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Processo n.º 65/02
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A., LDA., instaurou contra o ESTADO PORTUGUÊS uma acção “para
efectivação de responsabilidade civil extracontratual” (petição inicial) por
actos ilícitos de gestão pública, pedindo a sua condenação no pagamento da
quantia de Esc. 257.313.983$00, acrescida de juros à taxa legal.
Em síntese, a autora alegou que, tendo iniciado as obras destinadas à
instalação de um estabelecimento de cultura de rodovalho, devidamente aprovado e
licenciado, foram as mesmas suspensas por assim ter sido determinado por
despacho do Presidente da Comissão de Coordenação da Região Norte, de 28 de
Outubro de 1991, despacho esse que veio a ser anulado, por sofrer do vício de
falta de fundamentação de facto, pelo acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
de 9 de Maio de 1995 (cfr. fls. 43), acórdão que considerou ficar
“consequentemente prejudicada a revisão por este Supremo Tribunal da apreciação
que a (...) sentença (...) fez dos restantes vícios que lhe foram imputados”
(violação de lei, erro sobre os pressupostos de facto e errada fundamentação de
direito).
Assim, a autora pretende ser indemnizada pelos prejuízos que sofreu em
virtude da paralisação dos trabalhos, decorrentes, conforme alega, do despacho
anulado, e que nunca puderam ser retomados.
Por sentença do Tribunal Administrativo do Círculo do Porto, de 29 de Maio de
1998, de fls. 982, a acção foi julgada improcedente.
Inconformada, a autora recorreu para o Supremo Tribunal Administrativo. Para o
que agora especialmente releva, nas alegações de recurso (nesta parte,
rectificadas a fl. 1029, cfr. despacho de fls. 1065), a recorrente sustentou que
'Na interpretação que o Tribunal faz, o artigo 2º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º
48.051, de 21.11.67 seria inconstitucional por violação material do disposto nos
artigos 22º e 271º da Constituição' (cfr. conclusão 34ª, a fls. 1016-1017).
Por acórdão de 13 de Fevereiro de 2001, de fls. 1031, o Supremo Tribunal
confirmou a sentença recorrida, sem todavia se pronunciar sobre a questão de
constitucionalidade colocada pela recorrente.
Para o efeito, deu como assente a seguinte matéria de facto:
'Na douta sentença recorrida foram dados como assentes os seguintes factos:
1-A A. pretendeu instalar um estabelecimento de cultura de rodovalho, localizado
no lugar de Cojo, freguesia de Vila Chã, concelho de Vila do Conde;
2 - Elaborou, para tanto, um projecto que teve avaliação e parecer favorável dos
seguintes organismos: Comissão de Coordenação da Região Norte, Câmara Municipal
de Vila do Conde, Serviço Nacional de Parques, Reservas e Conservação da
Natureza; Junta de Freguesia de Vila Chã; Capitania do Porto de Vila do Conde;
Direcção-Geral dos Cuidados de
Saúde Primários; Instituto Nacional de Investigação das Pescas;
3 - O referido projecto foi aprovado e licenciado pela Direcção-Geral de Portos
e pela Direcção-Geral de Pescas nos termos constantes de fls. 16 a 19 do
processo;
4 - Em 7/X/1991, foram iniciadas as obras de construção, após comunicação feita
às diversas entidades, com um mês de antecedência;
5 - Em 28/X/1991, por despacho proferido o Presidente da Comissão de Coordenação
da Região Norte solicitou ao Director-Geral de Portos que fosse mandado proceder
ao embargo imediato da obra em execução pela autora de construção de um
estabelecimento de cultura de rodovalho, localizado no lugar de Cojo, freguesia
de Vila Chã, concelho de Vila do Conde;
6 - Foi dado como reproduzido o documento de fls. 32 dos autos;
7 - A obra foi embargada conforme consta do documento junto a fls. 40 dos autos;
8 - A autora recorreu contenciosamente dos despachos do Presidente da Comissão
de Coordenação da Região e do Director-Geral dos Portos, de 8/X/1991 e
29/X/1991, vindo o Supremo Tribunal Administrativo a anular o despacho de
28/X/1991 nos termos constantes do respectivo acórdão junto a fls. 43 a 50 e
onde, nomeadamente, se pode ler: “…contrariamente ao decidido na sentença, o
despacho de 28/10/91 padece de vício de forma, por falta de fundamentação de
facto, o que leva à sua anulação, ficando consequentemente prejudicada a revisão
por este Supremo Tribunal da apreciação que a mesma sentença igualmente faz dos
restantes vícios que lhe foram ainda imputados. Procedem, pois, nesta medida, as
alegações da recorrente. Termos em que, concedendo-se provimento ao recurso
jurisdicional, se revoga a sentença impugnada, decretando-se em sua substituição
a anulação do despacho de 28/X/91, pelo apontado vício de forma. Sem custas”;
9 - O embargo referido em 7 determinou a paralisação de todo o empreendimento;
10 - A autora pagou ao empreiteiro a quem foi adjudicada a obra de construção
civil das instalações do projecto (Sociedade de Construções Gomes do Monte,
Lda., com sede na Rua Gomes de Amorim, 585, Apart. 18, 4.991 Póvoa de Varzim) o
montante de 10.000.000$00;
11 - O referido valor destinou-se a pagar a instalação do estaleiro de obras e
vedação da área de construção destas e materiais de construção;
12 - Tais instalações e materiais, dado o decorrer do tempo, ficaram
inutilizáveis umas e extraviaram-se outras;
13 - O ano de arranque da exploração seria o de 1993, se não ocorresse o
embargo;
14 - Os resultados líquidos previsíveis seriam: 1993 - 7.119.000$00; l994 –
111.511.000$00; 1995 – 97.763.068$00
Tendo por base estes factos, o tribunal “a quo” absolveu o réu Estado do pedido
por a autora não ter conseguido provar os requisitos da ilicitude e do dano'.
Recorde-se que, no julgamento da matéria de facto (a fls. 968 e 969),
haviam sido dado como não provados os quesitos 2º e 8º do questionário, com o
seguinte teor:
'2º. Com a elaboração de estudos de biotecnologia e de viabilidade
económica-financeira do projecto dispendeu a autora PTE 12.000.000$00?
8º. A autora destruiu a duna nos termos referidos a fls. 215 e 218 dos
autos, documentos que aqui dou por integralmente reproduzidos, sendo essa a
razão de se ter determinado o embargo referido na alínea g) da especificação?
[Trata-se, respectivamente, de um 'Memorando da visita efectuada à A.(…)
realizada pela Comissão de Coordenação da região Norte em 25 de Fevereiro de
1992, e do embargo em causa nestes autos, documentado a fls. 40].
Quanto ao direito aplicável, o Supremo Tribunal Administrativo julgou da
seguinte forma:
«A recorrente funda o seu pedido de indemnização no despacho do Sr.
Presidente da Comissão de Coordenação Regional Norte de 28/10/91 que ordenou o
embargo da obra a que procedia para construção de um estabelecimento de cultura
de rodovalho localizado no lugar de Cojo, Facho, Freguesia de Chã, concelho de
Vila do Conde, despacho aquele que fora anulado por acórdão do STA de 9/5/1995
já transitado em julgado.
Segundo a recorrente, os prejuízos adviriam de tal embargo ter
paralisado todo o investimento.
Tal qual como vem delineada a acção proposta pela recorrente, a mesma
baseia-se na responsabilidade civil extracontratual do Estado pela prática de
acto ilícito de gestão pública.
Este tipo de responsabilidade está prevista e regulada no DL. N.º
48.051, de 21 de Novembro de 1967.
Regula tal diploma legal três tipos de responsabilidade: a baseada em
acto de gestão pública ilícito culposo (arts. 2º a 7º), a baseada em factos
casuais e fundamentada no risco (artº 8º) e, finalmente, a responsabilidade por
factos lícitos (artº 9º).
Alicerçando-se a recorrente, como acima se referiu, na responsabilidade
civil extracontratual por acto ilícito culposo praticado pelo réu, não se
compreende porque é que na conclusão 36ª das suas alegações, a recorrente vem
pugnar pela violação do artº 9º do DL. N.º 48.051, pois neste preceito apenas
se prevê a responsabilidade da Administração Pública pela prática de actos
lícitos.
Mas nesta mesma conclusão defende a recorrente que a sentença recorrida
viola os arts. 271º da CRP e 2º, 4º e 6º do DL. N.º 48.051.
Ao absolver o recorrido do pedido, o tribunal “a quo” baseou-se na não
verificação da ilicitude do acto imputado ao Estado.
Nos termos do art. 2º nº 1 do DL. N.º 48.051 “o Estado e demais pessoas
colectivas respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas dos direitos
destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses,
resultantes de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos
ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse
exercício”.
Resulta do teor deste preceito que a responsabilidade civil
extracontratual do Estado por factos ilícitos praticados pelos seus órgãos ou
agentes corresponde, no essencial, ao conceito civilista da responsabilidade
civil extracontratual por factos ilícitos prevista no artº 483º nº 1 do Código
Civil.
Os pressupostos para este tipo de responsabilidade sãos os seguintes:
a) o facto; b) a ilicitude; c) a culpa; d) o dano, e; e) o nexo de causalidade
(Ac. do STA de 16/2/2000-rec. N.º 41.507, de 6/7/2000-rec. N.º 46.005 de
10/10/2000-rec. N.º 40.576).
Para surgir o dever de indemnizar têm de se verificar cumulativamente
estes requisitos, pelo que faltando um deles, desaparecerá tal dever.
No caso dos autos, está só em causa a não verificação da ilicitude,
pois que o objecto do recurso jurisdicional é a sentença recorrida e foi isto
que nela foi decidido.
O conceito de ilicitude está verificado no artº 6º do DL. N.º 48.051,
onde se refere que “se consideram ilícitos os actos jurídicos que violem as
normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis e os actos
materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda as regras de ordem
técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração”.
A redacção deste preceito inculca que onde haja um acto ilegal aí mora,
também, a ilicitude (Marcelo Caetano, Manual, 9ª ed., II, pag. 1201).
Mas nem sempre assim será.
Como adverte Gomes Canotilho, temos de precaver-nos contra a completa
equiparação da ilegalidade à ilicitude, sugerida pela redacção do artº 6º.
Segundo este autor “a violação dos preceitos jurídicos não é, por si só,
fundamento bastante da responsabilidade. Quer se exija a violação de direitos
subjectivos, quer a violação dum dever jurídico ou funcional para com o lesado,
quer ainda uma falta da administração, faz-se intervir sempre um elemento
qualificador e definidor de uma relação mais íntima do indivíduo prejudicado com
a administração do que a simples legalidade e regularidade do funcionamento dos
órgãos administrativos” (O Problema da responsabilidade do Estado por actos
lícitos, págs. 74 e 7).
Esta posição perfilhada por Gomes Canotilho é, também, defendida por
Margarida Baeta Cortês, na sua tese de mestrado, inédita, sobre a
responsabilidade da administração por actos ilícitos, seguida nos Pareceres do
Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República nºs 46/80 e 183/81, in,
respectivamente, BMJ, 306, pág. 63 e ss. E BMJ,316, pág. 57 e ss.) e sufragada
por este tribunal (Acs. do STA de 5/3/1998-rec. N.º 30.840 e de 9/11/2000-rec.
N.º 46.441).
São duas as razões fundamentais que sustentam esta tese.
Assim, e por um lado, radica na consideração de que nem toda a
ilegalidade implica ilicitude, para efeitos indemnizatórios. Designadamente, há
ilegalidades veniais (ex.: o vício de forma e a incompetência rationae personae)
que não abrem direito a indemnização (Prosper Weil, Les Conséquences de
l’annulation d’un acte administratif, pág. 255; Georges Vedel, Droit
Administratif, 3ª ed., pág. 271; René Chapus, Droit administratif géneral, I, 5ª
ed., pág. 850).
Depois, e por outro, funda-se no princípio que se plasma,
designadamente, na 1ª parte do nº 1 do artº 2º do DL. N.º 48.051: os actos
inquinados por “vício de forma” raramente poderiam ofender direitos dos
particulares e, em princípio, também não ofenderiam interesses protegidos por
disposições legais destinadas a proteger tais interesses, já que as normas
prescritivas de “formas” em direito administrativo nunca (ou muito raramente)
visariam proteger directamente os interesses económicos dos particulares, e
muito menos visariam fazê-lo através da atribuição de uma indemnização.
No caso dos autos, de falta de fundamentação de um acto administrativo,
as normas que impõem tal fundamentação visam, fundamentalmente, facilitar a
impugnação dos actos administrativos (Cfr. Vieira de Andrade, O dever da
fundamentação expressa de actos administrativos, págs. 65 e ss.) e não proteger
um bem jurídico cuja violação implique conferir aos particulares o direito a uma
indemnização, se tais normas forem violadas.
Há, pois, que concluir, como o julgador “a quo” muito bem o fez, não se
verificar, no caso sub judice, o requisito da ilicitude.
Em concordância com tudo o exposto, improcedendo todas as conclusões
das alegações da recorrente, nega-se provimento ao presente recurso
jurisdicional e confirma-se a sentença recorrida.»
2. De novo inconformada, a autora recorreu para o Tribunal
Constitucional, “ao abrigo da alínea b) do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, para apreciação da questão da constitucionalidade material do artigo
2º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 48.051, de 21.11.1967, por violação do disposto
nos artigos 22º e 271º da Constituição da República Portuguesa, que suscitou na
34ª conclusão das alegações de recurso (rectificada em 08.02.2000)”.
Notificadas para o efeito, as partes apresentaram alegações.
Quanto à recorrente, veio sustentar a “inconstitucionalidade do artigo
2º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 48.051, de 21 de Novembro de 1967, por violação do
disposto nos artigos 22º e 271º da Constituição da República Portuguesa, na
interpretação que o acórdão recorrido faz do identificado preceito legal, no
sentido de que um acto administrativo ilegal por falta de fundamentação não gera
responsabilidade civil do Estado, por não ser acto ilícito susceptível de ser
pressuposto da responsabilidade civil extracontratual por acto de gestão
pública”, concluindo da seguinte forma:
«1ª A recorrente iniciou obra de construção de estabelecimento licenciado pelo
Estado.
2ª O Estado determinou o embargo, por acto administrativo anulado por falta de
fundamentação.
3ª O Estado não provou, em sede de acção, os fundamentos que invocava para o
embargo, nem alegou qualquer outro fundamento para embargo.
4ª A recorrente teve prejuízos decorrentes do embargo decretado, conforme está
provado nos autos.
5ª O artigo 2º do Decreto-Lei n.º 48.051, de 21.11.1967, é inconstitucional, por
violação do disposto nos artigos 22º e 271º da Constituição, na interpretação de
que do seu âmbito se exclui todo e qualquer acto administrativo ilegal, por
falta de fundamentação.
6ª O artigo 2º do Decreto-Lei n.º 48.051, de 21.11.1967, é inconstitucional, por
violação do disposto nos artigos 22º e 271º da Constituição, na interpretação de
que nunca há dever de indemnizar, em caso de acto administrativo ilegal, por
ausência de fundamentação, cujo conteúdo represente a interdição, suspensão ou,
por qualquer forma, vedação de exercício de actividade privada assente em prévia
permissão administrativa.
7ª O douto acórdão recorrido violou, pois, por errada interpretação e aplicação
o disposto nos artigos 22º e 271º da Constituição, no sentido em que interpretou
o artigo 2º do Decreto-Lei n.º 48.051, de 21.11.1967, 483º do Código Civil.”
Juntou, com as alegações, um parecer jurídico.
O Ministério Público contra-alegou, tendo a final concluído nos
seguintes termos:
“1º - Não viola o princípio constitucional da responsabilidade de entidades
públicas, consagrado no artigo 22º da Constituição a interpretação normativa que
– cindindo os puros conceitos de ilegalidade e ilicitude do acto administrativo
– exige que os direitos e interesses do particular, pretensamente lesados, se
situem no círculo de interesses tutelados pela disposição legal infringida,
aplicando e adaptando ao domínio do direito administrativo a teoria do ‘fim
protegido’, consagrado no artigo 483º do Código Civil.
2º - Incumbe aos tribunais, na interpretação e aplicação do direito
infraconstitucional, identificar o bem protegido pela disposição legal
desrespeitada pelo acto administrativo anulado, de modo a determinar se certo
vício procedimental ou formal do acto administrativo deve implicar, no
circunstancialismo do caso concreto, ilicitude material, traduzida na violação
de direitos ou interesses contidos no horizonte de responsabilização da norma.
3º - Não constitui interpretação inconstitucional das normas que definem os
pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do Estado a que se traduz
em considerar que não é materialmente ilícito o acto administrativo
deficientemente fundamentado, relativamente à pretensa lesão de direito
decorrente de um licenciamento precário, temporário e condicionado, não
cumprindo o lesado o ónus de especificar, como fundamento da pretensão
indemnizatória deduzida, factos demonstrativos da lesão substancial do seu
direito e do respeito pelos condicionalismos que lhe foram impostos no referido
acto de licenciamento.
4º - Termos em que deverá improceder o presente recurso.”
3. Cumpre começar por fixar o objecto do recurso.
É o seguinte o texto da norma impugnada:
Artigo 2º
1. O Estado e demais pessoas colectivas respondem civilmente perante
terceiros pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas
a proteger os seus interesses, resultantes de actos ilícitos culposamente
praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das
suas funções e por causa desse exercício.
(...)
O acórdão recorrido, interpretando restritivamente este preceito –
assim afastando a equiparação 'sugerida', como afirma, pelo artigo 6º do mesmo
Decreto-Lei n.º 48.051 entre 'ilegalidade' e 'ilicitude', entre acto ilícito e
acto que viole “as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais
aplicáveis (...)”, considerou que um acto administrativo ilegal por falta de
fundamentação não pode ser considerado “acto ilícito” para o efeito de gerar
responsabilidade civil do Estado por actos ilícitos.
Em síntese, relembre-se, o Supremo Tribunal Administrativo excluiu a
verificação do pressuposto da ilicitude – o que é naturalmente suficiente para
afastar a procedência do pedido de indemnização baseado em responsabilidade
civil por acto ilícito – por duas razões.
Em primeiro lugar, e em abstracto, porque 'nem toda a ilegalidade implica
ilicitude, para efeitos indemnizatórios. Designadamente, há ilegalidades veniais
(ex.: o vício de forma e a incompetência rationae personae) que não abrem
direito a indemnização' e ainda porque, como decorre do princípio plasmado na
primeira parte do n.º 1 do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 48.051, 'os actos
inquinados por 'vício de forma' raramente poderiam ofender direitos dos
particulares', e, 'em princípio, também não ofenderiam interesses protegidos por
disposições legais destinadas a proteger tais interesses, já que as normas
prescritivas de 'formas' em direito administrativo nunca (ou muito raramente)
visariam proteger directamente os interesses económicos dos particulares, e
muito menos visariam fazê-lo através da atribuição de uma indemnização'.
Em segundo lugar, porque, no caso concreto, o vício em causa – 'falta
de fundamentação de um acto administrativo' – decorre da violação de normas que
'visam, fundamentalmente, facilitar a impugnação dos actos administrativos (…) e
não proteger um bem jurídico cuja violação implique conferir aos particulares o
direito a uma indemnização, se tais normas forem violadas'.
Constitui, então, o objecto do presente recurso a norma do n.º 1 do artigo 2º
acima transcrito, interpretada no sentido de que um acto administrativo anulado
por falta de fundamentação é insusceptível, absolutamente e em qualquer caso, de
fazer incorrer o Estado em responsabilidade civil extra-contratual por acto
ilícito, norma que a recorrente acusa de violar o disposto nos artigos 22º e
271º da Constituição
Não envolve qualquer alteração de análise a circunstância de a norma em causa
constar de um diploma anterior à Constituição de 1976, uma vez que a verificação
de que se não manteve com a entrada em vigor da referida Constituição implica um
juízo de inconstitucionalidade (n.º 2 do artigo 290º da Constituição e, por
exemplo, acórdão n.º 29/84, Acórdãos do Tribunal Constitucional, p. 431 e segs.,
ou, especificamente para este diploma, o Parecer da Comissão Constitucional n.º
22/79, Pareceres da Comissão Constitucional, 9º, p. 39 e segs.)
4. Como é sabido, não cabe no âmbito do recurso de fiscalização
concreta da constitucionalidade analisar a questão em causa do ponto de vista do
direito ordinário aplicável.
Não cabe, pois, ao Tribunal Constitucional censurar ou concordar –
sempre do ponto de vista do direito ordinário, repita-se – com a distinção
adoptada pelo acórdão recorrido entre ilegalidade e ilicitude para efeitos de
preenchimento do pressuposto da ilicitude no âmbito da responsabilidade civil do
Estado (da Administração, no caso) por acto ilícito; nem tão pouco discutir se a
questão da natureza formal do vício com base no qual o acto foi anulado se
deverá analisar a propósito do pressuposto da ilicitude ou, antes, do nexo de
causalidade (como, por exemplo, sustenta RUI MEDEIROS, Ensaio sobre a
Responsabilidade Civil do Estado por Actos Legislativos, Coimbra, 1992, págs.
169 e 206 e segs.; ver ainda a explicação da alternativa, por exemplo, em VIEIRA
DE ANDRADE, Panorama Geral da Responsabilidade 'Civil' da Administração Pública
em Portugal, in La Responsabilidad Patrimonial de los Poderes Públicos, III
Colóquio Hispano-Luso de Derecho Administrativo, Madrid, 1999, pág. 39 e segs.,
pág. 49 ou em CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, Regime Geral da Responsabilidade
Civil da Administração, Cadernos de Justiça Administrativo, n.º 40, Julho/Agosto
2003, pág18 e segs., maxime pág. 27).
Cumpre-lhe apenas tomar como objecto deste recurso a norma tal como ela
foi interpretada e aplicada, no caso, pelo Supremo Tribunal Administrativo.
Como se disse já, o Supremo Tribunal Administrativo optou por afastar
uma interpretação do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 48.051 que equipare
ilegalidade e ilicitude (sustentada entre nós por exemplo por MARCELO CAETANO,
Manual de Direito Administrativo, vol. II, 9ª edição, reimp., Coimbra, 1980,
pág. 1225, ou ANTUNES VARELA, nota 1. da pág. 536, vol. I, Das Obrigações em
Geral, 10ª edição, Coimbra, 2000), adoptando um conceito de ilicitude que
aproxima a responsabilidade do Estado (por actos de gestão pública) da
responsabilidade civilística (cfr. n.º 1 do artigo 483º do Código Civil), e
exigindo que a ilegalidade se traduza na violação de direitos subjectivos do
lesado ou, pelo menos, de interesses cuja protecção a norma violada se destina a
proteger.
Seguiu, assim, como aliás expressamente afirma, a orientação
preconizada por GOMES CANOTILHO (O problema da Responsabilidade do Estado por
Actos Lícitos, Coimbra, 1974, pág. 73 e segs.), autor que, reconhecendo embora
que 'no nosso direito positivo, facilmente se constata que o ilícito definido no
artigo 6º do Decreto-Lei n.º 48 051 (…) é mais amplo que o ilícito civil
definido no art. 483º do Cód. Civil', sustenta que não se deve adoptar uma
'completa equiparação da ilegalidade à ilicitude, possivelmente sugerida pela
redacção do citado art. 6º (…)', antes se deve exigir 'uma relação mais íntima
do indivíduo prejudicado para com a administração do que a simples legalidade e
regularidade do funcionamento dos órgãos administrativos', ou por MARGARIDA
CORTEZ (Responsabilidade Civil da Administração por Actos Administrativos
Ilegais e Concurso de Omissão Culposa do Lesado, Coimbra, pág. 65 e segs., em
particular pág. 74 e segs.).
Aceitando portanto esta distinção, o acórdão recorrido concluiu que
dificilmente constituirá ilicitude (para efeitos de responsabilidade civil da
Administração) uma ilegalidade resultante de um vício formal, em geral, e, em
caso algum, a que decorra da falta de fundamentação, porque a norma que a exige
não se destina a proteger o interesse dos destinatários de actos
administrativos.
Também não vem ao caso discutir esta conclusão, quer quanto à inclusão
da falta de fundamentação entre os vícios de forma, quer quanto aos interesses
que as normas de procedimento administrativo que a impõem realmente têm em vista
proteger.
Sempre se observa, todavia, que o n.º 4 do artigo 268º (n.º 3, na
versão anterior à revisão constitucional de 1997) da Constituição inclui entre
as garantias dos administrados o dever de fundamentação [ao qual, por exemplo,
MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito Administrativo Geral,
I, 2ª edição., Lisboa, 2006, pág.152, consideram corresponder um direito
fundamental dos particulares, 'de natureza análoga aos direitos, liberdades e
garantias (art. 17º CRP)]' “expressa e acessível” dos actos administrativos que
“afectem direitos ou interesses legalmente protegidos”; e que, se é certo que as
normas sobre fundamentação não dispõem sobre os interesses substanciais que os
actos em causa possam afectar, não é menos certo que o “fim último” com que a
Constituição consagra tal obrigação é “a garantia de valores substanciais”,
entre os quais se conta “a protecção dos direitos dos particulares” (VIEIRA DE
ANDRADE, O Dever da Fundamentação Expressa de Actos Administrativos, Coimbra,
1991, pág. 219). Como este autor escreve, “os preceitos relativos ao dever de
fundamentação formal são afinal aquilo que parecem ser: normas de acção que
regulam o comportamento administrativo em função de um conjunto multipolar de
interesses, incluindo interesses dos administrados, que nessa medida são
juridicamente protegidos”.
5. E igualmente se observa que é útil relacionar a norma em apreciação
neste recurso com outras normas de direito ordinário (ter-se-á tão somente em
conta o direito vigente até à data do acórdão recorrido) respeitantes a
determinadas consequências da anulação de actos administrativos com base, como é
agora o caso, em falta de fundamentação; em particular, com certas regras
relativas à execução – ou inexecução – da sentença anulatória.
Tal como sucede em outras hipóteses que agora não interessam (outros
vícios de forma, ou incompetência, por exemplo) do que se costuma designar por
actos renováveis, a execução de uma sentença que os anule pode consistir na
prática de um segundo acto que mantenha o sentido da decisão substancial que o
primeiro continha, naturalmente corrigindo o vício que determinou a anulação.
Como se sabe, tem-se colocado o problema de saber se deve ser atribuída
eficácia retroactiva ao segundo acto (cfr. a evolução da doutrina e da
jurisprudência referida, a este propósito, por FREITAS DO AMARAL, A Execução
das Sentenças dos Tribunais Administrativos, 2ª edição., Coimbra, pág. 90 e
segs.).
A lei veio resolver expressamente este ponto. Com efeito, o artigo 128º
do Código do Procedimento Administrativo, do mesmo passo que definiu a regra de
que 'têm eficácia retroactiva os actos administrativos (…) que dêem execução a
sentenças dos tribunais, anulatórias de actos administrativos'' (n.º 1 e al. b)
respectiva), ressalvou dessa regra a hipótese de se tratar de actos
administrativos praticados em execução de sentenças anulatórias de 'actos
renováveis” (mesma al. b), in fine).
Esta ressalva, todavia, apenas foi acrescentada com a alteração que o
Decreto-Lei n.º 6/96, de 31 de Janeiro, introduziu ao Código de Procedimento
Administrativo, ele próprio, aliás, aprovado por um diploma posterior ao embargo
(decretado em 28 de Outubro de 1991), o Decreto-Lei n.º 442/91, de 15 de
Novembro.
Já todavia se tratava desta questão, naturalmente, quer na doutrina,
quer na jurisprudência. A controvérsia – que, note-se, nem tem relevância para o
julgamento do presente recurso, uma vez que não foi praticado novo acto de
embargo, em execução do acórdão anulatório – pode ver-se, por exemplo, em MÁRIO
ESTEVES DE OLIVEIRA, PEDRO COSTA GONÇALVES, J. PACHECO DE AMORIM, Código do
Procedimento Administrativo, 2ª edição., Coimbra, 1997, pág. 621-622).
Conclui-se, pois, mesmo discordando de AFONSO QUEIRÓ (que sustentava a
irretroactividade do novo acto, sob pena de frustração da 'reintegração da ordem
jurídica violada', de inutilização do recurso de anulação e de afastamento de
'efectiva sanção jurídica' para 'a actuação ilegal da Administração' – Revista
de Legislação e de Jurisprudência, ano 119º, págs. 302-303.) que, ainda que um
acto anulado por vício formal venha a ser repetido com o mesmo conteúdo
decisório, 'a verdade é que, 'enquanto o acto ilegal não for renovado, a sua
anulação obriga a considerá-lo como nunca tendo existido' (FREITAS DO AMARAL,
op.cit., pág. 92).
Finalmente, também interessa relembrar o regime então definido para a
inexecução ilegítima da sentença anulatória do acto inválido por falta de
fundamentação, que se encontrava abrangida pelo artigo 11º do Decreto-Lei n.º
256-A/77, de 17 de Junho, e que, nos termos ali determinados, previa a hipótese
de conduzir a uma indemnização resultante de responsabilidade civil da
Administração.
A interpretação do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 48.051 que é
questionada no âmbito deste recurso leva a que se exclua em absoluto a
possibilidade de indemnização de qualquer prejuízo que, porventura, se possa
ligar causalmente a um acto anulado por falta de fundamentação, mesmo não tendo
nunca sido praticado novo acto, em execução da decisão anulatória, podendo
sê-lo, nem se demonstrando que o efeito do acto invalidado podia ter sido
produzido por uma conduta alternativa lícita.
E leva igualmente a que fique sem qualquer consequência uma eventual
recusa ilegítima, por parte da Administração, da execução da sentença
anulatória, à luz do regime acima descrito.
6. A recorrente sustenta a inconstitucionalidade da norma em
apreciação, acusando-a de violar o 'disposto nos artigos 22º e 271º da
Constituição da República Portuguesa'.
Não é a primeira vez que o Tribunal Constitucional se vê confrontado
com a alegação de inconstitucionalidade por violação do artigo 22º da
Constituição. É, todavia, a primeira vez que lhe é colocada a questão de que
trata o presente recurso.
Com efeito, no acórdão n.º 153/90 (Diário da República, II série, de 7
de Setembro de 1990), o Tribunal Constitucional analisou o artigo 22º da
Constituição, concluindo que não abrangia a responsabilidade contratual do
Estado.
No acórdão n.º 107/92 (Diário da República, II série, de 15 de Julho de 1992),
observou que 'no artigo 22º consagra-se, na verdade, o princípio da
responsabilidade do Estado pelos danos causados aos cidadãos, ao menos quando
esses danos hajam sido causados por actos ilícitos'.
No acórdão n.º 45/99 (Diário da República, II série, de 26 de Março de 1999)
afirmou, sempre a propósito de uma questão diferente da que agora está em causa,
que «o que naquele artigo 22º se postula é a regra da responsabilidade civil do
'Estado e demais entidades públicas (…) por acções ou omissões praticadas no
exercício das suas funções e por causa desses exercício'», e disse, acolhendo «o
dizer de J.J. Gomes Canotilho (anotação ao Acórdão de 9 de Outubro de 1990 do
Supremo Tribunal Administrativo, em Revista de Legislação e de Jurisprudência,
ano 124, p. 86),[que] ali não apenas se estabelece a 'a garantia institucional
da responsabilidade directa do Estado (…) como se reconhece o direito do
particular à reparação indemnizatória e ou compensatória no caso de lesão de
direitos, liberdades e garantias'».
Mais recentemente, nos acórdãos n.ºs 236/2004 (Diário da República, II
série, de 4 de Junho de 2004) e 5/2005 (Diário da República, II série, de 18 de
Abril de 2005), e salientando as dificuldades suscitadas pela interpretação do
referido artigo 22º, o Tribunal considerou que este preceito veio
constitucionalizar o princípio da responsabilidade civil do Estado e demais
entes públicos, em particular no que respeita à responsabilidade da
Administração.
Escreveu-se, então, no citado acórdão n.º 236/2004:
«6 – A norma do artigo 22º da Constituição de 76 constitui uma inovação
relativamente aos textos constitucionais anteriores, elevando a nível
supra-legal (constitucional) princípios que até então haviam apenas sido
acolhidos no direito infraconstitucional, maxime no Decreto-Lei nº 48051.
Ela veio a ser inscrita na Parte I da CRP, referente aos “Direitos e deveres
fundamentais”, e no Título I que contempla os “Princípios gerais” sobre a
matéria.
Trata-se, pois, de uma norma que respeita aos direitos, liberdades e garantias,
o que, obviamente, não basta – como não basta a sua qualificação como princípio
geral - para uma caracterização rigorosa do tipo de norma em causa. Com efeito,
como assinala Maria Lúcia Amaral (“Responsabilidade do Estado e dever de
indemnizar do legislador” p. 430) “(...) estas mesmas normas podem ser ainda de
tipos diversos consoante atribuem ou não atribuem verdadeiros direitos
subjectivos aos particulares”.»
Também já a Comissão Constitucional se vira confrontada com o (então) n.º 1 do
artigo 21º da Constituição (cfr. Parecer n.º 22/79, já citado, em especial a
pág. 51 e segs.); mas igualmente a propósito de questão diferente da que nos
ocupa.
7. Segundo o artigo 22º da Constituição, “O Estado e as demais entidades
públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos
seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no
exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação
dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízos para outrem”.
É controverso o significado preciso da consagração desta regra na Constituição.
Assim, e em síntese, encontram-se opiniões no sentido de que aquele preceito
consagra um princípio geral (BARBOSA DE MELO, Responsabilidade Civil
Extra-contratual do Estado – Não cobrança de derrama pelo Estado, Colectânea de
Jurisprudência, ano XI, tomo IV – 1986, pág. 33 e segs., maxime pág. 36) ou “uma
garantia institucional” (VIEIRA DE ANDRADE, Panorama cit, pág. 52 e Os Direitos
Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 3ª edição, Coimbra, 2004, pág.
144, MARIA LÚCIA AMARAL, Responsabilidade do Estado e Dever de Indemnizar do
Legislador, Coimbra, 1998, pág. 439 e segs., ou MARGARIDA CORTEZ,
Responsabilidade cit., pág. 23 e segs.) que carece de ser concretizada pelo
legislador ordinário; nomeadamente, caberia no âmbito da sua liberdade de
conformação a definição dos pressupostos da obrigação de indemnizar. Em todo
caso, tal liberdade sempre teria como limite o respeito pelo 'núcleo essencial'
da garantia, ou seja, não poderia ser exercida de forma a contrariar, desde
logo, o próprio princípio da responsabilidade.
Diferentemente, há quem sustente que a concretização de tal princípio se tem de
encontrar na “conexão de normativos constitucionais” relativos “ao estatuto
orgânico-funcional dos órgãos do Estado”, sob pena de se desvirtuar a natureza
de “direito subjectivo fundamental” do direito consagrado no artigo 22º,
garantindo-lhe assim a “aplicabilidade directa” que lhe impõe o n.º 1 do artigo
18º da Constituição (MANUEL AFONSO VAZ, A Responsabilidade Civil do Estado,
Considerações breves sobre o seu estatuto constitucional pags. 4 e segs.).
Nomeadamente, para a responsabilidade da Administração por actos ilícitos
haveria que entender o artigo 22º em conjunto com o artigo 271º da Constituição,
para encontrar o “âmbito material” dessa responsabilidade.
GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada,
3ª edição., Coimbra, pág. 170) afirmam expressamente que 'na falta de lei
concretizadora, o art. 22º é uma norma directamente aplicável (…)'; JORGE
MIRANDA (A Constituição e a Responsabilidade Civil do Estado, Boletim da
Faculdade de Direito, sep. de Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério
Soares, pág. 928 e segs., e JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, Constituição
Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra, 2005, pág. 209 e segs.), MARIA DA GLÓRIA
GARCIA (A Responsabilidade Civil do Estado e demais Pessoas Colectivas Públicas,
Lisboa, 1997, pág. 53 e segs.) ou RUI MEDEIROS (Ensaio sobre a Responsabilidade
Civil do Estado por actos Legislativos, Coimbra, 1992, pág. 92 e segs.), por
exemplo, sustentam que se trata de 'um direito de natureza análoga à dos
direitos, liberdades e garantias' (cfr. artigo 17º da Constituição),
directamente aplicável (artigo 18º, n.º 1) e sujeito ao respectivo regime.
8. Ora, seja qual for a opção tomada nesta controvérsia, a verdade é
que não é compatível com o artigo 22º da Constituição uma interpretação do
artigo 2º do Decreto-Lei n.º 48.051 que exclua sempre e em qualquer caso a
responsabilidade do Estado por danos verificados na sequência de um acto
administrativo anulado por falta de fundamentação, quando a sentença anulatória
não for executada e não for praticado novo acto, sem o vício que determinou a
anulação, com o fundamento de que se não verifica nunca o pressuposto da
ilicitude do acto.
E isto se diz sem embargo de se não excluir a possibilidade de o pedido
de indemnização vir a ser julgado improcedente por não verificação de qualquer
dos pressupostos da responsabilidade civil.
A absoluta insusceptibilidade de ressarcimento desses danos não permite, para
utilizar as palavras do acórdão n.º 236/2004, cumprir 'a principal função do
instituto da responsabilidade civil – a função reparadora – que especialmente
garante aos particulares o ressarcir de danos causados por actos praticados
pelos titulares dos órgãos, funcionários e agentes do estado e das entidades
públicas'.
Assim, quer se entenda que o direito à indemnização previsto no artigo
22º da Constituição é um direito análogo aos direitos, liberdades e garantias,
quer se considere que ali se encontra apenas uma 'garantia institucional',
sempre se chega à inconstitucionalidade da norma que constitui o objecto do
presente recurso.
Na primeira perspectiva, porque implicaria uma restrição não admitida pelo n.º 2
do artigo 18º; na segunda, porque, ao afectar o próprio princípio da
responsabilidade do Estado, excederia o âmbito da liberdade de conformação do
legislador, afectando o 'núcleo essencial' de tal garantia.
9. Nestes termos, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do princípio da
responsabilidade extra-contratual do Estado, consagrado no artigo 22º da
Constituição, a norma constante do artigo 2º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 48.051,
de 21 de Novembro de 1967, interpretada no sentido de que um acto administrativo
anulado por falta de fundamentação é insusceptível, absolutamente e em qualquer
caso, de ser considerado um acto ilícito, para o efeito de poder fazer incorrer
o Estado em responsabilidade civil extra-contratual por acto ilícito;
b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso, determinando
a reformulação da decisão recorrida de acordo com o presente juízo de
inconstitucionalidade.
Lisboa, 2 de Março de 2007
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Gil Galvão
Vítor Gomes (com declaração anexa)
Bravo Serra (com declaração
idêntica à
formulada pelo Ex.mo Senhor Conselheiro Vítor
Gomes)
Artur Maurício
DECLARAÇÃO DE VOTO
Acompanho a decisão e o essencial dos seus fundamentos, com o
esclarecimento de que entendo que o artigo 22.º da Constituição não impede que,
independentemente do que a lei ordinária disponha quanto à eficácia retroactiva
dos actos renovadores de actos contenciosamente anulados, se atribua relevância
excludente da indemnização à “conduta alternativa lícita” da Administração,
mesmo quanto aos efeitos produzidos medio tempore.
Vítor Gomes