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Processo n.º 337/07
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
1.1. A Caixa Geral de Aposentações (CGA) e o
representante do Ministério Público na Secção de Contencioso Administrativo do
Tribunal Central Administrativo Norte (TCAN) interpuseram recurso para o
Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei
de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional,
aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela
Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), contra o acórdão do referido
Tribunal, de 8 de Fevereiro de 2007, que recusou a aplicação, com fundamento em
inconstitucionalidade material, por violação do disposto nos artigos 2.º e 266.º
da Constituição da República Portuguesa (CRP), das normas constantes dos artigos
1.º, n.º 6, e 2.º da Lei n.º 1/2004, de 15 de Janeiro, quando entendidas no
sentido de que não é aplicável o regime do Decreto‑Lei n.º 116/85, de 19 de
Abril, aos processos que, apesar de se terem iniciado antes de 31 de Dezembro de
2003, não deram entrada na CGA até à data da entrada em vigor daquela Lei (1 de
Janeiro de 2004).
1.2. O referido acórdão foi proferido em recurso
jurisdicional interposto pela CGA contra a sentença do Tribunal Administrativo e
Fiscal de Coimbra, de 24 de Fevereiro de 2006, que julgou procedente a acção
administrativa especial, de condenação à prática de acto devido, contra a mesma
deduzida pelo Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Administração Local
(STAL), em representação do seu associado A., condenando a CGD a apreciar o
pedido de aposentação antecipada por este apresentado, ao abrigo do disposto no
Decreto‑Lei n.º 116/85, de 19 de Abril, em 14 de Novembro de 2003, embora só
remetido pela Câmara Municipal da Figueira da Foz à CGA em 12 de Janeiro de
2004.
O acórdão recorrido deu como assente a seguinte matéria
de facto:
“I) O associado do autor A. é funcionário do quadro de pessoal do
Município da Figueira da Foz, com a categoria de bombeiro municipal, e está
inscrito na CGA desde 15 de Janeiro de 1975;
II) Em 14 de Novembro de 2003, dirigiu ao Presidente da Câmara
Municipal da Figueira da Foz o requerimento que consta de fls. 1 do documento
n.º 3, junto com a petição inicial, de cujo teor aqui se destaca o seguinte: «em
virtude de ter completado 36 anos de serviço, solicita a V. Exa. se digne
promover que o requerimento seja remetido à Caixa Geral de Aposentações (…)
depois de informado por esta Câmara Municipal»;
III) O seu requerimento mereceu informações favoráveis do
comandante dos Bombeiros Municipais e da Vereadora dos Recursos Humanos da
Câmara Municipal da Figueira da Foz, nos termos constantes de fls. 2 do
documento n.º 3, junto com a petição inicial, cujo teor aqui se dá por
integralmente reproduzido;
IV) O Coordenador Distrital do Centro Distrital de Operações de
Socorro de Coimbra emitiu, com data de 12 de Novembro de 2003, a declaração que
consta de fls. 8 do documento n.º 3, junto com a petição inicial, cujo teor aqui
se dá por integralmente reproduzido;
V) Por ofício datado de 12 de Janeiro de 2004, a Vereadora da Câmara
Municipal da Figueira da Foz com delegação de competências remeteu à CGA o
processo de aposentação de A. – cf. documento de fls. 12 do processo
administrativo, bem como o documento n.º 4, junto com a petição inicial, cujo
teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
VI) Por ofício datado de 30 de Janeiro de 2004, a CGA procedeu à
devolução do processo do funcionário associado do autor, nos termos e com os
fundamentos constantes do documento que consta de fls. 13 do processo
administrativo, que aqui se dá por reproduzido, de cujo teor se destaca o
seguinte: «O Decreto‑Lei n.º 116/85, de 19 de Abril, foi revogado pelo n.º 3 do
artigo 1.º da Lei n.º 1/2004, de 15 de Janeiro. Tendo presente que o pedido de
aposentação não foi enviado a esta Caixa dentro do prazo estabelecido no n.º 6
do artigo 1.º da citada Lei, junto se devolve por falta de fundamento legal».”
Na fundamentação jurídica, após reprodução do quadro
legal relevante e desenvolvidas considerações sobre a retroactividade e os
princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança, implícitos no
princípio do Estado de Direito democrático, o acórdão recorrido, especificamente
sobre o caso em apreço, explana o seguinte:
“Revertendo ao caso vertente temos que a Lei n.º 1/2004 consagrou
normas transitórias (cf. artigos 1.º, n.ºs 6 a 8, e 2.º), normas essas que, no
entendimento da recorrente, conduzem à rejeição da pretensão do associado do
recorrido, entendimento que não teve acolhimento na decisão judicial recorrida.
Cremos que esta ajuizou bem a situação vertente e, nessa medida, o
presente recurso jurisdicional deverá improceder.
Explicitemos o nosso posicionamento.
O associado do recorrido, tal como deriva da factualidade apurada,
formulou a sua pretensão de aposentação antecipada ao abrigo e nos termos do
regime legal decorrente do Decreto‑Lei n.º 116/85, em 14 de Novembro de 2003
[cf. n.º II)], nos serviços competentes da Câmara Municipal da Figueira da Foz e
que esta, após instrução, remeteu o respectivo processo à CGA em 12 de Janeiro
de 2004 [cf. n.ºs III), IV) e V) dos factos assentes].
Mais se infere da factualidade apurada que aquele requerimento
apenas foi objecto de pronúncia por parte da CGA, através de ofício datado de 30
de Janeiro de 2004, determinando a devolução do processo de aposentação
porquanto o Decreto‑Lei n.º 116/85 havia sido revogado pelo n.º 3 do artigo 1.º
da Lei n.º 1/2004 e que, não tendo o pedido de aposentação sido enviado à CGA
dentro do prazo estabelecido no n.º 6 do citado artigo 1.º, o mesmo não tem
fundamento legal [cf. n.º VI)].
Ora, por força do n.º 3 do artigo 1.º da Lei n.º 1/2004, o regime
especial de aposentação antecipada previsto no Decreto‑Lei n.º 116/85, ao abrigo
do qual se iniciou o procedimento administrativo em crise, foi expressamente
revogado.
Assim, no caso sub judice compreende‑se que a eliminação daquele
regime especial previsto no Decreto‑Lei n.º 116/85 por parte do legislador
afecte expectativas dos destinatários da prescrição legal.
Não havia razão específica para os destinatários que haviam
formulado os seus requerimentos tendentes à sua aposentação ao abrigo daquele
Decreto‑Lei tivessem de antecipar aquela mutação da ordem jurídica, mormente, a
imposição de um limite temporal e modo de definição ou aferição daquele momento
findo o qual aquele direito se extinguia.
Cientes dos considerandos anteriormente tecidos, importa saber se
tais expectativas, no caso do associado do recorrido, eram legítimas, no sentido
de merecerem a tutela do Direito, ou se o legislador, através do quadro
transitório definido, acautelou a possibilidade de formação de tais
expectativas, advertindo os destinatários da impossibilidade de manterem aquele
regime de aposentação.
Tal como se aludiu, a impossibilidade de previsão de uma mudança só
frustra expectativas legítimas dos destinatários da norma em causa se estes não
devessem razoavelmente contar com a possibilidade da mudança e, em particular,
quando já haviam formulado pretensão substantiva junto da Administração nos
termos ou fundada num regime normativo que lhe conferia um direito à aposentação
antecipada.
A este propósito atente‑se no entendimento sustentado pelo Dr. J.
Cândido Pinho, que aqui se sufraga, quando afirma que o «… regime da
aposentação determina‑se em função do momento em que certos factos jurídicos se
verificarem [factos determinativos da aposentação e da reforma].
Na aposentação exclusivamente voluntária […], o facto a considerar é
a data do despacho a reconhecer o direito à aposentação […].
Não releva, deste modo, a data da entrada do requerimento, até
porque entre ela e a da resolução final a reconhecer o direito pode decorrer um
período mais ou menos longo, no seio do qual possam advir alterações
estatutárias ou legais que possam favorecer o requerente. É o que de jure
constituto está definido. Porém, mal e em desrespeito constitucional, em nossa
opinião.
Efectivamente, cremos que sempre deverá relevar a data em que é
apresentado o requerimento nos casos em que à época o interessado já reúna em
si os pressupostos efectivos para a concessão da aposentação. Na verdade, se na
data em que a aposentação for pedida já o funcionário dispuser das condições
factuais para a aposentação, não faz sentido submeter o regime desta ao universo
jurídico existente no momento em que a resolução definitiva vier a ser tomada
uma vez que no momento em que faz o pedido já o direito se encontra adquirido.
Pode entre a apresentação do requerimento e a decisão final interpor‑se um
intervalo de tempo mais ou menos prolongado que se reflicta negativamente sobre
a esfera do requerente. Imagine‑se, por exemplo, que na data em que a
aposentação vem a ser decidida já os requisitos legais se alteraram (v. g., de
65 anos o limite subiu para 70; ou da verificação exclusiva do tempo de 36 anos
de serviço para a obtenção da reforma ‘por inteiro’, a lei nova passou a exigir
um novo factor adicional de 65 anos de idade). Nos exemplos apontados, o
requerente quando efectua o pedido já atingiu os 65 anos de idade ou já tinha
perfeito os 36 anos de serviço. Tinha nesse instante uma séria, fortíssima e
legítima expectativa de que a reforma lhe seria concedida nos moldes legais
existentes e já conhecidos, nunca em função de requisitos futuros totalmente
ignorados. Assim, é de entender que o regime aplicável é o existente na data em
que o pedido é apresentado se estiverem já reunidos os pressupostos factuais de
acordo com a lei vigente nessa ocasião. Se assim não se entender, estar-se-á a
violar os princípios sagrados da boa fé e da confiança (artigo 6.º‑A do CPA),
de consagração constitucional (artigo 266.º, n.º 2, da CRP) e que, enquanto
corolários da segurança jurídica, se apresentam como pilares infra‑estruturantes
de um verdadeiro Estado de Direito, respeitador do indivíduo, das relações
inter‑individuais e administrativas e dos princípios jurídico‑normativos que em
cada momento as disciplinam (…).» (in Estatuto da Aposentação – Anotado –
Comentado – Jurisprudência, 2003, pág. 161).
E a propósito da alteração legislativa introduzida pelo artigo 9.º
da Lei n.º 32‑B/2002, de 30 de Dezembro, entretanto julgada inconstitucional,
conclui o citado autor: «… Alterações legais que, por conseguinte, venham a
ocorrer posteriormente à data do requerimento somente serão de relevar nos casos
em que se repercutam positivamente na esfera dos interessados, ou seja, quando
se mostrem mais favoráveis aos interesses dos visados. Se o interessado
manifesta a sua vontade e exercita o seu direito num dado momento, mostrando
que quer ver a sua situação resolvida ao abrigo do regime vigente nessa altura,
não poderá o caso ser resolvido senão pela lei desse momento. A lei nova não
pode, assim, retroagir os seus efeitos sobre uma situação de facto consolidada
anteriormente (cf. artigo 13.º do Código Civil). É um pouco essa preocupação que
subjaz ao artigo 9.º, n.º 6, da Lei n.º 32‑B/2002, de 30 de Dezembro, na medida
em que garante a aplicação da lei anterior aos subscritores cujos processos
sejam enviados à CGA (não apenas recebidos) até 31 de Dezembro de 2002. Mas,
ainda assim, esta salvaguarda está aquém da garantia plena que tem que ser
reconhecida a quem em 31 de Dezembro de 2002 reunisse as condições para a
aposentação mais favorável segundo o regime anterior. Cremos, na verdade, que o
que importa é a data da verificação dos pressupostos, não a data do envio, que
até pode, e nalguns casos, até terá mesmo que ser posterior (basta pensar nas
situações em que os pressupostos se reúnem apenas no final do ano; é bom de ver
que, nesses casos, os serviços não terão tempo de enviar o processo devidamente
instruído até 31 de Dezembro). Essa inquietação, porém, é sossegada pelo n.º 8
do mesmo artigo 9.º, ao firmar o postulado de que relevante é, afinal, a
situação material existente em 31 de Dezembro de 2002 (…)» (in obra citada, pág.
162).
Transpondo para a situação em análise os considerandos ora
reproduzidos, temos que, no quadro fáctico‑jurídico vertente, não poderá deixar
de se considerar que a actuação da CGA, tal como foi considerada pela decisão
judicial recorrida, é claramente violadora dos valores e princípios da
protecção da confiança, da boa fé e da segurança jurídica, que devem nortear e
pautar um Estado de Direito democrático.
É certo que, numa interpretação estritamente literal das disposições
conjugadas do n.º 6 do artigo 1.º e do artigo 2.º da Lei n.º 1/2004, o regime
de aposentação antecipada previsto e regulado no Decreto‑Lei n.º 116/85 não se
aplicaria aos processos de aposentação que tivessem sido enviados à CGA em data
posterior a 1 de Janeiro de 2004, já que, atendendo à data em que o processo de
aposentação do associado do recorrido foi enviado à CGA, no caso, 12 de Janeiro
de 2004, a ele não seria aplicável aquele Decreto‑Lei, mas ao invés o regime
previsto no artigo 37.º‑A do Estatuto da Aposentação (ora aditado pelo n.º 2 do
artigo 1.º da Lei n.º 1/2004).
Contudo, pensamos não ser ou dever ser essa a correcta interpretação
do quadro legal.
Na verdade, a Lei n.º 1/2004 foi aprovada pela Assembleia da
República em 4 de Dezembro de 2003 e só veio a ser publicada, gozando de força
de lei e de eficácia, em 15 de Janeiro de 2004, quando o associado do recorrido
havia formulado a sua pretensão substantiva de aposentação antecipada em 14 de
Novembro de 2003 e fundado num quadro legal no qual confiava legitimamente e do
qual poderia esperar, nos termos do artigo 3.º, n.º 1, do Decreto‑Lei n.º
116/85, um prazo de 30 dias contado da data da entrada do seu requerimento,
para o processo ser informado pelo respectivo departamento, designadamente
quanto a inexistência de prejuízo para o serviço, para a sua submissão a
despacho de concordância por quem tiver poderes para esse efeito e, obtido esse,
à sua remessa ou envio para a CGA.
Aquele interessado, uma vez formulada a sua pretensão, deixa por
completo de controlar o procedimento administrativo tendente à análise do
pedido de aposentação. Assim, não pode o mesmo ser responsabilizado ou
prejudicado pela demora na actuação dos serviços da Administração, não sendo
legítimo que o mesmo, confiando no regular e normal andamento dos processos e no
respeito escrupuloso dos prazos, venha a ser confrontado com o incumprimento
daqueles prazos e penalizado na sua esfera jurídica por motivos aos quais é
alheio e que apenas são assacáveis a omissão da Administração.
Sob pena de enfermar de inconstitucionalidade, pensamos que tanto a
letra como o sentido da norma transitória inserta no n.º 6 do artigo 1.º, na sua
concatenação com o n.º 8 do mesmo normativo, vão no sentido de não aplicar o
disposto nos n.ºs 1 a 5 aos subscritores cujos processos de aposentação tenham
sido formulados e enviados à CGA pelos respectivos serviços ou entidades até à
data da entrada em vigor daquela Lei, aqui entendida no sentido dado pelo artigo
2.º da Lei n.º 74/98, ou seja, até à data da sua publicação (15 de Janeiro de
2004) e desde que os interessados reunissem até 31 de Dezembro de 2003 as
condições legalmente exigidas para a concessão da aposentação.
O que o legislador ordinário pretendeu foi salvaguardar as situações
dos subscritores cujos processos de aposentação se haviam iniciado antes de 31
de Dezembro de 2003, que entraram na CGA até à data da entrada em vigor da lei
nova, aposentando‑os de harmonia com a lei antiga desde que os mesmos
reunissem, àquela data, os respectivos requisitos. Atente-se, aliás, para o
efeito, no regime vertido no n.º 8 do artigo 1.º da citada Lei.
A assim se não interpretar este quadro legal, num esforço para o
compatibilizar com a Lei Fundamental, temos que outra solução não nos resta que
não seja a de considerar tal regime transitório definido na Lei n.º 1/2004 como
violador dos princípios da protecção da confiança e da segurança jurídica
estruturantes de um Estado de Direito democrático (artigos 2.º, 3.º e 266.º, n.º
2, da CRP) e como tal inconstitucional.
De facto, o requerente, associado do ora recorrido, quando efectuou
o pedido de aposentação antecipada (em 14 de Novembro de 2003), teria de ter
completado os 36 anos de serviço, sendo que, para obter o deferimento da sua
pretensão, impunha‑se conseguir informação e despacho concordante quanto ao
outro requisito cumulativo, o da «inexistência de prejuízo para o serviço».
Tinha, pois, nesse momento, uma séria, uma fortíssima e legítima
expectativa de que a reforma lhe seria concedida nos moldes legalmente
existentes e ao abrigo dos quais formulou a sua pretensão, mas nunca em função
de requisitos futuros totalmente ignorados e que vieram a ser introduzidos pela
Lei n.º 1/2004.
Formulada pretensão junto da Administração ao abrigo de determinado
quadro legal, é de entender que o regime aplicável será o existente na data em
que o pedido é apresentado, devendo ser à sua luz, dos seus requisitos, que a
pretensão terá de ser analisada, deferindo‑a ou indeferindo‑a.
A assim não ser considerado, estar‑se‑á perante uma violação dos
princípios sagrados da confiança e da segurança jurídica, os quais se
apresentam como pilares basilares de um Estado que se reclama de Direito e
respeitador do indivíduo.
A lei nova não pode legitimamente retroagir os seus efeitos sobre
uma situação de facto consolidada anteriormente (dedução de requerimento
contendo pretensão de aposentação ao abrigo de determinado regime legal),
quando a confiança do cidadão na manutenção da situação jurídica com base na
qual tomou a sua decisão foi violada de uma forma que se reputa de intolerável
por efeito de uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, não podia
contar e sem que a necessidade de salvaguardar direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos que se devam considerar prevalecentes.
Um regime transitório como o consagrado na Lei n.º 1/2004, que se
abstrai por completo da data em que é formulado o requerimento contendo pedido
de aposentação antecipada ao abrigo do Decreto‑Lei n.º 116/85, que se limita a
atender apenas à data em que o processo deu entrada ou tinha de ter dado entrada
na CGA, penalizando e prejudicando os administrados cujos processos apenas
deram entrada na CGA após a entrada em vigor e por motivos a que os mesmos são
absolutamente alheios, não pode ter‑se como respeitador dos princípios em
referência.
Não é minimamente aceitável, à luz dos mesmos princípios, que um
diploma com este alcance e com os efeitos negativos ao mesmo conexos na esfera
jurídica dos interessados venha a ser publicado apenas no dia 15 de Janeiro de
2004, reportando retroactivamente seus efeitos a 1 de Janeiro de 2004 e fazendo
com que os processos de aposentação remetidos à CGA, ao abrigo de um determinado
regime legal vigente por devido, regular e legitimamente publicado e
publicitado (Decreto‑Lei n.º 116/85), no qual se confiava e se depositavam
expectativas, ficassem destituídos de fundamento legal.
Cremos, por conseguinte, que o que importa para assegurar no caso os
princípios constitucionais em referência é a data da dedução da pretensão e não
a data do envio, a qual até pode, e nalguns casos até terá mesmo que ser
posterior. Aliás, essa inquietação preside ao próprio teor da solução
consagrada no n.º 8 do mesmo artigo 1.º, quando ali se firma o postulado de que
o que é relevante é, afinal, a situação material existente em 31 de Dezembro de
2003.
As regras basilares de um Estado de Direito democrático (artigo 2.º
da CRP) reclamam que no caso a confiança e segurança na situação jurídica
preexistente haverá de prevalecer sobre a medida legislativa que veio agravar a
posição do cidadão e isso porque, tendo tal confiança, nesse caso, maior «peso»
ou «relevo» constitucional do que o interesse público subjacente à alteração
legislativa em causa, é justo que o conflito se resolva daquela maneira,
postulando um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que
lhes são juridicamente criadas, censurando as afectações inadmissíveis,
arbitrárias ou excessivamente onerosas, com as quais não se poderia
razoavelmente contar.
Pese embora, no caso em apreço, o interessado não dispusesse, nem à
data de apresentação do requerimento (14 de Novembro de 2003), nem à data da
publicação da Lei n.º 1/2004, de um direito subjectivo à aposentação
consolidado na sua esfera jurídica, era, todavia, detentor de uma expectativa
legítima, juridicamente criada, de que o seu pedido de aposentação iria ser
apreciado e decidido à luz do regime legal vertido no Decreto‑Lei n.º 116/85.
Ressuma de tudo o atrás exposto que a CGA, ao devolver o processo de
aposentação antecipada deduzido pelo associado do recorrido através do ofício
datado de 30 de Janeiro de 2004, com a fundamentação no mesmo veiculada, fez ou
uma errada aplicação da lei decorrente de uma incorrecta interpretação dos
artigos 1.º e 2.º da Lei n.º 1/2004, ou, então, estribou‑se em quadro legal que,
em concreto, padece de inconstitucionalidade, por ofensa aos princípios da
protecção da confiança e da segurança jurídica, porquanto definiu regime
transitório cujo lapso temporal limite imposto como condição de apreciação da
pretensão de aposentação ao abrigo dum determinado regime legal (no caso, o
vertido no Decreto‑Lei n.º 116/85) ofende e põe claramente em causa aqueles
princípios, subvertendo as regras num Estado de Direito.
Se é certo que o artigo 43.º do Estatuto da Aposentação incorpora
uma previsão genérica de possibilidade de mudança de regimes, ao determinar que
o regime da aposentação se fixa com base na lei em vigor e na situação existente
à data em que se verifiquem os pressupostos que dão origem à aposentação, tal
não significa, sob pena também de inconstitucionalidade do normativo, que
perante um pedido de aposentação formulado ao abrigo dum determinado quadro
legal, no qual se consagrava a possibilidade de aposentação antecipada, o mesmo
venha a ser rejeitado ou devolvido pelo simples facto de entretanto se ter
publicado novo quadro legal que eliminou aquela forma de aposentação e que fez
aplicação desse novo regime legal a procedimentos administrativos que estavam já
em curso e que se haviam legitimamente fundado num quadro legal que à data da
sua interposição vigorava.
Como justificar ou considerar adequada e respeitadora da Lei
Fundamental uma solução legal transitória que permite que dois interessados que
hajam formulado a mesma pretensão (aposentação antecipada ao abrigo do
Decreto‑Lei n.º 116/85) num mesmo dia (v. g., 1 de Setembro de 2003 ou outra
qualquer data até 31 de Dezembro de 2003) possam ver a Administração decidir em
sentidos diametralmente opostos pelo simples facto de, quanto a um dos
indivíduos, o processo se haver desenvolvido com respeito dos prazos e o
processo ter dado entrada na CGA antes de 31 de Dezembro de 2003 e, quanto ao
outro, por omissão da Administração, o processo só ter dado entrada após aquela
data.
Não é jurídica e eticamente sustentável e defensável uma tal
solução.
Não está aqui em causa a constituição ou não dum direito adquirido
por parte dos interessados à aposentação antecipada, mas apenas a tutela
legítima do interesse na confiança e na segurança jurídicas de todos aqueles que
já haviam formulado pretensão invocando um quadro legal de referência e que
confiadamente esperavam uma decisão ao abrigo do mesmo quadro legal pretensivo.
Note‑se que nesta sede não se está a tutelar posições ou eventuais direitos de
cidadãos que, à data da entrada em vigor da nova lei, ainda não haviam formulado
qualquer pretensão, pois relativamente a estes é legítimo o operar e a
aplicabilidade do novo regime legal, visto os mesmos não deterem posição ou
situação substantiva merecedora de protecção da confiança e da segurança
jurídica. Já o mesmo não pode ser entendido quanto a todos aqueles que tinham
formulado requerimento segundo regime legal que à data vigorava e visando um
determinado objectivo.
Deve, assim, concluir‑se pela inconstitucionalidade material das
normas vertidas no n.º 6 do artigo 1.º e do artigo 2.º da Lei n.º 1/2004, quando
entendidas no sentido de que não é aplicável o regime do Decreto‑Lei n.º 116/85
aos processos que se iniciaram antes de 31 de Dezembro de 2003 pelo simples
facto de não terem dado entrada na CGA até à data da entrada em vigor daquela
Lei, por violação conjugada do disposto nos artigos 2.º e 266.º da CRP
(princípios da protecção da confiança e da segurança jurídica inerentes ao
princípio do Estado de Direito).
Nessa medida, a decisão da CGA objecto de apreciação na presente
acção administrativa, assentando os seus pressupostos nos citados normativos,
cuja aplicação este tribunal se recusa a fazê‑lo por os mesmos contrariarem a
CRP, padece de ilegalidade que a invalida, conclusão a que se chegou igualmente
na decisão judicial recorrida, sendo certo que no mais esta não se mostra
impugnada no presente recurso jurisdicional e como tal dela não cumpre cuidar
nesta sede.
Improcede, por conseguinte, na totalidade o presente recurso
jurisdicional.”
1.3. No Tribunal Constitucional, a CGA apresentou
alegações, no termo das quais formulou as seguintes conclusões:
“1.ª – O Decreto‑Lei n.º 116/85, de 19 de Abril, previa um regime
especial e excepcional de aposentação antecipada face ao regime‑regra previsto
no artigo 37.º do Estatuto da Aposentação e constituía, antes de tudo o mais,
uma medida conjuntural «de descongestionamento da Administração Pública»
dependente de não haver «prejuízo para o serviço», e não o reconhecimento
incondicional de um direito dos funcionários à aposentação antecipada, sendo
expectável a sua alteração quando se modificassem as circunstâncias da adopção
da medida legislativa.
2.ª – A tramitação administrativa triangular – bem conhecida do
legislador –, prevista no artigo 3.º do Decreto‑Lei n.º 116/85, de 19 de Abril,
esteve na base da eleição do critério da data do envio do processo para a CGA a
que se refere o artigo 1.º, n.º 6, da Lei n.º 1/2004, de 15 de Janeiro, não
tendo sido propositadamente dada qualquer relevância à data em que o subscritor
efectuou o pedido junto do serviço.
3.ª – Tal critério é claro e objectivo, não violando qualquer
princípio ou norma constitucional.
4.ª – Acresce que a revogação do Decreto‑Lei n.º 116/85, de 19 de
Abril, não atingiu o conteúdo essencial do direito à aposentação dos
subscritores da CGA, seja nos termos gerais (artigo 37.º, n.ºs 1 e 2, do
Estatuto da Aposentação – EA), seja na nova modalidade de aposentação
antecipada (prevista no artigo 37.º‑A do EA) e, como tal, não implica «uma
alteração inadmissível, intolerável, arbitrária, demasiado onerosa e
inconsistente».
5.ª – A publicação tardia do Acórdão n.º 360/2003 do Tribunal
Constitucional, que considerou a revogação do Decreto‑Lei n.º 116/85, de 19 de
Abril, pelo artigo 9.º da Lei n.º 32‑B/2002, de 30 de Dezembro,
inconstitucional por razões de mera forma, bem como o excessivo formalismo
exigido, via interpretativa, para a aprovação dos diplomas legais, implicou o
atraso no procedimento legislativo tendente à publicação da Lei n.º 1/2004 – que
culminou na sua retroactividade «quinzenal» –, mas igualmente permitiu o
perfeito (re)conhecimento daquele diploma antes da sua publicação final (pois as
normas constantes desta Lei são exactamente as mesmas que foram declaradas
inconstitucionais no âmbito da Lei n.º 32‑B/2002, de 30 de Dezembro), quer pelos
Sindicatos, que as contestaram viva e publicamente, quer pelos subscritores da
CGA, para além do eco que as reformas introduzidas no regime jurídico de
aposentação tiveram nos media, bem como as vicissitudes a ela ligadas.
6.ª – A revogação do Decreto‑Lei n.º 116/85, de 19 de Abril, era uma
alteração com a qual os cidadãos e a comunidade já há muito podiam contar,
expectantes que estavam, razoável e fundadamente, na alteração do ordenamento
jurídico que regia a constituição daquelas relações jurídicas de aposentação,
já que, como se demonstrou, era público e notório que estava em marcha o
processo legislativo tendente à aprovação de tal medida, nos mesmos moldes que
já haviam sido adoptados um ano antes pela Lei n.º 32‑B/2002, de 30 de Dezembro,
o mais rapidamente possível, para entrar em vigor em 1 de Janeiro de 2004, como,
aliás, é norma neste tipo de diplomas.
7.ª – O atraso na publicação, que criou a situação de
retroactividade ou de retrospectividade em meros 15 dias, e cuja aprovação,
sublinha‑se, foi amplamente noticiada na comunicação social e vivamente
contestada pelos Sindicatos, não invalida de modo algum os seus efeitos, já que
a sua vigência não depende do seu conhecimento efectivo, embora a sua eficácia
dependa da sua publicação.
8.ª – Em conclusão, os artigos 1.º, n.º 6, e 2.º da Lei n.º 1/2004,
de 15 de Janeiro, por conterem normas de efeitos retroactivos, não são
inconstitucionais, já que não atingem, de forma inadmissível, intolerável,
arbitrária, demasiado onerosa e inconsistente, as legítimas expectativas
daqueles que podiam requerer a pensão de aposentação, de características
excepcionais, prevista no regime instituído pelo Decreto‑Lei n.º 116/85, de 14
de Abril.”
1.4. Por seu turno, as alegações apresentadas pelo
Ministério Público culminam com a formulação das seguintes conclusões:
“1.º – Face ao entendimento reiterado da jurisprudência
constitucional, o princípio da confiança não legitima qualquer expectativa
fundada na imutabilidade ou fixidez dos regimes que consubstanciam o «direito à
segurança social», não atingindo tal princípio constitucional a norma que
determina ser no momento da aposentação voluntária que se fixa, com base na lei
então em vigor, o respectivo regime jurídico.
2.º – A retroactividade verificada a propósito da edição da Lei n.º
1/2004, de 15 de Janeiro – expressa na atribuição de efeitos aos regimes nela
contidos a partir de 1 de Janeiro desse ano, incluindo a revogação do regime
conjuntural de descongestionamento da Administração Pública, contido no Decreto
Lei n.º 116/85 – não afecta, em termos intoleráveis, o princípio da confiança.
3.º – Na verdade, não pode invocar‑se uma expectativa fundada e
legítima do requerente na manutenção de tal regime – sempre dependente de uma
avaliação discricionária dos serviços sobre a inexistência de «prejuízo para o
serviço», decorrente da reforma antecipada pretendida – susceptível de excluir a
relevância e eficácia de quaisquer alterações legislativas, verificadas antes de
o processo em causa ser remetido e decidido pela Caixa Geral de Aposentações.
4.º – Termos em que deverá proceder o presente recurso, em
conformidade com o juízo de não inconstitucionalidade da interpretação
normativa dos artigos 1.º, n.º 6, e 2.º da Lei n.º 1/2004, de 15 de Janeiro,
recusada pelo tribunal a quo e objecto do presente recurso.”
1.5. O Sindicato recorrido contra‑alegou, concluindo:
“A) – 1. Investido da legitimidade decorrente de ter levantado a
questão na petição inicial (artigo 20.º) e alegações por escrito (artigo 10.º)
na acção administrativa especial, nas contra-alegações (conclusões d) a j)) e
resposta nos termos do artigo 146.º, n.º 2, do CPTA e por ter sido parte
vencedora no mui douto acórdão do TCAN por força da inconstitucionalidade à qual
também adere, o recorrido imputa às mesmas normas outra inconstitucionalidade a
acrescer à verificada no acórdão recorrido.
2. Refere o artigo 2.º da Lei n.º 1/2004, de 15 de Janeiro: «...A
presente lei entra em vigor no dia 1 de Janeiro de 2004...», coisa diferente de
estatuir «A presente lei produz efeitos desde 1 de Janeiro de 2004».
3. Não há nenhuma disposição neste diploma concernente à produção de
efeitos da norma reportando‑os a momento anterior ou posterior a esta data.
4. Podendo‑se, assim, inferir que o início da produção de efeitos
dos normativos do diploma será concomitante à entrada em vigor, incluindo‑se
naqueles, naturalmente, os do n.º 6 do artigo 1.º.
5. A Lei n.º 74/98 dispõe sobre a publicação, identificação e
formulário dos diplomas e no seu artigo 1.º, n.º 1, estabelece que: «...A
eficácia jurídica dos actos a que se refere a presente lei depende da
publicação...», estatuindo no artigo 2.º, n.º 1, que: «...Os actos legislativos
e outros actos de conteúdo genérico entram em vigor no dia neles fixado, não
podendo, em caso algum, o início da vigência verificar‑se no próprio dia da
publicação...».
6. É uma lei que tem como destinatários os actos legislativos e que
por estes deve ser respeitada.
7. O n.º 3 do artigo 112.º da Constituição da República Portuguesa
estatui que têm valor reforçado, além das leis orgânicas, as leis que careçam
de aprovação por maioria de 2/3, bem como aquelas que, por força da
Constituição, sejam pressuposto normativo necessário de outras leis ou que por
outras devam ser respeitadas.
8. Por força do disposto nos artigos 2.º e 3.º, n.º 2, da
Constituição da República Portuguesa, a Lei n.º 1/2004 estava obrigada a
respeitar e cumprir os ditames da Lei n.º 74/98.
9. Pela simples razão de que o povo não espera dos órgãos de
soberania que se vinculem a regras que posteriormente não cumpram.
10. Consequentemente, os artigos 2.º e 1.º, n.º 6, da Lei n.º 1/2004
são também inconstitucionais por violação do n.º 3 do artigo 112.º da
Constituição da República Portuguesa.
B) – 11. O recorrido faz suas as asserções do mui douto acórdão do
TCAN aqui em causa, designadamente o douto entendimento segundo o qual o próprio
artigo 43.º, n.º 1, do Estatuto da Aposentação pode violar o princípio da
confiança no sentido em que, na pendência do processo, podem ocorrer alterações
radicais e onerosas de regime que destruam sólidas e legítimas expectativas
existentes à data do pedido de aposentação.
12. A partir da altura em que os subscritores abrangidos pelo âmbito
de aplicação do Decreto‑Lei n.º 116/85 atingiram os 36 anos, criavam uma forte
expectativa na sua aposentação segundo o diploma, expectativa essa reforçada a
partir do momento em que tinham conhecimento de não ser imprescindíveis ao
serviço. No caso, o certo é que o pedido e o despacho liberando o subscritor são
anteriores à publicação da lei.
13. E não é o facto de a lei ter estado inserida no debate
político‑social recente sobre as dificuldades orçamentais da Segurança Social ou
de ter sido precedida do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 360/2003, de 8
de Julho, que proferiu decisão formal, que eximia o legislador de observar as
regras e os princípios da certeza e segurança jurídicas.
14. Parenteticamente, quanto a este Acórdão do Tribunal
Constitucional, sem querer entrar em discussão sobre a importância das questões
formais pelo mesmo sopesadas, as quais salvaguardam importantes direitos,
designadamente, de participação, diga‑se que teve o efeito de encorajar muitos
subscritores com 36 anos a avançarem com pedidos de aposentação, uma vez que
viram subtraída à ordem jurídica uma lei que lhes impunha um regime bem mais
oneroso de aposentação antecipada.
15. O que está, sim, em causa é o processo legislativo sujeito a
regras ditadas pela certeza e segurança jurídicas cuja violação acarreta a dos
princípios como os de boa fé e da protecção da confiança, de forma a evitar que
uma lei que ainda não veio juridicamente à luz do dia se repercuta na esfera de
direitos e interesses dos seus destinatários.
16. Pouco relevando a maior ou menor informação política e social
destes quanto ao que poderá ser ou não ser consagrado em lei. O que releva é
que a Ordem Constitucional impõe a certeza e segurança jurídica.
17. Os artigos 1.º, n.º 6, e 2.º da Lei n.º 1/2004, de 15 de
Janeiro, violam também os artigos 2.º e 266.º da CRP.
C) – 18. Em suma, aos artigos 1.º, n.º 6, e 2.º da Lei n.º 2/2004,
de 15 de Janeiro, são imputáveis as inconstitucionalidades decorrentes da
violação dos artigos 2.º, 112.º, n.º 3, e 266.º da CRP.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. Questão idêntica à ora em apreço foi recentemente
decidida por este Tribunal, no Acórdão n.º 615/2007, que julgou
“inconstitucionais o n.º 6 do artigo 1.º e o artigo 2.º da Lei n.º 1/2004,
quando interpretados no sentido de que o regime de aposentação fixado pelo
Decreto‑Lei n.º 116/85 não é aplicável aos contribuintes que hajam reunido os
pressupostos para a sua aplicação antes de 31 de Dezembro de 2003, ainda que os
respectivos pedidos tenham sido enviados à Caixa Geral de Aposentações até à
data de publicação da Lei n.º 1/2004, ou seja, até 15 de Janeiro de 2004, dado
que depende da álea administrativa que é o grau de celeridade com que os
serviços de que dependem os subscritores enviem o processo de aposentação à
Caixa Geral de Aposentações, por violação dos princípios do Estado de Direito
Democrático (artigo 2.º da CRP) e da igualdade (artigo 13.º da CRP)”.
As considerações tecidas e a conclusão alcançada nesse
Acórdão n.º 615/2007 são inteiramente transponíveis para o presente caso, pois a
circunstância de, aqui, o requerimento do interessado ter sido apresentado em
14 de Novembro de 2003 (e no processo onde foi proferido aquele Acórdão o ter
sido em 11 de Novembro de 2003), é de todo irrelevante, pois sempre se
completaria antes de 31 de Dezembro de 2003 o prazo de 30 dias de que os
serviços dispunham para proceder à remessa do requerimento.
2.2. Entende‑se, no entanto, que a questão de
inconstitucionalidade suscitada pode e deve ser analisada na perspectiva da
violação do princípio da confiança.
Como no aludido Acórdão n.º 615/2007 se recordou, a
jurisprudência deste Tribunal tem entendido que – para além dos casos de
retroactividade explicitamente postergados pela Constituição quanto às leis
restritivas de direitos, liberdades e garantias, leis penais e leis criadoras de
impostos (artigos 18.º, n.º 3, 29.º, n.ºs 1, 3 e 4, e 103.º, n.º 3, da CRP) – a
afectação de legítimas expectativas dos cidadãos só se reputa violadora do
princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático,
quando seja de reputar “inadmissível e arbitrária”, devendo a “ideia geral de
inadmissibilidade” ser aferida pelo recurso a dois critérios: (i) “afectação de
expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível quando constitua uma
mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas
dela constantes não possam contar”; e (ii) “quando não for ditada pela
necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente
protegidos que devam considerar‑se prevalentes (deve recorrer‑se, aqui, ao
princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos
direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição desde
a 1.ª revisão” (formulações do Acórdão n.º 287/90, na esteira dos Acórdãos n.ºs
11/83, 17/84, 86/84 e 99/99, e que viriam a ser frequentemente retomadas em
decisões posteriores: cf. Acórdãos n.º 285/92 e 302/2006).
Estes apertados critérios foram estabelecidos para
situações em que os cidadãos detinham apenas meras expectativas legítimas, sendo
obviamente distinta a situação quando estejamos perante situações de direitos já
completamente formados e, ainda mais, de direitos já exercitados, como ocorre
no presente caso.
Na verdade, sendo evidente que o facto de um interessado
ter ingressado na função pública no domínio de um determinado regime legal,
designadamente em matéria de definição dos requisitos para a aposentação e das
regras de cálculo das respectivas pensões, não lhe outorga o direito a ver
inalterado esse regime durante todo o tempo, em regra várias décadas, que durar
a sua carreira até atingir o seu termo por aposentação, substancialmente
distinta é a situação – que é a ora em apreço – em que os requisitos legais para
a passagem à situação de aposentado se completaram no domínio da vigência de
determinado regime legal e são posteriormente alterados em termos de
determinarem o não reconhecimento desse direito.
A consagração legal do direito exercitado pelo
funcionário representado pelo Sindicato ora recorrido remonta à Lei n.º 2‑B/85,
de 28 de Fevereiro (Orçamento do Estado para 1985), cujo artigo 10.º, n.º 4,
dispôs: “Poderão aposentar‑se, com direito à pensão completa, independentemente
de apresentação a junta médica e desde que não haja prejuízo para o serviço, os
funcionários e agentes que, qualquer que seja a sua idade, reúnam 36 anos de
serviço”.
Em execução deste comando foi editado o Decreto‑Lei n.º
116/85, em cujo preâmbulo se lê:
“A Lei do Orçamento do Estado para 1985 consagrou como medida de
descongestionamento da Administração Pública a possibilidade de aposentação
voluntária dos funcionários e agentes que possuam 36 anos de serviço,
independentemente da respectiva idade e de submissão a junta médica.
Independentemente de outras medidas de descongestionamento
selectivo que a situação da Administração possa vir a justificar – na linha do
previsto nos artigos 33.º a 37.º do Decreto‑Lei n.º 41/84, de 3 de Fevereiro –,
entendeu‑se dever avançar desde já com aquela, não só por razões de
rejuvenescimento, mas também pelo facto de ir ao encontro de uma pretensão
desde há muito manifestada por numerosos funcionários e agentes públicos que,
possuindo 36 anos de serviço e tendo por isso direito à pensão completa, eram
obrigados a aguardar pelo completamento dos 60 anos de idade.”
O artigo 1.º, n.º 1, do diploma reconheceu aos
funcionários e agentes, “seja qual for a carreira ou categoria em que se
integrem”, o direito a aposentar‑se, “independentemente de apresentação a junta
médica e desde que não haja prejuízo para o serviço, qualquer que seja a sua
idade, quando reúnam 36 anos de serviço”. A tramitação do procedimento
iniciava‑se com requerimento do interessado, a apresentar no departamento onde
prestava serviço, acompanhado tão‑só dos documentos necessários para
comprovação do tempo de serviço (n.º 1 do artigo 3.º). Competia a esse
departamento, no prazo de 30 dias a contar da entrada do requerimento, prestar
informação quanto à inexistência de prejuízo para o serviço, a submeter a
despacho do membro do Governo competente, que, se fosse concordante,
determinava o envio do processo para a Caixa Geral de Aposentações (n.º 2 do
artigo 3.º), que no prazo de 30 dias após a entrada devia determinar a
desligação para aposentação e fixação da pensão provisória (n.º 3 do artigo
3.º), cessando as funções do interessado a partir do dia 1 do mês seguinte ao da
prolação do despacho da Caixa (n.º 5 do artigo 3.º), que devia fixar a pensão
definitiva no prazo máximo de 30 dias após a entrada de todos os documentos
necessários à instrução do processo (n.º 7 do artigo 3.º).
Contrariamente ao sustentado pela recorrente, não
resulta, nem do artigo 10.º, n.º 4, da Lei n.º 2‑B/85, nem do preâmbulo e do
articulado do Decreto‑Lei n.º 116/85, que o regime instituído fosse considerado
excepcional e transitório. Na sua consagração confluíram razões ligadas à
necessidade de descongestionamento e de rejuvenescimento da Administração, é
certo, mas também motivações de justiça material com reconhecido lastro
temporal: satisfazer “pretensão desde há muito manifestada por numerosos
funcionários e agentes públicos que, possuindo 36 anos de serviço e tendo por
isso direito à pensão completa, eram obrigados a aguardar pelo completamento dos
60 anos de idade”. De qualquer forma, mesmo que tivesse sido – e não foi –
inicialmente pensado para vigorar durante um período limitado de tempo, o certo
é que o regime em causa persistiu durante mais de 18 anos. Dele resultava que a
aquisição do direito à aposentação dependia de três elementos: (i) requerimento
do interessado; (ii) prova da prestação de 36 anos de serviço; e (iii)
inexistência de inconveniência para o serviço motivada pela aposentação.
Reunidos estes três elementos, a concessão da pensão de aposentação constituía
acto estritamente vinculado da Caixa Geral de Aposentações, à qual não era
reconhecido qualquer possibilidade de denegação da pretensão.
No presente caso, tratando‑se de funcionário da
administração local, a competência para emitir despacho de concordância com a
informação no sentido da inexistência de prejuízo para o serviço foi exercitada
pela Vereadora dos Recursos Humanos, que ratificou a informação prestada pelo
Comandante dos Bombeiros Municipais, encontrando‑se ambos os despachos exarados
em informação datada de 20 de Novembro de 2003 (fls. 11 destes autos).
Com a conjugação desses três requisitos subjectivou‑se
na titularidade do interessado o direito à aposentação, que ele exercitou em
plena vigência do regime legal que o consagrava. A retirada, por lei posterior,
desse direito não pode deixar de ser considerada violadora do princípio da
confiança, sendo substancialmente distinta da situação (essa, sim, não
necessariamente violadora de tal princípio) de a alteração do regime da
aposentação, com a eliminação da modalidade criada pelo Decreto‑Lei n.º 116/85,
ser aplicável aos funcionários que estavam ao serviço ao tempo da publicação e
entrada em vigor da Lei n.º 1/2004 mas que nessa data ainda não tinham reunido
os requisitos necessários para o exercício desse direito.
Este entendimento não é afectado pelo disposto no artigo
43.º, n.º 1, alínea a), do Estatuto da Aposentação, que determina que o regime
da aposentação se fixa com base na lei em vigor e na situação existente à data
em que se profira despacho a reconhecer o direito a aposentação voluntária que
não dependa de verificação de incapacidade. Desde logo, é sustentável que esta
norma tem em vista primacialmente o regime aplicável ao cálculo da pensão de
aposentação. Como anota António José Simões de Oliveira (Estatuto da Aposentação
Anotado e Comentado, Coimbra, 1973, p. 119), esta norma – tendo por pressuposto
a conveniência de “uma verificação administrativa do direito de requerer a
aposentação” – visou acautelar as situações em que entre a data do requerimento
e a da resolução do processo de aposentação decorra largo tempo, no decurso do
qual o funcionário, em princípio, se manteve ao serviço, com mais tempo
aproveitável para a aposentação e eventual superveniência de outras alterações
relevantes, designadamente ao nível remuneratório, sendo manifestamente injusto,
em tal quadro, calcular a pensão à data do requerimento [No sentido da
inconstitucionalidade da referida norma se interpretada no sentido de aplicar
alterações de regime desfavoráveis ao interessado surgidas após a data do
requerimento – questão que não está em causa no presente recurso – cf. José
Cândido de Pinho, Estatuto da Aposentação, Coimbra, 2003, p. 161].
Este Tribunal já teve oportunidade de salientar a
necessidade de distinguir o momento em que se subjectiva o direito a uma pensão
de reforma e o momento em que se subjectiva o direito ao montante da pensão (cf.
Acórdão n.º 330/93, último parágrafo do n.º 8), considerando que, embora o
direito do então recorrente a uma pensão extraordinária de aposentação se tenha
subjectivado na data do despacho que o considerou deficiente das Forças Armadas
(20 de Agosto de 1976), o certo é que, como ele optou por se manter no serviço
activo e só em 15 de Dezembro de 1983 veio requerer a transição para a situação
de reforma extraordinária, no cálculo que então se operou do montante da pensão
houve que ter em conta as alterações legislativas ocorridas entre 1976 e 1983.
No presente caso, porém, não está em causa o direito a
um determinado montante de pensão de aposentação, mas tão‑só o direito à
aposentação nos termos do Decreto‑Lei n.º 116/85, e este, pelas razões expostas,
entrou na titularidade do interessado quando se reuniram os três elementos de
que dependia (requerimento do interessado, 36 anos de serviço e inexistência de
prejuízo para o serviço) e foi por ele efectivamente exercitado na plena
vigência desse regime, sendo intolerável que posterior demora burocrática no
envio do processo para a Caixa Geral de Aposentações, demora a que o interessado
foi de todo alheio, tivesse como efeito a perda desse direito.
É que, neste domínio, o funcionário encontra‑se numa
situação de autonomia subjectiva face à Administração. Na verdade, não é mais
sustentável a concepção que reduzia o funcionário público a “elemento integrante
do aparelho administrativo, objecto de supremacia absoluta da Administração,
que define, com o legislador, autoritária e integralmente, o seu estatuto (de
sujeição) especial” – o chamado sistema de inclusão (António Lorena de Sèves,
“Os concursos na função pública”, em Seminário Permanente de Direito
Constitucional e Administrativo, vol. I, Braga, 1999, p. 49). Antes se
reconhece que, pelo menos em certos domínios, a posição do funcionário face à
Administração é, não de inclusão, mas de alteridade, que pressupõe a autonomia
jurídica do funcionário. Impõe‑se, assim, a distinção entre “relação orgânica”
(o funcionário como órgão do aparelho administrativo) e “relação de serviço ou
de emprego” (que, na concepção clássica de funcionário, era absorvida pela
primeira), reconhecendo a esta, tal como às comuns relações de trabalho, uma
tutela jurídica específica, quer na contraprestação que constitui a remuneração,
“quer com todas as outras situações que se repercutem em termos económicos na
esfera do agente (v. g., qualificação profissional, carreira, férias, duração
do trabalho, segurança social, etc.)” (Francisco Liberal Fernandes, Autonomia
Colectiva dos Trabalhadores da Administração. Crise do Modelo Clássico de
Emprego Público, Coimbra, 1995, pp. 107‑108).
A revisão constitucional de 1982, ao mudar a expressão
“funcionários e agentes do Estado e das demais entidades públicas”, constante
do primitivo artigo 270.º, n.º 1, para “trabalhadores da Administração Pública e
demais agentes do Estado e outras entidades públicas”, do novo artigo 269.º,
tornou claro que nenhum argumento justifica “não considerar os funcionários
públicos como trabalhadores, para efeitos de titularidade dos correspondentes
direitos, liberdades e garantias constitucionais” (J. J. Gomes Canotilho e Vital
Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, Coimbra,
1993, p. 945).
Ao direito ora em causa, situado na confluência do
direito da função pública e do direito de segurança social, é, nesta última
perspectiva, aplicável, entre outros princípios gerais, o da “conservação dos
direitos adquiridos e em formação” (artigo 6.º da Lei de Bases da Segurança
Social – Lei n.º 32/2002, de 20 de Dezembro) ou da “tutela dos direitos
adquiridos e em formação” (artigo 5.º da Lei de Bases do Sistema de Segurança
Social – Lei n.º 4/2007, de 16 de Janeiro), que “visa assegurar o respeito por
esses direitos” (artigos 21.º da Lei de 2002 e 20.º da Lei de 2007),
considerando‑se direitos adquiridos, “os que já se encontram reconhecidos ou
possam sê‑lo por se encontrarem cumpridas as respectivas condições legais”
(artigo 44.º, n.º 2, alínea a), da Lei de 2002) ou “os que já se encontram
reconhecidos ou possam sê‑lo por se encontrarem reunidos todos os requisitos
legais necessários ao seu reconhecimento” (artigo 66.º, n.º 2, alínea a), da Lei
de 2007).
No presente caso, estando reunidos, antes da publicação
da Lei n.º 1/2004, todos os requisitos legais para o reconhecimento, através de
acto estritamente vinculado, do direito do interessado à aposentação nos termos
do Decreto‑Lei n.º 116/85 – e tendo esse direito sido efectivamente exercitado
em plena vigência deste diploma –, do que se tratava, com o critério normativo
que o acórdão recorrido recusou aplicar com fundamento em inconstitucionalidade,
era, em rigor, da destruição retroactiva de um “direito adquirido”, que,
manifestamente, não pode deixar de ser reputada violadora do princípio da
confiança [Paulo Veiga e Moura (A Privatização da Função Pública, Coimbra, 2004,
pp. 223‑225) sustenta mesmo a inconstitucionalidade do novo regime quando
aplicado a funcionários que, tendo reunido em 31 de Dezembro de 2003 as
condições para a aposentação, só a vieram a requerer já após a publicação da Lei
n.º 1/2004, questão de que não cumpre tratar no âmbito do presente recurso].
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Julgar inconstitucionais, por violação do princípio
da protecção da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito, e do
princípio da igualdade, consagrados nos artigos 2.º e 13.º da Constituição da
República Portuguesa, as normas constantes dos artigos 1.º, n.º 6, e 2.º da Lei
n.º 1/2004, de 15 de Janeiro, quando interpretados no sentido de que aos
subscritores da Caixa Geral de Aposentações que, antes de 31 de Dezembro de
2003, hajam reunido os pressupostos para a aplicação do regime fixado pelo
Decreto‑Lei n.º 116/85, de 19 de Abril, e hajam requerido essa aplicação, deixa
de ser reconhecido o direito a esse regime de aposentação pela circunstância de
o respectivo processo ter sido enviado à Caixa, pelo serviço onde o interessado
exercia funções, após a data da entrada em vigor da Lei n.º 1/2004; e, em
consequência,
b) Confirmar a decisão recorrida, na parte impugnada.
Sem custas.
Lisboa, 4 de Março de 2008.
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Silva Rodrigues
João Cura Mariano
Joaquim de Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos