Imprimir acórdão
Processo n.º 646/06
1ª Secção
Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
Acordam em Conferência no Tribunal Constitucional
1.1. A. recorre ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei
28/82, de 15 de Novembro (LTC), do acórdão proferido na Relação de Lisboa em 11
de Maio de 2006 que rejeitou o seu pedido de constituição como assistente.
Sustentou o seguinte no requerimento de interposição de recurso:
“1. Foi a constituição de assistente requerida pela Recorrente indeferida, em
virtude de, na perspectiva do Juiz de Instrução do Tribunal de Loures, atenta a
sua qualidade de tia de B., não ter legitimidade para o efeito, nos termos da
lei processual penal que rege a situação em apreço, concretamente o artigo 68.°,
n.º 1, alínea c) do Código de Processo Penal.
2. Sucede que a intervenção da Requerente, ora Recorrente, naquele procedimento,
não foi requerida na sua qualidade de tia, mas antes na qualidade de herdeira e
representante da ascendente da Ofendida, C., sobreviva à morta desta, mas
falecida no decurso do Inquérito, ao abrigo dos artigos 2039° e 2042.°, ambos do
Código Civil.
3. Em sede de Motivações de Recurso dirigidas ao Digníssimo Tribunal da Relação
de Lisboa, a Recorrente havia suscitado que a interpretação restrita do artigo
68°, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Penal, operada pelo Juiz de
Instrução do Tribunal de Loures, e, agora, confirmada pelo Digníssimo Tribunal
da Relação de Lisboa, punha em causa o disposto nos artigos 20.°, n.º 1 e 32°,
n.º 7 da Constituição da República Portuguesa.
4. Termos em que, é o presente recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º
1 do artigo 70. ° da LOTC, tendo a Recorrente suscitado a questão da
inconstitucionalidade da interpretação do artigo 68.°, n.º 1, alínea c) do
Código de Processo Penal efectuada por este Venerando Tribunal, por violação dos
artigos 20°, n.º 1 e 32.°, n.º 7 da Constituição da República Portuguesa, nas
Motivações de Recurso referidas no ponto anterior. Ou seja, e cumprindo as
exigências do Tribunal Constitucional, é inconstitucional a norma do n.º 1
alínea c) do art. 68° do CPP (por violação dos artigos 20°, n.º 1 e 32. °, n.º 7
da Constituição da República Portuguesa) interpretada no sentido de que só uma
das pessoas referidas na citada alínea se pode constituir assistente, não sendo
lícito exercer tal direito por via da representação.
5. Com efeito, como doutamente julgou o Tribunal Constitucional, “O recurso de
constitucionalidade, embora reportado necessariamente a normas, não exclui a
apreciação — e portanto a suscitação — referida à constitucionalidade da
interpretação ou sentido com que determinada norma foi tomada no caso concreto e
aplicada na decisão recorrida” (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º
644/97, de 29.10.1997, in B.M.J. n. °470, pág. 140).”
1.2. O recurso foi, nos termos do artigo 78-A da LTC, julgado manifestamente
improcedente por decisão sumaria proferida pelo relator com os seguintes
fundamentos:
A pretensão da recorrente é manifestamente improcedente.
Com efeito, de nenhum preceito da Constituição resulta a obrigação de o
legislador ordinário admitir como assistente em processo penal, no caso de o
ofendido morrer sem ter renunciado à queixa, um tio do ofendido. A invocada
doutrina dos artigos 2039º e 2042º do Código Civil – que se reportam a uma
matéria que nada tem a ver com este problema – é obviamente imprestável para
determinar o alcance da estatuição constitucional quanto ao assunto.
No presente caso, o artigo 20º n.º 1 da Constituição há-de ser interpretado de
acordo com o que dispõe o artigo 32º n.º 7 do mesmo diploma, por ser o preceito
que se refere especificamente ao direito do ofendido de intervir no processo.
Ora, esta norma não determina, nem de alguma forma modela, o conteúdo do direito
do ofendido, limitando-se a remeter para a lei ordinária a sua concretização.
Não é, portanto, possível retirar da Constituição qualquer determinação jurídica
que conflitue com a norma impugnada.
1.3. Inconformada, a recorrente reclama para a conferência através do
requerimento de fls. 313/337, no qual, em suma, sustenta que a norma impugnada
ofende os artigos 13º, 20º n.º 2, 32º n.º 7 e 67º n.º 1 da Constituição, pelo
que o recurso deveria prosseguir para alegações.
1.4. O representante do ministério Público neste Tribunal responde à
reclamação da seguinte forma:
1º
Apesar do esforço argumentativo desenvolvido pela reclamante, entendemos que a
decisão reclamada se deverá manter, por a questão de constitucionalidade
delineada se poder efectivamente configurar como manifestamente improcedente.
2º
Na verdade a norma questionada atribui legitimidade para a constituição de
assistente, no caso de morte do ofendido, apenas a determinados familiares
deste:
- ao cônjuge não separado de pessoas e bens;
- aos descendentes e adoptados;
- aos ascendentes e adoptantes;
- subsidiariamente, na falta deles, aos irmãos e seus descendentes e à pessoa
que com o ofendido falecido vivesse em situação de união de facto duradoura.
3º
Violará algum dos princípios constitucionais elencados pela reclamante a
circunstância de a lei processual penal não outorgar legitimidade para a
constituição de assistente a outros colaterais até ao quarto grau do ofendido
falecido, permitindo aos tios — mesmo que existam os familiares tipificados na
norma penal questionada — exercer o direito de se constituírem assistentes?
4º
A resposta não poderá deixar de ser negativa, já que tal solução normativa:
- não viola manifestamente o principio da igualdade já que assenta numa
“discriminação” fundada na própria “hierarquia” das classes sucessórias;
- não atenta contra o conceito constitucional da “família”, já que permite
amplamente aos familiares, cujo vínculo assenta na “família-estirpe”, o
exercício do direito à constituição de assistente (sendo evidente a
diferenciação entre o caso dos autos e as situações abordadas nos acórdãos do
Tribunal Constitucional, citados pela reclamante);
- não viola o direito de acesso à justiça, já que não pode obviamente inferir-se
deste – lido em conjugação com o nº 7 do artigo 32º – que todos os parentes,
potencialmente sucessíveis do ofendido falecido, tenham obrigatoriamente que
dispor de legitimação para se constituírem assistentes, independentemente da
“proximidade” de tal parentesco.
5º
Ora, neste circunstancialismo, constituiria “acto inútil” o seguimento do
presente recurso, com a produção de alegações, cuja argumentação estaria
manifestamente votada no insucesso.
2. É submetida à apreciação do Tribunal Constitucional a norma da
alínea c) do n.º 1 do artigo 68º do Código de Processo Penal, interpretada no
sentido de que só uma das pessoas referidas na citada alínea se pode constituir
assistente, não sendo lícito exercer tal direito por via da representação
prevista nos artigos 2139º e 2142º do Código Civil.
O preceito prevê que no caso de o ofendido morrer sem ter renunciado à queixa,
podem constituir-se assistentes no processo penal o cônjuge sobrevivo não
separado judicialmente de pessoa e bens, os descendentes e adoptados,
ascendentes e adoptantes, ou, na falta destes, irmãos e seus descendentes e a
pessoa com quem o ofendido vivesse em condições análogas às dos cônjuges.
A recorrente, tia da ofendida falecida em consequência da ofensa, pretende
constituir-se assistente, invocando, em primeira linha, ser 'representante' da
avó, entretanto também falecida. Invoca a favor desta tese, o disposto nos
artigos 2139º e 2142º do Código Civil, regras que disciplinam a sucessão do
cônjuge, descendentes e ascendentes. Mas como é óbvio, esta matéria – qualquer
que seja a conclusão que possa extrair-se destas normas – é totalmente
inadequada para sustentar a tese que pretenda descortinar um vício da
inconstitucionalidade da norma.
Com a revisão Constitucional de 1997 o n.º 7 do artigo 32º passou a dispor que
“o ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei”. Como se
afirmou no Acórdão n.º 205/2001, publicado no DR, II série, de 29 de Junho de
2001: (…) este preceito, limita-se a consagrar de forma ampla e genérica o
direito do ofendido de intervir no processo penal, atribuindo à lei ordinária a
acção modeladora desse direito, que passa necessariamente pela legitimidade de o
ofendido se constituir assistente no processo, e pela definição do seu estatuto
processual: delimitação dos direitos, deveres e ónus processuais inerentes”.
De forma semelhante pronunciou-se o referido Acórdão n.º 690/98:
“14. Reconhecido assim o direito do ofendido a constituir-se assistente como
incluído na esfera da garantia da via judiciária do artigo 20º, nº 1, da
Constituição, necessariamente se há-de concluir pela existência de tal garantia
para os que hão-de suceder ao ofendido nas respectivas relações pessoais que
persistam após a sua morte, sob pena de a vítima, enquanto tal, não ser
substituída, em tais casos, no processo penal.
Já a determinação de quais os sucessores, em concreto, que poderão exercer esse
direito, é matéria que corresponde a uma opção do legislador, dentro dos
parâmetros constitucionalmente definidos. Com efeito, diversas pessoas podem
surgir com tal qualidade, no âmbito das relações familiares do falecido,
designadamente os ascendentes, o cônjuge sobrevivo ou os descendentes.
Nesta perspectiva, enveredou o legislador claramente, no artigo 68º, nº 1,
alínea c), do CPP de entre as perspectivas possíveis, por atribuir relevância
prevalecente à família nuclear, ou seja, ao cônjuge e filhos, seguramente por
entender serem estes os que têm uma relação mais íntima com o ofendido, e só
atribuiu relevância secundária a outras pessoas como os ascendentes e os irmãos
que poderiam preencher um conceito mais alargado de família, bem como às
situações de união de facto.”
Em consonância com esta doutrina, pode afirmar-se que, tal como diz o Ministério
Público, a norma impugnada não viola o principio da igualdade, já que assenta
numa discriminação fundada na própria hierarquia das classes sucessórias; não
atenta contra o conceito constitucional da família, pois permite aos familiares,
cujo vínculo assenta na família-estirpe, o exercício do direito à constituição
de assistente; não viola o direito de acesso à justiça, já que os interesses em
causa não são pessoais daquele que pretende constituir-se assistente, mas do
ofendido, e não pode obviamente inferir-se desta garantia constitucional, tendo
em consideração o disposto no nº 7 do artigo 32º da Constituição, que todos os
parentes, potencialmente sucessíveis do ofendido falecido, tenham
obrigatoriamente que dispor de legitimação para se constituírem assistentes,
independentemente da “proximidade” de tal parentesco. Não se vislumbra, assim,
que a aludida interpretação da norma da alínea c) do n.º 1 do artigo 68º do
Código de Processo Penal no sentido de que só uma das pessoas referidas na
citada alínea se pode constituir assistente, não sendo lícito exercer tal
direito por via da representação prevista nos artigos 2139º e 2142º do Código
Civil constitua uma restrição injustificada, arbitrária ou desproporcionada ao
exercício de tal direito.
3. Pelo exposto, confirmando a decisão sumária em reclamação,
decide-se julgar o recurso manifestamente improcedente, assim indeferindo a
reclamação em análise.
Custas pela recorrente, fixando a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 27 de Fevereiro de 2007
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria helena Brito
Rui Manuel Moura Ramos