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Processo n.º 215/06
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. O Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao
abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei da Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), da sentença do
Tribunal Judicial de Oeiras (2.º Juízo de Competência Criminal), de 14 de
Dezembro de 2005, que absolveu a arguida A. da contravenção de que vinha acusada
e que consistia em fazer-se transportar num autocarro de uma carreira de
transporte colectivo de passageiros sem que estivesse munida do correspondente
título de transporte válido. Para tanto, a sentença recorrida, invocando a
jurisprudência do Tribunal Constitucional quanto à cominação de penas fixas para
ilícitos criminais, nomeadamente, os acórdãos n.ºs 95/2001, 202/2000 e
124/2004, recusou aplicação à norma constante do artigo 3.º, n.º 2, alínea a) do
Decreto-Lei n.º 108/78, de 24 de Maio, que considerou violar os princípios
constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, consagrados nos
artigos 1.º, 13.º, n.º1, 18.º, n.º1, 25.º,n.º1 e 30.º, n.º1, da Constituição,
por estabelecer para a contravenção em causa uma multa de valor fixo.
2. Tendo o recurso prosseguido, alegaram o Ministério Público e
a arguida (ora recorrida), ambos concordando com a decisão do Tribunal Judicial
de Oeiras.
O Ministério Público salienta que o facto de estarmos em presença de uma
infracção com a natureza de transgressão ou contravenção, regendo-se ainda pelo
Código Penal de 1886, não altera, na matéria que é objecto do recurso, a
situação quanto à desconformidade das penas fixas à Constituição, remetendo na
íntegra para a jurisprudência do Tribunal Constitucional referida na decisão
recorrida, concluindo nos seguintes termos:
«1 – É inconstitucional, por violação dos princípios da culpa, da igualdade e da
proporcionalidade, a norma constante do artigo 3º, nº. 2, alínea b) do
Decreto-Lei nº. 108/78, de 24 de Maio, na medida em que estabelece uma pena de
multa de valor fixo, que o Tribunal terá sempre de aplicar em caso de
condenação.
2 – Termos em que deverá confirmar-se a decisão recorrida quanto à questão de
inconstitucionalidade que é objecto de recurso».
A recorrida sustenta que cabe declarar, em sede de fiscalização
concreta de constitucionalidade, a inconstitucionalidade da norma em causa, por
violação dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da
proporcionalidade.
II. Fundamentação
3. O Tribunal Judicial de Oeiras (2.º Juízo de Competência Criminal) recusou a
aplicação da norma constante do artigo 3º, nº 2, alínea b), do Decreto-Lei nº
108/78, de 24 de Maio, com fundamento na violação dos princípios constitucionais
da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, consagrados nos artigos 1º, 13º,
nº 1, 18º, nº 1, 25º, nº 1, e 30º, nº 1, da Constituição.
É a seguinte a redacção daquela disposição legal:
«Artigo 3º
1 – (…)
2 – Nos casos em que a cobrança seja feita por qualquer outro processo, os
infractores pagarão o preço do bilhete correspondente ao seu percurso, acrescido
de uma multa de montante de:
a) 50% do preço do respectivo bilhete mas nunca inferior a cem vezes o mínimo
cobrável no transporte utilizado, na hipótese de não terem adquirido qualquer
título válido de transporte;
b) (…)».
É inegável que a norma em causa estabelecia, para um ilícito de
natureza contravencional, uma multa de valor fixo, caso se verificasse a
situação descrita no tipo (utilização de transporte colectivo de passageiros sem
título válido). Não era um montante absolutamente fixo, porque era calculado em
função do preço do respectivo bilhete ou do mínimo cobrável no transporte
utilizado, consoante o maior produto, mas era seguramente uma pena fixa, no
sentido de não graduável pelo juiz dentro de uma moldura penal abstracta que
estabelecesse um mínimo e um máximo (Cfr., sobre diversas acepções da expressão
pena fixa, acórdão n.º 83/91, publicado no Diário da República, II Série, de 30
de Agosto).
Entretanto, a Lei n.º 28/2006, de 4 de Julho, veio substituir
este regime sancionatório, definindo a falta de título de transporte válido como
contra-ordenação punida com coima de valor mínimo correspondente a 100 vezes o
montante em vigor para o bilhete de menos valor e de valor máximo correspondente
a 150 vezes o referido montante, com respeito pelos limites máximos previstos no
artigo 17.º do regime geral do ilícito de mera ordenação social (artigo 7.º) e
mandando punir como contra-ordenações as anteriores contravenções, sem prejuízo
do regime mais favorável (artigo 14.º). Intervenção legislativa esta que se
insere num 'pacote legislativo' visando a erradicação das contravenções ainda
subsistentes, substituindo-as por contra-ordenações, e que além desse diploma
incluiu a Lei n.º 28/2006, de 4 de Julho e a Lei n.º 30/2006, de 11 de Julho.
4. Importa começar por dar nota de que a questão de constitucionalidade que é
objecto do presente recurso foi apreciada pelo Tribunal Constitucional nos
acórdãos nº 579/2006 (Diário da República, II Série, de 3 de Janeiro de 2006) e
n.º 679/2006, que tiveram por objecto a mesma norma que é objecto do presente
recurso (alínea a) do n.º 2 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 108/78), e pelo
acórdão n.º 5/2007, que versou sobre a norma da alínea b) do n.º 2 do artigo
3.º, norma esta que estabelece a sanção para a ultrapassagem da paragem para que
o título era válido. Nos três casos, essencialmente repetitivos, no teor da
sentença recorrida, das alegações apresentadas e da decisão do Tribunal, foi
confirmado o juízo de inconstitucionalidade sendo as normas apreciadas sido
julgadas inconstitucionais por violação dos princípios constitucionais da culpa,
da igualdade e da proporcionalidade.
Todavia, nenhuma das decisões foi tomada por unanimidade, registando cada uma
delas dois votos de vencido. E, efectivamente, também agora se vai divergir do
entendimento adoptado.
5. Não se põe em dúvida o entendimento firmado pela
jurisprudência do Tribunal, aliás bem identificada na sentença recorrida, de que
a cominação, para ilícitos criminais, de penas insusceptíveis de
individualização pelo juiz viola os princípios constitucionais referidos. Como
pondera o acórdão n.º 124/2004 (Diário da República, I-Série A, de 31 de Março),
filiando-se no Acórdão n.º 95/2001, publicado no Diário da República, II série,
de 24 de Abril de 2002, em que essa doutrina começou por ser firmada:
«(...) O princípio da culpa, enquanto princípio conformador do direito penal de
um Estado de Direito, proíbe – já se disse – que se aplique pena sem culpa e,
bem assim, que a medida da pena ultrapasse a da culpa.
Trata-se de um princípio que emana da Constituição e que, na formulação de JOSÉ
DE SOUSA E BRITO (loc. cit., página 199), se deduz da dignidade da pessoa
humana, em que se baseia a República (artigo 1º da Constituição), e do direito
de liberdade (artigo 27º, n.º 1); e, nos dizeres de JORGE DE FIGUEIREDO DIAS,
vai buscar o seu fundamento axiológico “ao princípio da inviolabilidade da
dignidade pessoal: o princípio axiológico mais essencial à ideia do Estado de
Direito democrático” (Direito Penal Português. As Consequências Jurídicas do
Crime, Lisboa, 1993, página 73).
Pois bem: um direito penal de culpa não é compatível com a existência de penas
fixas: de facto, sendo a culpa não apenas princípio fundante da pena, mas também
o seu limite, é em função dela (e, obviamente também, das exigências de
prevenção) que, em cada caso, se há-de encontrar a medida concreta da pena,
situada entre o mínimo e o máximo previsto na lei para aquele tipo de
comportamento. Ora, prevendo a lei uma pena fixa, o juiz não pode, na
determinação da pena a aplicar ao caso que lhe é submetido, atender ao grau de
culpa do agente – é dizer: à intensidade do dolo ou da negligência.
A previsão pela lei de uma pena fixa também não permite que o juiz, na
determinação concreta da medida da pena, leve em consideração o grau de
ilicitude do facto, o modo de execução do mesmo e a gravidade das suas
consequências, nem tão-pouco o grau de violação dos deveres impostos ao agente,
nem as circunstâncias do caso que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham
a favor ou contra ele.
Ora, isto pode ter como consequência que o juiz se veja forçado a tratar de modo
igual situações que só aparentemente são iguais, por, essencialmente, acabarem
por ser muito diferentes. Ou seja: prevendo a lei uma pena fixa, o juiz não tem
maneira de atender à diferença das várias situações que se lhe apresentam. Mas,
o princípio da igualdade – que impõe se dê tratamento igual a situações
essencialmente iguais e se trate diferentemente as que forem diferentes – também
vincula o juiz.
A lei que prevê uma pena fixa pode também conduzir a que o juiz se veja forçado
a aplicar uma pena excessiva para a gravidade da infracção, assim deixando de
observar o princípio da proporcionalidade, que exige que a gravidade das sanções
criminais seja proporcional à gravidade das infracções.
Por isso, a norma legal que preveja uma pena fixa viola o princípio da culpa,
que enforma o direito penal, e o princípio da igualdade, que o juiz há-de
observar na determinação da medida da pena. E pode violar também o princípio da
proporcionalidade. E isto é assim, quer a pena que a norma prevê seja uma pena
de prisão, quer seja uma pena de multa.
JORGE DE FIGUEIREDO DIAS (Direito Penal Português cit., página 193), depois de
dizer que decorre da Constituição que a determinação da pena exige cooperação –
“mas também, por outro lado, uma separação de tarefas e de responsabilidades tão
nítida quanto possível entre o legislador e o juiz” –, sublinha que “uma
responsabilização total do legislador pelas tarefas de determinação da pena
conduziria à existência de penas fixas e, consequentemente, à violação do
princípio da culpa e (eventualmente também) do princípio da igualdade”.
Este Tribunal, no seu Acórdão n.º 202/2000 (publicado no Diário da República, II
série, de 11 de Outubro de 2000), debruçou-se sobre a norma constante do artigo
31º, n.º 10, da Lei n.º 30/86, de 27 de Agosto – que mandava aplicar a pena fixa
de interdição do direito de caçar por um período de cinco anos àquele que
caçasse em zonas de regime cinegético especial em épocas de defeso ou com o
emprego de meios não permitidos – e concluiu que a mesma era inconstitucional,
por violar os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade.
Escreveu-se aí:
“Deve, pois, reconhecer-se que a cominação, pela norma em análise, de uma pena
fixa, de quantum legalmente determinado sem possibilidade de individualização de
acordo com as circunstâncias do caso concreto, não se acha em conformidade com a
exigência de que à desigualdade da situação concreta (do facto cometido e das
suas “circunstâncias”) corresponda também uma diferenciação da sanção penal que
lhe é aplicada, e que esta seja proporcional às circunstâncias relevantes de tal
situação concreta.
Os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade implicam, na
verdade, o juízo de que a cominação de uma pena de interdição do direito de
caçar invariável de cinco anos para o “crime de caça” do artigo 31º, n.º 10, da
Lei n.º 30/86 é materialmente inconstitucional”.
Importa, então, saber se a norma sub iudicio prevê uma pena fixa, pois, tal
sucedendo, ela é constitucionalmente ilegítima nos termos que se deixaram
apontados.
(...) Decorre, na verdade, dos princípios da culpa, da igualdade e da
proporcionalidade a necessidade de a lei prever penas variáveis: é que, só desse
modo o legislador abre ao juiz a possibilidade de graduar a pena, fixando-a
entre o mínimo e o máximo que a lei prevê, de acordo com todas as circunstâncias
atendíveis (grau de culpa, necessidades de prevenção e demais circunstâncias),
por forma a punir diferentemente situações que, sendo aparentemente iguais, são,
em si mesmas, diferentes, e de modo também a evitar o risco de aplicar penas
desproporcionadas às infracções cometidas, tendo em consideração todo o quadro
que envolveu a prática de cada uma delas. Ou seja: só prevendo o legislador
penas variáveis, pode o juiz adequar a pena à culpa do agente, às exigências de
prevenção e, bem assim, às demais circunstâncias que ele deve considerar para
encontrar, em concreto, a pena ajustada a cada caso.
Esse resultado não o pode, com efeito, o juiz atingir, lançando mão do instituto
da atenuação especial da pena ou, sendo o caso, do da dispensa de pena, a que
faz apelo o acórdão n.º 83/91 para ver consagrada, na norma sub iudicio, uma
pena que, tão-só tendencialmente, é uma pena fixa, e não uma pena rigidamente
fixa: é que, desde logo, a atenuação especial da pena pressupõe que a pena (de
prisão ou de multa) aplicável ao caso seja variável (cf. o artigo 73º do Código
Penal); e, depois, supõe a ocorrência de um quadro de circunstâncias com valor
fortemente atenuativo (“quando existirem circunstâncias anteriores ou
posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a
ilicitude do facto, a culpa do agente ou necessidade da pena”, diz o n.º 1 do
artigo 72º do mesmo Código). E, quanto à dispensa de pena, também só pode
recorrer-se a ela, quando, estando em causa uma infracção de pequena gravidade
(recte, uma infracção punível com prisão não superior a seis meses, ou só com
multa não superior a cento e vinte dias), o juiz verificar que são “diminutas”
“a ilicitude do facto e a culpa do agente”; que o “dano” já foi “reparado”; e
que “à dispensa de pena” se não opõem “razões de prevenção” (cf. o artigo 74º do
mesmo Código).
Estes mecanismos são, de facto inaptos para – como se escreveu no citado Acórdão
n.º 202/2000, a propósito da atenuação especial da pena – “dar conta da
necessária adequação da pena em concreto às circunstâncias a considerar – à
culpa do agente e às necessidades de prevenção”.
Recorrendo, de novo, aos dizeres do Acórdão n.º 202/2000:
“Não pode aceitar-se o argumento de que, interpretando a norma em causa como
prevendo uma pena apenas “tendencialmente fixa” ela não viola o princípio da
igualdade e da proporcionalidade, do qual decorre que a gravidade das penas (e
das medidas de segurança) há-de ser proporcional à gravidade das infracções,
encaradas sob o ponto de vista, respectivamente, da culpa e das necessidades de
prevenção geral (e, para aquelas medidas, da prevenção especial, perante a
perigosidade do agente)”.
E, mais adiante, ponderou ainda o mesmo Acórdão n.º 202/2000:
“A admissão de que o recurso a estas possibilidades, previstas na lei geral – de
atenuação especial da pena e de dispensa de pena –, bastaria para permitir a
graduação, no caso concreto, de uma pena prevista na lei como de duração fixa,
assim a tornando proporcional às circunstâncias deste, se coerentemente seguida,
conduziria, aliás, à conclusão da desnecessidade de previsão de quaisquer
molduras penais abstractas, satisfazendo-se as exigências constitucionais da
igualdade e da proporcionalidade através daqueles institutos gerais”.»
Todavia, o facto de se continuar a perfilhar esta a orientação
não conduz a que se julgue inconstitucional a norma em causa, essencialmente
porque estas razões que levaram a considerar inconstitucional a cominação de
penas fixas para ilícitos de natureza criminal, não são transponíveis para a
apreciação da conformidade constitucional das penas pecuniárias fixas
estabelecidas nos demais domínios sancionatórios, designadamente e limitando-nos
ao que interessa para o caso, para os ilícitos contravencionais punidos com uma
sanção de natureza exclusivamente pecuniária insusceptível de ser convertida ou
substituída por pena privativa da liberdade e sem qualquer outro efeito senão a
perda patrimonial que é inerente ao seu cumprimento.
6. Até à revisão de 1982, o texto constitucional somente fazia
referência à “lei criminal” e aos “crimes” [cf., a título de exemplo, os artigos
29.º, 30.º, 32.º e 167.º, alínea e), na versão originária], omitindo qualquer
referência às contravenções. A partir daquela revisão, a Constituição passou
referir o ilícito criminal e o ilícito de mera ordenação social, continuando a
silenciar a existência do ilícito contravencional [cfr. artigos 32.º, n.º 10 e
165.º, n.º 1, alínea c)]. Quanto ao último, a Constituição apenas diz
expressamente que “nos processos de contra-ordenação são assegurados ao arguido
os direitos de audiência e de defesa” e que é da competência reservada da
Assembleia da República “legislar sobre o regime geral dos actos ilícitos de
mera ordenação social”. Perante esta evolução, o Tribunal passou a considerar
que, ao contrapor o ilícito criminal ao ilícito de mera ordenação social,
omitindo toda a referência à figura das contravenções (que era tradicional no
direito português até ao Código Penal de 1982), a Constituição deixa entender
claramente que ela desapareceu como tipo sancionatório autónomo – para efeitos
de relevância constitucional específica, entenda-se –, pelo que as contravenções
que subsistirem (ou que fossem ex novo criadas) têm de ser tratadas de acordo
com a natureza que no caso tiverem: criminal ou de mera ordenação social.
Nesta linha, disse ainda recentemente o Tribunal no acórdão n.º
230/2006, www.tribunalconstitucional.pt, retomando o que dissera no acórdão n.º
nº 61/99 (Diário da República, II Série, de 31 de Março de 1999):
“3.1. Efectivamente, haverá, em primeira linha, que acentuar que,
independentemente da questão de saber se, após a Revisão Constitucional operada
pela Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro, é possível a criação, ex
novo, de contravenções, o que é certo é que a norma em apreço veio instituir (e
para se utilizarem algumas das palavras do artº 3º do Código Penal de 1886) a
previsão de um comportamento consubstanciado na prática de um 'facto voluntário'
'punível' (in casu tão só com uma pena pecuniária) e que 'consiste unicamente na
violação ou na falta de observância das disposições preventivas das leis e
regulamentos, independentemente de toda a intenção maléfica' (cfr., sobre o
conceito de contravenção, Eduardo Correia, Direito Criminal, I, 218 a 221, e
Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal, ed. da A.A.F.D.L., I, 168).
De outro lado, atento o momento temporal em que a norma em apreço foi editada
(1992), a sanção pecuniária nela prevista não podia ser convertível em prisão,
por se ter de haver por revogado, pela entrada em vigor do Código Penal aprovado
pelo Decreto-Lei nº 400/82, de 23 de Setembro, o artº 123º do Código Penal
aprovado pelo Decreto de 16 de Setembro de 1886 (cfr., quanto a este último
aspecto, por entre outros, os Acórdãos deste Tribunal números 188/87 e 308/94,
publicados na 2ª Série do Diário da República de, respectivamente, 5 de Agosto
de 1987 e 29 de Agosto de 1994).
Ora, torna-se inquestionável que o comportamento em causa (o não pagamento da
«taxa» de portagem devida pela utilização das auto-estradas) não pode ter uma
ressonância ética tal que o haja de o qualificar como um crime; e, se se
ponderar que esse comportamento foi, já em 1992, tido como integrando um ilícito
passível de ser publicamente sancionado com uma pena meramente pecuniária, então
(tal como se disse no referido Acórdão nº 308/94, embora a propósito de outra
norma) há-de concluir-se que 'o tratamento que lhe deve ser conferido há-de ser
o correspondente às contra-ordenações, para as quais a Constituição não exige a
prévia definição do tipo e da punição concreta em lei parlamentar'.
[…]
3.1.2. E, a este propósito, convém respigar alguns passos que se podem ler no
citado Acórdão nº 308/94.
Assim, disse-se nesse aresto, a propósito da questão de saber se era possível,
no caso ali apreciado, a criação de um novo tipo contravencional:
'(...)
Ou seja: o Governo poderia criar aqui esta nova infracção contravencional, uma
vez que não lhe corresponde sanção restritiva de liberdade, isto a admitir que a
figura das contravenções ainda tem cobertura constitucional (…)
Tradicionalmente, quer a definição de cada concreto ilícito contravencional,
quer a fixação da respectiva pena, sempre puderam ser efectuadas por
regulamento, inclusivamente por regulamentos locais, como expressamente
resultava do preceituado no artigo 486º do velho Código Penal de 1886. E o mesmo
entendimento se manteve na generalidade da doutrina e na jurisprudência, após a
entrada em vigor da Constituição de 1976.
Com a revisão constitucional de 1982, suscitou-se o problema de saber qual o
destino, em geral, da figura das contravenções. A este propósito, escrevem J.
J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa
Anotada, 3ª ed., anotação X ao artigo 168º, pág. 673):
Ao referir o ilícito de mera ordenação social, omitindo toda a referência à
figura das contravenções (que era tradicional no direito português até ao
Código Penal de 1982), a Constituição deixa entender claramente que ela
desapareceu como tipo sancionatório autónomo, pelo que as contravenções que
subsistirem (ou que forem ex novo criadas) têm de ser tratadas de acordo com a
natureza que no caso tiverem (criminal ou de mera ordenação social).
Ora, dúvidas não restam que, no caso vertente, não deparamos com uma infracção
com a ressonância ética suficiente para poder ser qualificada como de natureza
criminal. E, assim sendo, e também porque lhe não corresponde qualquer sanção
privativa ou restritiva da liberdade, o tratamento que lhe deve ser conferido
há-de ser o correspondente às contra‑ordenações […]'.
7. Não se ignora que o Tribunal tem desenvolvido este tipo de
considerações a propósito de verificação de constitucionalidade de aspectos
formais ou competenciais das contravenções e que não é uma questão desta
natureza que agora está em apreciação. Mas delas retira-se que a apreciação das
questões de constitucionalidade colocadas pelo ilícito contravencional não pode
fazer-se por mera transposição das ponderações efectuadas a propósito de
questões semelhantes no domínio do ilícito e das penas criminais, com base numa
pressuposta identidade de género entre os dois tipos de ilícito que –
independentemente do critério que se perfilhasse, face ao direito positivo
infra‑constitucional, ou no plano doutrinário, de distinção entre crimes e
contravenções ou de separação entre o 'ilícito criminal administrativo e o de
justiça' –, a Constituição não acolhe.
Por outro lado, o facto de o legislador ter mantido o
processamento e julgamento desse tipo de ilícito – face ao texto constitucional,
desse tertium genus de ilícito – subordinado a um regime de processo penal
simplificado, de natureza judicial e não administrativa (cfr. Decreto-Lei n.º
17/91, de 10 de Janeiro), nada permite inferir sobre a sua natureza que
necessariamente se projecte no modo como o seu regime substantivo se relaciona
com os referidos princípios constitucionais.
Deste modo, embora os princípios da culpa, da
proporcionalidade e da igualdade vinculem também o legislador ordinário na
configuração dos ilícitos contravencionais (como nos de contra-ordenação) e
respectivas sanções (cfr. acórdão n.º 547/2001), eles têm, aqui, um diferente
grau de exigência, designadamente o primeiro daqueles princípios, que é o
nuclear na argumentação do Tribunal a propósito da proibição de penas criminais
fixas, porque não está em causa o direito à liberdade (artigo 27.º, n.º1) e só
de modo muito remoto – e nunca por causa da sua invariabilidade – uma sanção
estritamente pecuniária, num ilícito sem qualquer efeito jurídico
estigmatizante, pode contender com o princípio da dignidade da pessoa humana
(artigo 1.º), que é de onde o Tribunal tem deduzido o princípio da culpa na
'Constituição criminal'.
Aliás, no domínio do direito de mera ordenação social – e, para
o confronto com os princípios constitucionais em causa, uma contravenção punida
apenas com multa não se diferencia de uma contra-ordenação punida apenas com
coima, porque ambas significam exactamente o mesmo na esfera jurídica do
destinatário da sanção –, o Tribunal já admitiu a constitucionalidade de penas
fixas, como dá conta o acórdão n.º 74/95 quando, confrontado com a possibilidade
de, na situação aí apreciada, o jogo interpretativo conduzir a uma identificação
entre o máximo e o mínimo da moldura penal, afirma que 'a jurisprudência deste
Tribunal, plasmada nos Acórdãos nº 83/91 (Diário da República, II Série, de 30
de Agosto de 1991) e nº 441/93, tem sido a seguinte: [...] dos princípios
constitucionais da justiça, igualdade e proporcionalidade «não decorre
necessariamente, de forma directa ou indirecta, a ilegitimidade constitucional
de todas as chamadas penas fixas», não existindo assim um obstáculo
constitucional a uma sanção contra-ordenacional dessa natureza'.
É certo que a estruturação dos sistemas punitivos de modo a
permitir à entidade decisora – em último termo, o juiz – a individualização da
sanção, mesmo daquela que só tenha expressão pecuniária, de modo a levar em
conta as especificidades de cada caso, o grau de ilicitude e culpa e a situação
pessoal do agente, se apresenta como a mais consentânea com os princípios da
igualdade e da proporcionalidade. Mas essa exigência pode ser superada desde
que, pela natureza do ilícito sancionado e pela medida da sanção pecuniária fixa
prevista, esta última apareça razoavelmente proporcionada relativamente à gama
de comportamentos susceptíveis de recondução ao concreto tipo de ilícito. Como
diz o Conselheiro Benjamim Rodrigues no voto de vencido aposto no acórdão n.º
579/2006, 'não se vê que o legislador ordinário, colocado perante a
possibilidade de verificação de infracções contravencionais
(contra-ordenacionais) em massa, decorrente da opção legislativa de punir a esse
título comportamentos violadores de simples regras de conduta ou de ordenação da
comunidade social ou de colaboração com o Estado, não possa conferir maior
relevo às exigências postuladas pelo princípio da legalidade em detrimento do
sentido apontado pelo princípio da culpa e, nesse seu juízo, proceder a uma
maior concretização das sanções aplicáveis nesses tipos de ilícito, afrouxando a
necessidade da intervenção do juiz no apuramento efectivo do montante da sanção
a aplicar, sem que possa sustentar-se existir uma violação intolerável dos
princípios da igualdade e proporcionalidade'.
Acresce que o juízo sobre essa necessidade de intervenção
judicial individualizadora não pode abstrair do montante da sanção legalmente
prevista, não sendo indiferente que esteja em causa uma pena pecuniária de
montante elevadíssimo ou uma quantia acessível ao comum das pessoas, em que
haverá um claro desfasamento entre o investimento na recolha séria de elementos
para essa tarefa diferenciadora e a sua expressão prática, que também é lícito
ao legislador levar em conta. Ora, neste aspecto, o montante da multa fixa agora
em causa pode objectivamente considerar-se moderado, em termos de valores
absolutos, porque o tipo de cobrança a que o infractor se furta é característico
de carreiras em percursos urbanos ou de periferia, em que o mínimo cobrável no
transporte em causa, correspondendo a trajectos curtos, é necessariamente baixo.
O que, aliás, é patente no caso, em que estava em causa uma multa de €144,40
(1,44 x 100) e bem justifica que se questione a praticabilidade da averiguação
judicial sistemática das circunstâncias que podiam justificar a uma
individualização e graduação da sanção, 'averiguação que poderia mesmo, ou impor
um esforço que não parece exigível, ou, pelo seu carácter rotineiro, conduzir a
situações de injustiça relativa' (cfr. declarações de voto do Conselheiro Mota
Pinto no acórdão n.º 579/2006 e do Conselheiro Pamplona de Oliveira no acórdão
n.º 5/2007).
8. Posto isto, tem de concluir-se que a norma que é objecto do
presente recurso não colide com os mencionados princípios.
Pune-se o comportamento de utilização de meio de transporte
colectivo de passageiros sem título válido de transporte, nos casos em que a
cobrança não é feita por agente cobrador mas por outro processo, prevendo que o
infractor pague, além do preço do bilhete correspondente ao seu percurso –
aspecto que não está em causa, porque não respeita ao segmento sancionatório –
acrescido de uma multa de “50% do preço do respectivo bilhete, mas nunca
inferior a cem vezes o mínimo cobrável no transporte utilizado”. Conduta do
agente que, para ser punida, tem de ser, no mínimo, culposa (sobre a
controvérsia acerca da vigência do Decreto-Lei n.º 108/78 e a relação das
infracções aí previstas com o crime de burla relativos a serviços constante da
alínea c) do n.º 1 do artigo 220.º do Código Penal, cfr. acórdão da Relação de
Lisboa, de 21/4/2004, Proc. 2163/04). Trata-se de forçar o utente a adequar o
seu comportamento à evolução do sistema de cobrança nos transportes colectivos
de passageiros, criando uma sanção suficientemente dissuasora do incumprimento
da obrigação legal de pagar o preço do transporte, desmotivando para uma conduta
cuja generalização importa prevenir porque, além da consequência imediata na
relação entre o prestador do serviço e o utente, tornaria menos eficiente a
prestação do serviço público em causa, porque obrigaria a mobilizar recursos
para a cobrança ou o controlo sistemático.
Ora, retomando a declaração de voto do Cons.º Benjamim
Rodrigues, cujas razões neste passo se acompanham:
'Antes de mais importa notar, que não estamos, porém, perante uma
sanção que se possa considerar rigidamente fixa.
Na verdade, a sanção prevista apenas coloca na mesma posição os
infractores que utilizem, sem título válido, o transporte durante um mesmo
percurso ou ainda aqueles em que o valor de 50% do preço do respectivo bilhete
seja inferior a cem vezes o mínimo cobrável no transporte utilizado. Nos outros
casos, a sanção é objectivamente variável.
Todavia, existem razões que podem sustentar, no plano constitucional,
essa opção legislativa de igualação sancionatória.
A sanção pune a utilização dos transportes sem título válido de
transporte, nos casos em que a cobrança do preço não é feita por cobrador.
O fim que ela prossegue é, pois, o de desencorajar, pelo modo tido
como eficaz, a utilização dos transportes sem o pagamento da contraprestação
devida pela prestação do transporte e de, por essa via, procurar garantir, na
maior medida possível, a amortização dos custos do investimento e da prestação
do serviço.
Ora, estes serviços de transporte são serviços de interesse geral,
porquanto satisfazem necessidades básicas dos cidadãos, que são prestados em
regime de concessão de serviço público e que estão sujeitos a princípios
específicos, como o da universalidade, ou do acesso do maior número possível de
pessoas, mesmo as economicamente desfavorecidas, neste se incluindo a
inadmissibilidade legal da possibilidade de escolha do contraente e de recusa de
contratar, possível relativamente a outros bens.
Deve notar-se, por outro lado, que a prestação de serviços deste tipo
corresponde, de resto, a um modo de o Estado se desincumbir da tarefa
fundamental cometida no art. 9.º, alínea d) da Constituição (“promover o bem
estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem
como a efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais…”).
[ ….]
Por estas razões, os preços relativos à prestação dos serviços de
transporte são, por via de regra, “preços normativos” e não preços estabelecidos
por acordo das partes ou segundo mecanismos de livre funcionamento do mercado,
em cuja determinação intervêm, de modo relevante, factores normativos e
ponderações “políticas” que são efectuadas pela competente administração
pública, situando-se, normalmente, em patamares que se situam abaixo do que
resultaria daquele mercado.
Mas demandando a actividade de prestação de tais bens avultados
investimentos, não poderá, correspondentemente, o legislador deixar de adoptar,
como se disse, já, instrumentos que garantam, eficazmente, o pagamento dos
preços devidos.
Ora, se os preços são fixados em função de um paradigma económico dos
seus utilizadores, que procura colocar todos os consumidores no mesmo plano,
quanto à possibilidade de poder aceder a tais bens, dentro de uma óptica de
igualdade de oportunidades, não se vê que o legislador, optando pela conformação
de um ilícito contravencional (ou contra-ordenacional) perspectivado para
conferir eficácia ao dever do seu pagamento/cobrança, não possa, por decorrência
desses mesmos princípios, estabelecer um padrão de pena igual para todos aqueles
que o violem, desde que ele se situe dentro de valores que não sejam
desadequados, e exista uma infracção a punir.
A sanção fixa corresponderá, deste modo, a uma transposição para o
campo sancionatório dos mesmos princípios a que obedece, precisamente, o
estabelecimento dos preços normativos e a conformação do dever do seu
pagamento/cobrança, maxime, dos princípios da proporcionalidade e da igualdade.'
Reprime-se, afinal, um comportamento que tira vantagem da
massificação da prestação do serviço e em que a eventual diversidade das
motivações individuais é pouco significativa no que revela de atitude perante a
ordenação social que se quer assegurar e é indiferente no plano das
consequências desse comportamento para o regular funcionamento do sistema de
transportes colectivo de passageiros. Por outro lado, a multa não graduável é
determinada por um método de cálculo que ainda reflecte a gravidade concreta da
infracção e que, em qualquer caso, privilegiando claramente a finalidade
dissuasora, não parece afastar-se de montantes razoavelmente suportáveis pelo
comum das pessoas. A evolução legislativa mostra, aliás, que, tendo agora optado
pelo sistema de sanções pecuniárias susceptíveis de graduação, o legislador
fixou o limite mínimo da coima a um nível que grosso modo corresponde à multa de
montante fixo anteriormente cominada.
Assim sendo, impõe-se concluir que a norma em causa não viola
os preceitos e princípios constitucionais com fundamento nos quais a sentença
recorrida lhe recusou aplicação, pelo que deve conceder-se provimento ao recurso
para a sentença ser reformada em conformidade.
9. Decisão
Pelo exposto, concedendo provimento ao recurso, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma da alínea a) do n.º 2 do
artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 108/78, de 24 de Maio, na parte em que estabelece,
para a contravenção aí prevista, uma multa correspondente a 50% do preço do
respectivo bilhete, mas nunca inferior a cem vezes o mínimo cobrável no
transporte utilizado;
b) Ordenar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o
decidido quanto à questão de constitucionalidade;
c) Sem custas
Lisboa, 16 de Fevereiro de 2007
Vítor Gomes
Bravo Serra
Gil Galvão
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Artur Maurício