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Processo n.º 993/06
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal do Comércio de Vila Nova
de Gaia, foi proferida decisão que recusou aplicar, com fundamento em
inconstitucionalidade orgânica, o disposto no artigo 89°, n.º 1, alínea a), da
Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, na redacção que lhe foi conferida pelo
artigo 29º do Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março.
São os seguintes os fundamentos da decisão:
“Estipula o artigo 67º, do Código de Processo Civil, que «as leis de organização
judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da
competência dos tribunais judiciais dotados de competência especializada».
Acrescenta o artigo 102º, do referido diploma, que «a incompetência absoluta
pode ser suscitada oficiosamente pelo Tribunal em qualquer estado do processo».
Por sua vez, constituem casos de incompetência absoluta, entre outros, os de
violação de regras de competência em razão da matéria.
A competência deste Tribunal encontra-se delimitada pelo artigo 89°, da LOTJ.
Por força do disposto no artigo 89°, n.º 1, alínea a), da Lei Orgânica dos
Tribunais Judiciais na redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º
53/04, de 18-03, este Tribunal apenas é competente para tramitar processos de
insolvência nos casos em que o devedor seja uma sociedade comercial ou a massa
insolvente integre uma empresa.
Por sua vez, em 30-06-2006 entrou em vigor o Decreto-Lei n.º 76-A/2006 (cfr.
artigo 64° do referido diploma), que, no seu artigo 29°, alterou a redacção do
artigo 89°, da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, conferindo-lhe, no que aqui
interessa e na alínea a) do n.º 1, competência para «os processos de
insolvência».
Ora, estipula o artigo 165° da Constituição da República Portuguesa que «é da
exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes
matérias, salvo autorização ao Governo:
p) Organização e competência dos tribunais e do Ministério Público e estatuto
dos respectivos magistrados, bem como das entidades não jurisdicionais de
composição de conflitos»;
Por sua vez, prescreve o n.º 2 do mesmo preceito que «as leis de autorização
legislativa devem definir o objecto, o sentido, a extensão e a duração da
autorização».
In casu, o Decreto-Lei n.º 76-A/2006, foi promulgado no uso de autorização
legislativa concedida pelo artigo 95º, da Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro.
A referida Lei, prevê no seu artigo 95°, sob a epígrafe dissolução e liquidação
de entidades comerciais o seguinte:
«1 - O Governo fica autorizado, durante o ano de 2006, a alterar o regime da
dissolução e liquidação de entidades comerciais, designadamente das sociedades
comerciais, das sociedades civis sob forma comercial, das cooperativas e dos
estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada, através da aprovação
de um regime de dissolução e liquidação por via administrativa aplicável às
referidas entidades.
2 - O sentido e a extensão da autorização legislativa concedida no número
anterior são os seguintes:
a) Atribuição às conservatórias do registo das competências necessárias para que
possam proceder à dissolução e liquidação de entidades comerciais através de um
procedimento administrativo, em substituição do regime de dissolução e
liquidação judicial de entidades comerciais, sem prejuízo das excepções
previstas na alínea seguinte;
b) Estabelecimento das situações em que a dissolução e a liquidação judicial de
entidades comerciais pode ter lugar;
c) Aplicação imediata do regime de dissolução e liquidação de entidades
comerciais através de um procedimento administrativo aos processos judiciais de
dissolução e liquidação que, à data da sua entrada em vigor, se encontrem
instaurados e pendentes em tribunal;
d) Regulação das condições e requisitos da remessa às conservatórias de registo
dos processos judiciais referidos na alínea anterior,
e) Determinação do tribunal competente para a impugnação judicial dos actos
praticados no âmbito do procedimento administrativo de dissolução e liquidação
de entidades comerciais».
Assim sendo, não há dúvidas de que a alteração da alínea a) do artigo 89°, da
Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, não foi autorizada por tal Lei (nem sequer
se relaciona com a matéria que a mesma visa regular) pelo que, sendo tal matéria
da competência da Assembleia da República e não se encontrando o Governo
autorizado a legislar sobre a mesma, é organicamente inconstitucional a
alteração em apreço, não se aplicando a redacção em causa, antes se
repristinando a anterior.
Ora, o requerente nos presentes autos é uma pessoa singular e não é referido na
petição inicial que a massa insolvente integre uma empresa.
Por sua vez, a referida Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais prevê também os
tribunais de competência genérica, aos quais compete residualmente, para além do
mais, preparar e julgar os processos relativos a causas não atribuídas a outro
tribunal (cfr. artigo 77º, n.º 1, al. a)).
Assim sendo, a competência em razão da matéria para preparar e julgar a presente
acção compete, pois, ao tribunal de comarca.
Ora, a incompetência em razão da matéria é uma excepção dilatória de
conhecimento oficioso que implica o indeferimento liminar da petição inicial ou
a absolvição do réu da instância (artºs. 494º, al. a), 102º, n.º 1, e 105º, n.º
1, do C.P.C.).
Assim sendo e face ao exposto, declaro este Tribunal incompetente em razão da
matéria e, em consequência, indefiro liminarmente a petição inicial, atento o
disposto nos artigos 89º, alínea c), da L.O.T.J. e 101º e 105º, do C.P.C..
[...].”.
2. É desta decisão que vem interposto pelo Representante do
Ministério Público junto daquele Tribunal, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do
artigo 70º da LTC, o presente recurso, para apreciação da conformidade da “norma
da alínea a) do n.º 1 do artigo 89° da Lei 3/99, de 13 de Janeiro (LOTJ), na
redacção dada pelo artigo 29º do DL n.º 76-A/2006, de 29 de Março, com a norma
do artigo 165°, n.° 1, alínea p), da Constituição”.
3. Já neste Tribunal foi o Ministério Público, ora recorrente,
notificado para alegar, o que fez, tendo concluído da seguinte forma:
“1 – A norma constante do artigo 89º, n.º 1, alínea a), da Lei de Organização e
Funcionamento dos Tribunais Judiciais, na versão emergente do Decreto-Lei n.º
76-A/2006, de 29 de Março, ao ampliar a competência material dos tribunais de
comércio, de modo a abranger a preparação e julgamento de todos os «processos de
insolvência», independentemente da natureza do devedor e da massa insolvente
configura-se como inovatória face ao regime legal que a precedia, resultante do
diploma que aprovou o Código de Insolvência – tendo, deste modo, ampliado a
competência material dos tribunais de comércio relativamente à dos tribunais
comuns.
2 – Na verdade, no regime emergente do citado Decreto-Lei n.º 53/04 – e em
estrita consonância com a respectiva lei de autorização legislativa – a Lei n.º
39/03, de 22 de Agosto – a competência material dos tribunais de comércio apenas
abrangia os processos de insolvência em que o devedor fosse uma sociedade
comercial ou a massa insolvente integrasse uma empresa.
3 – Tal inovação legislativa carece de credencial parlamentar bastante, já que o
artigo 95º da Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro, apenas autoriza o Governo a
legislar sobre o tema da desjudicialização dos processos de liquidação e
dissolução de entidades comerciais – matéria perfeitamente diversa e autónoma da
que se reporta à repartição de competências entre tribunais de comércio e
tribunais comuns para o processamento da insolvência
4 – Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade orgânica
da norma desaplicada na decisão recorrida.”
Decorrido o prazo, o recorrido A. não alegou (cota de fls. 48).
Cumpre apreciar e decidir.
II
4. Na sequência da Lei n.º 39/2003, de 22 de Agosto, foi publicado o
Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, cujo artigo 8º alterou a redacção da
alínea a) do artigo 89º da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro (Lei de Organização e
Funcionamento dos Tribunais Judiciais). De acordo com tal alteração, passou a
ser conferida aos tribunais de comércio competência para o processo de
insolvência se o devedor for uma sociedade comercial ou a massa insolvente
integrar uma empresa.
Por sua vez, em 30 de Dezembro de 2005, foi publicada a Lei n.º
60-A/2005 (Lei do Orçamento de Estado para 2006), a qual, no que ora releva,
estatuiu no seu artigo 95º:
“Artigo 95º
Dissolução e liquidação de entidades comerciais
1 - O Governo fica autorizado, durante o ano de 2006, a alterar o regime da
dissolução e liquidação de entidades comerciais, designadamente das sociedades
comerciais, das sociedades civis sob forma comercial, das cooperativas e dos
estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada, através da aprovação
de um regime de dissolução e liquidação por via administrativa aplicável às
referidas entidades.
2 - O sentido e a extensão da autorização legislativa concedida no número
anterior são os seguintes:
a) Atribuição às conservatórias do registo das competências necessárias para
que possam proceder à dissolução e liquidação de entidades comerciais através de
um procedimento administrativo, em substituição do regime de dissolução e
liquidação judicial de entidades comerciais, sem prejuízo das excepções
previstas na alínea seguinte;
b) Estabelecimento das situações em que a dissolução e a liquidação judicial de
entidades comerciais pode ter lugar;
c) Aplicação imediata do regime de dissolução e liquidação de entidades
comerciais através de um procedimento administrativo aos processos judiciais de
dissolução e liquidação que, à data da sua entrada em vigor, se encontrem
instaurados e pendentes em tribunal;
d) Regulação das condições e requisitos da remessa às conservatórias de registo
dos processos judiciais referidos na alínea anterior;
e) Determinação do tribunal competente para a impugnação judicial dos actos
praticados no âmbito do procedimento administrativo de dissolução e liquidação
de entidades comerciais.”.
Invocando o uso da autorização legislativa concedida pelo
artigo 95º da Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro, foi, em 29 de Março de 2006,
publicado o Decreto-Lei n.º 76-A/2006. O artigo 29º deste Decreto-Lei n.º
76-A/2006 introduziu nova alteração artigo 89° da Lei n.º 3/99, de 13 de
Janeiro, que passou a ter a seguinte redacção:
“Artigo 89º
[...]
1 - Compete aos tribunais de comércio preparar e julgar:
a) Os processos de insolvência;
[...]
e) As acções de liquidação judicial de sociedades;
[...]
2 - Compete ainda aos tribunais de comércio julgar:
a) [...]
b) As impugnações dos despachos dos conservadores do registo comercial, bem como
as impugnações das decisões proferidas pelos conservadores no âmbito dos
procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de sociedades
comerciais;
[...].”.
A alteração de redacção da alínea a) do n.º 1 do artigo 89º da
Lei n.º 3/99, produzida pela entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 76-A/2006,
“ampliou” a competência que os tribunais de comércio tinham durante a vigência
do Decreto-Lei n.º 53/2004. Na verdade, enquanto anteriormente aqueles tribunais
apenas eram competentes para julgar os processos de insolvência em que o devedor
fosse uma sociedade comercial ou em que a massa insolvente integrasse uma
empresa, na nova versão, passaram a ser competentes, em geral, para os processos
de insolvência, aí se incluindo os respeitantes a pessoa singular e aqueles em
que a massa insolvente não integrasse uma empresa.
Impõe-se saber, por um lado, se o Governo teria competência
para editar, sem autorização parlamentar, uma norma como a que consta do artigo
29º do Decreto-Lei n.º 76-A/2006, e, por outro, em caso de resposta negativa, se
a autorização concedida pelo artigo 95º da Lei n.º 60-A/2005 pode ser
considerada como abrangendo a autorização porventura necessária para a edição de
tal norma.
5. Estas questões foram já apreciadas e decididas por este Tribunal
no acórdão n.º 690/2006 (publicado no Diário da República, 2ª série, n.º 22, de
31 de Janeiro de 2007, p. 2649 ss), e nos acórdãos n.ºs 692/2006, 43/2007 e
85/2007 (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Em todos estes acórdãos
foi confirmado o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.
No primeiro destes acórdãos o Tribunal afirmou o seguinte:
“[…]
2.1. Como resulta evidente, a alteração de redacção introduzida na alínea a) do
n.º 1 do artº 89º da Lei n.º 3/89 pelo Decreto-Lei n.º 76-A/2006 consequenciou
uma «inovação» na competência material dos tribunais de comércio relativamente à
que detinham antes de se operar a vigência deste último diploma.
Ora, como tem este Tribunal sublinhado, é da reserva relativa de competência da
Assembleia da República [nos termos da alínea p) do n.º 1 do artigo 165º da
Constituição na versão da Lei Fundamental decorrente desde a Lei Constitucional
n.º 1/92, de 20 de Setembro, vigente à data do diploma em causa] a edição de
legislação sobre a competência material dos tribunais, onde se inclui, «para
além da definição das matérias cujo conhecimento cabe aos tribunais judiciais e
a daquelas cuja conhecimento cabe aos tribunais administrativos e fiscais – … a
distribuição das matérias da competência dos tribunais judiciais pelos
diferentes tribunais de competência genérica e de competência especializada ou
específica» (cfr., verbi gratia, os Acórdãos números 36/87, 356/89, 72/90,
271/92, 163/95, 198/95 e 268/97, publicados, respectivamente, no Diário da
República, I Série, de 4 de Março de 1987, 23 de Maio de 1989 e 2 de Abril de
1990, mesmo jornal oficial, II Série, de, 23 de Novembro de 1992, 8 de Junho de
1992, 22 de Junho de 1995 e 22 de Maio de 1997). Ou, como se referiu no Acórdão
n.º 476/98 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), «inclui-se na reserva
parlamentar a definição de toda a competência judiciária ratione materiae – ou
seja: a distribuição das matérias pelas diferentes espécies de tribunais
dispostos horizontalmente, no mesmo plano, sem que, entre eles, intercedam
relações de supra-ordenação e de subordinação».
Aqui chegados, e uma vez que o Decreto-Lei n.º 76-A/2006 veio invocar o uso da
autorização legislativa concedido pelo art.º 95º da Lei n.º 60-A/2005,
claramente que, para a dilucidação no problema em apreço, se terá de enfrentar a
questão de saber se, ponderando o que se prescreve no n.º 2 do artigo 165º da
Lei Fundamental, aquele normativo da Lei do Orçamento de Estado para 2006 (acima
transcrito) constituía credencial parlamentar bastante para habilitar o Governo
a emitir a norma ínsita no artº 29º do mencionado Decreto-Lei n.º 76-A/2006.
Torna-se a todos os títulos claro que o sentido e extensão (que, como sabido é,
para se usarem as palavras de Jorge Miranda e Rui Medeiros, in Constituição da
República Portuguesa Anotada, Tomo II, 537, significam a concretização do
«objectivo e o critério da disciplina legislativa a estabelecer a condensação
dos princípios ou a orientação fundamental a seguir pelo decreto-lei») da
autorização legislativa constante do aludido art.º 95º e enunciados no seu n.º
2, não podem comportar um entendimento que conduza a considerar que nela foi
delineado, por entre o mais, um programa legislativo que implicasse a atribuição
de uma dada competência a uma sorte de tribunais (para o caso, afectando-a a
determinados de competência especializada).
Na verdade, aquele artigo, substancialmente, visou a introdução de um programa
legislativo que consubstanciasse uma real «desjudicialização» do regime de
dissolução e liquidação das entidades comerciais – a operar por via
administrativa –, e prevendo-se ainda uma forma de possibilitação da impugnação
das decisões tomadas por essa via, em passo algum se descortina se surpreende a
atribuição de competência a que acima se aludiu.
E, mesmo focando a alínea b) do n.º 2 do citado artigo, torna-se patente que a
autorização para o editando diploma governamental estabelecer as situações em
que a dissolução e a liquidação judicial das entidades comerciais pode ter lugar
não pode comportar um sentido de onde se extraia qual a atribuição de
competência a uma dada espécie de tribunal, pois que o «estabelecimento das
situações» significa, inequivocamente, a definição dos casos e condicionalismos
em que aquelas entidades podem vir a ser liquidadas por via jurisdicional e não
a definição do órgão judicial que vai aferir deles.
Neste contexto, o normativo em apreço, ao ser editado pelo Governo a descoberto
de credencial parlamentar e tendo em conta a matéria que regula, enferma do
vício de inconstitucionalidade orgânica.”.
É esta jurisprudência, integralmente aplicável ao presente caso, que agora aqui
se reitera.
III
6. Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Julgar inconstitucional, por violação do disposto
na alínea p) do n.º 1 do artigo 165º da Constituição, a norma constante do
artigo 29º do Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março, na parte em que veio
conferir nova redacção à alínea a) do n.º 1 do artigo 89º da Lei n.º 3/99, de 13
de Janeiro;
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso.
Sem custas.
Lisboa, 27 de Fevereiro de 2007
Maria Helena Brito
Rui Manuel Moura Ramos
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Artur Maurício