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Processo n.º 777/04
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
(Conselheiro Mário Torres)
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.No recurso de constitucionalidade interposto pelo Ministério Público, ao
abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da da Lei de Organização, Funcionamento
e Processo do Tribunal Constitucional, do Acórdão do Tribunal da Relação de
Lisboa de 11 de Maio de 2004, foi tirado, em 28 de Novembro de 2006, pela 2.ª
Secção do Tribunal Constitucional, o Acórdão n.º 657/2006, pelo qual se decidiu
não julgar inconstitucional “a norma que resulta da conjugação do disposto na
alínea a) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 824.º do Código de Processo Civil (na
redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 180/96, de 25 de Setembro), na interpretação
de que permite a penhora de qualquer percentagem no salário de executados quando
tal salário é inferior ao salário mínimo nacional ou quando, sendo superior, o
remanescente disponível para os mesmos, após a penhora, fique aquém do salário
mínimo nacional”.
Notificado desta decisão, o Ministério Público veio dela interpor recurso para o
plenário do Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 79.º-D da Lei do
Tribunal Constitucional, visando “dirimir o conflito jurisprudencial, decorrente
do juízo de inconstitucionalidade normativa formulado no acórdão n.º 96/2004, em
oposição ao juízo de constitucionalidade formulado neste acórdão n.º 657/2006”.
O relator (por vencimento) ordenou a produção de alegações,
“ficando recorrente e recorridos notificados para se pronunciarem, querendo,
sobre a eventualidade de se poder vir a não tomar conhecimento do recurso, por
falta de identidade entre a norma não julgada inconstitucional no Acórdão
recorrido e a norma julgada inconstitucional no Acórdão que é fundamento do
recurso (o Acórdão n.º 94/2004), designadamente na parte em que este último se
refere ao executado ‘que não é titular de outros bens penhoráveis suficientes
para satisfazer a dívida exequenda’”.
O recorrente veio alegar dizendo:
«1. Apreciação da questão prévia oficiosamente colocada
É inquestionável que o recurso para o Plenário do Tribunal Constitucional
visando a resolução de conflitos jurisprudenciais pressupõe uma “colisão” entre
os julgamentos de constitucionalidade e inconstitucionalidade, constantes do
acórdão recorrido e do acórdão fundamento: tal implica naturalmente que tenha
sido a mesma dimensão normativa de certo preceito legal a ter sido
contraditoriamente apreciada por um e outro de tais arestos.
No caso ora em apreciação, é certo que há uma diferença entre as formulações que
constam da parte decisória dos acórdãos n.ºs 657/06 e 96/04 – e que se expressa
fundamentalmente no facto de este último condicionar expressamente o juízo de
inconstitucionalidade da norma apreciada à circunstância de o executado não ser
“titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida
exequenda”, ao passo que o acórdão proferido nestes autos é omisso sobre tal
circunstância.
Tal “omissão” poderia, desde logo, resultar do facto de, no caso dos autos, não
resultar (pelo menos explicitamente) da decisão recorrida que o executado não é
titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida
exequenda (estando, deste modo, em causa “matéria de facto” não apurada pelas
instâncias).
Importa, porém, verificar se – na lógica decisória do douto acórdão proferido
nestes autos – tal circunstância (a não titularidade de outros bens
penhoráveis), não apurada pelas instâncias, se configura como relevante ou
irrelevante para a formulação do juízo de constitucionalidade cometido a este
Tribunal Constitucional: na verdade, a considerar-se que tal “facto negativo” é
relevante para o sentido do julgamento de inconstitucionalidade, não haverá
efectiva contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, já que as
soluções (aparentemente antagónicas) alcançadas por um e outro radicariam,
afinal, em particularidades ou especificidades normativamente relevantes de cada
um dos casos ali apreciados e decididos.
Se, pelo contrário, se entender que, na lógica subjacente ao douto acórdão n.º
657/06, seria, afinal, irrelevante para o juízo de constitucionalidade a emitir
a questão da existência e titularidade pelo executado de outros bens, já se
poderá entender que ocorre efectiva contradição de soluções
jurídico-constitucionais, uma vez que a solução de não inconstitucionalidade
normativa seria a mesma, quer existissem ou não outros bens penhoráveis, para
além do salário mínimo.
Ora, ao analisar tal douta decisão, interpretamos a formulação que consta da
parte final de fls. 113/114 como implicando um tal juízo de “irrelevância
normativa” da questão “de facto” da titularidade pelo executado de outros bens,
ao afirmar-se que – seja como for – “tal condicionamento a ressalvas carecidas
de apreciação casuística apenas pode apontar no sentido de que a solução mais
adequada será aquela que permita a consideração justamente dos casos concretos”
– ou seja, não sendo, em si mesmo, inconstitucional o regime normativo que prevê
a penhora de uma parcela do salário mínimo auferido pelo executado, a questão da
possível existência de outros bens apenas relevaria no âmbito da formulação de
uma concreta apreciação jurisdicional, permitida pela Lei Fundamental e situada
num plano não normativo, portanto, estranho à questão de constitucionalidade.
Foi esta interpretação dos termos do douto acórdão, proferido nos autos, que
levou à interposição do recurso previsto no artigo 79.º-D – pesando ainda, como
é evidente, a natureza “obrigatória” do mesmo, que determina que, em casos de
dúvida, se imponha ao Ministério Público a opção pelo pedido de uniformização de
jurisprudência.
2. Apreciação da questão de constitucionalidade suscitada
Caso se entenda que ocorre efectiva contradição de acórdãos, considera-se – em
consonância, aliás, com a alegação apresentada nos presentes autos – que o mesmo
deverá ser resolvido através do julgamento de não inconstitucionalidade,
formulado no acórdão recorrido, a cuja fundamentação inteiramente se adere.
3. Conclusão
Nestes termos e pelo exposto, conclui-se:
1 – Não é inconstitucional a norma resultante da conjugação do disposto na
alínea a) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 824.º do [Código de Processo Civil]
Código das Custas Judiciais (na redacção emergente do Decreto-Lei n.º 180/96, de
25 de Setembro), na interpretação de que permite a penhora de percentagem do
salário do executado quando tal salário é inferior ao salário mínimo nacional ou
quando, sendo superior, o remanescente disponível fique aquém de tal salário
mínimo – competindo ao juiz valorar as circunstâncias concretas do caso, ao
definir o âmbito e admissibilidade da penhora, incluindo a ponderação do relevo
a atribuir à eventual existência de outros bens penhoráveis.
2 – Termos em que deverá confirmar-se o juízo de constitucionalidade emitido
pelo acórdão n.º 675/2006.»
Por parte do recorrido não foram apresentadas contra-alegações.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos
A) Questão prévia
2.Há que começar por tratar da questão prévia suscitada, relativa aos
pressupostos para se poder tomar conhecimento do recurso para o plenário.
Resulta do artigo 79.º-D, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, que cabe
recurso para o plenário do Tribunal Constitucional quando este “vier a julgar a
questão da inconstitucionalidade ou ilegalidade em sentido divergente do
anteriormente adoptado quanto à mesma norma por qualquer das suas secções”. É,
pois, pressuposto deste recurso que exista uma decisão em sentido divergente
sobre uma questão de inconstitucionalidade (ou de ilegalidade) relativa à mesma
norma, devendo recordar-se que, quando está em causa apenas uma determinada
dimensão interpretativa de um ou mais preceitos, é tal dimensão que deve ser
considerada como uma norma autónoma.
No Acórdão n.º 657/2006, ora recorrido, decidiu-se:
“[n]ão julgar inconstitucional a norma que resulta da conjugação do disposto na
alínea a) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 824.º do Código de Processo Civil (na
redacção dada pelo Decreto Lei n.º 180/96, de 25 de Setembro), na interpretação
de que permite a penhora de qualquer percentagem no salário de executados quando
tal salário é inferior ao salário mínimo nacional ou quando, sendo superior, o
remanescente disponível para os mesmos, após a penhora, fique aquém do salário
mínimo nacional”.
Já o Acórdão n.º 96/2004, de 11 de Fevereiro, tirado na 1.ª Secção do Tribunal
Constitucional, julgou inconstitucional
“por violação do princípio da dignidade humana, decorrente do princípio do
Estado de direito, constante das disposições conjugadas dos artigos 1.º, 59.º,
n.º 2, alínea a), e 63.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa –
a norma constante do artigo 824.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Código de Processo
Civil (na redacção emergente da reforma de 1995/96), na parte em que permite a
penhora de uma parcela do salário do executado que não é titular de outros bens
penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda, e na medida em que
se priva o executado de dispor de rendimento mensal correspondente ao salário
mínimo nacional”.
É certo que, como resulta da fundamentação do Acórdão recorrido, este se teve de
confrontar com jurisprudência do Tribunal Constitucional em sentido divergente
da decisão adoptada, entre a qual se contava o Acórdão n.º 96/2004, que
constitui fundamento do presente recurso para o plenário. A análise dos
fundamentos de tal jurisprudência divergente foi relevante para a fundamentação
do Acórdão recorrido.
Como resulta logo da mera leitura das normas apreciadas nos Acórdãos n.ºs
657/2006 e 96/2004, existe, porém, entre as respectivas decisões uma diferença
consistente no facto de o primeiro, ora recorrido, se referir apenas aos
“executados”, e não ao facto de o executado não ser “titular de outros bens
penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda”.
Obviamente, tal diferença – repete-se, a omissão de referência ao facto de o
executado não ser “titular de outros bens penhoráveis suficientes para
satisfazer a dívida exequenda” – não é meramente acidental, como resulta do
ponto 7 da fundamentação do Acórdão recorrido (e na sequência, aliás, de uma
referência efectuada ao ponto nas alegações do representante do Ministério
Público no Tribunal Constitucional, no recurso que deu origem ao Acórdão
recorrido). Recorde-se essa fundamentação:
«3. A questão da imposição constitucional de uma impenhorabilidade total, e em
abstracto, de rendimentos que não excedam, ou não deixem ao devedor, um montante
correspondente ao salário mínimo nacional foi objecto de várias decisões deste
Tribunal, e, mesmo de uma declaração de inconstitucionalidade com força
obrigatória geral.
Assim, pelo Acórdão n.º 177/2002 (Diário da República [DR], I Série‑A, n.º 150,
de 2 de Julho de 2004, p. 5158), proferido na sequência de outras decisões (v.
logo o Acórdão n.º 318/99, in DR, II série, n.º 247, de 22 de Outubro de 1999)
foi declarada, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da “norma
que resulta da conjugação do disposto na alínea b) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo
824.º do Código de Processo Civil, na parte em que permite a penhora até 1/3
das prestações periódicas, pagas ao executado que não é titular de outros bens
penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda, a título de regalia
social ou de pensão, cujo valor global não seja superior ao salário mínimo
nacional, por violação do princípio da dignidade humana, contido no princípio do
Estado de Direito, e que resulta das disposições conjugadas do artigo 1.º, da
alínea a) do n.º 2 do artigo 59.º e dos n.ºs 1 e 3 do artigo 63.º da
Constituição”.
Por sua vez, o Acórdão n.º 62/2002 (in DR, II série, n.º 59, de 11 de Março de
2002) julgou inconstitucionais, por violação dos mesmos princípios
constitucionais, as normas dos artigos 821º, n.º 1, e 824º, n.º 1, alínea b), e
n.º 2, do Código de Processo Civil, na interpretação segundo a qual são
penhoráveis as quantias percebidas a título de rendimento mínimo garantido.
Ambas estas decisões foram proferidas por maioria, com votos de vencido.
4. No presente caso, está em causa, porém, não a norma da alínea b), relativa a
pensões e outras prestações periódicas de natureza similar, que esteve em foco
no Acórdão n.º 177/2002, do plenário deste Tribunal (ou a quantias recebidas a
título de rendimento mínimo garantido, como no citado Acórdão n.º 62/2002), mas
antes a norma da alínea a), relativa a vencimentos e salários, ambas do n.º 1
do citado artigo 824.º, conjugadas com o n.º 2, na redacção deste preceito
introduzida pelo Decreto‑Lei n.º 180/96. Foi, na verdade, a penhora de uma parte
do salário dos recorridos que se discutiu na decisão recorrida.
Também sobre a norma da referida alínea a) já existe, entretanto, jurisprudência
no Tribunal Constitucional. Na verdade, o Acórdão n.º 96/2004, da 3.ª Secção
deste Tribunal (Diário da República, II Série, n.º 78, de 1 de Abril de 2004,
pág. 5228), “julg[ou] inconstitucional, por violação do princípio da dignidade
humana, decorrente do princípio do Estado de direito, constante das disposições
conjugadas dos artigos 1.º, 59.º, n.º 2, alínea a), e 63.º, n.ºs 1 e 3, da
Constituição da República Portuguesa, a norma que resulta da conjugação do
disposto na alínea a) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 824.º do Código de Processo
Civil (na redacção emergente da reforma de 1995‑1996), na parte em que permite a
penhora de uma parcela do salário do executado que não é titular de outros bens
penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda, e na medida em que
priva o executado da disponibilidade de rendimento mensal correspondente ao
salário mínimo nacional” (itálico aditado).
Este Acórdão assentou o seu juízo de inconstitucionalidade na adesão à
fundamentação do referido Acórdão n.º 177/2002, considerada transponível para
os casos em que a penhora recai sobre salários, e não sobre pensões. Também esta
decisão foi proferida por maioria, tendo existido dois votos de vencido.
5. Importa, justamente, começar por salientar que o tratamento diferenciado,
para efeitos de penhorabilidade e por razões de protecção do devedor, de
prestações como pensões, por um lado, e dos vencimentos e salários, por outro,
não é inédito entre nós, e antes correspondeu a solução frequente, que se
reflectiu, mesmo, em várias decisões sobre questões de constitucionalidade. A
impenhorabilidade de prestações devidas pelas instituições de segurança social,
em particular, foi, na verdade, por várias vezes objecto de análise pela nossa
jurisprudência constitucional. Como se recordou no citado Acórdão n.º 62/2002,
logo no
«Acórdão da Comissão Constitucional n.º 479 [de 25 de Março de 1983, in Boletim
do Ministério da Justiça, n.º 327, Junho de 1983, pp. 424-426] decidiu‑se que as
normas contidas na Base XXVI da Lei n.º 2115, de 18 de Junho de 1962, e no
artigo 30.º do Decreto n.º 45266, de 23 de Setembro de 1963, que estabeleciam a
impenhorabilidade das prestações devidas aos beneficiários e seus familiares ou
sócios das instituições de previdência social não eram inconstitucionais, não
violando, designadamente, o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da
Constituição. Salientou-se, então, que “a exclusão da penhorabilidade das
pensões pagas aos beneficiários do regime geral de previdência (...) não decorre
de um puro capricho ou do arbítrio do legislador, reflectindo antes a
preocupação de conferir uma garantia absoluta a percepção de um rendimento
mínimo de subsistência”.
Tal solução de impenhorabilidade (e intransmissibilidade) das prestações devidas
pelas instituições de segurança social ficou, posteriormente, consagrada no
artigo 45º da Lei n.º 28/84, de 14 de Agosto.
Esta norma veio, porém, a ser julgada inconstitucional, por violação do
preceituado nas disposições conjugadas dos artigos 13.º, n.º 1, e 62.º, n.º 1,
da Constituição, “na medida em que isenta de penhora a parte das prestações
devidas pelas instituições de segurança social que excede o mínimo adequado e
necessário a uma sobrevivência condigna”, pelo Acórdão do Tribunal
Constitucional n.º 411/93 (Diário da República [DR], II série, de 19 de Janeiro
de 1994), na sequência, aliás, da fundamentação do Acórdão n.º 349/91 (Diário da
República, II série, de 2 de Dezembro de 1991).
Reconheceu-se neste último aresto que
“a conclusão de não inconstitucionalidade a que chegou a Comissão Constitucional
quanto às normas constantes da Base XXVI da Lei nº 2115 e do artigo 30.º do
Decreto n.º 45 266 é válida na sua ideia essencial para a norma do n.º 1 do
artigo 45.º da Lei n.º 28/84, desde que a pensão auferida pelo beneficiário da
segurança social, tendo em conta o seu montante, reportado a um determinado
momento histórico, cumpra efectivamente a função inilidível de garantia de uma
sobrevivência minimamente condigna do pensionista.”
Sendo este o caso dos autos (pois tendo em conta o montante da pensão e o
período histórico em que estava a ser paga, ela cumpria efectivamente a função
inilidível de garantia de uma sobrevivência minimamente digna do beneficiário),
a impenhorabilidade não surgia como algo materialmente infundado, irrazoável ou
arbitrário, nem desproporcionado, pelo que a norma em causa não foi julgada
inconstitucional. Na fundamentação, afirmou-se, porém, a inconstitucionalidade
do citado artigo 45.º, n.º 1, da Lei n.º 24/84, ao considerar abrangidas pelo
princípio da impenhorabilidade total prestações devidas por instituições de
segurança social de montante superior ao mínimo de sobrevivência condigna, quer
por encerrar um sacrifício excessivo e desproporcionado do direito do credor,
quer por atribuir aos pensionistas da segurança social um privilégio ou um
benefício materialmente injustificado, em comparação com os pensionistas de
outras instituições – designadamente da Caixa Geral de Aposentações.
Já no referido Acórdão n.º 411/93 a norma do artigo 45.º, n.º 1, da Lei n.º
28/84, de 14 de Agosto, foi julgada inconstitucional, por violação das
disposições conjugadas dos artigos 13.º, n.º 1, e 62.º, n.º 1, da Lei
Fundamental, na medida em que isentava de penhora a parte das prestações devidas
pelas instituições de segurança social que excede o mínimo adequado e necessário
a uma sobrevivência condigna.
Foi justamente para salvaguardar tais princípios constitucionais, que, invocando
as citadas decisões, o legislador veio, no Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de
Dezembro – além de atribuir ao juiz amplos poderes para, em concreto, determinar
a parte penhorável das quantias e pensões de índole social percebidas adequadas
à real situação económica do executado e seu agregado familiar, e para
determinar a isenção total de penhora quando o considere justificado – prever
(artigo 12.º) que “as disposições constantes de legislação especial que
estabeleçam a impenhorabilidade absoluta de quaisquer rendimentos,
independentemente do seu montante, em colisão com o disposto no artigo 824.º do
Código de Processo Civil”, não são invocáveis em processo civil.
É, assim, por virtude de tal norma que a impenhorabilidade prevista no referido
artigo 45.º, n.º 1, da Lei n.º 24/84 não é invocável em processo civil. E,
conforme resulta dos citados Acórdãos n.ºs 349/91 e 411/93, o que é relevante,
no confronto com os artigos 13.º e 62.º da Constituição, para concluir pela
legitimidade constitucional da impenhorabilidade é a circunstância de a
prestação de segurança social em causa não exceder o mínimo adequado e
necessário a uma sobrevivência condigna.
(…)»
A própria previsão da possibilidade de o juiz isentar totalmente de penhora o
executado, tendo em conta “a natureza da dívida exequenda e as necessidades do
executado e seu agregado familiar”, começou por ser prevista, no artigo 824.º,
n.º 3, apenas para as prestações a que aludia a alínea b) do n.º 1 do artigo
824.º, com exclusão dos vencimentos e salários, tendo sido estendida a estes
últimos pelo Decreto‑Lei n.º 180/96. E esse mesmo tratamento diferenciado é o
que se encontra previsto hoje, no artigo 824.º, n.º 5, do Código de Processo
Civil, que apenas veda no caso de pensão ou regalia social a possibilidade de o
juiz, tendo em conta as circunstâncias concretas, reduzir o limite mínimo
impenhorável, correspondente ao salário mínimo nacional.
Este tratamento distinto das pensões e outras regalias sociais, por um lado, e
dos vencimentos e salários – isto é, de retribuição do trabalho – , por outro,
fundamenta-se na sua diferente função e natureza. Nesta perspectiva, importa
salientar que não só a decisão proferida no citado Acórdão n.º 177/2002, que
declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da penhora até um
terço das prestações periódicas, pagas ao executado a título de regalia social
ou de pensão, cujo valor global não seja superior ao “salário mínimo nacional”,
não inclui, como vimos, a dimensão normativa em causa no presente recurso, como
não impõe só por si uma solução para a apreciação da constitucionalidade desta
última, na medida em que um dos fundamentos para uma solução diversa seja,
justamente, a diferente natureza e função de uma prestação remuneratória ou
retributiva e das pensões ou regalias sociais.
6. Importa justamente averiguar em que medida podem ser consideradas
procedentes, para a penhora de vencimentos e de salários, as considerações que
este Tribunal teceu no sentido de uma impenhorabilidade absoluta de montantes
inferiores (ou que privem o executado de um montante pelo menos igual) ao
salário mínimo nacional. Trata-se de averiguar se são procedentes os argumentos
apresentados, a tal respeito, no Acórdão n.º 177/2002, e, designadamente (pois
que se pronunciou especificamente sobre a penhora de salários) no Acórdão n.º
96/2004. Ambos os arestos fundaram-se na violação do “princípio da dignidade
humana, contido no princípio do Estado de Direito”, e que se disse resultar das
disposições conjugadas do artigo 1.º, da alínea a) do n.º 2 do artigo 59.º e dos
n.ºs 1 e 3 do artigo 63.º da Constituição (isto, apesar de no segundo caso não
estar propriamente em causa o direito a uma prestação de segurança social, mas
antes a penhora de uma parcela do salário).
Para tanto, considerou-se, por um lado, que era insuficiente para satisfazer as
exigências constitucionais a possibilidade excepcional do juiz de, tendo em
conta as circunstâncias do caso concreto, e mais precisamente “a natureza da
dívida exequenda e as necessidades do executado e seu agregado familiar”,
isentar de penhora o executado. E considerou-se, por outro lado, que o salário
mínimo nacional constituía um referente adequado – e dir-se-á mesmo, para
efeitos constitucionais, um referente mínimo necessário – para definir o limiar
abaixo do qual a possibilidade de privação de rendimentos por uma penhora
conduzia a violação do “princípio da dignidade humana, decorrente do princípio
do Estado de direito”.
Importa analisar estes dois aspectos, sobre os quais também incidiram os votos
de vencido apostos aos Acórdãos n.ºs 177/2002 e 96/2004.
7. Os dois aspectos referidos estão, naturalmente, em íntima ligação entre si. A
insuficiência de uma intervenção casuística do juiz, em cada caso concreto, no
sentido de isentar de penhora o executado – quando entendesse que, tendo em
conta as circunstâncias previstas no artigo 824.º, n.º 3, e, também (até por
imposição constitucional), quando considerasse que uma penhora mais ampla
afectaria a dignidade humana – foi sustentada com a qualificação do salário
mínimo como o limiar mínimo para uma existência condigna, logo desde o Acórdão
n.º 318/99. Assim, nas hipóteses em que o executado aufere uma pensão de
montante não superior ao salário mínimo nacional,
“o encurtamento, através da penhora, mesmo de uma parte dessas pensões – parte
essa que em outras circunstâncias seria perfeitamente razoável, como no caso de
pensões de valor bem acima do salário mínimo nacional –, constitui um sacrifício
excessivo e desproporcionado do direito do devedor e pensionista, na medida em
que este vê o seu nível de subsistência básico descer abaixo do mínimo
considerado necessário para uma existência com a dignidade humana que a
Constituição garante.”
E no Acórdão n.º 96/2004 disse-se:
«A qualquer executado – e não apenas àquele que se encontra numa situação de
debilidade, incapacidade laboral ou desprotecção e que, por isso, recebe uma
regalia social – deve ser assegurado o mínimo necessário a uma subsistência
digna. Ora, esse mínimo necessário a uma subsistência digna não pode
manifestamente considerar-se assegurado nos casos em que, não tendo o executado
outros bens penhoráveis, se admite a penhora de uma parcela do seu salário e,
por essa razão, o executado fica privado da disponibilidade de um montante
equivalente ao salário mínimo nacional.
Por isso, não se vê fundamento para, no caso da penhora de salário, se admitir
um juízo de ponderação casuística do juiz, nos termos do n.º 3 do artigo 824º do
Código de Processo Civil, sendo certo que o Tribunal Constitucional admitiu a
exclusão de tal juízo de ponderação no caso da penhora de pensão de aposentação.
Em ambos os casos – porque se trata sempre de assegurar o mínimo necessário a
uma subsistência digna – valem os motivos justificativos da exclusão da
ponderação do juiz, a que se aludiu no mencionado Acórdão n.º 177/02.»
Por outro lado, salientou-se também a insuficiência dos elementos de ponderação
a considerar, nos termos legais, e disse-se que a solução de uma
impenhorabilidade total, e em abstracto, não era desnecessariamente rígida, como
se pode ler no Acórdão n.º 177/2002 (n.º 7):
«Em segundo lugar, é incontestável que o n.º 3 do artigo 824.º confere ao
tribunal o poder de, tomando em conta 'as necessidades do executado e seu
agregado familiar', isentar totalmente de penhora a pensão em causa.
Há, todavia, que não esquecer, desde logo, que estas necessidades não são o
único elemento a ponderar pelo tribunal, que tem que as considerar conjuntamente
com “a natureza da dívida exequenda”, factor que pode impedir que o tribunal
opte pela impenhorabilidade total.
Para além disso, não é exacto que o julgamento de inconstitucionalidade venha
substituir, utilizando um critério “desnecessariamente rígido e inflexível”, uma
mais adequada forma de protecção do executado. Com efeito, e não esquecendo que
o preceito continua a valer para o caso de penhora de pensões de valor mais
elevado, a verdade é que o efeito do julgamento de inconstitucionalidade se
traduz, apenas, em excluir a ponderação do tribunal sobre a admissibilidade da
penhora nos casos em que o montante da pensão abrangida não é superior ao
salário mínimo, por se entender que, em tais casos, a penhora afecta sempre de
forma inaceitável a satisfação das “necessidades do executado e seu agregado
familiar”».
Diversamente, nos votos de vencido apostos aos Acórdãos n.ºs 177/2002 e 96/2004
considerou-se suficiente a possibilidade de ponderação casuística do juiz, no
caso concreto.
Parte da divergência em causa assenta, evidentemente, na diversa apreciação
sobre a natureza do limiar do salário mínimo – isto é, o problema de saber se,
quando o montante da pensão abrangida não é superior ao salário mínimo, ou
quando a penhora não deixa ao executado rendimentos superiores a este, ela
«afecta sempre de forma inaceitável a satisfação das “necessidades do executado
e seu agregado familiar”».
Deixando para já este aspecto (a análise do sentido do limiar do salário mínimo,
em comparação com o chamado “mínimo de sobrevivência”, ou “mínimo de existência”
condigna) de remissa, notar-se-á que não é esta a única razão da divergência
(cf., aliás, o voto de vencido, com fundamento no artigo 824.º, n.º 3, aposto ao
Acórdão n.º 62/2002, isto é, mesmo a propósito da penhora do “rendimento mínimo
garantido”). Antes se pode dizer que um critério que permite uma ponderação no
caso concreto é, naturalmente, menos rígido e mais flexível do que um critério
abstracto, permitindo tomar em conta várias circunstâncias do caso. E isto, sem
que valha responder a tal rigidez e inflexibilidade com o facto de a
possibilidade do artigo 824.º, n.º 3, continuar a valer para rendimentos de
montante mais elevado (nunca esteve em causa a extensão a estes da
impenhorabilidade) ou de o seu único efeito ser “excluir a ponderação do
tribunal sobre a admissibilidade da penhora”, por quando esta privar o executado
de rendimentos superiores ao salário mínimo afectar sempre a dignidade humana. É
que a rigidez e inflexibilidade em causa estão, justamente, na exclusão dessa
ponderação – que, aliás, o legislador actualmente continua a admitir, para os
rendimentos de vencimentos e salários (no já citado artigo 824.º, n.º 5, na sua
redacção actual).
A verdade é que o Código de Processo Civil previa (e continuar a prever hoje)
que o juiz pode isentar totalmente de penhora prestações como as que estavam em
causa, tendo em conta a natureza da dívida exequenda e as necessidades do
executado e seu agregado familiar. E a previsão desta possibilidade tem de ser
considerada, na medida em que permita evitar a ofensa aos princípios
constitucionais invocados, na apreciação da constitucionalidade da norma em
apreço. É improcedente o argumento segundo o qual apenas há que tomar em
consideração, isolada do resto do sistema e das possibilidades de protecção da
dignidade humana conferidas (e impostas) ao juiz, a norma em apreço, em nome da
finalidade do recurso de constitucionalidade de eliminação de normas violadoras
da Constituição. Pois o problema está antes, e justamente em saber se, tendo em
conta a possibilidade de intervenção casuística do juiz, ponderando as
circunstâncias do caso concreto (a natureza da dívida do exequente e as
necessidade do executado) à luz das exigências constitucionais, incluindo a
dignidade humana – intervenção, essa, que não pode ser vista como mera ou vã
esperança, pois que corresponde a um verdadeiro poder-dever (e recorde-se o
artigo 204.º da Constituição) –, a norma em causa é uma norma inconstitucional.
Ora, a remissão para o poder-dever de ponderação em concreto sobre a isenção de
penhora afigura‑se claramente de preferir ao estabelecimento de um limite rígido
e abstracto de impenhorabilidade, desde logo, por permitir tomar em conta
circunstâncias do caso concreto que podem não ser despiciendas.
As dificuldades “na articulação de um controlo que deve ser apenas normativo com
uma valoração de circunstâncias fácticas e peculiares do caso concreto” foram,
aliás, salientadas pelo Ministério Público na alegação apresentada no presente
recurso.
Desde logo, o juízo de inconstitucionalidade da solução legal na medida em que
não prevê, em abstracto, uma impenhorabilidade total, que deixe intocados
rendimentos do trabalho iguais ao salário mínimo nacional, não foi levado tão
longe que não pressupusesse sempre uma consideração casuística da natureza do
débito. Assim, o Acórdão n.º 96/2004 (n.º 8) deixa em aberto a solução de
questões como a da penhora com vista à satisfação de créditos alimentares sobre
o executado, ou de créditos que são consequência directa da satisfação das
necessidades básicas de habitação e alimentação do executado. E num caso em
que estava justamente em causa a prestação de alimentos a filho menor, o Acórdão
n.º 306/2005 julgou inconstitucional, por violação do princípio da dignidade
humana, contido no princípio do Estado de Direito, com referência aos n.ºs 1 e 3
do artigo 63.º da Constituição, a norma da alínea c) do n.º 1 do artigo 189.º da
Organização Tutelar de Menores, aprovada pelo Decreto Lei n.º 314/78, de 27 de
Outubro, interpretada no sentido de permitir a dedução, para satisfação de
prestação alimentar a filho menor, de uma parcela da pensão social de invalidez
do progenitor que prive este do rendimento necessário para satisfazer as suas
necessidades essenciais – e considerou que o referencial de isenção de
penhorabilidade não devia ser o critério do “salário mínimo nacional” mas o
critério do “rendimento social de inserção”
E entre as ressalvas do juízo de inconstitucionalidade que obrigam a uma
ponderação casuística refere-se igualmente a da possível existência de outros
bens penhoráveis. No caso, não resulta, porém (pelo menos explicitamente) da
decisão recorrida, que o executado não seja titular de outros bens penhoráveis
suficientes para satisfazer a dívida exequenda (o que é diverso de saber, por
exemplo para efeitos de apoio judiciário, se a única fonte de rendimento dos
executados consiste nos respectivos salários).
Seja como for – para além de (como nota o Ministério Público), na própria lógica
dos Acórdãos n.ºs 177/2002 e 96/2004, a solução no caso de esta última ressalva
(inexistência de bens penhoráveis) se não verificar dever ser a penhora desses
bens, e não a admissibilidade da privação do executado de rendimentos iguais ao
salário mínimo – tal condicionamento a ressalvas carecidas de apreciação
casuística apenas pode apontar no sentido de que a solução mais adequada será
aquela que permita a consideração, justamente, dos casos concretos – e não
apenas deste concreto caso presente (pelo que o facto de se estar perante um
recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, e de neste se poder
apurar que não se verificam circunstâncias concretas que obstassem à
impenhorabilidade não contradiz o argumento, o qual se situa no plano da
apreciação da adequação de uma resposta à questão de constitucionalidade que é
aparentemente geral, e rígida, mas que, a final, se vê obrigada a abrir algumas
ressalvas casuísticas).
E como se disse numa das declarações de voto apostas ao Acórdão n.º 177/2002, à
«vantagem da ponderação, no caso concreto, do critério do n.º 3 do artigo 824º
do Código de Processo Civil acresce, aliás, que as situações de
impenhorabilidade (por exemplo, de dois terços dos vencimentos ou das prestações
em causa) devem já ser consideradas em geral absolutamente excepcionais, quer
por poderem originar um “'amolecimento ósseo” das obrigações civis, quer por
serem possíveis fontes de flagrante injustiça relativa (basta, para o concluir,
ter presente que, perante um critério abstracto de impenhorabilidade, uma
eventualmente idêntica situação financeira do credor não pode ser considerada),
e que ainda mais excepcionais terão de ser os casos em que a garantia da
dignidade humana, como valor no qual se funda a República Portuguesa, inscrito
logo no “pórtico” da Lei Fundamental, impõe a consagração de uma
impenhorabilidade».
É certo que, como também salienta, o Ex.m.º Procurador-Geral Adjunto em funções
neste Tribunal, “é inquestionável a prevalência do princípio da dignidade humana
sobre o direito do credor”, quando aquele imponha uma solução que conflitue com
este.
Todavia, não se vê que a Constituição obste a que possam ser as instâncias a
realizar um juízo casuístico de ponderação e adequação das posições e
interesses de exequente e executado, devendo naturalmente fazê-lo em
conformidade com as exigências constitucionais, e, em particular, com o
princípio da dignidade da pessoa humana, em que se baseia a República Portuguesa
(artigo 1.º da Constituição). A Constituição não impõe, pois, um regime de
fixação, rigidamente e em abstracto, da impenhorabilidade de rendimentos
laborais do executado, na medida em que este fique privado do montante
correspondente ao salário mínimo nacional, permitindo antes que seja cometida ao
juiz a decisão sobre a penhorabilidade concreta, com uma de todas as
circunstâncias do caso, incluindo a situação económica global do executado e a
natureza, montante e origem da dívida exequenda.
Como também se diz na declaração de voto aposta ao Acórdão n.º 177/2002 que se
citou,
«[s]ó não seria assim se pudesse entender-se que a penhora de qualquer parte de
prestações inferiores ao salário mínimo (como se diz no acórdão) “afecta sempre
de forma inaceitável a satisfação das ‘necessidades do executado e seu agregado
familiar’” – ou seja, que põe sempre em causa a garantia de um “mínimo de
existência”, não devendo, por isso, nunca ser ponderada no caso concreto com
quaisquer outros elementos.”
Esta questão remete já para o segundo aspecto referido no final do ponto
anterior: o de saber se o salário mínimo nacional se impõe constitucionalmente
como referente para definir o limiar abaixo do qual a possibilidade de privação
de rendimentos por uma penhora viola o princípio da dignidade da pessoa humana.
8. Admite-se que existe um limiar de rendimentos abaixo do qual a penhora do
executado (que não disponha de outros bens, bem entendido) que os atinja
afectará sempre a dignidade humana do executado. É o que se poderá ainda
entender para as prestações – de que não cumpre agora tratar (cfr. o citado
Acórdão n.º 62/02) – recebidas a título de “rendimento mínimo garantido”, de
“rendimento social de inserção”, ou, mais claramente, para o chamado “mínimo de
existência” ou “mínimo de sobrevivência condigna”. Considerando, por exemplo, os
pressupostos e forma de fixação do “rendimento mínimo garantido” –
designadamente, a indexação ao montante legalmente fixado para a pensão social
do regime não contributivo e a variação da prestação segundo a composição do
agregado familiar dos titulares do direito à prestação –, pode dizer-se que só a
salvaguarda da totalidade dessas prestações poderá proteger o “mínimo de
existência” do devedor e seu agregado, cuja garantia decorre do valor da
dignidade humana.
Importa, porém, distinguir estas prestações do salário mínimo – ou, actualmente,
“retribuição mínima mensal garantida” (artigo 266.º do Código do Trabalho),
actualizada para 2006 pelo Decreto‑Lei n.º 238/2005, de 30 de Dezembro. Com
efeito, a afirmação de uma impenhorabilidade total de prestações recebidas “a
título de regalia social ou de pensão, cujo valor global não seja superior ao
salário mínimo”, em nome do princípio da dignidade humana só pode fundar-se numa
aproximação entre o critério do mínimo necessário para uma sobrevivência
condigna do devedor e seu agregado – esse sim, imposto pela dignidade humana – e
o salário mínimo. Estas prestações não devem, porém, ser confundidas – sendo
certo que, quando coincidirem no seu montante, já a aplicação do primeiro
conduzirá a afirmar a impenhorabilidade.
O salário mínimo representa a remuneração mínima garantida pela prestação
laboral, imposta por um princípio de justiça comutativa e pela própria ideia de
dignidade do trabalho – ou da pessoa enquanto trabalhador –, e determinado
também por outras razões sociais e económicas.
É, na verdade, o que resultava da sua forma de fixação nos termos do Decreto-Lei
n.º 69-A/87, de 9 de Fevereiro – fixação, essa, que podia ser mensal ou horária
(para trabalho a tempo parcial ou com pagamento à quinzena, semana ou dia) e
comportava diversas modulações (por exemplo, reduções nos serviços doméstico e
nas actividades de natureza artesanal, relacionadas com o trabalhador, relativas
à dimensão da entidade patronal e ao aumento de encargos para esta, e adaptações
às Regiões Autónomas).
Mas é também o que resulta, actualmente, do Código do Trabalho – nos termos do
qual (artigo 266.º, n.º 2) na “definição dos valores da retribuição mínima
mensal garantida são ponderados, entre outros factores, as necessidades dos
trabalhadores, o aumento de custo de vida e a evolução da produtividade” – e da
Lei n.º 35/2004, de 29 de Julho, que regulamentou o Código do Trabalho. Nos
termos dos artigos 207.º e segs. desta última, incluem-se, por exemplo, na
“retribuição mínima mensal garantida” (RMMG) o valor de prestações em espécie,
calculado segundo os preços correntes na região, é objecto de reduções
relacionadas com o trabalhador (para praticantes, aprendizes e estagiários que
se encontrem numa situação caracterizável como de formação certificada, ou para
trabalhadores com capacidade de trabalho reduzida), e a sua actualização em
vista à sua “adequação aos critérios da política de rendimentos e preços”.
E é, ainda, o que resulta da própria Constituição da República. Segundo o seu
artigo 55.º, n.º 2, alínea a), incumbe ao Estado assegurar as condições de
trabalho, retribuição e repouso a que os trabalhadores têm direito,
estabelecendo e actualizando o salário mínimo nacional, “tendo em conta, entre
outros factores”, não só as “necessidades dos trabalhadores” e “o aumento do
custo de vida”, como “o nível de desenvolvimento das forças produtivas, as
exigências da estabilidade económica e financeira e a acumulação para o
desenvolvimento”.
Assim, por exemplo, no Decreto-Lei n.º 325/2001, de 17 de Dezembro, referiu-se
uma “especial atenção relativamente aos valores de actualização em causa,
nomeadamente recorrendo a critérios de racionalidade económica e social que, não
contrariando os níveis desejáveis de crescimento do emprego, permitam, em
simultâneo, uma elevação sustentada do poder de compra dos trabalhadores e da
competitividade das empresas nacionais” (itálicos aditados). No citado
Decreto‑Lei n.º 238/2005, de 30 de Dezembro (que por último actualizou os seus
valores), reconhece‑se, é certo que a RMMG “beneficia o conjunto de
trabalhadores que auferem retribuições mais baixas, visando a melhoria das suas
condições de vida e assegurando-lhes, nos termos constitucionais, o direito a
uma existência condigna”, mas logo se diz que se ponderou, na sua fixação,
factores como “a evolução da produtividade e a competitividade das empresas e da
economia, bem como a sustentabilidade das finanças públicas”.
Esses critérios constitucionais e legais explícitos contrariam a qualificação do
salário mínimo como garantia indispensável de um “mínimo de subsistência”,
implicado pelo valor da dignidade humana, cumprindo notar, aliás, que o que está
aqui em causa não é a existência de outras referências possíveis para definir o
limiar em causa, mas a inadequação do salário mínimo para tanto. E diga-se que,
por outro lado, tal inadequação se não prende com a possibilidade, ou não, de
afirmar qualquer presunção, relativa ou absoluta, de debilidade económica ou
social do trabalhador que aufere apenas o salário mínimo – muito menos um juízo
comparativo sobre tal debilidade económica ou social em relação aos titulares de
pensões sociais.
O salário mínimo é uma prestação retributiva do trabalho equivalente ao mínimo
que a ideia de dignidade e valor do trabalho (e não da pessoa humana) implicam –
ou, se se quiser, repete-se, da pessoa enquanto trabalhador –, e que outras
razões sociais e económicas condicionam, mas não é o critério adequado, e muito
menos constitucionalmente imposto, para uma abstracta impenhorabilidade total,
fundada na protecção da dignidade da pessoa humana. Tal função não poderia
explicar, aliás, as reduções do salário mínimo para certas situações laborais,
já referidas, ou as possibilidades de modulações (como a existência, até 1990,
de um salário mínimo agrícola e doméstico, ou a presença deste último, ao lado
do geral, até 2003). Sendo certo que é mesmo desejável que o montante do salário
mínimo se afaste, cada vez mais, do valor do “mínimo de sobrevivência condigna”,
este mínimo pode, porém, por outro lado, ser mesmo ser superior ao salário
mínimo – e muitas vezes sê‑lo-á sem dúvida (por exemplo, em agregados familiares
numerosos).
Pode, pois, dizer-se que a RMMG não é o valor referencial adequado para a
imposição de uma impenhorabilidade em abstracto, em nome do princípio da
dignidade da pessoa humana. Antes, consoante as circunstâncias, pode ser
insuficiente, ou pode, pelo contrário, ser excessivo. De acordo com as
exigências constitucionais, e quando o valor dos rendimentos do executado for
superior ao “mínimo de existência”, é aceitável, pois, a possibilidade, que
estava prevista no artigo 824.º, de, sem uma impenhorabilidade absoluta do valor
correspondente ao salário mínimo, o juiz fixar o montante penhorável entre um
terço e um sexto, ou isentar mesmo totalmente de penhora, considerando a
natureza da dívida exequenda e as necessidades do executado e seu agregado
familiar (possibilidade, esta, de ponderação que, salvo para pensões ou regalias
sociais se encontra hoje também prevista).
9. As considerações que antecedem tornam desnecessária a apreciação da correcção
da transposição da fundamentação carreada ao Acórdão n.º 177/2002 (aceite no
Acórdão n.º 96/2004) para os rendimentos laborais do executado – vencimentos e
salários – como os que estão agora em questão.
Apenas cumpre salientar que, como se disse, a diferenciação entre estes
rendimentos e outros, como os rendimentos provenientes de prestações sociais,
para efeitos de penhorabilidade, existiu entre nós, e hoje existe novamente. Tal
compreende-se, na óptica das considerações expendidas no ponto anterior, à luz
da diferente função e natureza das prestações em causa, e designadamente da sua
natureza retributiva, ligada ao valor da prestação laboral, ou não (e não
necessariamente – repete‑se – de qualquer “presunção de debilidade, incapacidade
laboral ou desprotecção do respectivo titular”).
Pelo que, evidentemente, mesmo quem tenha aceite a exigência constitucional de
uma impenhorabilidade de rendimentos provenientes de prestações sociais como
pensões, na medida em que não deixem ao executado um montante igual ao do
salário mínimo nacional não é necessariamente levado a estender tal juízo de
inconstitucionalidade aos rendimentos laborais. E, acompanhando a diferença de
natureza destes rendimentos, será, mesmo, levado a adoptar uma conclusão
contrária.»
O Ministério Público, ora recorrente, defendeu a admissão do recurso para o
plenário analisando a “lógica decisória do douto acórdão proferido nestes
autos”, para concluir que a circunstância consistente na não titularidade de
outros bens penhoráveis, não apurada pelas instâncias, se configurou para o
Acórdão n.º 657/2006 como irrelevante para a formulação do juízo sobre a questão
de constitucionalidade.
Efectivamente, no ponto 7 do Acórdão n.º 657/2006, depois de se dizer que entre
as ressalvas que obrigam a uma ponderação casuística está igualmente “a da
possível existência de outros bens penhoráveis”, e que no caso, “não resulta,
porém (pelo menos explicitamente) da decisão recorrida, que o executado não seja
titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida
exequenda (o que é diverso de saber, por exemplo para efeitos de apoio
judiciário, se a única fonte de rendimento dos executados consiste nos
respectivos salários)”, lê-se que, “seja como for”, esse “condicionamento a
ressalvas carecidas de apreciação casuística apenas pode apontar no sentido de
que a solução mais adequada será aquela que permita a consideração, justamente,
dos casos concretos – e não apenas deste concreto caso presente”. Não se
atribuiu, pois, na fundamentação do Acórdão recorrido, ao concreto apuramento da
falta (ou não) de titularidade de outros bens penhoráveis, suficientes para
satisfazer a dívida exequenda, o peso de ratio decidendi, no sentido de por essa
razão se impor logo um juízo de não constitucionalidade, mas antes o peso de um
argumento que também ele depõe no sentido de se permitir “a consideração,
justamente, dos casos concretos”, com uma ressalva à penhorabilidade que
permitisse tal apreciação pelo juiz.
De todo o modo, não pode negar-se que se trata de um argumento utilizado na
fundamentação do Acórdão recorrido, e – o que se reputa decisivo – que, não
vindo o ponto apurado na decisão então recorrida, no julgamento pelo qual se
concluiu o Acórdão n.º 657/2006 se não referiu a circunstância de o executado
não ser titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida
exequenda, diversamente do que aconteceu com o juízo de inconstitucionalidade
constante do Acórdão n.º 96/2004. Em ambos esteve em causa uma dimensão
interpretativa do artigo 824.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Código de Processo
Civil, mas neste último, “na parte em que permite a penhora de uma parcela do
salário do executado que não é titular de outros bens penhoráveis suficientes
para satisfazer a dívida exequenda, e na medida em que se priva o executado de
dispor de rendimento mensal correspondente ao salário mínimo nacional”, e no
primeiro na interpretação “de que permite a penhora de qualquer percentagem no
salário de executados quando tal salário é inferior ao salário mínimo nacional
ou quando, sendo superior, o remanescente disponível para os mesmos, após a
penhora, fique aquém do salário mínimo nacional”.
Não se vê, pois, que seja possível ultrapassar esta diferença, não meramente
formal, para se ter por verificado o pressuposto de julgamento da “questão da
inconstitucionalidade (…) em sentido divergente do anteriormente adoptado quanto
à mesma norma por qualquer das suas secções”, previsto para o recurso para o
plenário no artigo 79.º-D, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional.
Propõe-se, por isso, que se não tome conhecimento do recurso de
constitucionalidade, por falta de identidade entre as normas (“a mesma norma”)
cuja constitucionalidade foi apreciada no Acórdão recorrido e no Acórdão n.º
96/2004.
III. Decisão
Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento
do presente recurso para o plenário.
Lisboa, 14 de Fevereiro de 2007
Paulo Mota Pinto
Maria Helena Brito
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Vítor Gomes
Rui Manuel Moura Ramos
Benjamim Rodrigues
Bravo Serra
Gil Galvão
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Mário José de Araújo Torres (vencido, nos termos da
declaração de voto junta)
Maria Fernanda Palma (vencida pelo essencial
das razões de declaração de voto do Conselheiro Mário Torres)
Artur Maurício
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido por entender que, apesar da
diferença de formulação das partes decisórias dos Acórdãos n.ºs 657/2006 e
96/2004, existe entre os dois Acórdãos oposição substancial relevante nos juízos
emitidos sobre a constitucionalidade da mesma dimensão normativa.
No voto de vencido que apus ao Acórdão n.ºs
657/2006 expus as razões pelas quais entendia que dos autos resultava, com
segurança, não terem os executados outros bens penhoráveis além do salário do
executado marido. Não o entendeu assim a maioria da Secção, pelo que essa
situação não foi referida na fórmula decisória.
É, no entanto, patente que para o juízo de não
inconstitucionalidade maioritariamente emitido era irrelevante a existência, ou
não, de outros bens penhoráveis. Na verdade, no n.º 7, após referir que não
resultava da decisão recorrida que o executado não fosse titular de outros bens
penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda, acrescentou‑se:
“Seja como for – para além de (como nota o Ministério Público),
na própria lógica dos Acórdãos n.ºs 177/2002 e 96/2004, a solução no caso de
esta última ressalva (inexistência de bens penhoráveis) se não verificar dever
ser a penhora desses bens, e não a admissibilidade da privação do executado de
rendimentos iguais ao salário mínimo – tal condicionamento a ressalvas
carecidas de apreciação casuística apenas pode apontar no sentido de que a
solução mais adequada será aquela que permita a consideração, justamente, dos
casos concretos (…).” (sublinhado acrescentado).
Isto é: o Acórdão n.º 96/2004 julgou
inconstitucional a norma que resulta da conjugação do disposto na alínea a) do
n.º 1 e no n.º 2 do artigo 824.º do Código de Processo Civil (na redacção
emergente da reforma de 1995‑1996), na parte em que permite a penhora de uma
parcela do salário do executado que não é titular de outros bens penhoráveis
suficientes para satisfazer a dívida exequenda, e na medida em que priva o
executado da disponibilidade de rendimento mensal correspondente ao salário
mínimo nacional; enquanto o Acórdão n.º 657/2006, ora recorrido, não julgou
inconstitucional a mesma norma, quer o executado fosse, ou não fosse, titular de
outros bens penhoráveis.
Na medida em que este último juízo de não
inconstitucionalidade admite abranger situações em que o executado não dispõe
de outros bens penhoráveis, existe – a meu ver – contradição relevante com o
decidido no Acórdão n.º 96/2004, pelo que o presente recurso para o Plenário
devia ter sido admitido e conhecido.
E, conhecendo, votaria no sentido da revogação
do Acórdão n.º 657/2006 e da emissão de um juízo de inconstitucionalidade da
norma em causa, pelas razões desenvolvidas na declaração de voto de vencido que
apus a esse Acórdão.
Mário José de Araújo Torres