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Processo n.º 714/06
1ª Secção
Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
Acordam em Conferência no Tribunal Constitucional
1. Em 8 de Janeiro de 2007 (fls. 10 578) foi emitida nestes autos
decisão sumária de não conhecimento dos recursos que, ao abrigo da alínea b) do
n.º 1 do artigo 70º da Lei 28/82, de 15 de Novembro (LTC), A. interpôs dos
acórdãos proferidos em 1 de Março de 2006 e em 3 de Maio de 2006 no Supremo
Tribunal de Justiça.
Contra essa decisão reclama o recorrente, ao abrigo do n.º 3 do artigo 78º-A da
LTC, através do requerimento de fls. 10 617 e seguintes, que aqui se dá por
reproduzido.
Em resposta, o representante do Ministério Público junto deste Tribunal diz:
1 - A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2 - Efectivamente, toda a argumentação do reclamante assenta no facto de não ter
presente que ao Tribunal Constitucional apenas está cometido o controlo
“normativo” da constitucionalidade, não lhe competindo obviamente sindicar, em
vez dos “critérios normativos” enunciados pelo recorrente, de forma inteligível,
as concretas e casuísticas decisões tomadas – no caso, valorando a suficiência
da motivação da sentença condenatória e a aplicação do preceituado no artigo
720º, nº 2, do Código de Processo Penal, por se qualificar como dilatória a
actuação processual do recorrente.
3 - Por outro lado – e quanto à problemática associada ao tema do duplo grau de
jurisdição – é manifesto que o recorrente não conseguiu definir adequadamente o
objecto do recurso, delineando qual o “critério normativo” que, afinal,
pretendia submeter à apreciação do Tribunal Constitucional.
A decisão reclamada tem o seguinte teor:
A. pretende recorrer para este Tribunal dos acórdãos proferidos em 1 de Março e
em 3 de Maio de 2006 pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Quanto a este último, alega que a decisão constituiu uma surpresa, pelo que,
apesar de não ter sido suscitada a inconstitucionalidade das normas ora
impugnadas, deve o recurso ser admitido, caso contrário o artigo 75-A n.º 2 da
LTC 'e a lei n.º 28/87 de 15 de Novembro' é ela própria, 'materialmente
inconstitucional' o que 'desde já se invoca'.
Mas, efectivamente, o recurso, nesta parte, não pode ser admitido não só porque
não foi oportunamente suscitada a inconstitucionalidade das normas impugnadas,
podendo – manifestamente – tê-lo sido, mas também porque o verdadeiro objecto do
recurso é a própria decisão recorrida e não qualquer norma jurídica nela
aplicada como sua ratio decidendi. Isto é: o recorrente não suscitou a questão
da inconstitucionalidade das normas que, em dada interpretação, necessariamente
serviriam para decidir a sua pretensão; para além disto, pretende sindicar a
própria decisão recorrida, embora o faça sob a invocação da desconformidade
constitucional das normas sindicadas.
Não é de conhecer de tal recurso.
Quanto ao recurso interposto do acórdão de 1 de Março de 2006, e sem curar de
saber se ocorreu correcta suscitação da questão de inconstitucionalidade das
normas, haverá que ponderar que, quanto à norma do n.º 2 do artigo 374º do
Código de Processo Penal, o que está verdadeiramente impugnado é o entendimento
do Tribunal recorrido quanto à suficiência da fundamentação da decisão em
análise. Não está questionada a conformidade constitucional de norma jurídica
aplicada na decisão do Tribunal recorrido, mas a própria decisão desse Tribunal.
Quanto às restantes normas, agrupadas pelo recorrente em torno da questão do
'duplo grau de jurisdição': é questionado o julgamento do Tribunal quanto a
pretensos erros notórios na apreciação da prova, o que teria impedido o
conhecimento dessa matéria no STJ. Para além disto, é invocada a impossibilidade
de renovação da prova em 2ª instância por o Tribunal haver entendido que lhe
cumpria apreciar a regularidade do julgamento da 1ª instância e não, como
pretenderia o recorrente, efectuar um 'segundo julgamento', decisão que se
ancoraria nos artigos 430º e 434º do Código de Processo Penal.
Ora, quanto à primeira questão, é manifesto que o recorrente pretende sindicar a
decisão recorrida, e não qualquer norma nela aplicada.
Quanto à segunda, deve já ficar claro que é manifestamente improcedente a
questão suscitada pois, em parte alguma, a Constituição impõe que, em 2º
instância, se proceda a um novo julgamento, como alcançaria o recorrente através
da pretensão da abertura – nessa instância – de uma fase de renovação da prova.
Em suma, o Tribunal decide, ao abrigo do artigo 78º-A n.º 1 da LTC, não conhecer
dos recursos.
2. A reclamação em análise visa impugnar a decisão sumária tanto na
parte em que decidiu não conhecer do recurso interposto do acórdão proferido em
1 de Março de 2006, como na parte em que igualmente decidiu não conhecer do
recurso proferido em 3 de Maio de 2006.
2.1. Por facilidade de exposição, conhecemos por este último. A fls. 10
573 identifica o recorrente o objecto do recurso da seguinte forma:
As normas que se pretendem impugnar e ver apreciada a sua interpretação
desconforme com a Constituição são as da alínea b) do n.º 1 do artigo 118º, nº 2
do artigo 120º e n.º 3 do artigo 121º [do Código Penal], quando interpretados no
sentido de que o STJ não tem que ordenar a remessa dos autos à 1ª instância para
apreciação da questão da prescrição pelo recorrente em processo penal, impedindo
assim a apreciação da prescrição do procedimento criminal cujos factos tiveram
lugar há mais de 18 anos, por tal interpretação violar o disposto no n.º 4 do
artigo 29º e n.º 1 do artigo 32º da CRP.
A decisão de não conhecer do recurso assim interposto radicou numa dupla
circunstância: (1) não ter sido suscitada perante o Tribunal recorrido a
inconstitucionalidade de quaisquer normas constantes dos preceitos impugnados;
(2) o verdadeiro objecto do recurso seria a própria decisão recorrida e não
qualquer norma jurídica nela aplicada como sua ratio decidendi.
E, na verdade, é a própria formulação da espécie que o recorrente apelida como
as 'normas' impugnadas que revela, indubitavelmente, que o objecto do recurso é
a determinação jurisdicional que em concreto decidiu a pretensão do recorrente e
não uma regra jurídica dotada de generalidade e abstracção ao abrigo da qual foi
emitida aquela decisão. Com efeito, a referência a que o STJ não tem que ordenar
a remessa dos autos à 1ª instância para apreciação da questão da prescrição pelo
recorrente em processo penal, impedindo assim a apreciação da prescrição do
procedimento criminal cujos factos tiveram lugar há mais de 18 anos, representa
manifestamente uma decisão, e não traduz o enunciado de uma norma jurídica.
De todo o modo, a constatação de que o Supremo Tribunal de Justiça aponta,
depois, uma segunda razão para indeferir o requerimento apresentado, analisando
directamente o mérito da pretensão, destrói, por completo, a alegação de que o
Tribunal recorrido aplicara uma 'norma' segundo a qual se impediria 'a
apreciação da prescrição do procedimento criminal cujos factos tiveram lugar há
mais de 18 anos'.
Diz o Supremo:
Mas mesmo que se entendesse que o poderia ser, é notório que não lhe assiste
razão.
Sendo o prazo de prescrição de 18 anos, como reconhece o requerente e tendo a
execução do crime cessado em Dezembro de 1992, o que se consignou no acórdão da
Relação de Coimbra a fls. 10 027 e no acórdão deste Supremo Tribunal a fls. 10
489, nunca se poderia considerar decorrido esse prazo.
O requerimento para que os autos baixem à 1ª instância para apreciação da
referida questão é assim manifestamente infundado, revelando que o requerente
pretende retardar a execução da decisão condenatória.
Ora, para além de este trecho da decisão recorrida revelar que um outro
fundamento foi usado para indeferir a pretensão do requerente, fundamento que
não sendo atacado desde logo inviabilizaria o presente recurso, torna ainda
manifesto que o Tribunal recorrido não adoptou o entendimento que o recorrente
questiona.
Tal é o suficiente para que não possa conhecer-se do recurso, pelo que é
desnecessário analisar o outro fundamento da decisão sumária em reclamação.
2.2. Quanto ao recurso interposto do acórdão proferido em 1 de Março de
2006, a situação é a seguinte:
Começou o recorrente por definir desta forma, no requerimento de interposição do
recurso, o objecto do recurso:
[...] pretende-se ver declarada a inconstitucionalidade material da
interpretação do art. 374º n.º2 do CPP, por infringir o art. 208.°, n.º 1 da CRP
conjugado com o art. 32.°, n.º 1 do mesmo diploma, por falta de exame crítico
das provas.
Bem como se pretende ver declarada a inconstitucionalidade material dos artigos
410.°, n.º 2, 430.° e 434.° do CPP, por infringirem o duplo grau de jurisdição
consagrado no art. 32.º, n.º 1da CRP.
O recorrente foi depois convidado a 'enunciar com o necessário rigor as normas
que pretende ver apreciadas' (despacho a fls. 10 126), apresentando o
requerimento que consta dos autos a fls. 10 553 e seguintes, cuja apreciação
determinou a decisão sumária em reclamação.
Em suma, descortinam-se no requerimento do recorrente duas questões relacionadas
com: (1) o n.º 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal; (2) os artigos 410º
n.º 2 412º n.º 3, 430º e 434º do Código de Processo Penal.
O que se diz, na decisão sumária, é que independentemente de qualquer julgamento
sobre a correcta suscitação destas questões perante o Tribunal recorrido, o que
se apresenta verdadeiramente impugnado, quanto à primeira questão, é o
entendimento do Tribunal recorrido no que toca à suficiência da fundamentação da
decisão condenatória, não sendo questionada a conformidade constitucional de
norma jurídica aplicada pelo Tribunal recorrido, mas a própria decisão desse
Tribunal; quanto ao restante, é impugnado o julgamento da Relação de Coimbra
relativamente a pretensos 'erros notórios' na apreciação da prova, o que teria
impedido o conhecimento dessa matéria pelo Supremo Tribunal de Justiça; é, no
entanto, manifesto que o recorrente pretende sindicar a decisão recorrida, e não
qualquer norma nela aplicada. Além disso, é invocada a impossibilidade de
renovação da prova em 2ª instância por o Tribunal haver entendido que lhe
cumpria apreciar a regularidade do julgamento da 1ª instância e não, como
pretenderia o recorrente, efectuar um 'segundo julgamento', decisão que se
ancoraria nos artigos 430º e 434º do Código de Processo Penal; ora, a questão é
manifestamente improcedente, pois em parte alguma a Constituição impõe que, em
2ª instância, se proceda a um novo julgamento, como pretende o recorrente
através da abertura – nessa instância – de uma fase de renovação da prova.
O reclamante insiste, porém, afirmando que visou impugnar a conformidade
constitucional das normas constantes do preceitos do Código de Processo Penal
mencionados no seu requerimento. Vejamos:
Na alegação perante o Supremo Tribunal de Justiça o recorrente definiu assim a
primeira questão: “se se entendesse que o art. 374º, n.º 2 do CPP, não exige o
exame crítico das provas em relação aos factos que justificam as condenações (e
que foram considerados provados), então tal norma está ferida de
inconstitucionalidade, por violar o disposto no art. 205º, n.º 1 e art. 32º,
n.º1, ambos da CRP”.
Acontece que não foi este o sentido com que tais preceitos foram aplicados no
acórdão recorrido. Podemos ler, naquele aresto:
[...]
Estabelece o artigo 374.°, n.º 2, do Código de Processo Penal, que a sentença
deve conter, além do mais, uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda
que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com
indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do
tribunal.
No que concerne à motivação da decisão da matéria de facto, não se exige a
reprodução do conteúdo das provas, bastando uma análise que revele o processo
lógico-mental de suporte da decisão, de forma a permitir o controlo da
legalidade do acto pela instância de recurso, designadamente no aspecto da não
violação das regras de produção de provas, visando-se também o objectivo de
convencer os destinatários da justiça, e a própria comunidade, da bondade da
decisão, ao mesmo tempo que daí resulta a necessidade de ponderação das razões
do veredicto factual por parte do tribunal.
Não é exacto que o acórdão recorrido deixou de apreciar a forma como a 1ª
instância motivou a decisão da matéria de facto, e que a instância não procedeu
a essa motivação nos termos exigidos pela lei, como também não é exacto que a
Relação tenha considerado não ser exigível o exame crítico das provas.
Na verdade, e como se alcança de fls. 10024 v. e 10025, o Tribunal da Relação
expendeu que do acórdão da 1ª instância consta ao longo de sete páginas, como
fundamento da convicção do tribunal, a indicação dos meios de prova, que a
Relação reproduziu, consignando que o tribunal colectivo apreciou os factos com
referência às diversas provas.
E lendo a motivação da decisão da matéria de facto da 1ª instância verifica-se
que o tribunal analisou cada uma das provas, mencionando as razões da sua
atendibilidade, de forma a demonstrar o porquê do veredicto factual.
Cita-se a título de exemplo ilustrativo:
[...]
Este tipo de fundamentação, que abarca o exame crítico das provas, preenche as
exigências legais da fundamentação, permitindo, designadamente que o arguido
exerça o seu direito de defesa, impugnando a decisão da matéria de facto.
Resulta deste trecho, com clareza, que o Supremo Tribunal de Justiça não aplicou
na sua decisão qualquer norma por força da qual se não exige o exame crítico das
provas em relação aos factos que justificam as condenações.
Apesar disso, o recorrente impugna a decisão, nesta parte, dizendo pretender
'ver declarada a inconstitucionalidade material da interpretação do art. 374º
n.º2 do CPP, [...] por falta de exame crítico das provas.' Ora, é bem manifesto
que o Supremo não adoptou o entendimento questionado. E, para além disso, o
recorrente não definiu verdadeiramente uma norma jurídica que, aplicada na
decisão recorrida, possa ser impugnada, antes questiona a decisão recorrida
directamente, embora o faça mediante a invocação do preceito legal nela
aplicado.
Quanto ao segundo grupo de preceitos indicados no requerimento de interposição
de recurso, o recorrente, na referida alegação do seu recurso para o Supremo
Tribunal de Justiça, diz:
[…]
3ª O douto acórdão recorrido perfilha a tese de que o julgamento, em sede de
recurso não é um verdadeiro julgamento mas tão só visa a apreciação da
regularidade do julgamento da 1ª instância.
4ª Fundamenta a sua opinião com a invocação dos arts. 430º e 410º, n.º 2, do
CPP.
5ª Se for essa a interpretação dos arts. 430º e 410º, n.º 2, citados, então
estão feridos de inconstitucionalidade.
6ª Não reconhecem nem admitem um verdadeiro recurso em matéria de facto, nem
sequer perante os Tribunais da Relação.
7ª Violando-se o princípio do duplo de jurisdição.
8ª As normas consagradas nos art. 433º, 410º, n.º 2 e 430º, n.º 1, do CPP, são
inconstitucionais, por violação do disposto no art. 32º, n.º 1 da CRP.
[…]
A este respeito, o acórdão aqui recorrido ponderou o seguinte:
[…]
IV.2. Questão do duplo grau de jurisdição em matéria de facto
Alega o recorrente que o acórdão recorrido considerou que o julgamento, em sede
de recurso, não é um verdadeiro julgamento, mas tão só visa a apreciação da
regularidade do julgamento da 1ª instância, fundamentando a sua posição com a
invocação dos artigos 430.° e 410.°, n.º 2, do Código de processo Penal. A ser
assim, sustenta o recorrente, tais artigos estão feridos de
inconstitucionalidade, por violação do disposto no artigo 32.°, n.º 1, da
Constituição, já que o duplo grau de jurisdição implica que os factos e o
direito sejam submetidos a nova apreciação por um tribunal de categoria
superior.
O recorrente havia impugnado, no recurso para a Relação, parte da matéria de
facto.
A Relação apreciou essa impugnação, dizendo, designadamente, que o recorrente
não cumpriu o que dispõe o artigo 412.°, n.º 3, do Código de Processo Penal, na
medida em que não especificou as provas que impunham decisão diversa, não fez
qualquer especificação por referência a qualquer suporte técnico, nem fez
qualquer específica transcrição. Acrescentou que do processo não constam
elementos de prova que, sem mais, impliquem a alteração da matéria de facto,
concluindo pela inexistência de razões para modificar a matéria de facto.
O recorrente não questiona ponto por ponto os fundamentos invocados pela Relação
para não alterar a matéria de facto, incidindo a sua impugnação essencialmente
na inconstitucionalidade dos artigos 430° e 410.°, n.º 2, do Código de Processo
Penal, na medida em que não permitem um segundo julgamento da matéria de facto.
Nos termos do artigo 430.°, n.º 1, do Código de Processo Penal, quando deva
conhecer de facto e de direito, a relação admite a renovação da provas se se
verificarem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.° e houver
razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo. O n.º 2
estabelece que a decisão que admitir ou recusar a renovação da prova é
definitiva e fixa os termos e a extensão com que a prova produzida pode ser
renovada.
Por sua vez o artigo 410.º, n.º 2, preceitua que, mesmo nos casos em que a lei
restrinja a cognição do tribunal a matéria de direito, o recurso pode ter como
fundamentos, desde que o vício resulte da do texto da decisão recorrida, por si
só ou conjugada com as regras da experiência comum, qualquer das hipóteses
previstas nas alíneas a), b) e c) desse n.º.
O recorrente afirmou que o problema do reexame em recurso da matéria de facto
não foi resolvido com a última revisão do Código de Processo Penal, pois que a
criação da possibilidade, cometida ao Tribunal da Relação, da renovação da prova
não altera os dados do problema, visto que essa renovação só é legalmente
possível nos estreitíssimos limites do artigo 410.°, n.º 2, conforme dispõe o
artigo 430.°.
Não terá o recorrente atentado em que, com a reforma do Código de Processo Penal
introduzida pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, houve uma profunda alteração do
regime anterior em matéria de cognição da matéria de facto em sede de recurso,
que não consistiu apenas na possibilidade de as relações conhecerem dos
referidos vícios dos acórdãos dos tribunais colectivos, mas principalmente
porque o novo sistema permite, quando há documentação da prova, como acontece no
caso, que as relações alterem, com grande amplitude, a matéria de facto, mesmo
que não se verifiquem os aludidos vícios.
É o que resulta, designadamente, do disposto nos artigos 427.°, 428.° e 431.º.
Mister é que o recorrente impugne a decisão da matéria de facto pela forma
estatuída no artigo 412.°, n.ºs 3 e 4.
Verificando-se qualquer dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, a relação
admite a renovação da prova ou procede ao reenvio, nos termos do artigo 430.º,
n.º 1.
O que a lei não prevê é que se proceda à repetição do julgamento na instância de
recurso, fazendo tábua rasa do primeiro, como se o mesmo não se tivesse
verificado.
Não só falece razão ao recorrente quando sustenta que o Código de Processo Penal
não permite um duplo grau de jurisdição em matéria de facto, como a própria
Constituição não o impõe como regra.
Sendo certo que o direito ao recurso está previsto no artigo 32.°, n.º 1, da
Constituição como uma das garantias de defesa no processo penal,
correspondendo-lhe um duplo grau de jurisdição quando se trate de sentenças
penais condenatórias, daí não resulta que, quanto à matéria de facto haja a
possibilidade de reapreciação irrestrita de toda ela, como se um novo julgamento
se tratasse.
Como se expendeu no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 1164/96, de
19-11-1996, que considerou conformes à Constituição os preceitos dos artigos
410.º e 433º do Código de Processo Penal, este na redacção originária,
correspondente ao actual artigo 434.°, o «sistema de revista ampliada instituído
pelo CPP de 1987 deve considerar-se como um desses sistemas constitucionalmente
compatíveis, pois que protege o arguido dos perigos de um erro de julgamento
(designadamente, de erro grosseiro na decisão da matéria de facto) assim o
defendendo do risco de uma decisão injusta».
Se na vigência do regime originário do Código já se entendia que o conhecimento
da matéria de facto constante das decisões do tribunal colectivo com as
limitações decorrentes dos artigos 410.°, 430.° e 433.° (redacção originária)
não violava o disposto no artigo 32.° da Constituição, por maioria de razão terá
de se entender agora que o novo sistema de impugnação das mesmas decisões, com a
possibilidade de alteração mais alargada pelas relações da matéria de facto está
conforme à Constituição.
Falece assim razão ao recorrente quanto à referida questão.
IV.3. Questão da não admissão da renovação da prova pela Relação
Alega o recorrente que nas conclusões do recurso do acórdão da 1ª instância
havia especificado com clareza alguns dos pontos de facto que considerou
incorrectamente julgados, e especificado algumas provas, o que a Relação
ignorou, não admitindo a renovação da prova.
O recorrente labora em manifesta confusão: a impugnação da matéria de facto, nos
termos do artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal nada tem a ver com a
renovação da prova, que assenta na existência dos vícios referidos no artigo
410.º, n.º 2, do mesmo código.
Nas conclusões da motivação do recurso para a Relação, o recorrente afirmou que
«existe contradição insanável e erro notório na apreciação da prova nos factos
constantes dos n. 59 e 47 dos factos provados, e outros que em sede própria se
descriminam».
No acórdão recorrido, a fls. 10024v. expendeu-se: «... não há qualquer
contradição uma vez que o primeiro facto se refere à realidade da Sispel e o
segundo à contabilidade da Curtigal e não se descortina onde esteja o eventual
erro que, aliás, para ser relevante, teria de resultar do texto da sentença».
Tendo a Relação considerado não existir qualquer dos vícios a que alude o artigo
410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não podia haver lugar à renovação da
prova, como resulta de forma muito clara do disposto no artigo 430.°, n.º 1, do
mesmo diploma.
Deste modo, também nesta parte falece razão ao recorrente.”
Verifica-se, assim, que o acórdão considerou que o recurso em matéria de facto
decidido pela Relação determina a reapreciação da matéria de facto, dentro dos
limites e com as condicionantes inerentes a um recurso, mas que não implica a
realização de um novo julgamento como se o da 1ª instância se não tivesse
realizado; não se adoptou, pois, a interpretação que o recorrente acusa de
inconstitucional. Aliás, o entendimento perfilhado pela decisão recorrida não
ofende a Constituição que prevê o direito ao recurso, mas não o direito a uma
repetição do julgamento efectuado na 1ª instância.
Por outro lado, as considerações que no requerimento de interposição de recurso
o recorrente tece a propósito desta questão indicam claramente que visa obter a
apreciação da conformidade constitucional da decisão, a qual, repete-se, não
pode constituir o objecto do recurso de constitucionalidade.
Assim, e em suma, tal como se diz na decisão sumária em apreço, apresenta-se
impugnado o entendimento do Tribunal recorrido quanto à suficiência da
fundamentação da decisão condenatória, mas não é questionada a conformidade
constitucional de norma jurídica aplicada na decisão recorrida; é questionado o
julgamento do Tribunal quanto a pretensos erros notórios na apreciação da prova,
visando-se assim sindicar a decisão recorrida, e não qualquer norma nela
aplicada; é invocada a impossibilidade de renovação da prova em 2ª instância por
o Tribunal haver entendido que lhe cumpria apreciar a regularidade do julgamento
da 1ª instância e não, como pretenderia o recorrente, efectuar um 'segundo
julgamento', questão que, todavia, é manifestamente improcedente, pois em parte
alguma a Constituição impõe que, em 2ª instância, se proceda a um novo
julgamento.
Para além destas considerações, impõe-se referir que todas as particulares
circunstâncias que o recorrente refere na reclamação, que teriam condicionado,
na prática, o seu recurso, designadamente quanto à transcrição da prova,
constitui matéria cujo conhecimento escapa ao Tribunal Constitucional por força
da natureza normativa do recurso previsto na citada alínea b) do n.º 1 do artigo
70º da LTC. Ao Tribunal cabe analisar a conformidade constitucional das normas
jurídicas aplicadas como ratio decidendi na decisão recorrida, não podendo
apreciar quer as circunstâncias em que decorreu a tramitação concreta dos
processos, quer as decisões que, nesse âmbito, foram tomadas pelo tribunal
comum.
Em suma, não poderá conhecer-se do recurso.
3. Em consequência, decide-se indeferir a reclamação e manter a decisão
sumária reclamada.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 27 de Fevereiro de 2007
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria Helena Brito
Rui Manuel Moura Ramos