgar inconstitucional, por violação do n.º 4 do artigo 28.º
da Lei Fundamental, as normas constantes dos artigos 215.º, n.ºs 1 a 3, e
217.º, ambos do Código de Processo Penal, numa dimensão interpretativa de acordo
com a qual a prolação de despacho judicial a declarar de excepcional
complexidade do procedimento por um dos crimes referidos no n.º 2 daquele artigo
215.º, prolação essa efectuada após ter decorrido o prazo máximo de duração da
prisão preventiva previsto nos n.ºs 1 e 2 do mesmo artigo, não implica a
extinção daquela medida de coacção.”
Há que reconhecer que são, de facto, diversas
as situações existentes e as dimensões normativas aplicadas nas decisões
recorridas proferidas no processo sobre que recaiu o Acórdão n.º 13/2004 e nos
presentes autos. Naquele caso, já se havia esgotado o último dos prazos máximos
de prisão preventiva – o relativo à fase processual posterior à condenação em
1.ª instância até ao trânsito em julgado da condenação – quando foi proferido o
despacho a declarar a especial complexidade do processo. No presente caso, se é
certo que o despacho a declarar a especial complexidade do processo foi
proferido (em 11 de Dezembro de 2006) quando já se havia esgotado (em 21 de
Agosto de 2006) o prazo máximo da prisão preventiva relativo à fase processual
então em curso (posterior à acusação, mas anterior à prolação de decisão
instrutória) e atendendo à gravidade dos crimes em causa (prazo de 1 ano,
excepto se se tratasse de processo de especial complexidade, hipótese em que
seria elevado para 16 meses), não menos certo é que, à data em que foi proferido
o acórdão recorrido (20 de Dezembro de 2006), o processo já evoluíra para fase
posterior (que corresponde ao período entre a decisão instrutória e a condenação
em 1.ª instância), cujos prazos máximos de prisão preventiva (2 anos estando em
causa os crimes referidos no n.º 2 do artigo 215.º do CPP, elevado para 3 anos
se se tratasse de processo de especial complexidade) estavam longe de se ter
esgotados. O critério normativo utilizado no acórdão recorrido – que atribuiu
relevância à fase actual do processo penal, reportada ao momento em que é
apreciado o pedido de habeas corpus, e, no caso, à norma do n.º 3, conjugada
com a do n.º 2 e com a alínea c) do n.º 1 do artigo 215.º do CPP), e considerou
a prisão não ilegal por não ultrapassado o correspondente prazo – é, assim,
distinto do que foi julgado inconstitucional pelo Acórdão n.º 13/2004, que
atribuíra relevância “retroactiva” à declaração da especial complexidade do
processo proferida já depois de esgotado o “máximo dos máximos” dos prazos de
prisão preventiva não fora essa declaração (30 meses, resultantes da conjugação
da previsão da alínea d) do n.º 1 com o n.º 2 do artigo 215.º do CPP).
Inexistindo coincidência entre o critério
normativo julgado inconstitucional pelo Acórdão n.º 13/2004 e o critério
normativo aplicado no acórdão ora recorrido, o recurso interposto ao abrigo da
alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC é inadmissível.
2.2. Quanto ao recurso interposto ao abrigo da
alínea b) do mesmo preceito, não se pode basear a sua inadmissibilidade na
circunstância de o recorrente não haver suscitado, antes de proferida a decisão
ora recorrida, a questão da inconstitucionalidade do critério normativo nela
utilizado, pela razão óbvia de que, quando formulou o pedido de habeas corpus
(em 12 de Dezembro de 2006), o requerente ainda não se podia considerar
notificado do despacho que declarou a especial complexidade do processo
(proferido em 11 de Dezembro de 2006 e notificado por carta registada expedida
nessa mesma data, pelo que a notificação apenas se considera efectivada em 14 de
Dezembro de 2006), nem da decisão instrutória (proferida em 13 de Dezembro de
2006).
Mas já constitui obstáculo à admissibilidade
desse recurso a falta de coincidência entre o critério normativo utilizado,
como ratio decidendi, pelo acórdão recorrido e o critério normativo arguido de
inconstitucional pelo recorrente. Este último reputa inconstitucional o
entendimento que, atribuindo “eficácia retroactiva” à declaração de especial
complexidade do processo, teve por efeito a “prorrogação” de um prazo máximo de
prisão preventiva já extinto. Diversamente, o STJ não julgou ilegal a prisão
preventiva do requerente por, de acordo com o critério de que essa ilegalidade
deve ser aferida, com actualidade, atendendo ao momento processual existente à
data da apreciação do pedido, o prazo máximo de prisão preventiva ter passado a
ser o correspondente à fase posterior à decisão instrutória, entretanto
proferida. O critério arguido de inconstitucional pelo recorrente só poderia
considerar‑se aplicado se, por hipótese, à data da decisão do pedido de habeas
corpus, o processo ainda estivesse na fase processual que decorre entre a
acusação e a decisão instrutória e se se entendesse atribuir relevância a
declaração de especial complexidade do processo proferida depois de esgotado o
prazo máximo de prisão correspondente a essa fase. Mas – repete‑se – não foi
esse o critério seguido pelo STJ, que considerou determinante ter‑se já passado
à fase posterior à decisão instrutória, relativamente à qual não se mostra
excedido o prazo da prisão preventiva (terminaria em 21 de Agosto de 2007, nos
termos do n.º 2, conjugado com a alínea c) do n.º 1 do artigo 215.º do CPP, e
terminará em 21 de Agosto de 2008, por força da declaração de especial
complexidade do processo, nos termos do n.º 3, conjugado com a mesma alínea do
n.º 1 do mesmo preceito).
Assim, por falta de coincidência entre o
critério normativo utilizado, como ratio decidendi, pelo acórdão recorrido e o
critério normativo arguido de inconstitucional pelo recorrente, o recurso
interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC é igualmente
inadmissível.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em não conhecer do
presente recurso.
Custas pelo recorrente, fixando‑se a taxa de
justiça em 12 (doze) unidades de conta.
Lisboa, 28 de Fevereiro de 2007.
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Silva Rodrigues
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos