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Processo nº 486/06
Plenário
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. O Procurador-Geral da República requer que o Tribunal Constitucional “aprecie
e declare, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma
constante do artigo 6.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 206/01, de 27 de
Julho, na medida em que exclui as associações mutualistas do exercício da
actividade funerária aos seus associados”.
2. Para fundamentar o seu pedido o Procurador-Geral da República alegou o
seguinte:
“1º
A norma a que se reporta o presente pedido – incluída em diploma legal regulador
do exercício da actividade das agências funerárias – reserva tal actividade,
expressa na prestação dos serviços referenciados nos artigos 3º e 4º, nº 1,
exclusivamente às agências funerárias (artigo 5º) prescrevendo, como requisito
para o respectivo exercício, a constituição sob qualquer das formas societárias
legalmente permitidas.
2º
Tal regime restritivo configura-se como violador do princípio constitucional da
igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa,
como se decidiu no acórdão do Tribunal Constitucional nº 236/05, de 3 de Maio
(no mesmo sentido, aderindo a tal entendimento, se pronunciou o Conselho
Consultivo da Procuradoria-Geral da República, no parecer nº 14/05, publicado no
Diário da República, II Série, de 24 de Fevereiro de 2006).
3º
Na verdade, a exigência de adopção da forma societária, em si mesma considerada,
não consubstancia uma habilitação específica para o exercício da actividade
funerária, não constituindo, só por si e necessariamente, garantia absoluta e
adequada de prossecução com sucesso das finalidades de transparência, garantia
da qualidade dos serviços e tutela dos interesses dos consumidores, subjacentes
ao Decreto-Lei nº 206/01.
4º
Verificando-se que tal exigência – e a restrição dela emergente, estranha aos
fins de saúde pública e tutela do interesse público – discrimina, sem fundamento
legítimo, as associações mutualistas, já que a constituição sob forma
societária, com o inerente fim lucrativo, se não adequa minimamente às entidades
que, sem intenção lucrativa, apenas com uma finalidade de apoio social em
benefício dos seus associados, pretendem agir naquele sector, fora dos quadros
da iniciativa empresarial privada”.
3. Notificado do pedido, vem o Primeiro-Ministro oferecer o
merecimento dos autos, requerendo, caso a norma em causa seja julgada
inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, e por razões de segurança
jurídica, que os efeitos da decisão se produzam a partir da data da publicação,
nos termos do n.º 4 do artigo 282.º da.
4. Debatido o memorando apresentado pelo Presidente do Tribunal Constitucional e
fixada a orientação do Tribunal sobre as questões a resolver, procedeu-se à
distribuição do processo, cumprindo agora formular a decisão.
II. Delimitação do objecto do pedido
Na parte final do seu requerimento, o Procurador-Geral da República diz requerer
a “declaração de inconstitucionalidade material da norma que constitui objecto
do presente pedido (...)” (itálico nosso).
Tal norma mostra-se claramente definida no intróito e no artigo 1.º do mesmo
requerimento – a que, exigindo a forma societária às agências funerárias e
reservando a estas, em exclusivo, a actividade expressa na prestação dos
serviços referenciados nos artigos 3.º e 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º
206/2001, de 27 de Julho, exclui da mesma actividade as associações mutualistas.
Não pode recusar-se que, no intróito do requerimento, quanto ao preceito que põe
em causa, o Procurador-Geral da República apenas refere expressamente o artigo
6.º, n.º 1, alínea a), do citado diploma legal. Certo é, porém, que, no artigo
1.º do requerimento, se conjuga, para a formulação da aludida norma, também – e
igualmente em termos expressos – o disposto no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º
206/2001.
Haverá, pois, que interpretar o pedido, com o objecto normativo acima definido e
reportado ao conjunto de preceitos formado pelos artigos 6.º, n.º 1, alínea a),
e 5.º do Decreto-Lei n.º 206/2001.
III. Fundamentação
1. Dispõe a alínea a) do n.º 1 do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 206/01, de 27 de
Julho, o seguinte:
“Artigo 6.º
Requisitos para o exercício da actividade
1 – Para o exercício da actividade referida no n.º 1 do artigo 4.º,
deve cada agência funerária:
a) Constituir-se sob qualquer das formas societárias legalmente
permitidas;
(…)”.
Por seu turno, o artigo 4.º, n.º 1, do mesmo diploma, para o qual remete a norma
em causa, estabelece:
“Artigo 4.º
Objecto da actividade
1 – A actividade das agências funerárias consiste na prestação de serviços
relativos à organização e realização de funerais, transporte de cadáveres para
exéquias fúnebres, inumação, cremação ou expatriamento e trasladação de restos
mortais já inumados.
(…)”.
O artigo 5.º, ainda do mesmo diploma, dispõe que:
“Artigo 5º
Reserva de actividade
O exercício das actividades mencionadas no n.º 1 do artigo anterior compete
exclusivamente às agências funerárias”.
É por força da conjugação destes dispositivos – em particular dos citados
artigos 6.º, nº 1, alínea a), e 5.º – que a norma questionada adquire o sentido
que, no entendimento do requerente, a faz incorrer em inconstitucionalidade por
violação do princípio da igualdade.
Com efeito, a exigência de que a agência funerária se constitua “sob qualquer
das formas societárias legalmente permitidas” releva, no caso, como justificação
do pedido, no ponto em que o exercício da(s) actividade(s) acima referidas
compete, em exclusivo, às agências funerárias, obstando consequentemente a que
as associações mutualistas exerçam tais actividades.
Vejamos, pois, se tal ofende o princípio da igualdade.
2. O Decreto-Lei n.º 206/2001, alterado já pelo Decreto-Lei n.º 41/2005, de 18
de Fevereiro, em termos que não relevam para o caso, surge com a finalidade,
expressamente assinalada no seu Preâmbulo, de definir “um conjunto de regras
gerais para o exercício da actividade funerária”.
Reconhecendo que a actividade das agências funerárias assume “uma expressiva
relevância social”, o legislador dá nota da ausência, até então, de qualquer
legislação com aquela finalidade, estando apenas regulados alguns aspectos
específicos da mesma actividade – é o caso do disposto nos Decretos-Leis n.ºs
47.838, de 9 de Agosto de 1967, e 248/83, de 9 de Junho.
As regras disciplinadoras da actividade das agências funerárias têm o objectivo,
igualmente expresso no Preâmbulo, de “assegurar a transparência da actuação dos
seus profissionais” (reconhece-se, “ao longo dos últimos anos”, o “avolumar de
situações menos transparentes”) e “garantir a qualidade dos serviços, tendo em
vista, designadamente, a defesa dos interesses dos consumidores”.
As normas do Decreto-lei n.º 206/2001 hão-de, pois, ser compreendidas – e aqui,
em particular, as que restringem o “livre acesso ao mercado” – com as
assinaladas finalidades.
E é assim que a imposição de as agências funerárias se constituírem sob qualquer
das formas societárias legalmente permitidas, com o inerente afastamento das
associações mutualistas do exercício das actividades indicadas no artigo 4.º,
estaria justificada, numa perspectiva de defesa dos interesses dos consumidores,
antes do mais, pela garantia da qualidade dos serviços.
3. Consta do Código das Associações Mutualistas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º
72/90, de 3 de Março, o regime jurídico das associações mutualistas. São estas,
de acordo com o artigo 1.º do Código, “instituições particulares de
solidariedade social, com um número ilimitado de associados, capital
indeterminado e duração indefinida que, essencialmente através de quotização dos
seus associados, praticam, no interesse destes e de suas famílias, fins de
auxílio recíproco”.
Constituem fins fundamentais das associações mutualistas, nos termos do artigo
2.º, n.º 1, do Código, “a concessão de benefícios de segurança social e de saúde
destinados a reparar as consequências da verificação de factos contingentes
relativos à vida e à saúde dos associados e seus familiares e a prevenir, na
medida do possível, a verificação desses factos”; permitindo, ainda, o n.º 2 do
mesmo artigo, a prossecução de “outros fins de protecção social e de promoção da
qualidade de vida, através da organização e gestão de equipamentos e serviços de
apoio social, de outras obras sociais e de actividades que visem especialmente o
desenvolvimento moral, intelectual, cultural e físico dos associados e suas
famílias”.
A atribuição de benefícios aos associados é prevista como um direito que é
contrapartida das quotizações pagas (artigo 8.º, n.º 1, alínea h), do Código).
A garantia do cumprimento da lei, a promoção da compatibilização dos fins e
actividades das associações mutualistas com os fins legalmente estabelecidos e a
defesa dos interesses dos associados são objectivos da acção tutelar do Estado a
que estão sujeitas as associações mutualistas nos termos prescritos no Capítulo
VII do Código (artigos 109.º a 117.º).
4. É inequívoco que o artigo 6.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 206/2001,
em conjugação com o disposto no artigo 5.º do mesmo diploma, impede as
associações mutualistas de, em benefício dos seus associados, exercerem as
actividades que constituem o objecto das agências funerárias, estabelecendo,
deste modo, uma discriminação negativa no tratamento que é dado àquelas
associações, pelo que se impõe averiguar – disse-se já – se a norma, com tal
sentido, suporta o teste da sua constitucionalidade, face ao princípio da
igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição.
Em sentido negativo respondeu já o Tribunal à questão, em fiscalização concreta
de constitucionalidade. Fê-lo no Acórdão n.º 236/2005 (Diário da República, II
Série, de 16 de Junho de 2005), de que se extracta o seguinte trecho:
“Entrevêem‑se (…) no regime legal em questão objectivos que se relacionam com a
transparência na actividade, com a organização das estruturas que exercem a
actividade funerária (tendo em vista a dignidade exigível pela natureza dessa
actividade), com a igualdade no tratamento dos agentes funerários e com a
igualdade no acesso à actividade.
A legitimidade e o fundamento de tais finalidades, em face da Constituição, são
inequívocos. No entanto, a questão a que importa dar resposta no presente
recurso é a de saber se a exigência de constituição sob a forma societária
exclui outros modos de alcançar tais desideratos, sendo essa exclusão compatível
com a Constituição.
Ora, a forma societária, em si mesmo considerada, não consubstancia uma
habilitação específica para o exercício da actividade funerária. Nem constitui,
por si só, e necessariamente, garantia absoluta de prossecução com sucesso das
finalidades que o Decreto-Lei nº 206/2001, de 27 de Julho, visa alcançar.
Trata‑se de uma exigência que, tendencialmente, criará condições favoráveis para
a realização dos referidos objectivos, dada as necessárias organização e
institucionalização que a sociedade implica. Porém, a constituição como
sociedade não é um meio especificamente vocacionado (e, sobretudo, único) para o
exercício da actividade funerária de forma transparente e digna. Não o é, desde
logo, porque o processo de constituição de uma sociedade nenhuma conexão
apresenta com a actividade funerária. E, também não o é, porque a forma
societária só por si não fornece garantias absolutas do exercício de uma
(qualquer) actividade de modo transparente e digno.
Não se trata, aliás, de uma exigência que se prende com fins de saúde pública e
de tutela do interesse público, como acontece, por exemplo, com a reserva legal
da actividade farmacêutica (v. Acórdão nº 187/2001,
www.tribunalconstitucional.pt).
A qualidade do exercício da actividade funerária é, antes, assegurada por
exigências que se prendem com o respectivo exercício e com o funcionamento das
entidades que realizam serviços fúnebres, exigências cujo respeito deve ser
rigorosamente controlado.
(…) constata-se que a exigência de constituição sob a forma societária, com o
inerente fim lucrativo, não se revela mais garantística do que a organização
inerente a uma associação mutualista, sem intenção lucrativa, apenas com uma
finalidade de apoio social em benefício dos associados. De resto, numa
perspectiva institucional, existe, para o efeito que nos presentes autos se
destaca, uma semelhança significativa entre a associação e a sociedade, já que a
ambas as entidades é inerente uma organização jurídica (e social) que de igual
modo cria condições para um exercício digno da actividade em questão (entre
outras).
Por outro lado, às anteriores razões acresce a tutela constitucional do sector
cooperativo (artigo 61º da Constituição), tutela essa que se estende
naturalmente às associações mutualistas que se fundam nos princípios
cooperativos, exercendo actividades de apoio ou protecção social em benefício
dos associados, fora dos quadros da iniciativa privada empresarial (cf. artigo
2º, nº 2, do Código das Associações Mutualistas).
Em face de todas estas razões, não existe fundamento para vedar às associações
mutualistas o exercício da actividade funerária em benefício dos seus associados
no cumprimento dos princípios que regem essas instituições.
A restrição constante da norma do artigo 6º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº
206/2001, de 27 de Julho, discrimina, pois, sem fundamento legítimo, as
associações mutualistas, pelo que se afigura inconstitucional, por violação do
princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição”.
É este entendimento, fundado no princípio da igualdade – e também na tutela
constitucional do sector cooperativo – que agora se reitera.
Desde logo, a norma em causa não se conforma ao princípio da igualdade, tal como
este Tribunal o tem conceptualizado numa jurisprudência de largos anos.
Escreveu-se a propósito no Acórdão n.º 187/2001 (Diário da República, II Série,
de 26 de Junho de 2001):
“É sabido que o princípio da igualdade, tal como tem sido entendido na
jurisprudência deste Tribunal, não proíbe ao legislador que faça distinções –
proíbe apenas diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, sem
uma justificação razoável, segundo critérios objectivos e relevantes. É esta,
aliás, uma formulação repetida frequentemente por este Tribunal (cf., por
exemplo, os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 39/88, 325/92, 210/93, 302/97, 12/99 e
683/99, publicados em Acórdãos do Tribunal Constitucional, respectivamente,
vols. 11º, pp. 233 e ss., 23º, pp. 369 e ss., 24º, pp. 549 e ss., 36º, pp. 793 e
ss., e no Diário da República, 2ª série, de 25 de Março de 1999 e de 3 de
Fevereiro de 2000).
Como princípio de proibição do arbítrio no estabelecimento da distinção, tolera,
pois, o princípio da igualdade a previsão de diferenciações no tratamento
jurídico de situações que se afigurem, sob um ou mais pontos de vista,
idênticas, desde que, por outro lado, apoiadas numa justificação ou fundamento
razoável, sob um ponto de vista que possa ser considerado relevante.
Ao impor ao legislador que trate de forma igual o que é igual e desigualmente o
que é desigual, esse princípio supõe, assim, uma comparação de situações, a
realizar a partir de determinado ponto de vista. E, justamente, a perspectiva
pela qual se fundamenta essa desigualdade, e, consequentemente, a justificação
para o tratamento desigual, não podem ser arbitrárias. Antes tem de se poder
considerar tal justificação para a distinção como razoável, constitucionalmente
relevante.
O princípio da igualdade apresenta-se, assim, como um limite à liberdade de
conformação do legislador. Como se salientou no Acórdão n.º 425/87 (Acórdãos do
Tribunal Constitucional, vol. 10º, pp. 451 e ss.):
«O âmbito de protecção do princípio da igualdade abrange diversas dimensões:
proibição do arbítrio, sendo inadmissíveis, quer a diferenciação de tratamento
sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de valor objectivos
constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações
manifestamente desiguais; proibição de discriminação, não sendo legítimas
quaisquer diferenciações de tratamento entre os cidadãos baseadas em categorias
meramente subjectivas ou em razão dessas categorias; obrigação de diferenciação,
como forma de compensar a desigualdade de oportunidades, o que pressupõe a
eliminação pelos poderes públicos de desigualdades fácticas de natureza social,
económica e cultural (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da
República Portuguesa Anotada, I vol., 2ª ed., Coimbra, 1984, pp. 149 e segs.).
A proibição do arbítrio constitui um limite externo da liberdade de conformação
ou de decisão dos poderes públicos, servindo o princípio da igualdade como
princípio negativo do controlo.
Todavia, a vinculação jurídico-material do legislador a este princípio não
elimina a liberdade de conformação legislativa, pois lhe pertence, dentro dos
limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as
relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar
igual ou desigualmente.
Só existe violação do princípio da igualdade enquanto proibição de arbítrio
quando os limites externos da discricionariedade legislativa são afrontados por
carência de adequado suporte material para a medida legislativa adoptada.
Por outro lado, as medidas de diferenciação devem ser materialmente fundadas sob
o ponto de vista da segurança jurídica, da praticabilidade, da justiça e da
solidariedade, não se baseando em qualquer razão constitucionalmente imprópria.»
Mais recentemente, no Acórdão n.º 409/99 (Diário da República, 2ª série, de 10
de Março de 1999) disse-se que:
«O princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República
Portuguesa, impõe que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e
que se trate diferentemente o que for essencialmente diferente. Na verdade, o
princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionariedade
legislativa, não veda à lei a adopção de medidas que estabeleçam distinções.
Todavia, proíbe a criação de medidas que estabeleçam distinções
discriminatórias, isto é, desigualdades de tratamento materialmente não fundadas
ou sem qualquer fundamentação razoável, objectiva e racional. O princípio da
igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se numa ideia geral de
proibição do arbítrio (cf., quanto ao princípio da igualdade, entre outros, os
Acórdãos nºs 186/90, 187/90, 188/90, 1186/96 e 353/98, publicados no Diário da
República, respectivamente, de 12 de Setembro de 1990 e de 12 de Fevereiro de
1997, e o último, ainda inédito).»
E no Acórdão nº 245/00 (Diário da República, 2ª série, de 3 de Novembro de 2000)
salientou-se que «[...] tem, de há muito, vindo a afirmar este Tribunal que é
‘sabido que o princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da
discricionaridade legislativa, não veda à lei a realização de distinções.
Proíbe-lhe, antes, a adopção de medidas que estabeleçam distinções
discriminatórias – e assumem, desde logo, este carácter as diferenciações de
tratamentos fundadas em categorias meramente subjectivas, como são as indicadas,
exemplificativamente, no n.º 2 do artigo 13º da Lei Fundamental –, ou seja,
desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento
razoável (vernünftiger Grund) ou sem qualquer justificação objectiva e racional.
Numa expressão sintética, o princípio da igualdade, enquanto princípio
vinculativo da lei, traduz-se na ideia geral de proibição do arbítrio
(Willkürverbot)’ (cfr., por entre muitos outros, o Acórdão nº 1186/96, publicado
no Diário da República, 2ª Série, de 12 de Fevereiro de 1997), ou, dito ainda de
outra forma, o ‘princípio da igualdade [...] impõe se dê tratamento igual ao que
for essencialmente igual e se trate diferentemente o que diferente for. Não
proíbe as distinções de tratamento, se materialmente fundadas; proíbe, isso sim,
a discriminação, as diferenciações arbitrárias ou irrazoáveis, carecidas de
fundamento racional’ (v.g., o Acórdão nº 1188/96, ob. cit., 2ª Série, de 13 de
Fevereiro de 1997).»”.
Ora, pelo que se deixou dito no citado Acórdão n.º 236/2005, não se vislumbra
qualquer fundamento legítimo e racional para o tratamento discriminatório das
associações mutualistas relativamente ao exercício da actividade funerária,
surgindo como inadequada às finalidades da lei a proibição do exercício de tal
actividade por estas associações em benefício dos seus associados. Salienta-se,
ainda, que as finalidades não lucrativas destas associações – e, no caso, apenas
desenvolvidas em proveito dos seus associados – podem atenuar, ou mesmo
eliminar, o risco de ocorrência de “situações menos transparentes”, que o
legislador – e desde o Decreto-Lei n.º 47838 – visou prevenir.
E não deixará, ainda, de se evidenciar que, sujeitas as associações mutualistas
à tutela do Estado, nos termos já referidos, se poderá considerar reforçada a
garantia de observância das imposições estabelecidas para o exercício da
actividade funerária no Decreto-Lei n.º 206/2001.
Em suma, pois, impõe-se concluir que a norma ínsita no artigo 6.º, n.º 1, alínea
a), do Decreto-Lei n.º 206/2001, em conjugação com o disposto no artigo 5.º do
mesmo diploma legal, enquanto veda às associações mutualistas o exercício da
actividade funerária, viola o princípio da igualdade plasmado no artigo 13.º da
Constituição.
IV. Efeitos da declaração de inconstitucionalidade
Na sua resposta, o Primeiro-Ministro requer que, no caso de ser declarada a
inconstitucionalidade da norma em causa, os efeitos da declaração se produzam
apenas a partir da data da publicação, nos termos do artigo 282.º, n.º 4, da
Constituição, por razões de segurança jurídica.
Não se vislumbram, porém, razões de segurança jurídica – aliás não concretizadas
na resposta – que possam justificar a restrição dos efeitos da
inconstitucionalidade.
V. Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide declarar, com força
obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma contida na alínea a) do n.º
1 do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 206/2001, de 27 de Julho, em conjugação com o
disposto no artigo 5.º do mesmo diploma, enquanto exclui as associações
mutualistas do exercício da actividade funerária aos seus associados, por
violação do princípio da igualdade previsto no artigo 13.º da Constituição da
República Portuguesa.
Lisboa, 21 de Novembro de 2006
Maria João Antunes
Vítor Gomes
Mário José de Araújo Torres
Maria Helena Brito
Maria Fernanda Palma
Rui Manuel Moura Ramos
Paulo Mota Pinto
Benjamim Rodrigues
Gil Galvão (votei a
decisão nos termos da declaração anexa)
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
(Vencida quanto ao conhecimento e quanto ao fundamento da inconstitucionalidade.
Junto declaração.
Bravo Serra (Vencido nos
termos da declaração de voto da Ex.ma Conselheira Maria dos Prazeres Couceiro
Pizarro Beleza, para a qual, com vénia, remeto)
Carlos Pamplona de Oliveira – vencido
quer quanto à delimitação do objecto do pedido, quer quanto à decisão da
inconstitucionalidade da norma, nos termos da declaração de voto em anexo.
Artur Maurício
Declaração de Voto
1. Votei a inconstitucionalidade da norma identificada na decisão, afastando-me,
todavia, da fundamentação utilizada no acórdão, no essencial pelas razões que,
sumariamente, passo a expor:
1.1. Em primeiro lugar, porque considero não existir, no caso concreto, violação
do princípio da igualdade. Desde logo e à partida, porque são diferentes as
entidades em causa: de um lado sociedades comerciais e, de outro, associações
mutualistas, sendo certo que se me afigura perfeitamente legítimo e razoável que
o legislador, no âmbito da sua liberdade de conformação e dentro dos parâmetros
constitucionais, restrinja a actividade de prestação de serviços funerários ao
público em geral, às agências funerárias, constituídas estas sob qualquer das
formas societárias legalmente permitidas. Por outro lado, por que, também no
âmbito da prestação de serviços não existe igualdade entre as agências
funerárias e as associações mutualistas. Estas não vão competir num mercado
aberto com aquelas. Ou seja, a meu ver, a questão não é a de saber se as
associações mutualistas podem ser agências funerárias – o que não podem -, mas
antes a de saber se lhes é lícito prestar os serviços funerários aos seus
associados, tal como tradicionalmente faziam.
E, em tais circunstâncias, não se me afigura violado o princípio da igualdade.
1.2. Afigura-se-me, porém, que a restrição imposta às associações mutualistas
quanto à prestação de serviços funerários aos seus associados – serviços que
eram tradicionalmente prestados, constituindo, muitas vezes, parte importante da
actividade de algumas destas associações -, não será conforme às normas e
princípios constitucionais. Na verdade, tendo os cidadãos, em princípio, nos
termos do artigo 46º da Constituição, o direito de constituir associações, que
“prosseguem livremente os seus fins sem interferência das autoridades públicas”,
e o direito à livre constituição de cooperativas, incluindo as de natureza
mutualista (artigos 61º, n.º 2 e 82º, n.º 4, alínea d), todos da Constituição),
e sendo certo que, nos termos do n.º 5 do artigo 63º, também da Constituição, “o
Estado apoia [...] a actividade e o funcionamento das instituições particulares
de solidariedade social”, aquela restrição não passa, seguramente, a exigência
de proporcionalidade, expressamente mencionada no n.º 2 do artigo 18º da Lei
Fundamental, mas, em termos genéricos - como limitação geral ao exercício do
poder público -, resultando iniludivelmente do próprio princípio do Estado de
Direito, consagrado no seu artigo 2º. Ora, no caso em análise, entendo que uma
tal restrição não satisfaz o princípio da adequação (a medida restritiva não se
revela um meio adequado para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de
outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos), nem o princípio da
exigibilidade (essa medida restritiva não será exigida para alcançar os fins em
vista), nem, tão-pouco, o princípio da justa medida ou proporcionalidade em
sentido estrito (por ser manifestamente excessiva e desproporcionada em relação
às vantagens que apresenta).
2. Neste contexto, votei a declaração de inconstitucionalidade com força
obrigatória geral da norma que se retira da conjugação da alínea a) do n.º 1 do
artigo 6º do Decreto-Lei n.º 206/2001, de 27 de Julho, com o artigo 5º do mesmo
diploma, na medida em que exclui as associações mutualistas da prestação de
serviços funerários aos seus associados.
Gil Galvão
Declaração de voto
1. Votei vencida quanto ao conhecimento do pedido por
considerar que o requerente o delimitara formalmente à 'norma constante do
artigo 6º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 206/01, de 27 de Julho, na
medida em que exclui as associações mutualistas do exercício da actividade
funerária aos seus associados', não podendo o Tribunal Constitucional, em meu
entender, alargá-lo a outras normas, como se fez no acórdão aprovado.
Assim sendo, seria a meu ver inútil a apreciação do pedido,
porque, ainda que fosse julgada inconstitucional a norma referida, sempre
continuariam as associações mutualistas a não poder exercer 'actividade
funerária', mesmo que apenas em relação aos seus associados, uma vez que se
mantinha o exclusivo do correspondente exercício às agências funerárias, nos
termos do disposto no artigo 5º do mesmo diploma, e que as associações
mutualistas não podem ser agências funerárias (artigos 3º e 4º, n.º 1 do
Decreto-Lei n.º 206/01 e artigo 2º do Código das Associações Mutualistas,
aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/90, de 3 de Março).
2. Tendo, todavia, ficado vencida quanto à delimitação do
objecto do pedido e, consequentemente, quanto ao respectivo conhecimento, votei
a decisão de inconstitucionalidade, mas unicamente por violação do princípio da
proporcionalidade, contido no princípio do Estado de Direito (artigo 2º da
Constituição).
Entendo que a exclusão das associações mutualistas se revela manifestamente
inadequada ao objectivo prosseguido pelo legislador com a regulamentação da
'actividade funerária', e do qual o acórdão dá conta. Assim resulta dos fins que
lhes são atribuídos e, consequentemente, da actividade de solidariedade social
que desenvolvem, da limitação da sua actuação ao âmbito dos respectivos
associados e, naturalmente, como se observa no acórdão, da tutela que a lei
impõe ao Estado, nomeadamente quanto à fiscalização do cumprimento das regras
impostas no exercício da actividade funerária (nomeadamente pelo Decreto-Lei n.º
206/2001).
Não votei, assim, a violação do princípio da igualdade, já que
não considero demonstrado que as diferenças entre uma associação mutualista e
uma sociedade comercial não sejam suficientes para que o legislador possa
exigir, para que uma empresa possa ser uma agência funerária, a sua constituição
como sociedade.
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Declaração de Voto
Votei em sentido contrário ao do presente Acórdão quanto à questão da
delimitação do objecto do pedido, e quanto à decisão sobre a
inconstitucionalidade da norma impugnada.
Na verdade, entendo que nos processos de fiscalização sucessiva de normas não é
lícito ao Tribunal ampliar o pedido, nele abrangendo norma, ou normas, não
especificamente indicadas pelo requerente no seu objecto.
No caso presente, salvo o devido respeito, o Tribunal não podia, como fez, ter
declarado 'com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma contida
na alínea a) do n.º 1 do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 206/2001 de 27 de Julho,
em conjugação com o disposto no artigo 5.º do mesmo diploma', pois o requerente
apenas lhe tinha requerido que apreciasse a 'norma constante do artigo 6.º n.º 1
alínea a) do Decreto-Lei n.º 206/01 de 27 de Julho'. Embora reconheça que sem a
consideração da norma constante do artigo 5º do diploma não era possível extrair
a interpretação normativa censurada pelo requerente, ainda assim a especial
competência do Tribunal nesta matéria, proibiria, em meu entender, a referida
ampliação. Nesta conformidade, o Tribunal, limitando-se a analisar a norma
indicada pelo requerente, tendo concluído que ela não consente a interpretação
alegadamente inconstitucional que o requerente dela extraiu, deveria recusar-se
a conhecer do pedido.
Mas, ultrapassado este obstáculo, entendo que as normas consideradas não ofendem
a Constituição.
Há, com efeito, razões que justificam que o legislador reserve o exercício da
actividade funerária a entidades cuja estrutura jurídica permite a sua
responsabilização pelo incumprimento das exigências legais que se verificam
nesta área, o que manifestamente não é garantido pelas associações mutualistas.
Não há, assim, razões para que se descortine nestas normas uma ofensa aos
princípios e normas constitucionais invocados no Acórdão.
Carlos Pamplona de Oliveira