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Processo n.º 461/06
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.Em 21 de Março de 2005 deu entrada no Conselho Superior da Magistratura (CSM)
participação do advogado A. contra B., juíza em exercício de funções no 2.º
Juízo do Tribunal da Comarca de Chaves.
Em sessão do Conselho Permanente do Conselho Superior da Magistratura de 24 de
Maio de 2005, foi deliberado arquivar o processo administrativo a que a referida
participação dera origem “em virtude de não se indiciar matéria de natureza
disciplinar na actuação processual” da participada, e ordenou-se a remessa de
cópia de todo o expediente à Ordem dos Advogados.
Dessa decisão apresentou o participante reclamação, que, por deliberação do
Plenário do Conselho Superior da Magistratura de 20 de Setembro de 2005, foi
rejeitada por “o reclamante carecer de legitimidade para a dedução dessa
reclamação, visto não ser titular de um interesse directo, pessoal e legítimo na
anulação da deliberação reclamada”.
O autor da participação interpôs, então, recurso contencioso de anulação dessa
deliberação. No Supremo Tribunal de Justiça, foi em 21 de Dezembro de 2005
emitido pelos serviços do Ministério Público o seguinte parecer:
«1 – A., advogado, através do requerimento de fls. 3/9, vem interpor recurso
contencioso da deliberação do Plenário do Conselho Superior da Magistratura,
datada de 20 de Setembro de 2005 (fls. 11), que confirmou a deliberação do
respectivo Conselho Permanente, datada de 24 de Maio de 2005 (fls. 21),
determinante do arquivamento do processo administrativo despoletado por força de
exposição oportunamente apresentada pelo recorrente contra a magistrada Judicial
do 2.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Chaves, a juiz de direito B..
Mais concretamente, pelo seu desempenho funcional na instrução em processo de
inquérito-crime, objecto da exposição dirigida ao Conselho Superior da
Magistratura, nos autos a fls. 33/37, onde o participante e ora recorrente, que
patrocinava arguida ali constituída, descortina matéria susceptível de
procedimento disciplinar, ao arrepio do entendimento da deliberação recorrida,
que concluiu pela existência tão-só de decisões jurisdicionais, impugnáveis pela
via recursiva.
2 – Na matéria em causa, que na óptica do recorrente reveste natureza
disciplinar e eventualmente pode contender com o mérito profissional da visada,
releva a exclusividade da competência do Conselho Superior da Magistratura,
atenta a qualidade de magistrada judicial da denunciada (cfr. artigo 149.º,
alínea a), da Lei n.º 21/85, de 30 de Julho).
Ao que acresce, por outro lado, ponderar o disposto no artigo 164.º, n.º 1, da
mesma Lei, em conformidade com o princípio geral que emana do artigo 55.º, n.º
1, alínea a), do C.P.T.A. (e já antes dos artigos 821.º, n.º 1, do Código
Administrativo, e 46.º, n.º 1, do Regulamento do S.T.A.), quando atribui
legitimidade activa para a impugnação de actos administrativos aos titulares de
um “interesse directo, pessoal e legítimo na anulação da deliberação ou
decisão”.
3 – O mesmo é dizer que o interesse que fundamenta a legitimidade activa em
contencioso é pessoal e directo e, como tal, tem que incidir de forma imediata
sobre a esfera dos direitos ou interesses legalmente protegidos do recorrente.
O hipotético interesse mediato, indirecto ou reflexo do exponente e ora
recorrente carece de virtualidade para legitimar a sua pretensão de contrariar a
decisão de ente público exclusivamente competente para o efeito, quanto este
determinou o arquivamento do processo administrativo instaurado, porque nele
apenas viu matéria de natureza jurisdicional e não, necessariamente, de cariz
disciplinar.
4 – Assim sendo, pertinente a conclusão de que não sendo o recorrente, nas
sobreditas circunstâncias, o titular dos interesses protegidos, em derradeira
análise, pelo direito disciplinar, também não é directa e imediatamente afectado
pela deliberação recorrida, o que, de harmonia com o disposto no citado artigo
164.º, n.º 1, da Lei n.º 21/85, lhe retira legitimidade para interpor o presente
recurso.
5 – Encurtando razões, dir-se-á, por último, que é sob este entendimento que se
tem movimentado a orientação jurisprudencial da secção do contencioso deste
Supremo Tribunal, como são disso exemplo os acórdãos de 16 de Abril de 1991, 23
de Abril de 1998, 21 de Novembro de 2000, 8 de Março de 2001, 23 de Outubro de
2003 e 21 de Setembro de 2004, proferidos, respectivamente, nos processos n.ºs
80864-1.ª Sec., 1390/97-3.ª Sec., 2964/00-7.ª Sec., 3699/00-4.ª Sec.,
1635/03-2.ª Sec. e 1802/04-4.ª Sec..
6 – Posto que, somos de parecer que o presente recurso deverá ser objecto de
rejeição por ilegitimidade activa do recorrente.»
O recurso veio a ser rejeitado por acórdão de 19 de Janeiro de 2006 do Supremo
Tribunal de Justiça, por ilegitimidade do recorrente. Tal decisão tem o seguinte
teor:
«(…)
É dessa deliberação [de 20 de Setembro de 2005] que vem interposto, ao abrigo do
art.º 168.º, n.º 1, e ss., do EMJ, o presente recurso contencioso de anulação.
Nele, o recorrente sustenta, antes de mais, em indicados termos, a legitimidade
para reclamar da deliberação do Conselho Permanente de 24/5/2005 que o Plenário
do CSM em 20/9/2005 lhe não reconheceu, e insistindo, depois, em que a
deliberação do Conselho Permanente, de arquivamento do processo administrativo
gerado pela participação aludida “em virtude de não se indiciar matéria de
natureza disciplinar na actuação processual” da participada (destaque nosso),
“não tem (...) qualquer fundamentação”, “está deficientemente fundamentada”, e
partiu de pressupostos de facto errados.
Em tema de legitimidade, a tese do recorrente é, em suma, como segue: a
participada impôs limites ilegais ao exercício da profissão de advogado; o
recorrente, lesado no seu direito de exigir o exercício da sua profissão segundo
as normas que o seu estatuto profissional define, queixou-se nomine proprio
contra o impedimento do exercício da sua actividade profissional nos termos em
que a lei o regulamenta.
Em recurso contencioso de anulação, o participante, ora recorrente, pretende,
ainda, que, no provimento do recurso, se ordene se proceda disciplinarmente
“contra a denunciada”, de que requer a citação, oportunamente – v., sobre esta
última pretensão, acórdãos deste Tribunal de 11/1/2001, no Proc. n.º 358/00,
2.ª, e desta Secção de 13/12/2001, no Proc. n.º 1048/01, com sumário,
respectivamente, nas pp. 31 (2 col.-2- 1, II e III ) e 377 (2 col., último) da
edição anual de 2001 dos Sumários de Acórdãos Cíveis deste Tribunal organizada
pelo Gabinete dos Juízes Assessores do mesmo.
Tendo tido vista dos autos consoante art.º 173.º, n.º 1, do EMJ, o M.º P.º, para
além de notar estar em causa desempenho funcional da participada na instrução em
processo de inquérito-crime em que o recorrente descortina matéria susceptível
de procedimento disciplinar, e tal assim ao arrepio do entendimento da
deliberação recorrida, que concluiu pela existência tão-só de decisões
jurisdicionais impugnáveis em via de recurso, destaca ou salienta o disposto, em
sede ou tema de legitimidade, no art.º 164.º, n.º 1, do EMJ.
Em face, nomeadamente, dessa disposição legal, emitiu parecer no sentido da
rejeição deste recurso, por ilegitimidade do recorrente.
Importa decidir, nos termos do n.º 3.º do art.º 173.º do EMJ, sem necessidade de
vistos. Assim:
O art.º 178.º do EMJ declara expressamente a subsidiariedade das normas que
regem os trâmites processuais dos recursos de contencioso administrativo para o
STA.
No respeitante a este recurso, a questão da legitimidade está expressa, directa
e imediatamente regulada no art.º 164.º, n.º 1, do EMJ.
Esse preceito atribui legitimidade activa para reclamar ou recorrer a “quem
tiver interesse directo, pessoal e legítimo na anulação da deliberação ou
decisão”.
Como assim, a quem tal tiver efectivamente, e não apenas a quem simplesmente tal
alegue, invoque ou pretexte – menos cogente, desde logo, se manifestando, em
vista da subsidiariedade expressamente declarada no art.º 178.º do EMJ, a
invocação do art.º 55.º, n.º 1, al. a), do CPTA. Isto posto:
Como no próprio requerimento de interposição deste recurso se pode ler
(respectiva pág. 4, 1.º par., 2.º período, em citação de Mário Aroso de Almeida
e Carlos Cadilha, “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais
Administrativos”, p. 278 ss., nota 4 ao art.º 55.º do CPTA), o interesse é
pessoal quando o interessado possa retirar da anulação do acto impugnado uma
utilidade concreta – que pode ser de ordem moral – para si próprio.
O recorrente argue lesão da sua honorabilidade pessoal e profissional,
susceptível de reparação, a ser disso caso, pelos meios comuns civis ou
criminais.
A finalidade essencial do processo disciplinar almejado é defender os interesses
da administração da justiça, punindo os visados que os contrariem.
O exercício da acção disciplinar não tem, por isso, em princípio, em conta os
interesses pessoais dos participantes.
Não achado na participação do ora recorrente nada de especificamente censurável
à participada em termos disciplinares, não tinha a entidade recorrida, sem
competência para se pronunciar sobre matéria jurisdicional, de considerar ainda,
à luz da doutrina de Ac. STA de 15/10/99, BMJ, n.º 490/104, citada pelo
recorrente (em 12. do requerimento de interposição deste recurso), se os factos
participados, que julgou não integrarem infracções disciplinares, envolviam, ou
não, também efectiva ofensa de valores pessoais do participante.
Observa-se no parecer do M.º P.º já referido que, exigido que o interesse que
fundamenta a legitimidade activa em questão seja pessoal e directo, esse
interesse tem, enquanto tal, que incidir de forma imediata na esfera dos
direitos ou interesses legalmente protegidos de quem recorre.
Segundo esse parecer, o hipotético interesse mediato, indirecto ou reflexo do
ora recorrente não legitima a sua pretensão de contrariar a decisão do ente
público exclusivamente competente em matéria disciplinar (consoante art.ºs 136.º
e 149.º, al. a), do EMJ), quando este determinou o arquivamento do processo
administrativo instaurado porque viu nele apenas questões de natureza
jurisdicional e não necessariamente com cariz disciplinar.
Vem, deste modo, a ser, de facto, pertinente a conclusão de que, nas
circunstâncias descritas, o recorrente, para além de não ser o titular dos
interesses em último termo protegidos pelo direito disciplinar, também não é
directa e imediatamente afectado pela deliberação recorrida, o que, em vista do
disposto no n.º 1 do art.º 164.º do EMJ lhe retira legitimidade para interpor
este recurso.
O parecer citado refere, neste entendimento, acórdãos desta Secção de 16/3/91,
23/4/98, 21/11/2000, 8/3/2001, 23/10/2003 e 21/9/2004, nos Procs. n.ºs
80864-1.ª, 1390/97-3.ª, 2964/00-7.ª, 3699/00-4.ª, 16305-2.ª e 1802/04-4.ª.»
Dessa decisão apresentou o recorrente reclamação, nos seguintes termos:
«A) Expor a V. Ex.ªs. o seguinte:
1 – Como resulta de fls. 3 do mesmo, o M.º P.º teve vista aos autos e emitiu
parecer.
2 – Esse parecer foi tido em consideração na decisão de V. Ex.ªs., sem que tenha
sido permitido ao recorrente pronunciar-se sobre o mesmo.
3 – Tal omissão consubstancia vício processual, por violação do princípio do
contraditório (artigo 3.º, n.º 3, do CPC).
B) Arguir, com a fundamentação aduzida, tal vício, que deve ser sanado,
anulando-se todo o processado posterior a tal omissão e determinando-se, pois, a
notificação do recorrente para que se pronuncie sobre o conteúdo do parecer do
M.º P.º, seguindo-se, após, o demais de lei.»
Por acórdão de 23 de Março de 2006, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu
indeferir a referida reclamação. Pode ler-se no referido aresto:
«(…)
Já, consoante art.º 172.º, n.º 1, do EMJ, indicados no requerimento de
interposição deste recurso os respectivos fundamentos de facto e de direito, e
logo, pois, nele analisada a questão prévia da legitimidade do recorrente,
observou-se, em sede de apreciação dessa questão prévia, o determinado no
subsequente art.º 173.º.
Precisamente subordinado à rubrica ou epígrafe “Questões prévias”, o seu n.º 1
determina que, distribuído o recurso, os autos vão, em fase liminar, com vista
ao M.º P.º.
O n.º 3 desse mesmo artigo estabelece, por sua vez, que, quando o relator
entender que ocorre ilegitimidade das partes ou manifesta ilegalidade do
recurso, adiantando exposição breve e fundamentada, apresentará o processo na
primeira sessão sem necessidade de vistos. Desta sorte:
A reclamada intervenção do M.º P.º, que não é parte no processo, nesta fase
liminar do recurso, faz-se em defesa da legalidade, que estatutariamente lhe
compete, consoante art.ºs 219.º, n.º 1, da Constituição, 5.º, n.ºs 1 e 3, da
LOFTJ (Lei Orgânica e de Funcionamento dos Tribunais Judiciais – Lei n.º 3/99,
de 13/1), e 2.º, n.º 2, do Estatuto do M.º P.º (Lei n.º 47/86, de 15/10, com as
alterações introduzidas pela Lei n.º 23/92, de 20/8).
Está-se perante caso em que, logo em vista do alegado pelo recorrente no
requerimento da interposição do recurso, se julgou devida sumária, liminar,
rejeição do mesmo – e, por conseguinte, inútil mais desenvolvido ou aprofundado
debate.
Em tais parâmetros, resulta sem cabimento nova intervenção do recorrente, que
com nada, essencialmente, nem ninguém, de novo se defronta.»
2.Inconformado, veio então o autor da participação, A., interpor recurso para o
Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei
de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei do
Tribunal Constitucional), nos seguintes termos:
«1 – O recurso é interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º
28/82, de 15 de Setembro.
2 – Pretende ver-se apreciada a inconstitucionalidade da norma ínsita no artigo
173.º do EMJ, quando interpretada no sentido com que o foi na decisão recorrida,
isto é, no sentido de que tendo o M.º P.º tido vista, nos termos do n.º 1 do
mesmo artigo, e tendo então exarado parecer com quatro folhas, em que pugna pela
ilegitimidade activa do recorrente, é possível ao tribunal decidir de acordo com
esse parecer, sem que previamente tenha sido dada oportunidade ao recorrente de
tomar posição sobre a perspectiva do M.º P.º.
3 – Tal interpretação, nos termos em que foi acolhida, viola os princípios
constitucionais do contraditório, da proibição da indefesa, do acesso aos
tribunais, de queixa para defesa dos seus direitos e de tutela jurisdicional
efectiva dos mesmos ou de interesses legalmente protegidos, integrantes dos
princípios do Estado de Direito Democrático e consagrados nos artigos 2.º,
3.º/2, 9.º/2/b), 18.º, 20.º/1, 52.º/1 e 268.º/4, todos da CRP.
4 – A questão da inconstitucionalidade não foi antes suscitada pois era de todo
impensável e imprevisível, actualmente, aceitar-se que pode haver decisão
judicial, acatando a posição de um interveniente, sem respeito pelo princípio do
contraditório, aliás bem explícito no artigo 3.º, n.ºs 1, 2 e 3, do CPC, quando
toda a tradição processual no STJ até vai em sentido contrário (cfr., v. g.,
Proc. n.º 1930/05, da 6.ª Secção).»
Admitido o recurso, foi determinada a produção de alegações que o recorrente
encerrou desta forma:
«1 – A decisão recorrida entendeu que o recorrente não tinha o direito a
pronunciar-se sobre o parecer do M.º P.º, na esteira da decisão recorrida, por o
mesmo ser vista para defesa da legalidade, que estatutariamente compete ao M.º
P.º, na fase liminar do recurso.
2 – Não tem razão, porquanto a aceitar-se tal tese, impedido estava o recorrente
de exercer o seu direito de queixa e de conseguir a tutela jurisdicional
efectiva do mesmo, apesar de estar em causa a ofensa de valores pessoais.
3 – Tal interpretação do artigo 173.º do EMJ viola os artigos 2.º, 3.º, n.º 2,
9.º, b), 18.º, 20.º, n.º 1, 52.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, todos da CRP, por
desrespeito do princípio do contraditório, subjacente à tutela jurisdicional dos
direitos e que a própria lei ordinária consagra (artigo 3.º do CPC).
4 – Assim, deve ser exarado juízo de inconstitucionalidade de tal interpretação,
com as inerentes consequências na tramitação do recurso.»
A entidade recorrida, notificada para contra-alegar, nada disse.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos
3.É o seguinte o teor da disposição do artigo 173.º do Estatuto dos Magistrados
Judiciais, aprovado pela Lei n.º 21/85, de 30 de Julho, que contém a norma que
constitui o objecto do presente recurso:
«Artigo 173.º
(Questões prévias)
1 – Distribuído o recurso, os autos vão com vista ao Ministério Público, por
cinco dias, sendo em seguida conclusos ao relator.
2 – O relator pode convidar o recorrente a corrigir as deficiências do
requerimento.
3 – Quando o relator entender que se verifica extemporaneidade, ilegitimidade
das partes ou manifesta ilegalidade do recurso, fará uma breve e fundamentada
exposição e apresentará o processo na primeira sessão sem necessidade de
vistos.»
Constitui objecto do presente recurso a norma que se extrai do acima transcrito
artigo 173.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei n.º 21/85,
de 30 de Julho, interpretado no sentido de permitir a emissão de parecer pelo
Ministério Público sobre a questão prévia da legitimidade do autor de
participação disciplinar para interpor recurso contencioso da deliberação que
rejeitou reclamação contra a deliberação de arquivamento, sem que desse parecer
seja dado conhecimento ao recorrente para se poder pronunciar. Para o
recorrente, tal norma viola os artigos 2.º, 3.º, n.º 2, 9.º, n.º 2, alínea b),
18.º, 20.º, n.º 1, 52.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4 da Constituição, nos termos já
referidos.
4.Importa recordar que a constitucionalidade de normas processuais penais que
prevêem a emissão, em processo penal, de parecer pelo Ministério Público no
tribunal ad quem, que não teria de ser dado a conhecer ao arguido, foi várias
vezes apreciada pelo Tribunal Constitucional, designadamente no domínio do
Código de Processo Penal de 1929. Assim, designadamente, o Acórdão n.º 533/99,
publicado no Diário da República, II Série, de 22 de Novembro de 1999, e
disponível em www.tribunalconstitucional.pt, não julgou inconstitucional “a
norma constante do artigo 664.º do Código de Processo Penal de 1929,
interpretada no sentido de que, se o Ministério Público, quando os recursos lhe
vão com vista, se pronunciar, deve ser dada aos réus a possibilidade de
responderem”, independentemente do sentido do parecer (ou seja, quer se
pronuncie no sentido do agravamento da sua posição, quer não). E,
posteriormente, por exemplo no Acórdão n.º 279/2001 (publicado no Diário da
República, II Série, de 27 de Setembro de 2001, e disponível em
www.tribunalconstitucional.pt) o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional
o artigo 416.º do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de permitir
a emissão de parecer pelo Ministério Público junto do Tribunal superior, sem que
dele seja dado conhecimento ao arguido para se poder pronunciar.
A verdade, todavia, é que a questão de constitucionalidade se punha então, e
como tal foi analisada e decidida, à luz das “garantias de defesa” constantes do
artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição. No presente caso, diversamente, o
“vício procedimental” que é esgrimido pelo recorrente e que resultaria de uma
norma que o possibilitaria em termos inconstitucionais – com concessão de
“vista” do Ministério Público “sem possibilidade de resposta” – ocorre, não no
processo penal, mas no domínio do recurso previsto e regulado pelos artigos
168.º a 178.º do Estatuto dos Magistrados Judicias, e é invocado, não pelo
arguido, mas pelo recorrente que foi autor de participação em processo
disciplinar.
O Tribunal Constitucional também já apreciou, porém, as exigências
constitucionais relativas à notificação ao particular, recorrente num recurso
contencioso interposto contra um acto praticado por um órgão do Estado, do
parecer que o Ministério Público emitiu, para sobre ele se pronunciar. Assim,
decidiu, no Acórdão n.º 185/2001 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt e
publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 50.º, pp. 259 e ss.),
não julgar inconstitucional a norma resultante da conjugação do disposto na
alínea c) do artigo 27º com o artigo 53º do Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de
Julho (Lei de Processo nos Tribunais Administrativos), “segundo a qual, num
recurso contencioso interposto por um particular contra um acto praticado por um
órgão do Estado, não há que notificar o recorrente particular para se pronunciar
sobre o parecer que o Ministério Público emite, na vista final do processo, no
qual não levanta nenhuma questão nova que possa conduzir à rejeição do recurso”
(itálico aditado). Para fundamentar esta decisão, salientou-se que fora
decisiva, no Acórdão n.º 533/99, “a verificação de que, no processo penal, o
Ministério Público intervém no exercício do poder punitivo do Estado, e a esse
título exerce a acção penal – ou seja, neste sentido, intervém como ‘parte’; no
contencioso administrativo de anulação, que neste recurso nos interessa, não
podemos esquecer que a norma em apreciação apenas prevê que o Ministério Público
tenha vista do processo para emitir parecer sobre a decisão a proferir quando
não foi ele a interpor o recurso (cfr. início do artigo 27.º e fim do artigo
53.º) – ou seja, quando o Ministério Público apenas intervém no recurso como
garante da legalidade objectiva e não como representante de nenhuma das partes”.
Mas disse-se igualmente que as razões apontadas para justificar a
inconstitucionalidade da norma então apreciada [no Acórdão n.º 533/99] não
ocorriam na norma agora em julgamento, pois
“não se verifica aqui a impossibilidade de controlo pelas partes que, ali, foi
considerada decisiva; por um lado, porque, sendo o parecer apresentado por
escrito, sempre podem questionar a apreciação feita pelo tribunal sobre a
existência, ou não, de uma questão nova, e sobre a decisão de as notificar para
se pronunciarem ou não; em caso de discordância – ou seja, para o que interessa,
se o tribunal tiver entendido não ter sido suscitada uma questão nova e,
portanto, tiver julgado o recurso sem ter mandado notificar a parte para se
pronunciar –, sempre esta pode invocar nulidade justamente por falta dessa
notificação, que origina, naturalmente, uma violação relevante do princípio do
contraditório (artigo 201º do Código de Processo Civil).
Com efeito, o respeito por este princípio apenas exige que, em caso de o
Ministério Público ter suscitado uma questão nova – um novo obstáculo ao
conhecimento do recurso, para o que agora interessa – ao recorrente seja dada
oportunidade de a apreciar, antes da decisão do recuso; e foi precisamente com
este sentido que o Supremo Tribunal Administrativo interpretou e aplicou a norma
em julgamento”.
[itálico aditado]
Noutros arestos, o Tribunal Constitucional julgou já inconstitucional, por
violação do direito a um processo equitativo, normas que dispensavam a
notificação ao particular do parecer do Ministério Público em recurso
contencioso que tratou de questões sobre as quais aquele ainda não dispusera de
oportunidade para se pronunciar.
Assim, no Acórdão nº 582/2000 (Diário da República, II Série, de 13 de Fevereiro
de 2001), julgou-se “inconstitucional, por violação do direito a um processo
equitativo, a norma constante do n.º 3 do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 185/93,
de 22 de Maio, quando interpretada no sentido de que, no recurso judicial da
decisão do organismo de segurança social que rejeite a candidatura da adoptante,
não é necessária a notificação ao recorrente do parecer que o Ministério Público
emita, sendo esse parecer desfavorável ao recorrente e versando sobre matéria
relativamente à qual o recorrente ainda não tenha tido oportunidade de se
pronunciar”. Disse-se neste Acórdão n.º 582/2000:
«[...]
Apesar de não se encontrar autonomamente consagrado na Constituição, fora do
âmbito do processo penal, o princípio do contraditório tem diginidade
constitucional, por derivar, em última instância, do princípio do Estado de
direito (cfr., entre outros, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 397/89,
Diário da República, II Série, n.º 212, de 14 de Setembro de 1989, p. 9197 ss;
n.º 62/91, Diário da República, I Série, n.º 91, de 19 de Abril de 1991, p. 2245
ss; n.º 284/91, Diário da República, II Série, n.º 245, de 24 de Outubro de
1991, p. 10680 s).
O princípio do contraditório tem como objectivo assegurar um tratamento
igualitário das partes no processo, designadamente ao nível da admissão da prova
e da apreciação do seu valor. Sendo obrigado a ouvir ambas as partes, o tribunal
fica dotado da base imprescindível para proferir uma decisão imparcial e justa.
Esse princípio decorre portanto também, quer do direito de acesso aos tribunais
para defesa de direitos e interesses legalmente protegidos (artigo 20º, n.º 1,
da Constituição), quer do direito a um processo equitativo (artigo 20º, n.º 4),
quer do próprio princípio da igualdade (artigo 13º).
10. De todo o modo, a norma constante do n.º 3 do artigo 8º do Decreto-Lei n.º
185/93, de 22 de Maio, quando interpretada no sentido explicitado no número
anterior, viola o direito a um 'processo equitativo', a que a Constituição
passou a fazer expressa referência a partir da revisão de 1997.
Como este Tribunal disse no Acórdão nº 345/99 (Diário da República, II Série, nº
40, de 17 de Fevereiro de 2000, p. 3293 ss):
“O conceito de «processo equitativo» tem sido desenvolvido sobretudo pela
jurisprudência da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, cujo artigo 6º tem
precisamente como epígrafe «direito a um processo equitativo» e cujo § 1º
dispõe, retirando as palavras do artigo 10º da Declaração Universal dos Direitos
do Homem, que «qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada
equitativamente», frase que é repetida no artigo 14º do Pacto Internacional
Relativo aos Direitos Civis e Políticos. Ora a revisão constitucional pretendeu
precisamente, fazendo uma «transposição explícita do artigo 6º da Convenção
Europeia dos Direitos do Homem», tendo presente «todo o trabalho do Tribunal
Europeu dos Direitos do Homem», «dar dignidade constitucional» (expressões do
deputado Alberto Martins na reunião de 5.9.1996 da Comissão Eventual para a
Revisão Constitucional, edição provisória não oficial de José de Magalhães,
Dicionário da Revisão Constitucional em CD-Rom, 2ª ed., Lisboa, Editorial
Notícias, 1999), a conteúdos normativos que, através daquele direito
internacional, já integravam a ordem jurídica portuguesa e inclusivamente, num
certo entendimento, através da remissão no nº 2 do artigo 16º, a própria ordem
constitucional (no mesmo sentido se pronunciou o deputado Luis Sá, ibidem: «toda
a densificação é bem vinda e nesse sentido creio que a consagração do princípio
do processo equitativo pode ser uma contribuição para que no plano da legislação
ordinária venha a ser reforçado o princípio da igualdade das armas, dos direitos
de defesa, da justiça no processo em termos gerais»: também o deputado Luis
Marques Guedes admitiu um «ganho acrescido»).”
O respeito por um processo equitativo exige a criação de condições objectivas
que permitam assegurá-lo. Ora, não se vê como tal possa acontecer quando se
considere não ser necessária a notificação ao recorrente do parecer que o
Ministério Público emita, sendo esse parecer desfavorável ao recorrente e
versando sobre matéria relativamente à qual o recorrente ainda não tenha tido
oportunidade de se pronunciar.»
E também no Acórdão n.º 361/2001 (publicado em Acórdãos do Tribunal
Constitucional, vol. 50.º, pp. 843 e ss., e disponível em
www.tribunalconstitucional.pt), o juízo de não inconstitucionalidade a que se
chegou teve como pressuposto o facto de no parecer proferido pelo Ministério
Público na “vista” que antecede a sentença, nos processos versando as acções
sobre responsabilidade civil contratual dos entes públicos, e que não fora
notificado às partes, não ter sido “suscitada nenhuma questão que pudesse
conduzir a que se não tomasse uma decisão «de fundo» na acção”.
O juízo sobre a conformidade da norma em apreço – relativa à não notificação ao
autor de participação disciplinar, para sobre ele se pronunciar, do parecer
emitido Ministério Público sobre a questão prévia da legitimidade daquele para
interpor recurso contencioso da deliberação que rejeitou reclamação contra a
deliberação de arquivamento do procedimento disciplinar – com as exigências
constitucionais de um processo equitativo depende, pois, de saber se estava, ou
não, em causa, no parecer não notificado ao recorrente, uma “questão nova”, com
a qual ele não havia anteriormente sido confrontado, e sobre a qual não tinha,
pois, tido oportunidade de se pronunciar.
5.Ora, da consulta dos autos decorre, efectivamente, que o recorrente não tinha,
antes do parecer emitido pelo Ministério Público no recurso contencioso da
deliberação que rejeitara a reclamação contra a deliberação de arquivamento,
sido confrontado com a questão da sua falta de legitimidade para interpor esse
recurso contencioso.
Com efeito, na deliberação recorrida apenas estivera em causa a legitimidade
para o autor de participação disciplinar reclamar da deliberação que determinou
o arquivamento do procedimento disciplinar, e não a legitimidade para interpor
recurso contencioso da deliberação de rejeitou essa reclamação (por falta de
legitimidade para reclamar). Trata-se de questões diversas, e que não têm de ser
resolvidas no mesmo sentido.
A questão tratada no parecer do Ministério Público de 21 de Dezembro de 2005,
reportada à legitimidade para o reclamante interpor recurso contencioso da
decisão que rejeitou a reclamação por falta de legitimidade, era, pois, uma
questão nova, sobre a qual o recorrente não tinha, pois, ainda tido oportunidade
de se pronunciar. Assim, as exigências constitucionais do processo equitativo –
no caso, do direito ao contraditório –, afirmadas pelo Tribunal Constitucional
em recurso contencioso quando estejam em causa questões novas que possam levar à
rejeição do recurso, impunham que desse parecer fosse dado conhecimento ao
recorrente, para sobre ele se pronunciar.
Ao permitir a decisão do recurso sem tal notificação ao recorrente, a dimensão
normativa é, pois, violadora do direito a um processo equitativo,
constitucionalmente consagrado no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da
República e decorrente, em última instância, do próprio princípio do Estado de
Direito, e comportando, como sua dimensão essencial, o direito ao contraditório
(“audiatur altera pars”).
E conclui-se, assim, que é de conceder provimento ao presente recurso de
constitucionalidade.
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Julgar inconstitucional, por violação do direito a um processo
equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República), a norma do artigo
173.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei n.º 21/85, de 30
de Julho, interpretado no sentido de permitir, em recurso de deliberação do
Conselho Superior da Magistratura, a emissão de parecer pelo Ministério Público
sobre a questão prévia da legitimidade do autor de participação disciplinar para
interpor recurso contencioso da deliberação que rejeitou reclamação contra a
deliberação de arquivamento do procedimento disciplinar, com a qual não havia
sido anteriormente confrontado, e sem que desse parecer seja dado conhecimento
ao recorrente para se poder pronunciar;
b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso e determinar a
reformulação da decisão recorrida em conformidade com o presente juízo de
inconstitucionalidade.
Lisboa, 6 de Fevereiro de 2007
Paulo Mota Pinto
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues
Maria Fernanda Palma
Rui Manuel Moura Ramos