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Processo n.º 929/06
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Nuns autos de execução para pagamento de custas e multa criminal,
o Ministério Público deduziu, em representação da Fazenda Nacional, reclamação
de créditos contra o executado A., alegando, entre o mais, que este devia à
Fazenda Nacional o montante global de € 2.146,80, referente ao imposto sobre o
valor acrescentado (IVA).
2. Por sentença de 2 de Agosto de 2006, o Juiz do Tribunal Judicial
de Elvas graduou o crédito derivado da multa criminal antes dos créditos da
Fazenda Nacional provenientes das dívidas de IVA e respectivos juros, pelos
seguintes fundamentos (fls. 18 e seguintes):
“[…]
A Fazenda Nacional para pagamento de dívidas referentes a IVA – que reveste a
natureza jurídica de imposto indirecto –, goza de privilégio mobiliário geral,
nos termos do artigo 736º, n.º 1 do Código Civil.
Os referidos créditos serão a graduar em conformidade com o disposto no artigo
747º, n.º 1, alínea a), do mesmo diploma que abrange os juros de mora, sem a
limitação temporal que resulta do artigo 734º do Código Civil.
[…]
Por sua vez, a penhora apenas confere ao exequente o direito de ser pago com
preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior (artigo
822º do Código Civil) ou que não beneficie de privilégio creditório (artigo 733º
do Código Civil).
Nestes termos, haveria que dar aos créditos em questão a competente graduação, a
qual atendendo ao privilégio creditório atribuído aos créditos por impostos
indirectos implicaria de acordo com o ordenamento infra-constitucional vigente
que o crédito reclamado fosse graduado antes do crédito exequendo.
Sucede que parte do crédito exequendo diz respeito a uma pena de multa de
natureza criminal que não foi paga pelo arguido, aqui executado.
Em relação a esta a lei não estabelece qualquer prioridade no pagamento nem
atribui qualquer privilégio creditório.
No entanto, entendemos que o ordenamento constitucional vigente impõe que a
mesma seja graduada antes do crédito dotado de privilégio creditório,
sobrepondo-se às normas constantes do Código Civil.
Com efeito, a não ser assim estar-se-ia a dar prevalência a um crédito derivado
de uma dívida tributária sobre uma obrigação de pagamento de uma multa de
natureza criminal o que violaria a Constituição.
O pagamento da multa criminal assume uma relevância no que concerne à
salvaguarda dos direitos fundamentais que deve prevalecer sobre o interesse na
cobrança dos créditos tributários.
A execução patrimonial tendo em vista obter o pagamento coercivo de uma multa
criminal instaurada pelo Ministério Público ao abrigo do artigo 491º, n.º 1 e 2
do Código de Processo Penal é uma das principais formas de garantir o
cumprimento da sanção penal, sendo obrigatória no caso [de o] condenado ter bens
suficientes e desembaraçados.
Os fundamentos que presidem à sua instauração prendem-se com a realização dos
fins das penas e relacionam-se com a salvaguarda do Estado de Direito
Democrático (artigos 2º e 9º, alínea b) da Constituição da República
Portuguesa).
Ao invés, a consagração de privilégios creditórios tem como fundamento a
necessidade de «permitir ao Estado a satisfação de relevantes necessidades
colectivas constitucionalmente tuteladas» (cfr. Acórdãos 160/2000, 362/2002 e
317/2002 do Tribunal Constitucional).
Ora, do confronto destes dois interesses deve prevalecer o primeiro, sendo
violador dos princípios do Estado de Direito democrático e da proporcionalidade
(artigos 2º e 18º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa) que um crédito
de IVA se sobreponha sobre uma dívida respeitante a uma multa criminal.
Com efeito, em nosso entender, será contrário aos referidos princípios que um
arguido dispondo de bens penhoráveis que podem servir para o pagamento de uma
multa criminal de que é devedor veja os bens móveis que lhe foram penhorados
vendidos e que o produto dessa mesma venda seja utilizado primeiramente para
pagamento de uma dívida de IVA de que é igualmente devedor do que para a
satisfação da multa, como é o caso presente.
Não se afigura proporcional que o produto da venda dos bens penhorados não seja
usado para o pagamento da multa criminal em que foi condenado e que a sanção
penal subsista quando existiam bens penhoráveis que poderiam servir para a sua
satisfação.
Pelos mesmos motivos, entendemos que a atribuição de prevalência a um privilégio
creditório sobre uma dívida de multa criminal na graduação de créditos é ainda
contrária ao princípio constitucional do direito à liberdade previsto no artigo
27º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
Efectivamente, a prevalência da dívida de IVA sobre a multa poderá levar a que,
não sendo paga a multa de forma voluntária nem coercivamente, seja decretada a
prisão subsidiária nos termos do artigo 49º, n.º 1 do Código Penal pelo tempo
correspondente reduzido a dois terços.
É bem verdade que a execução da prisão subsidiária poderá ser suspensa na sua
execução ao abrigo do disposto no artigo 49º, n.º 3 do Código Penal e
subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não
económico ou financeiro.
No entanto, esta faculdade depende da prova de que a razão do não pagamento da
multa não é imputável ao condenado e constitui um passo em frente no sentido de
ser cumprida a prisão subsidiária.
Essa fase e o eventual cumprimento da prisão subsidiária poderia ser evitado
face à existência de bens penhoráveis que em sede de execução patrimonial
permitiriam o cumprimento da pena.
Afigura-se-nos, pois, que a circunstância do produto da venda dos bens do
condenado ser utilizado para pagamento de uma dívida tributária em vez de para o
pagamento de uma multa criminal, constitui uma restrição ao direito à liberdade
– que a seguir ao direito à vida constitui o direito fundamental mais importante
– inadmissível face à Constituição na medida em que limita uma forma de
cumprimento da pena e poderá conduzir ao efectivo cumprimento da pena de prisão
subsidiária.
Concluímos, assim, que os princípios constitucionais derivados dos artigos 2º,
18º, n.º 2 e 27º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa implicam que os
artigos 733º e 736º, n.º 1 do Código Civil sejam considerados inconstitucionais
na medida em que impõe a existência de um privilégio creditório sobre a dívida
resultante de uma multa criminal.
Pelo exposto, ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea a) da Lei do Tribunal
Constitucional, recuso a aplicação dos artigos 733º e 736º, n.º 1 do Código
Civil por os mesmos serem inconstitucionais na interpretação segundo a qual um
crédito do Estado originado numa dívida de IVA dotado de privilégio creditório
prefere a um crédito derivado de uma multa de natureza criminal para cobrança da
qual foi instaurada uma execução e penhorados bens móveis.
Em consonância com a referida interpretação dos preceitos constitucionais em
apreço, devem os créditos em causa nos autos ser graduados por forma a que fique
em primeiro lugar a dívida respeitante à multa criminal no valor de € 480,00,
seguindo-se os créditos de IVA dotados de privilégio creditório e respectivos
juros e, finalmente, os créditos respeitantes às custas no montante total de €
446,71 e respectivos juros de mora.
[…].”.
3. Desta sentença recorreu o Ministério Público para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal
Constitucional, nos seguintes termos (fls. 26):
“[…] vem interpor recurso, para o Tribunal Constitucional, da sentença de
graduação de créditos na parte em que recusou, por as considerar
inconstitucionais, a aplicação das normas constantes dos artºs 733º e 736º, n.º
1, do Cód. Civil, por violação dos princípios derivados dos artºs 2º, 18º, n.º
2, e 27º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa.”.
O recurso foi admitido por despacho de fls. 27.
4. Nas alegações, concluiu assim o representante do Ministério
Público junto do Tribunal Constitucional (fls. 32 e seguintes):
“1 – A norma constante dos artigos 733º e 736º, n.º 1, do Código Civil,
interpretada como outorgando um privilégio creditório mobiliário geral aos
créditos do Estado por impostos – o qual prevalece sobre os créditos
provenientes de multas penais, impostas ao arguido – não se configura como
arbitrária ou desproporcionada, já que tem na sua base o reconhecimento da
relevância constitucional do «sistema fiscal», tendo como objectivo directo a
tutela reforçada do interesse da Fazenda Nacional no efectivo recebimento das
quantias devidas a título de débitos fiscais, indispensáveis a um regular
funcionamento das instituições e da máquina administrativa.
2 – Tal solução legislativa não conduz a uma inadmissível restrição ao direito à
liberdade do arguido, já que não decorre automaticamente da impossibilidade de
cobrança efectiva da importância da multa o inelutável cumprimento da pena de
prisão subsidiária, sendo lícito ao juiz, no quadro normativo do artigo 49º, n.º
3, do Código Penal, valorar, em concreto, as razões do incumprimento e da sua
efectiva imputação ao arguido, sendo-lhe lícito optar pela suspensão da execução
daquela pena privativa da liberdade.
3 – Termos em que deverá proceder o presente recurso.”.
Cumpre apreciar e decidir.
II
5. O objecto do presente recurso é constituído pelos “artigos 733º e
736º, n.º 1, do Código Civil, na interpretação segundo a qual um crédito do
Estado originado numa dívida de IVA dotado de privilégio creditório prefere a um
crédito derivado de uma multa de natureza criminal para cobrança da qual foi
instaurada uma execução e penhorados bens móveis”.
É a seguinte a redacção dos artigos 733º e 736º, n.º 1, do
Código Civil (o primeiro sistematicamente integrado nas disposições gerais
atinentes aos privilégios creditórios e o segundo nas disposições relativas aos
privilégios mobiliários gerais):
“Artigo 733º
(Noção)
Privilégio creditório é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito,
concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com
preferência a outros.”.
“Artigo 736º
(Créditos do Estado e das autarquias locais)
1. O Estado e as autarquias locais têm privilégio mobiliário geral para garantia
dos créditos por impostos indirectos, e também pelos impostos directos inscritos
para cobrança no ano corrente na data da penhora, ou acto equivalente, e nos
dois anos anteriores.
[…].”.
6. O tribunal recorrido julgou inconstitucional – e, por isso,
recusou a respectiva aplicação – a interpretação normativa que constitui o
objecto do presente recurso, essencialmente por duas razões:
a) Os interesses que subjazem ao pagamento da multa criminal (a realização dos
fins das penas e a salvaguarda do Estado de direito democrático) sobrepõem-se ao
interesse que subjaz ao pagamento de um crédito proveniente de IVA (o de
permitir ao Estado, através da cobrança dos impostos, a satisfação de relevantes
necessidades colectivas constitucionalmente tuteladas), pelo que viola os
princípios do Estado de direito democrático e da proporcionalidade, consagrados
nos artigos 2º e 18º, n.º 2, da Constituição, a utilização do produto da venda
de bens penhorados primeiramente para pagamento de uma dívida de IVA e, só
depois, para pagamento da multa criminal;
b) A atribuição de prevalência a um privilégio creditório sobre uma dívida de
multa criminal contraria o direito à liberdade, consagrado no artigo 27º da
Constituição, pois que “poderá levar a que, não sendo paga a multa de forma
voluntária nem coercivamente, seja decretada a prisão subsidiária nos termos do
artigo 49º, n.º 1, do Código Penal pelo tempo correspondente reduzido a dois
terços”.
7. Não se acompanham, porém, as razões sufragadas pelo tribunal
recorrido.
7.1. No que se refere à primeira (supra, 6. a)), e ainda que se aceitasse
a superioridade dos interesses na realização dos fins das penas e na salvaguarda
do Estado de direito democrático face ao interesse na cobrança dos impostos, ou
face ao interesse na satisfação de relevantes necessidades colectivas, certo é
que não existe norma ou princípio constitucional de que decorra que tal
superioridade haja de ser feita valer no processo de execução e, concretamente,
aquando da graduação dos créditos reclamados com o crédito exequendo. É aliás
discutível, como salienta o Ministério Público nas contra-alegações (cfr. fls.
33 e seguinte), a “desvalorização” da relevância constitucional da tutela dos
créditos fiscais, operada na decisão recorrida.
Dito de outro modo, não se retira da Constituição –
nomeadamente, dos artigos 2º e 18º, n.º 2 – que a superioridade dos interesses
na realização dos fins das penas e na salvaguarda do Estado de direito
democrático deva reflectir-se ou ser assegurada no preciso momento da graduação
de créditos provenientes de dívidas de IVA e de créditos provenientes de multas
criminais, retirando aos primeiros a preferência no pagamento, ou atribuindo-a
aos segundos.
A concessão da preferência no pagamento aos créditos
provenientes de dívidas de IVA, relativamente aos créditos provenientes de
multas criminais, consubstancia, assim, um domínio aberto à discricionariedade
do legislador.
Isto não significa, obviamente, que, ao conceder tal
preferência, o legislador não deva respeitar certos limites: simplesmente, não
configura um desses limites a alegada superioridade dos interesses na realização
dos fins das penas e na salvaguarda do Estado de direito democrático, em si
mesma considerada.
7.2. No que se refere à segunda razão aduzida pelo tribunal recorrido
(supra, 6. b)), é o próprio tribunal a reconhecer, por um lado, que a
prevalência da dívida de IVA sobre a multa poderá levar a que seja decretada a
prisão subsidiária, nos termos do artigo 49º, n.º 1, do Código Penal, e, por
outro lado, que o Código Penal consagra, no n.º 3 do mesmo artigo 49º,
mecanismos destinados a obter a suspensão da execução da prisão subsidiária.
Logo por aqui se vê que a causa da restrição da liberdade do
condenado em multa não é a prevalência da dívida de IVA sobre a multa, mas o não
pagamento da multa, sendo certo que o condenado teve oportunidade de proceder ao
pagamento voluntário da multa e até de requerer a substituição de tal pagamento
por dias de trabalho (artigo 48º do Código Penal). Ora, não é possível formular
um juízo de inconstitucionalidade, por violação do direito à liberdade,
relativamente a uma norma que constitui tão-só causa remota e, além do mais,
virtual, da privação desse direito à liberdade.
Por outro lado, e ainda que tal causa fosse, para o efeito,
relevante, sempre deveria entender-se que a restrição do direito à liberdade não
seria desproporcionada ou excessiva e, como tal, constitucionalmente ilegítima,
atendendo a que a lei contém soluções que consideravelmente atenuam essa mesma
restrição, quando o não pagamento não é imputável ao condenado (as previstas no
artigo 49º, n.º 3, do Código Penal).
Improcede, assim, o juízo de inconstitucionalidade formulado na
sentença recorrida.
III
8. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal
Constitucional decide conceder provimento ao presente recurso, determinando a
reforma da decisão recorrida de acordo com o presente juízo quanto à questão de
constitucionalidade.
Lisboa, 27 de Fevereiro de 2007
Maria Helena Brito
Rui Manuel Moura Ramos
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Artur Maurício