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Processo n.º 26/2004
2ª Secção
Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
(Conselheira Maria Fernanda Palma)
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.Pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Dezembro de 2003, foi
negado a A., convivente em união de facto com a vítima mortal de um acidente de
viação causado por culpa do lesante, o direito a uma compensação dos danos não
patrimoniais sofridos por morte da vítima, que reclamava à seguradora Companhia
de Seguros B:, SA, com fundamento no artigo 496.º, n.º 2, do Código Civil
(diploma ao qual pertencem todas as disposições citadas doravante sem indicação
especial). Pode ler-se nesse aresto do Supremo Tribunal de Justiça:
«1. Na acção de responsabilidade civil por acidente de viação que A., por si e
em representação do filho menor, C., moveu a Companhia de Seguros B., SA, para
ressarcimento do danos patrimoniais e não patrimoniais derivados da morte da,
respectivamente, companheira e mãe dos autores, as instâncias concluíram pela
exclusividade da culpa do condutor do veículo do segurado da ré, e, em
conformidade, foi esta condenada a pagar as seguintes indemnizações:
em 1ª instância
ao autor A.
€ 14.418,75, a título de despesas de funeral e de despesa, já realizada, com a
contratação de uma empregada para tomar conta do filho;
o que se liquidar em execução de sentença de despesas feitas para tratar de
formalidades decorrentes do óbito e a fazer para pagar a empregada que toma
conta do filho;
ao autor C.
€ 35.000, a título de perda dos alimentos prestados pela mãe;
€ 35.000, pela perda do direito à vida da mãe;
€ 20.000, pelos danos não patrimoniais próprios.
Em recurso, que lhe foi levado por ambas as partes, a Relação de Coimbra deu
parcial procedência às apelações, e, deste modo, alterou o decidido, da seguinte
maneira:
a indemnização pela perda do direito à vida subiu para € 40.000;
os juros sobre as quantias indemnizatórias atribuídas ao autor B vencem-se a
partir da sentença (as relativas ao dano de frustração de alimentos e danos
morais próprios) e a partir do acórdão, a respeitante ao dano de perda da vida.
As partes ainda se não conformaram, e pedem revista, assim fundamentada:
os autores
os juros moratórios sobre as quantias devidas ao autor C. devem contar-se desde
a citação, porque os valores atribuídos devem considerar-se reportados à data da
petição;
a união de facto, que era a que ligava o autor A. à sinistrada, deve
equiparar-se ao casamento, para efeitos do art.º 496.º, 2, do CC, sob pena de
inconstitucionalidade;
a ré
não há fundamento legal para atribuir ao autor C. indemnização por frustração de
alimentos, para além dos encargos com a contratação de uma empregada;
não o há, também, para indemnizar o autor A. pelas quantias despendidas com
deslocações efectuadas para tratar das formalidades decorrentes do óbito, porque
não cobertas pelo art.º 495.º, 2, do CC[1];
também o não haveria para remeter o apuramento de tais despesas para liquidação
em execução de sentença, visto que não foi alegada justificação da
impossibilidade de liquidação à data da petição inicial;
o montante indemnizatório da supressão da vida está exagerado com relação ao que
o Supremo Tribunal de Justiça costuma atribuir em casos paralelos.
2. São os seguintes os factos provados:
· no dia 09/12/93, cerca das 11H45, na E.N. n.º 1, ao Km 105, D.
conduzia o veículo pesado de mercadorias semi-reboque, de matrículas LQ----- e
L-----, no sentido Lisboa - Porto;
· pela mesma estrada, e no mesmo sentido de trânsito, seguia E., que
conduzia o veículo ligeiro misto de matrícula XA---;
· E. era acompanhada por F.;
· na mesma estrada, e no sentido de trânsito oposto circulava G., que
conduzia um veículo pesado de mercadorias de matrícula SB----;
· E. encontrava-se parada, pois pretendia virar à esquerda, atento o
seu sentido de marcha, e entrar no parque de estacionamento de um restaurante
ali existente;
· E. estava parada junto ao eixo da faixa de rodagem, dentro da sua
mão de trânsito, com o sinal de mudança de direcção à esquerda ligado;
· ao aproximar-se do veículo conduzido por E., D. embateu com o
veículo por si conduzido no veículo conduzido por E.;
· o embate deu-se entre a parte da frente do lado esquerdo do
veículo conduzido por D. e a retaguarda do lado direito do veículo conduzido por
E.;
· devido ao embate, o veículo conduzido por E. foi projectado para a
faixa de rodagem de sentido contrário;
· o veículo conduzido por G. embateu com a parte da frente na parte
frontal do veículo conduzido por E.;
· após os embates, o veículo conduzido por E. ficou imobilizado na
fixa de rodagem contrária àquela em que seguia;
· após o embate, o veículo conduzido por D. ficou tombado na sua
faixa de rodagem;
· o local do embate é uma recta com boa visibilidade;
· a faixa de rodagem, no local do embate, tem 7,30 metros de
largura;
· D. exercia a condução no interesse, por conta e sob a
responsabilidade da H.;
· em consequência do embate, F. sofreu lesões corporais que foram
causa directa e necessária da sua morte;
· F. sofreu lesões graves a nível do tórax, com fractura completa
dos 4.º, 5.º e 6.º arcos costais direitos e esquerdos pelo terço anterior,
volumoso hemotórax bilateral e hemoperitoneu, devido a rotura esfacelada do lobo
direito do fígado;
· foi o autor quem suportou todas as despesas relacionadas com o
funeral, compra e revestimento do jazigo, tendo despendido a quantia de
350.000$00;
· o autor A. teve gastos com deslocações para tratar das
formalidades post-mortem;
· o autor A. vivia, há mais de cinco anos, em união de facto com F.,
mantendo uma ligação muito estreita, surgindo à vista de toda a gente como se de
marido e mulher se tratassem;
· o casal tinha recentemente montado um armazém para venda de
pesticidas, rações, adubos e cimento, localizado junto da sua residência;
· a comercialização destes produtos, tendo em conta a região em que
está inserida, é uma actividade potencialmente lucrativa;
· dado que A. era motorista, era F. quem dirigia o negócio;
· F. auferiria proventos da exploração desse negócio, tendo sido
declarado pelo autor à administração fiscal, no ano de 1997, um resultado
apurado positivo, relativo a esse negócio, no montante de 257.386$00;
· esses proventos seriam integrados no orçamento familiar que F.
formava com os autores;
· com a morte de F., o autor A. sofreu grande angústia, profunda
tristeza e enorme desgosto;
· a lida da casa e o apoio e guarda do filho eram da
responsabilidade de F.;
· dado o falecimento de F. o autor A. teve que contratar uma
empregada doméstica/ama, situação que ainda se mantém;
· desde então, o autor A. pagou à empregada doméstica 2.540.700$00;
· o autor C. apercebeu-se de tudo quanto se passou, tanto mais que
sentiu a falta daquela que diariamente o acompanhava, que lhe prodigalizava
carinho e amor;
· várias noites passou sem dormir, chorando pela mãe;
· ainda hoje pergunta onde se encontra a sua mãe, começando
finalmente a perceber que jamais poderá contar com o seu apoio, carinho e
palavra amiga;
· o autor C. atravessou crises de tristeza e, por vezes, de choro;
· eram ambos os pais do C. que angariavam fundos para a sua
subsistência;
· C. nasceu em 24/06/89, sendo filho de A. e de F.;
· a responsabilidade por danos causados a terceiros emergentes de
acidente de viação relativa ao veículo pesado de mercadorias de matrícula LQ----
havia sido transferida para a ré Companhia de Seguros B., SA, até ao limite de
100.000.000$00, nos termos da apólice n.º 6266240;
· por força da referida apólice e por conta destes embates, a ré
Companhia de Seguros B., SA, procedeu ao pagamento da quantia de 34.549.950$00.
3. A começar pelo recurso da ré seguradora, diremos que tanto é aceitável a
indemnização, do autor A., pelo dano emergente, presente e futuro, de cobertura
dos encargos com a contratação de uma empregada doméstica, como a indemnização
do autor C. pela perda da dose de alimentos que previsivelmente a mãe lhe
prestaria até à maioridade, pelo menos. Este último tem cobertura especial nos
art.ºs 495.º, 3, e 1874.º, 1 e 2, do CC; o primeiro, nas regras gerais
prescritas nos artºs 483.º, 1, 562.º, 563.º e 564.º, 1 e 2, do CC.
O cálculo do dano de perda de alimentos (futuro, e dependente dos ganhos
produzidos pelo prestador dos alimentos) só pode ser feito à base da equidade,
tal como prescreve o artº 566.º, 3, do CC, reportado, nesta hipótese, ao
disposto ao 564.º, 1 e 2.
E assim se fez.
O cálculo teve como factores relevantes a tenra idade do autor e a recente e
potencialmente lucrativa actividade comercial da sinistrada, sua mãe, devedora
dos alimentos frustrados.
Foi um cálculo prudente e cauteloso, quedando-se numa importância perfeitamente
defensável, face ao número de anos de alimentos que o menor tinha pela frente,
às potencialidades do negócio e à natural capacidade produtiva de uma jovem
mulher.
As “quantias despendidas pelo autor A. com deslocações efectuadas para tratar
das formalidades decorrentes do óbito de F.” inserem-se nas “todas as demais”
(despesas, é claro), que o n.º 1, do art.º 495.º do CC declara indemnizáveis.
Não se concebe que o legislador quisesse deixar sem reparação tais despesas, nem
se percebe como é possível sustentar o contrário.
Não há, por outro lado, razão para criticar a decisão de lhes remeter o
apuramento para liquidação em execução de sentença, visto que, tendo o pedido
genérico sido admitido, e não tendo a liquidação sido operada na pendência da
causa, não restava outra solução que não fosse a de cumprir, como foi feito, o
n.º 2 do art.º 661.º, CPC.
A indemnização pela perda do direito à vida foi correctamente fixada.
Inscreve-se, perfeitamente, nos padrões de cálculo mais recentes deste Supremo
Tribunal (vejam-se, só a título de exemplo, os acórdãos: de 27.02.03, na revista
4553/02, 2.ª secção; de 25.06.02, na revista 4038/01, da 6.ª secção; de
28.05.02, na revista 920/02, 1.ª secção).
Não havia razões nenhumas, a começar pela exclusividade da culpa do condutor
segurado, para, no presente caso, o tribunal se desviar daquele padrão
indemnizatório.
E, assim, ao contrário do que a recorrente seguradora diz, não foi praticada
nenhuma injustiça relativa.
O dies a quo do vencimento dos juros de mora sobre as verbas indemnizatórias
atribuídas ao autor e recorrente C. (danos patrimoniais futuros de perda de
alimentos; danos não patrimoniais próprios e dano de perda de vida) foi
estabelecido de harmonia com a jurisprudência uniformizadora deste Supremo
Tribunal, estabelecida no AUJ[2] n.º 4/02, de 09.05.02[3], onde se faz a
conciliação das disposições dos art.ºs 566.º, 2, e 805.º, 3, parte final, do CC.
As mencionadas verbas indemnizatórias foram obviamente calculadas segundo os
valores da data em que a operação de cálculo foi efectuada.
Nem poderia ter sido de outro modo, tendo em conta o dever que promana do citado
n.º 2 do art.º 566.º do CC (de referenciar a “diferença” no património do lesado
à data “mais recente que puder ser atendida pelo tribunal”).
A regra geral, em matéria de responsabilidade civil extra-contratual, é a de que
a indemnização cabe ao titular do direito violado ou do interesse imediatamente
lesado.
O terceiro, reflexa ou indirectamente prejudicado, está fora do círculo dos
titulares do direito à indemnização.
Excepcionalmente, esta pode caber também ou apenas a terceiros.
É o que se passa com as situações previstas no art.º 495.º do CC, e 496.º, 2, do
CC.
Designadamente, sobre esta última disposição, o fundamento geralmente apontado
para a opção por uma lista taxativa de lesados com direito de indemnização, é o
de evitar a multiplicação incontrolada de pretensões indemnizatórias[4].
Neste último (496.º, 2), vai contemplada e valorada a dor do cônjuge não
separado judicialmente de pessoas e bens e a dos filhos ou outros descendentes.
Mas não a daquele, companheiro ou companheira, que, à data da morte da vítima,
com ela vivia em união de facto, em condições análogas às dos cônjuges.
E não se trata, este último, de caso omisso, merecedor de tratamento análogo
(segundo o disposto no art.º 10.º, 1, do CC), porque, enquanto norma
excepcional, a do n.º 2 do art.º 496.º não comporta a possibilidade de extensão
analógica (cfr. art.º 11.º do CC).
Por outro lado, uma simples interpretação extensiva, que as normas excepcionais
já admitem, depara com dois obstáculos incontornáveis, o primeiro dos quais é a
própria letra da lei (cfr. art.º 9.º, 2, do CC), e o segundo é o enquadramento
histórico da norma, nascida num tempo e num espaço de absoluta rejeição dos
valores que suportam as uniões de facto.
Entretanto, a Constituição da República de 1976, que deu expressão a novos
valores sócio-políticos emergentes da revolução de 25 de Abril de 1974,
consagrou, no art.º 36.º, 1, incluído no Título II, dedicado aos direitos,
liberdades e garantias, um “direito de constituir família e de contrair
casamento em condições de plena igualdade”.
A letra e a história do preceito, e das suas revisões[5], induzem a conclusão de
que, por detrás daquela um tanto dúbia fórmula, ficou a intenção de dar abertura
constitucional à chamada família de facto (a união não fundada no matrimónio),
tendo em vista, principalmente, a não discriminação dos filhos nascidos fora do
casamento[6], mas, também, a possibilidade de a legislação ordinária se ir
adaptando à forma como evolui o pensamento social a respeito das diferentes
manifestações da conjugalidade.
É, no entanto, óbvio, por outro lado, que a Constituição não quis colocar, em
definitivo, ao mesmo nível de protecção, e de direitos e de deveres, a família
de direito e a família de facto.
Mais afoitos à esquerda, mais conservadores à direita, os constituintes abriram
a porta, mas esperam para ver quem quer e quem está em condições de por ela
entrar.
É não só o modo de constituir família que está sob a mira do difuso texto do n.º
1 do art.º 36.º da Const.[7], mas, também, a própria evolução do conceito de
família.
À luz de um tal entendimento daquele normativo, é forçoso, portanto, considerar
como simplesmente exemplificativas as fontes das relações jurídicas familiares a
que se reportam os art.ºs 1576.º e ss. do CC, mas não colocar em plena igualdade
com elas as relações de facto que se lhes assemelhem.
Digamos que a Constituição não pretende andar com o carro à frente dos bois, que
o mesmo é dizer, acha preferível a família jurídica (ou não fosse o Estado, por
essência, o domínio da lei e do direito), não pretende ser o motor do
desenvolvimento de outras formas de união familiar, que, ou se impõem no corpo
social e encontram guarida no art.º 36.º, 1, que, nessa altura, conjurará o
legislador ordinário a agir em conformidade, ou devem ficar, de todo, à margem
do direito. Não se esqueça que o art.º 36.º, 1, Const, se não comprometeu
propositadamente com nenhuma outra definição de família que não seja a baseada
no casamento. Quanto ao mais, limitou-se a manter a porta aberta.
E não se esqueça, também, que, mesmo na acepção dual (constituir família e
contrair casamento) não é preciso pensar na “união de facto” para colher o
sentido útil da fórmula legal.
É que a célula familiar, como realidade social, como agregado humano de
parentesco, convivência e afecto, também pode nascer dos laços naturais da
filiação e dos legais da adopção, sem passar, necessariamente, pela matriz
matrimonial (é pensar, p. ex., nos não raros casos de agregados monoparentais,
criados à sombra de ligações fugazes à margem do matrimónio).
Também eles terão estado no pensamento do legislador constitucional, e motivado,
tanto a expressão solene dos dois direitos como a própria ordem por que foram
enunciados, assim prevenindo a interpretação redutora que a ordem tradicional
(contrair casamento e constituir família) induziria.
Entretanto, com o decorrer dos anos, a proliferação das uniões de facto e a
evolução do pensamento sócio-jurídico dominante, o legislador ordinário foi
fazendo o que estava implícito que deveria fazer, à luz do referido normativo
constitucional (a tal prudente abertura da Constituição às uniões de facto).
Principiou por reformar o Código Civil, em 1977[8], dando nova redacção aos
art.ºs 1911.º, 3 (em matéria de exercício de poder paternal no âmbito da união
de facto[9] e 2020.º (em matéria de alimentos ao companheiro sobrevivo, de união
de facto com mais de dois anos); em 1985[10], alterou o art.º 1111.º, 2 e 3, do
CC, para incluir o cônjuge de facto, de união com mais de 5 anos, entre os
beneficiários da transmissão por morte do direito ao arrendamento (embora no
último lugar), solução que passou para o art.º 85.º do RAU[11]; ao correr dos
tempos, foi-lhe estendendo direitos sociais próprios da condição de casado, até
que, pela Lei n.º 7/01, de 11-5[12], além de um enorme salto qualitativo na
definição do que é união de facto, de que retirou o requisito do sexo diferente
das duas pessoas que vivem em união, estabeleceu, pela primeira vez, uma espécie
de lei-quadro das uniões de facto, sem prejuízo dos direitos já estabelecidos
anteriormente, e na que, inclusivamente, estabeleceu, para a modalidade
heterossexual, o direito de adopção plena (art.º 7.º), em condições análogas às
revistas no art.º 1979.º do CC, e deu nova redacção ao acima mencionado art.º
85.º do RAU, tendo feito subir a nova união de facto[13], que chama,
expressamente, de família[14], dois lugares na escala dos beneficiários da
transmissão, colocando o cônjuge de facto no lugar imediatamente a seguir aos
filhos, mas adiante dos ascendentes e dos afins.
As intervenções do legislador ordinário têm incidido quase em exclusivo no
âmbito das chamadas normas de protecção (alimentos, garantia da casa de morada
em caso de morte do companheiro[15], benefícios sociais), na evidente lógica de
não estimular experiências sociais em matéria tão delicada, mas de esperar,
estudar e, só depois, agir.
É nesta perspectiva que deve ser encarada a constitucionalidade da norma do
art.º 496.º, 2, do CC, posta em causa na medida em que afasta da sua previsão o
cônjuge de facto.
Sob tal perspectiva, não há como não concluir que a dita norma nem vai contra o
art.º 13.º (princípio da igualdade), nem contra o art.º 36.º, 1 (família,
casamento e filiação), conjugado com o princípio da proporcionalidade, nem
contra o art.º 67.º (família), todos da Constituição da República, porque, na
verdade, a distinção que estabelece tem respaldo numa prioridade de valores e
num programa de protecção que ela própria adoptou, e, por isso, não é
injustificadamente arbitrária nem discriminatória, nem desprotege a família de
facto.
Trata diferentemente, para aquele efeito indemnizatório, o cônjuge legal e o
cônjuge de facto, tendo boas razões para distinguir, aí, o que distinto é, sem,
por outro lado, ao negar o direito ao cônjuge de facto passar dos limites da
necessidade, da adequação e da racionalidade, que dão corpo à ideia de
proporcionalidade.
É de dizer, nesta última perspectiva, que o direito previsto no n.º 2 do art.º
496.º do CC, não constitui, na óptica da proporcionalidade, como princípio de
direito constitucional inspirador dos direitos fundamentais, uma medida
necessária à protecção do direito fundamental a constituir família, porque não
implica com a protecção minimamente exigível àquele elemento base da sociedade,
e que, nessa medida, atribuir tal direito ao cônjuge de direito e não ao cônjuge
de facto não constitui defeito de protecção deste último.
O direito que o n.º 2 do art.º 496.º do CC, confere ao cônjuge de direito e nega
ao cônjuge de facto (e porque não, então, ao companheiro da união de facto
homossexual?) tem uma justificação que passa muito para além do amor e da
compaixão, porque tem, igualmente, raízes na subordinação a deveres menos
próximos do prazer, mas que cimentam a união, como sejam o auxílio, a
cooperação, a fidelidade, a entrega total que a união de facto, que se extingue
num simples querer (art.º 8, 1, b), da Lei n.º 7/01), decididamente não garante.
O único acórdão do Tribunal Constitucional que, até ao momento, abordou o
problema (n.º 275/02, no D.R., 2,ª série, n.º 169, de 24.07.02, págs. 12.896 e
ss.), foi tirado sobre um caso de homicídio doloso e a solução nele encontrada,
diferente da, aqui, defendida, tem, confessadamente, a marca da gravidade
extrema do ilícito.
Vem, pois, com uma faceta de casuísmo que o debilita como precedente
jurisprudencial.
4. Pelo exposto, negam ambas as revistas.»
[notas de rodapé no original]
2.Contra esta decisão foi intentado o presente recurso de constitucionalidade ao
abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional,
visando a apreciação da constitucionalidade da “norma do n.º 2 do artigo 496º do
Código Civil, interpretada no sentido de que, em caso de morte da vítima de
acidente de viação provocada por culpa exclusiva de outrem nele interveniente,
se deve excluir a indemnização por danos não patrimoniais pessoalmente sofridos,
com a morte, pela pessoa que convivia com a vítima em situação de união de facto
estável e duradoura, em condições análogas às dos cônjuges”.
O recorrente apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
«1.ª Da matéria provada, resulta com interesse que o recorrente vivia, há mais
de cinco anos, em união de facto com F., mantendo uma relação muito estreita,
surgindo à vista de toda a gente como se de marido e mulher se tratassem e que
com a morte da F., o recorrente sofreu grande angústia, profunda tristeza e
enorme desgosto. Dessa união nasceu um filho.
2.ª É neste contexto fáctico/emocional que o recorrente peticiona a atribuição
de compensação (indemnização) pelos danos directamente por si sofridos com a
morte da sua companheira.
Trata-se então de indemnização, que seria adquirida originariamente pelo
recorrente, por danos não patrimoniais (a dor, o sofrimento, a angústia, o
desgosto, etc.) sofridos por si mesmo, com o infeliz decesso da sua companheira
de vida.
3.ª O Tribunal a quo interpretou o n.° 2 do art.º 496.° do C.C. no sentido de
nele estar excluída a compensação dos danos não patrimoniais sofridos, com a
morte da vítima, pela pessoa que com ela convivia em situação de união de facto,
estável e duradoura, em condições análogas às dos cônjuges.
4.ª O art.º 496.°, n.º 2, data de 25 de Novembro de 1966 (DL n.° 47344).
A realidade sociológica de Portugal em 1966 era, evidentemente, muito distinta
da realidade sociológica dos nossos dias.
Independentemente das convicções pessoais de cada um, certo é que a sociedade
portuguesa daqueles tempos, para melhor ou pior, estava estruturada de modo
bastante mais institucionalizado, a todos os níveis, do que hoje.
5.ª O conceito de família, à época, era naturalmente diverso. A sociedade
portuguesa pouco mais conhecia, quanto à estrutura “família”, do que a família
“matrimonializada”.
6.ª Relevante é saber que interesses o legislador quis tutelar e o momento
histórico em que a norma foi criada.
O legislador só pode ter tido em mente o específico modo como, na altura, a
sociedade portuguesa se mostrava organizada e estruturada.
7.ª Hoje, o intérprete não pode deixar de ter em conta a realidade sociológica
actual e os imperativos constitucionais.
Assim, surgida a norma em causa no longínquo ano de 1966, a ela sobreveio a
Constituição da República de 1976, trazendo novos valores, novos horizontes
sociais. Com ela deu-se também um passo na evolução do conceito de família.
8.ª No que concerne aos interesses tutelados pelo n.° 2 do art.º 496.° do CC,
foram considerados como relevantes, para efeitos indemnizatórios, os danos não
patrimoniais, que, pela sua gravidade, merecem a tutela do direito.
9.ª Na realidade, quis o legislador tutelar as dores emocionais, a perturbação,
a angústia, o sofrimento decorrentes da perda de um ente querido.
E no sentido de limitar as pretensões indemnizatórias, delimitou os sujeitos do
direito indemnizatório.
10.ª Fê-lo à luz das concepções dominantes na sociedade portuguesa de então,
entendendo que eram merecedores de tutela jurídica a dor, o sofrimento dos
familiares mais próximos.
O legislador não quis alargar as pretensões indemnizatórias a todos aqueles que
pudessem sofrer com a perda da vítima. Entendeu, e bem, que apenas o sofrimento
dos que estavam mais próximos da vítima (pela sua natural gravidade) merecia a
tutela do direito.
11.ª Nesse sentido existiu clara intenção de abranger os danos não patrimoniais
sofridos pelos familiares mais próximos, por se considerar, e bem, que estes
sofreriam as dores mais profundas e, como tal, pela sua gravidade, mereceriam a
tutela do direito.
12.ª Então, não podemos deixar de concluir que o legislador quis restringir os
danos não patrimoniais sofridos no seio da “família afectiva” que não da
“família matrimonializada”.
Este o cerne do presente recurso.
13.ª Certo é que, em 1966, a “família afectiva” coincidia com a “família
institucionalizada pelo matrimónio, mas dessa coincidência social não se pode
retirar uma intenção do legislador em restringir os danos não patrimoniais
sofridos apenas pelos que fizessem parte da família institucional. O legislador
não foi mais longe, porque a “família afectiva” coincidia com a “família
matrimonializada”.
14.ª Hoje, essa coincidência não se verifica. A Constituição da República, logo
em 1976, previa essa não coincidência.
O conceito de família plasmado na Constituição de 1976 não se reduz à “união
conjugal baseada no casamento”.
15.ª Donde resulta que, se o âmbito de protecção da norma do n.° 2 do art.º
496.° do CC é a “família afectiva” e se a Constituição não admite a redução do
conceito de família à união conjugal baseada no casamento, a interpretação que
se faça deste normativo há-de ter em conta o preceito constitucional do art.º
36.°, não excluindo, por isso, do âmbito de protecção da norma os danos não
patrimoniais sofridos por quem convivia com a vítima em condições análogas às
dos cônjuges.
16.ª A norma (n.º 2 do art.º 496.° do CC) não está vocacionada para protecção da
família institucionalizada pelo casamento, mas sim para a família afectiva. O
conceito de família há-de ser entendido à luz da nossa Constituição e da nossa
realidade actual.
17.ª É o âmbito de protecção da norma, que guiará o intérprete na tarefa de
incluir ou excluir do direito indemnizatório aquele que vivia com o lesado em
união de facto estável e duradoura, em condições análogas às dos cônjuges.
18.ª Já dissemos, tal como também se diz no douto acórdão recorrido, que na
norma em causa vai contemplada e valorada a dor. Trata-se da dor resultante do
afecto, sendo este ingrediente-mor do conceito de família.
19.ª Como se pode ler no douto aresto produzido pelo agora Juiz Desembargador
Eurico Reis (Sentença de 15/07/1996 do 1.° Juízo Cível da Comarca de Lisboa)
(...) é de dor, de ansiedades, de tristezas e de sofrimento que cuida (mas não
cura) este normativo. E do seu ressarcimento. Na medida do possível...
Ora a dor (como a alegria) não está, nem directa, nem proporcionalmente,
dependente da existência de vínculos familiares ou matrimoniais formais.
20.ª A propósito do alcance e conteúdo do princípio da igualdade
constitucionalmente consagrado no art.º 13.° partilhamos o entendimento que tem
sido tomado por esse Venerando Tribunal, remetendo, por economia das presentes,
para os doutos arestos citados no douto Ac. n.° 275/2002.
21.ª Em coerência teremos, então, de concluir que a distinção operada entre a
dor sofrida pelo cônjuge e a dor sofrida por quem convivia em união de facto
estável e duradoura, em condições análogas às dos cônjuges, é destituída de
fundamento razoável.
22.ª O sofrimento, a angústia, a dor do recorrente não são, na verdade, nem
qualitativa nem quantitativamente menos merecedores da tutela do direito, por
não existir um vínculo matrimonial. (cfr. Ac. n.° 275/2002 do TC)
23.ª O que está tutelado na norma em causa é a dor dos que formam a família
gerada do afecto e não do vínculo matrimonial...
Não existe aqui qualquer intenção de tutelar a família enquanto instituição
jurídica, mas sim a dor surgida nos elementos que compõem a “família” unida
pelos laços da afectividade.
24.ª Logo, a exclusão do recorrente do âmbito de protecção da norma, enquanto
titular do direito indemnizatório, levará à inconstitucionalidade do art.º
496.°, n.º 2, por violação do princípio da igualdade consagrado no art.º 13.° da
CRP, na interpretação supra indicada.
25.ª Se atentarmos no cerne do presente recurso verificamos que a argumentação
expendida em variadíssimos arestos, defendendo a tese da não violação do
princípio da igualdade, deixa incólume a posição aqui defendida.
26.ª É que a questão central não é a da igualdade, da semelhança ou diferenças
entre o matrimónio e a união de facto.
O art.º 496.°, n.º 2, não tutela o casamento, não tutela a família de “direito”
em detrimento da família de “facto”.
27.ª Não estão contemplados ou valorados, no n.° 2 do art.º 496.º do CC, os
direitos advindos do contrato de casamento.
28.ª O legislador, naquela norma, não quis proteger, não quis tutelar apenas a
dor do que se havia unido pelo contrato de casamento, mas a dor daquele que
mantinha laços afectivos familiares com o lesado.
O que se tutela não é o instituto “casamento”...mas a dor sentida por aqueles
que fazem parte da família dos afectos, tal como configurada no art.º 36.°, n.º
1, da CRP. Se assim não fosse, sempre teríamos que ter por excluídos os filhos
nascidos fora do casamento...
29.ª Temos assim que, quer no âmbito do princípio da igualdade (art.º 13.° da
CRP), quer no âmbito da noção de família constitucionalmente consagrada (art.º
36.°, n.º 1, da CRP), a interpretação que se fez no douto acórdão recorrido do
disposto no n.° 2 do art.º 496.° do CC é inconstitucional, como também o é o
próprio normativo, na parte em que exclui a atribuição do direito de
indemnização por danos não patrimoniais pessoalmente sofridos pela pessoa que
convivia com a vítima em situação de união de facto, estável e duradoura, em
condições análogas às dos cônjuges.
30.ª E nem se diga, como parece resultar do douto acórdão recorrido, que a dor
resultante da perda será apenas de considerar se se tratar de crime doloso
(referindo-se ao Ac. n.° 275/2002, que tratava de um caso de homicídio doloso).
31.ª A dor sentida pode, obviamente ser maior ou menor, atendendo às específicas
circunstâncias da lesão.
32.ª Relevante será avaliar o modo como se concretizou a lesão e respectivas
consequências ao nível da dor sofrida, jamais o de excluir a relevância da dor
sentido em resultado de lesão produzida com mera culpa. Poderá ser dor menos
intensa, mas ainda assim sempre será dor suficientemente grave para ser alvo da
tutela do direito.
A equidade jogará aqui o seu papel primordial.
TERMOS EM QUE:
Deve ser declarada a inconstitucionalidade da norma do n.° 2 do art.º 496.° do
Código Civil, interpretada no sentido de que, em caso de morte da vítima de
acidente de viação, provocada por culpa exclusiva de outrem nele interveniente,
que não a própria vítima, se deve excluir a atribuição de indemnização por danos
não patrimoniais pessoalmente sofridos, com a morte, pela pessoa que convivia
com a vítima em situação de união de facto estável e duradoura, em condições
análogas às dos cônjuges, por violação do princípio da igualdade consagrado no
art.º 13.° da CRP, do direito a constituir família independentemente de qualquer
vínculo formal estabelecido no art.º 36.°, n.º 1, da nossa Lei Fundamental e da
concepção constitucional de família vertida no art.º 67.º, n.º 1, da
Constituição.
A recorrida contra-alegou, concluindo o seguinte:
«I. Na nossa ordem jurídica, o direito a reclamar a indemnização só assiste à
pessoa directamente prejudicada pelo acto, e não a terceiros a quem o facto
prejudica;
II. Excepcionalmente, porém, a indemnização pode competir também ou caber apenas
a terceiro - é o caso das pessoas enumeradas no art.º 496.º do Código Civil
relativamente a danos não patrimoniais;
III. A opção do legislador foi a de não incluir o unido de facto entre os
terceiros que têm direito a exigir uma indemnização por danos não patrimoniais
próprios nos casos de morte;
IV. No fundo, a questão que aqui se coloca é saber se a Constituição obriga o
legislador ordinário a estender o direito de indemnização por danos não
patrimoniais próprios ao membro sobrevivo da união de facto;
V. Ora, como decidiu bem o douto Acórdão do STJ, a resposta a esta questão é
negativa;
VI. Se há fundamento material bastante para promover uma diferenciação e essa
diferenciação é aceitável e razoável, está observado o imperativo constitucional
de igualdade e a conformidade constitucional do art.º 496.º/2 do CC, na
interpretação seguida pelo Acórdão do STJ;
VII. Ora, existe uma diferenciação evidente entre a situação material dos
casados e a situação material dos unidos de facto;
VIII. Naquele primeiro caso, o casal optou pela sujeição aos ónus, direitos e
obrigações, nascidos com o contrato de casamento;
IX. Por oposição, o regime da união de facto não impõe nenhuma destas
obrigações, não há adstrição dos “unidos de facto” a quaisquer deveres e a união
pode cessar quando bem lhes aprouver;
X. Em face dessa diferença, não se pode considerar inconstitucional a opção do
legislador de não estender aos unidos de facto esse direito a uma indemnização
nos casos de morte;
XI. Aliás, também outras pessoas que integram a “família afectiva”, a “família
dos afectos” da vítima - e com igual ou superior carácter de estabilidade - não
são ressarcidas (ou, em regra, não o são) dos seus danos não patrimoniais
próprios.
XII. Como bem refere o Acórdão recorrido, a norma do art.º 496.º, n.º 2, não
contraria a Constituição porque a não extensão do direito de indemnização aos
unido de facto não passa “os limites da necessidade, adequação e da
racionalidade, que dão corpo à ideia de proporcionalidade”.
XIII. O direito previsto no n.º 2 do art.º 496.° do CC, “não constitui, na
óptica da proporcionalidade, como princípio de direito constitucional inspirador
dos direitos fundamentais, uma medida necessária à protecção do direito
fundamental a constituir família, porque não implica com a protecção minimamente
exigível àquele elemento de base da sociedade, e que, nessa medida, atribuir tal
direito ao cônjuge de direito e não ao cônjuge de facto não constitui defeito de
protecção deste último.”
Nestes termos e nos demais de Direito, que V.Ex.as. doutamente suprirão, deve
ser negado provimento ao presente recurso e recusado o pedido de declaração da
inconstitucionalidade da norma do n.º 2 do art.º 496.º do Código Civil,
interpretada no sentido de que, em caso de morte, não se deve estender o direito
de indemnização, a título de danos não patrimoniais próprios, a pessoa que
convivia com a vítima em situação de unido de facto.»
Após mudança de relator, por vencimento, cumpre decidir.
II. Fundamentos
3.O presente recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo
70.º da Lei do Tribunal Constitucional, visando, nos termos do respectivo
requerimento, a apreciação da constitucionalidade da “norma do n.º 2 do artigo
496º do Código Civil, interpretada no sentido de que, em caso de morte da vítima
de acidente de viação provocada por culpa exclusiva de outrem nele
interveniente, se deve excluir a indemnização por danos não patrimoniais
pessoalmente sofridos, com a morte, pela pessoa que convivia com a vítima em
situação de união de facto estável e duradoura, em condições análogas às dos
cônjuges”.
A inconstitucionalidade desta norma foi suscitada pelo recorrente nas alegações
do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que deu origem ao Acórdão
recorrido, de 4 de Dezembro de 2003, no qual se fez aplicação dessa mesma norma,
como ratio decidendi.
Estão, pois, verificados os requisitos indispensáveis para se poder tomar
conhecimento do recurso de constitucionalidade.
4.Nota-se, desde logo, que o Tribunal Constitucional não procedeu nunca à
apreciação da constitucionalidade da dimensão normativa impugnada no presente
recurso de constitucionalidade.
É certo que o Tribunal Constitucional já tratou, em várias decisões, da
constitucionalidade da distinção de regime jurídico, em vários aspectos, entre
as posições do cônjuge e de quem vive com outrem numa situação de união de facto
– v. as decisões cits. no Acórdão n.º 275/2002, de 19 de Junho (Diário da
República [DR], II Série, n.º 169, de 24 de Julho de 2002, p. 12896, e Acórdãos
do Tribunal Constitucional [ATC], vol. 53.º, p. 479), e, posteriormente, em
matéria de requisitos para atribuição de pensão de sobrevivência, os Acórdãos
n.ºs 195/2003, 88/2004, 233/2005 e 159/2005, este último confirmado em recurso
para o Plenário do Tribunal Constitucional pelo Acórdão n.º 614/2005 (publicados
os dois primeiros em ATC, respectivamente vol. 55.º, p. 897, e vol. 58.º, p.
423, e os restantes no DR, II série, respectivamente n.º 149, de 4 de Agosto de
2005, p. 11132, n.º 248, de 28 de Dezembro de 2005, p. 18056, e n.º 249, de 29
de Dezembro de 2005, p. 18116, e todos disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt). E o Tribunal Constitucional teve já mesmo
ocasião de apreciar uma dimensão normativa em que estava em causa a distinção
entre o cônjuge e o convivente em união de facto para o efeito previsto no
artigo 496.º, n.º 2, isto é, para o reconhecimento de uma “indemnização” de
danos não patrimoniais por morte da vítima.
Não esteve, porém, nunca em causa a mesma dimensão normativa que é agora
impugnada no presente recurso.
Com efeito, no Acórdão n.º 275/2002, de 19 de Junho (DR, II Série, n.º 169, de
24 de Julho de 2002, p. 12896, e ATC, vol. 53.º, p. 479) o que o Tribunal
Constitucional decidiu foi julgar inconstitucional a “norma do n.º 2 do artigo
496.º do Código Civil, na parte em que, em caso de morte da vítima de um crime
doloso, exclui a atribuição de um direito de ‘indemnização por danos não
patrimoniais’ pessoalmente sofridos pela pessoa que convivia com a vítima em
situação de união de facto, estável e duradoura, em condições análogas às dos
cônjuges”. O objecto do presente recurso é diverso: não é questionada, como no
caso do Acórdão n.º 275/2002, a consequência, no plano da compensação por danos
não patrimoniais, da prática de um crime (de um homicídio), e de um crime
doloso, mas antes a consequência de um acidente de viação que se deveu a culpa
(negligência) exclusiva do lesante (v. a sentença de 1.ª instância, de 3 de Maio
de 2002, fls. 502 a 504 dos autos), cuja responsabilidade fora transferida para
a companhia de seguros demandada.
É, no entanto, óbvio que tal diferença de objecto dos recursos de
constitucionalidade (o decidido pelo Acórdão n.º 275/2002 e o presente) não é
logo bastante para conduzir a qualquer solução da questão de
constitucionalidade. Não só há que apurar se a norma impugnada no presente
recurso é, ela própria, conforme com as normas e princípios constitucionais,
como se impõe averiguar se, sob esse ponto de vista, a questão ora trazida ao
Tribunal Constitucional é, ou não, substancialmente idêntica à decidida no
Acórdão n.º 275/2002 – designadamente, se os fundamentos desta decisão são
transponíveis para os presentes autos. Apenas em caso de resposta afirmativa a
esta pergunta se pode remeter, para fundamentar um juízo de
inconstitucionalidade, para esse Acórdão n.º 275/2002.
5.A análise dos fundamentos do citado Acórdão n.º 275/2002, para os confrontar
com o presente caso, impõe-se, aliás, tanto mais quanto este aresto é
considerado na decisão recorrida (que se encontra publicada já na Colectânea de
Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano XI, 2003, tomo
III, p. 133, bem como em Maiajurídica – Revista de Direito, ano II, n.º 2,
Julho-Dezembro de 2004, pp. 127 e ss., com uma anot. de Manuel J. Aguiar
Pereira), bem como já pela decisão do Tribunal da Relação de Coimbra então
recorrida, e é invocado pelo recorrente no sentido da solução de
inconstitucionalidade que defende. Esse Acórdão do Tribunal Constitucional foi,
aliás, objecto de discussão jurisprudencial (v., além das declarações de voto a
ele apostas e das decisões constantes dos presentes autos, os Acórdãos do
Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Maio de 2005 e 11 de Julho de 2006, ambos
acessíveis em www.dgsi.pt) e doutrinal (v., em sentido crítico, Francisco
Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira, Curso de direito da família, vol. I, 3.ª
ed., Coimbra, Coimbra Ed., 2003, pp. 134-136, e Nuno de Salter Cid, A comunhão
de vida à margem do casamento: entre o facto e o direito, Coimbra, Almedina,
2005, pp. 526-544, bem como, substancialmente, Américo Marcelino, Acidentes de
viação e responsabilidade civil, Lisboa, Petrony, 2005, pp. 446-454; em sentido
favorável, a cit. anot. de M. J. Aguiar Pereira; e, questionando a extensão da
solução a outros casos, António Abrantes Geraldes, Temas da responsabilidade
civil, II: indemnização dos danos reflexos, Coimbra, Almedina, 2005, p. 27). E
esta discussão incidiu, em parte, justamente, sobre as consequências
alegadamente justificadas (ou até impostas) pela fundamentação do juízo de
inconstitucionalidade então alcançado, no Acórdão n.º 275/2002 – assim, além de
M. J. Aguiar Pereira e A. A. Geraldes, locs. cits., F. Pereira Coelho/G. de
Oliveira, ob. cit., pp. 135 e s., e N. Salter Cid, ob. cit., pp. 534 (e n. 65),
544. Não é, porém, uma “reanálise” ou reapreciação dos fundamentos do Acórdão
n.º 275/2002 que pode estar em causa no presente recurso, em que é, como se
disse, impugnada diversa dimensão normativa do artigo 496.º, n.º 2, apenas
importando recordar essa fundamentação na medida em que a referida decisão foi
invocada como precedente.
Recorde-se, pois, a fundamentação expendida do Acórdão n.º 275/2002 para se
concluir pelo julgamento de inconstitucionalidade, “por violação do artigo 36.º,
n.º 1, da Constituição conjugado com o princípio da proporcionalidade”, da
“norma do n.º 2 do artigo 496.º do Código Civil, na parte em que, em caso de
morte da vítima de um crime doloso, exclui a atribuição de um direito de
‘indemnização por danos não patrimoniais’ pessoalmente sofridos pela pessoa que
convivia com a vítima em situação de união de facto, estável e duradoura, em
condições análogas às dos cônjuges”. Depois de se delimitar o objecto do recurso
e de, para enquadrar a questão de constitucionalidade, se referir a evolução do
regime jurídico da união de facto (com a Lei n.º 135/99, de 28 de Agosto, e a
Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio) e a jurisprudência do Tribunal Constitucional
então existente sobre normas que previam uma diferenciação de tratamento entre
pessoas casadas e pessoas em situação de união de facto, disse-se:
«(…)
10. Numa certa perspectiva, segundo a qual a distinção entre pessoas casadas e
pessoas em situação de união de facto, para efeitos de atribuição de uma
compensação por danos não patrimoniais sofridos por morte da vítima, se afigura
destituída de fundamento razoável, constitucionalmente relevante, poder-se-ia
chegar, no presente recurso, logo a uma conclusão de inconstitucionalidade por
violação do princípio da igualdade.
A aplicação do princípio da igualdade constitucionalmente consagrado tem sido
reconduzida à censura de distinções sem fundamento racional, justo ou objectivo
(veja-se, no direito privado, e a propósito do direito da família, Carlos
Alberto da Mota Pinto, Teoria geral do direito civil, 3ª ed., Coimbra, 1985,
págs. 78-80 e 148, nota 2). Como se disse no Acórdão n.º 14/2000 (DR, II série,
de 19 de Outubro de 2000):
“A propósito do princípio da igualdade, teve já este Tribunal, por inúmeras
vezes, oportunidade de sobre o mesmo discretear, citando‑se, a título de exemplo
o Acórdão n.º 1007/96 (publicado no Diário da República, 2ª Série, de 12 de
Dezembro de 1996), onde, uma vez mais, se realçou que o princípio da igualdade
‘obriga que se trate como igual o que for necessariamente igual e como diferente
o que for essencialmente diferente; não impede a diferenciação de tratamento,
mas apenas a discriminação arbitrária, a irrazoabilidade, ou seja, o que aquele
princípio proíbe são as distinções de tratamento que não tenham justificação e
fundamento material bastante. Prossegue-se assim uma igualdade material, que não
meramente formal’. E acrescentou-se nesse aresto que ‘[p]ara que haja violação
do princípio constitucional da igualdade, necessário se torna verificar,
preliminarmente, a existência de uma concreta e efectiva situação de
diferenciação injustificada ou discriminação’.
Nas palavras de Maria DA Glória Ferreira Pinto (in Boletim do Ministério da
Justiça, n.º 358, pág. 44), ‘[o] critério valorativo a que o princípio da
igualdade, enquanto princípio jurídico, apela, não deve ser, em consequência, um
critério de valores subjectivos, mas, pelo contrário, um critério retirado do
quadro de valores vigentes numa sociedade, interpretados objectivamente. É certo
que tais valores vivem no âmbito das alterações históricas e civilizacionais, só
sendo materialmente determináveis em presença de uma sociedade em concreto, mas
nem por isso deixa de ser um quadro de valores objectivo’.”
E pode, ainda, recordar-se o que, recentemente, se escreveu a propósito no
Acórdão n.º 187/2001 (DR, II série, de 26 de Junho de 2001):
«(...)
É sabido que o princípio da igualdade, tal como tem sido entendido na
jurisprudência deste Tribunal, não proíbe ao legislador que faça distinções –
proíbe apenas diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, sem
uma justificação razoável, segundo critérios objectivos e relevantes. É esta,
aliás, uma formulação repetida frequentemente por este Tribunal (cf., por
exemplo, os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 39/88, 325/92, 210/93, 302/97, 12/99 e
683/99, publicados, nos ATC, respectivamente, vol. 11º, pp. 233 e ss.,vol. 23º,
pp. 369 e ss., vol. 24º, pp. 549 e ss., vol. 36º, pp. 793 e ss., e no Diário da
República, II Série, de 25 de Março de 1999 e de 3 de Fevereiro de 2000).
Como princípio de proibição do arbítrio no estabelecimento da distinção, tolera,
pois, o princípio da igualdade a previsão de diferenciações no tratamento
jurídico de situações que se afigurem, sob um ou mais pontos de vista,
idênticas, desde que, por outro lado, apoiadas numa justificação ou fundamento
razoável, sob um ponto de vista que possa ser considerado relevante.
Ao impor ao legislador que trate de forma igual o que é igual e desigualmente o
que é desigual, esse princípio supõe, assim, uma comparação de situações, a
realizar a partir de determinado ponto de vista. E, justamente, a perspectiva
pela qual se fundamenta essa desigualdade, e, consequentemente, a justificação
para o tratamento desigual, não podem ser arbitrárias. Antes tem de se poder
considerar tal justificação para a distinção como razoável, constitucionalmente
relevante.
O princípio da igualdade apresenta-se, assim, como um limite à liberdade de
conformação do legislador. Como se salientou no Acórdão n.º 425/87 (ATC, vol.
10º, pp. 451 e ss.),
“O âmbito de protecção do princípio da igualdade abrange diversas dimensões:
proibição do arbítrio, sendo inadmissíveis, quer a diferenciação de tratamento
sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de valor objectivos
constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações
manifestamente desiguais; proibição de discriminação, não sendo legítimas
quaisquer diferenciações de tratamento entre os cidadãos baseadas em categorias
meramente subjectivas ou em razão dessas categorias; obrigação de diferenciação,
como forma de compensar a desigualdade de oportunidades, o que pressupõe a
eliminação pelos poderes públicos de desigualdades fácticas de natureza social,
económica e cultural (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da
República Portuguesa Anotada, I vol., 2ª ed., Coimbra, 1984, pp. 149 e segs.).
A proibição do arbítrio constitui um limite externo da liberdade de conformação
ou de decisão dos poderes públicos, servindo o princípio da igualdade como
princípio negativo do controlo.
Todavia, a vinculação jurídico-material do legislador a este princípio não
elimina a liberdade de conformação legislativa, pois lhe pertence, dentro dos
limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as
relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar
igual ou desigualmente.
Só existe violação do princípio da igualdade enquanto proibição de arbítrio
quando os limites externos da discricionariedade legislativa são afrontados por
carência de adequado suporte material para a medida legislativa adoptada.
Por outro lado, as medidas de diferenciação devem ser materialmente fundadas sob
o ponto de vista da segurança jurídica, da praticabilidade, da justiça e da
solidariedade, não se baseando em qualquer razão constitucionalmente imprópria.”
Mais recentemente, no Acórdão n.º 409/99 (DR, II série, de 10 de Março de 1999)
disse-se que:
“O princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República
Portuguesa, impõe que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e
que se trate diferentemente o que for essencialmente diferente. Na verdade, o
princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionariedade
legislativa, não veda à lei a adopção de medidas que estabeleçam distinções.
Todavia, proíbe a criação de medidas que estabeleçam distinções
discriminatórias, isto é, desigualdades de tratamento materialmente não fundadas
ou sem qualquer fundamentação razoável, objectiva e racional. O princípio da
igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se numa ideia geral de
proibição do arbítrio (cf., quanto ao princípio da igualdade, entre outros, os
Acórdãos nºs 186/90, 187/90, 188/90, 1186/96 e 353/98, publicados in ‘Diário da
República’, respectivamente, de 12 de Setembro de 1990, 12 de Fevereiro de 1997,
e o último, ainda inédito).”
E no Acórdão N.º 245/2000 (DR, II série, de 3 de Novembro de 2000) salientou-se
que
“(...) tem, de há muito, vindo a afirmar este Tribunal que é ‘sabido que o
princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionaridade
legislativa, não veda à lei a realização de distinções. Proíbe-lhe, antes, a
adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias – e assumem,
desde logo, este carácter as diferenciações de tratamentos fundadas em
categorias meramente subjectivas, como são as indicadas, exemplificativamente,
no n.º 2 do artigo 13º da Lei Fundamental –, ou seja, desigualdades de
tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável
(vernünftiger Grund) ou sem qualquer justificação objectiva e racional. Numa
expressão sintética, o princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da
lei, traduz-se na ideia geral de proibição do arbítrio (Willkürverbot)’ (cfr.,
por entre muitos outros, o Acórdão nº 1186/96, publicado no Diário da República,
2ª Série, de 12 de Fevereiro de 1997), ou, dito ainda de outra forma, o
‘princípio da igualdade (...) impõe se dê tratamento igual ao que for
essencialmente igual e se trate diferentemente o que diferente for. Não proíbe
as distinções de tratamento, se materialmente fundadas; proíbe, isso sim, a
discriminação, as diferenciações arbitrárias ou irrazoáveis, carecidas de
fundamento racional’ (verbi gratia, Acórdão nº 1188/96, ob. cit., 2ª Série, de
13 de Fevereiro de 1997).”»
Ora, admitir-se-á que, na perspectiva referida, se entenda que a diferenciação
entre o cônjuge e a pessoa que convivia com a vítima em união de facto estável e
duradoura, para o efeito de excluir a possibilidade de compensar os danos não
patrimoniais sofridos por esta última com a morte da vítima, é destituída de
fundamento razoável.
Na verdade, como destituída de fundamento razoável não há que considerar apenas
a diferenciação de tratamento que possa considerar-se verdadeiramente
arbitrária, mas também aquela que se baseie num critério que não possa ser
relevante, considerando o efeito jurídico visado.
E, na referida perspectiva, aceitar-se-á que a existência de um vínculo
matrimonial, por contraposição à convivência em união estável e duradoura, não
constitui só por si um fundamento razoável para excluir a compensação do
sofrimento e da dor sofridos com a morte pela(o) companheira(o) da vítima de um
homicídio doloso.
Designadamente, o fundamento apontado em geral para a previsão de um conjunto de
pessoas cujos danos não patrimoniais, resultantes da morte da vítima, são
susceptíveis de ser levados em conta, consistente em evitar a multiplicação das
pretensões indemnizatórias em consequência desta lesão (razão pela qual as
“excelências da equidade” teriam de ser “sacrificadas às incontestáveis
vantagens do direito estrito” – Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil
anotado, vol. I, 4ª ed., com a colab. de Henrique Mesquita, pág. 501), não é
aplicável à dimensão normativa em causa, em que está em causa a compensação da
dor e do sofrimento da pessoa que convivia em união estável e duradoura, em
condições análogas às dos cônjuges, da qual existiam até dois filhos menores,
com a vítima de um homicídio doloso.
É certo que a morte de uma pessoa é um evento que é susceptível de causar danos
não patrimoniais a um círculo alargado de pessoas. E pode também concordar-se
com a conveniência em evitar que o lesante por mera culpa se veja assoberbado
por pretensões indemnizatórias deduzidas por um número ilimitado de pessoas. Por
estas razões, compreende-se que no n.º 2 do artigo 496º o legislador se tenha
preocupado em enumerar o círculo de pessoas cujos danos não patrimoniais,
causados pela morte da vítima, são atendíveis, e que se tenha mesmo preocupado
em dividir tais pessoas em TRÊS grupos (primeiro, o cônjuge não separado
judicialmente de pessoas e bens e os filhos ou outros descendentes; “na falta
destes”, os pais ou outros ascendentes; e, “por último”, os irmãos ou sobrinhos
que os representem). Isto, aliás, diversamente do que acontecia no anteprojecto
do articulado relativo ao direito das obrigações, para o Código Civil de 1966, o
qual previa, no seu artigo 759º, n.º 3, que no caso de morte de uma pessoa,
“quando as circunstâncias o impuserem, pode reconhecer-se direito de satisfação
a outros parentes, a afins ou estranhos à família, desde que tais pessoas
estivessem ligadas à vítima de maneira a constituírem de facto família dela” –
Adriano Vaz Serra, Direito das obrigações (com excepção dos contratos em
especial) – Anteprojecto, Lisboa, 1960, artigo 759º, n.º 3, pág. 624.
Na dimensão normativa em causa, porém, não só o beneficiário da indemnização se
encontra perfeitamente delimitado, e é apenas um (pretendendo ser colocado no
mesmo plano do cônjuge, e, portanto, no primeiro grupo dos titulares de
indemnização), como – conforme bem nota o Ministério Público – não merece
certamente tutela o eventual interesse do homicida doloso em se eximir à
compensação de todos os danos que provocou com o homicídio.
Por outro lado, sob a perspectiva do fundamento para o reconhecimento da
compensação – que reside, obviamente, na verificação da dor e do sofrimento por
causa do falecimento da vítima, e na justeza de uma compensação por tais danos
–, não se vê como possa relevar a existência de um vínculo matrimonial, em lugar
apenas de uma convivência em união estável e duradoura com outra pessoa, em
condições análogas às dos cônjuges, para excluir completamente a atendibilidade
dos padecimentos sofridos por esta. Estes não são, na verdade, nem qualitativa
nem quantitativamente menos merecedores da tutela do direito por não existir um
vínculo matrimonial.
Não se divisando, pois, fundamento razoável na exclusão da ressarcibilidade dos
danos não patrimoniais sofridos por quem vivia em união de facto com a vítima,
chegar-se-ia, por esta via, a uma conclusão de inconstitucionalidade, por
violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição.
11. Entende-se, porém, que, mesmo a não se perfilhar tal entendimento do
princípio da igualdade, não se é por isso necessariamente conduzido a uma
solução de compatibilidade com a Constituição da solução normativa em apreciação
no presente recurso de constitucionalidade.
Segundo uma outra perspectiva, não se pode excluir a liberdade do legislador de
prever um regime jurídico específico para os cônjuges, visando, por exemplo, a
prossecução de objectivos políticos de incentivo ao matrimónio. Considerando
desde logo a existência de especiais deveres entre os cônjuges, dir-se-ia, como
se afirmou no citado Acórdão n.º 14/2000, que “(...) de harmonia com o nosso
ordenamento (ainda suportado constitucionalmente), o regime das pessoas unidas
pelo matrimónio confrontadamente com a união de facto não permite sustentar que
nos postamos perante situações idênticas à partida e, consequentemente, que
requeiram tratamento igual”. E, portanto, não se divisaria na norma em apreço
violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Lei Fundamental.
Ainda quem adopta tal perspectiva, há-de, porém, necessariamente interrogar-se
sobre a existência de uma justificação atendível para a solução de excluir de
plano e em abstracto todos e quaisquer danos não patrimoniais sofridos
pessoalmente por quem convivia com a vítima de um homicídio doloso em condições
análogas às dos cônjuges.
Na verdade, como este Tribunal já afirmou, o legislador constitucional dispensa
no artigo 36º, n.º 1, protecção à família, enquanto “elemento fundamental da
sociedade”, distinguindo-a, no n.º 1 e no n.º 2 desse artigo, do casamento. E,
portanto, dispensa protecção a uma realidade social que se não funda
necessariamente no matrimónio – uma família não fundada no casamento. Tal
“distinção constitucional entre família, por um lado, e matrimónio por outro”,
que “parece espelhar um entendimento e reconhecimento da família como uma
realidade mais ampla do que aquela que resulta do casamento, que pode ser
denominada de família conjugal”, foi referida por este Tribunal, recentemente,
no Acórdão N.º 690/98 (ATC, vol. 41º, págs. 579 e segs.); na doutrina
civilística, veja-se C. Mota Pinto, ob. cit., pág. 149.
No artigo 36º, n.º 1, a Constituição da República consagra, na verdade, o
“direito de constituir família e de contrair casamento”, distinguindo as duas
realidades – e regista-se, a propósito, que também a recente Carta dos Direitos
Fundamentais da União Europeia (a qual, apesar de não ter eficácia jurídica
obrigatória, pode aqui ser convocada por exprimir princípios comuns aos
ordenamentos europeus) consagra diferenciadamente, no seu artigo 9º, o “direito
de contrair casamento e o direito de constituir família”, podendo ler-se, nas
anotações explicativas pela mesa da Convenção que elaborou a Carta, que a
redacção deste artigo, fundada no artigo 12º da Convenção Europeia dos Direitos
do Homem, “foi modernizada de modo a abranger os casos em que as legislações
nacionais reconhecem outras formas de constituir família além do casamento”.
A Constituição da República Portuguesa, depois de reconhecer o direito a
constituir família, que se não funda necessariamente no casamento, reconhece no
artigo 67º, n.º 1, à “família, como elemento fundamental da sociedade”, o
“direito à protecção da sociedade e do Estado e à efectivação de todas as
condições que permitam a realização pessoal dos seus membros.”
Ainda que se entenda que daquela distinção e desta norma não resulta uma
imposição para o legislador de reconhecer e proteger, em geral, a união de facto
estável e duradoura, em condições análogas às dos cônjuges, e a família nela
fundada, em termos idênticos aos da família baseada no casamento, há-de
certamente extrair-se daí, pelo menos, o dever de não desproteger, sem uma
justificação razoável, a família que se não fundar no casamento – isto, pelo
menos quanto àqueles pontos do regime jurídico que directamente contendam com a
protecção dos seus membros e que não sejam aceitáveis como instrumento de
eventuais políticas de incentivo à família que se funda no casamento.
12. Ora, é justamente tal justificação que não se divisa para a dimensão
normativa em análise, permitindo tal falta distinguir também a situação presente
de outras, já apreciadas por este Tribunal.
Na verdade, já se disse que não procede, em relação à compensação dos
sofrimentos e da dor sofrida por quem convivia com a vítima de um homicídio
doloso em condições análogas às dos cônjuges, nem a justificação consistente na
necessidade de limitar as pretensões indemnizatórias, nem a que valoriza a
necessidade de uma solução certa, já que a expectativa do lesante de se não ver
confrontado com um número não definido de pretensões indemnizatórias não merece
protecção e que o titular do direito à compensação se encontra perfeitamente
determinado. E já se disse também que, para o fundamento do reconhecimento da
compensação por danos não patrimoniais – a verificação da dor e do sofrimento
por causa do falecimento da vítima, e a justeza de uma compensação por tais
danos –, a existência de um vínculo matrimonial, em lugar apenas de uma
convivência em união estável e duradoura com outra pessoa, em condições análogas
às dos cônjuges, é irrelevante.
Acresce, com relevo para a determinação dos limites da discricionariedade
legislativa, que a solução normativa em apreço se reporta a um problema que se
afigura como inadequado para a prossecução de eventuais objectivos políticos de
protecção ou incentivo ao casamento. Basta, para o concluir, considerar que não
está em causa a concessão de um benefício em relação ao qual se verifique a
previsibilidade necessária para se poder descortinar qualquer efeito de
incentivo (ao contrário do que, em certa perspectiva, poderia ser o caso de
outras medidas, como, por exemplo, a concessão de uma preferência para as
pessoas casadas, por exemplo, na colocação como funcionário).
Na norma em questão trata-se, antes, de compensar um dano – e um dano
normalmente de grande gravidade, consistente em sofrimentos e dores, cuja
compensação “merece a tutela do direito”, sendo “indemnizável” nos termos do
regime geral do artigo 496º, n.º 1, do Código Civil. E trata-se de um dano que
resulta de um evento que é evidentemente imprevisível (um homicídio doloso).
Pelo que, mesmo dispensando outras considerações, não se afiguraria adequada e
aceitável, à luz do reconhecimento constitucional de protecção também da família
não fundada no casamento – e do próprio valor da dignidade humana –, a
utilização do regime da “indemnização” pela dor e pelo sofrimento resultantes da
morte para as pessoas que conviviam com a vítima em condições análogas às dos
cônjuges, como instrumento para a prossecução de eventuais objectivos políticos
de incentivo à família fundada no casamento.
Nesta linha, cumpre anotar, por último, que, se já se não encontra justificação
atendível para a desprotecção da família não fundada no casamento, que
resultaria da proibição de consideração dos danos não patrimoniais sofridos pela
pessoa que convivia em união estável e duradoura, em condições análogas às dos
cônjuges, com a vítima de um homicídio doloso, menos ainda será divisável tal
justificação no actual normativo, considerando o regime de protecção da união de
facto actualmente em vigor, previsto na Lei n.º 7/2001. Na verdade, não se
encontra justificação para se reconhecer a tais pessoas variados direitos (cfr.
o artigo 3º do citado diploma), que podem ter como destinatários também
particulares, mas limitar aos cônjuges a protecção que, em caso de morte,
resulta da compensabilidade dos danos não patrimoniais pessoalmente sofridos –
que se refere a danos de grande gravidade e pessoais, que por natureza revestem
sempre uma dimensão individual e de incomensurabilidade.
Também nesta perspectiva – próxima da que, nas suas contra-alegações, adopta o
Ex.mº representante do Ministério Público neste Tribunal – se chegará, pois, a
uma solução de inconstitucionalidade, por violação do artigo 36º, n.º 1, da
Constituição conjugado com o princípio da proporcionalidade, da norma do n.º 2
do artigo 496º do Código Civil por, em caso de morte da vítima de um crime
doloso, excluir o direito de “indemnização por danos não patrimoniais” sofridos
pela pessoa que convivia com a vítima em situação de união de facto, estável e
duradoura, em condições análogas às dos cônjuges.»
Como resulta da fundamentação transcrita, no Acórdão n.º 275/2002 não se
considerou inconstitucional a norma do artigo 496.º, n.º 2, na interpretação
então questionada, por violação do princípio da igualdade, mas antes, e apenas,
“por violação do artigo 36.º, n.º 1, da Constituição conjugado com o princípio
da proporcionalidade” (fundamentos distintos, mas não incompatíveis, para o
juízo de inconstitucionalidade a que se chegou). Esta distinção de fundamentos
resulta claramente, além da fórmula decisória adoptada, do confronto com este
segundo parâmetro (n.ºs 11 e seg. do aresto), exposto “mesmo a não se perfilhar
tal entendimento do princípio da igualdade”, segundo “uma outra perspectiva”,
que não exclui “a liberdade do legislador de prever um regime jurídico
específico para os cônjuges, visando, por exemplo, a prossecução de objectivos
políticos de incentivo ao matrimónio”, considerando “desde logo a existência de
especiais deveres entre os cônjuges”, para se dizer “como se afirmou no citado
Acórdão n.º 14/2000, que ‘(...) de harmonia com o nosso ordenamento (ainda
suportado constitucionalmente), o regime das pessoas unidas pelo matrimónio
confrontadamente com a união de facto não permite sustentar que nos postamos
perante situações idênticas à partida e, consequentemente, que requeiram
tratamento igual’”.
A ratio decidendi do juízo de inconstitucionalidade do Acórdão n.º 275/2002
acha-se, pois, ainda para “quem adopta tal perspectiva” segundo a qual “não se
divisaria na norma em apreço violação do princípio da igualdade consagrado no
artigo 13º da Lei Fundamental”, apenas na “violação do artigo 36.º, n.º 1, da
Constituição conjugado com o princípio da proporcionalidade”.
6.Afigura-se, porém, essencial recordar a forma como se concretizou o confronto
com o princípio da proporcionalidade. Com efeito, depois de se observar que o
legislador constitucional não quis reduzir a noção de família à união conjugal
baseada no casamento, e que impõe a protecção da “família, como elemento
fundamental da sociedade”, com “um dever de não desproteger, sem uma
justificação razoável, a família que se não fundar no casamento”, a apreciação
da conformidade com o princípio da proporcionalidade não se centrou em qualquer
“desproporção” das consequências do regime jurídico (que, efectivamente, podem
ser tão ou mais gravosas, por exemplo, no não reconhecimento da qualidade de
sucessível na sucessão legitimária). O iter seguido para o confronto com o
princípio da proporcionalidade, passou, antes, pela averiguação daquela
“justificação razoável” especificamente para a solução normativa em questão,
atentando, precisamente, na relação entre a justificação que para ela é
adiantada e os dados do caso em que a dimensão normativa impugnada fora aplicada
(e recorde-se que se tratou de decisão proferida em fiscalização concreta e
incidental da constitucionalidade).
No contexto dessa averiguação da conformidade com o princípio da
proporcionalidade, enquanto princípio geral atinente à relação entre meios e
fins da actuação do poder público (conjugada com a protecção constitucional
também da “família não fundada no casamento”), logo se pôde verificar a total
desadequação da dimensão normativa então em apreciação às justificações ou
finalidades para ela adiantadas. Salientou-se, assim, que, para a “compensação
dos sofrimentos e da dor sofrida por quem convivia com a vítima de um homicídio
doloso em condições análogas às dos cônjuges”, não podia proceder, nem a
justificação da solução do artigo 496.º, n.º 2, “consistente na necessidade de
limitar as pretensões indemnizatórias, nem a que valoriza a necessidade de uma
solução certa, já que a expectativa do lesante de se não ver confrontado com um
número não definido de pretensões indemnizatórias não merece protecção e que o
titular do direito à compensação se encontra perfeitamente determinado”
(itálicos aditados – e cf. também já antes, a propósito do princípio da
igualdade, no n.º 10 da fundamentação do Acórdão n.º 275/2002). E ainda se
verificou, “com relevo para a determinação dos limites da discricionariedade
legislativa”, que a solução normativa em apreço se reporta a um problema que se
afigura como “inadequado para a prossecução de eventuais objectivos políticos de
protecção ou incentivo ao casamento”, não só por estar em causa compensar um
dano, normalmente de grande gravidade, como por este resultar de “um evento que
é evidentemente imprevisível (um homicídio doloso)”.
Só estes passos permitiram concluir pela existência de “violação do artigo 36.º,
n.º 1, da Constituição conjugado com o princípio da proporcionalidade” no caso
decidido pelo Acórdão n.º 275/2002, como resulta logo da leitura da sua
fundamentação – e sem que se afigure necessário recordar as virtudes,
democráticas e para o próprio funcionamento de um órgão de fiscalização concreta
da constitucionalidade, do emprego de fundamentações estreitas e limitadas à
dimensão normativa aplicada (analisadas, para a Supreme Court americana, por
Cass Sunstein, One Case at a Time/Judicial Minimalism on the Supreme Court,
Cambridge, Mass., Harvard Un. Press, 1999, esp. pp. 259 e ss., embora sem deixar
de notar o compromisso entre tais virtudes e a eficácia fora de cada processo da
actuação do intérprete da Constituição).
E note-se, ainda, que as considerações expendidas na fundamentação do Acórdão
n.º 275/2002, relevantes, nos termos expostos, à luz do princípio da
proporcionalidade não dependeram de qualquer tomada de posição na discussão
sobre a verdadeira natureza ou função da “indemnizaçao”, “compensação” ou
“satisfação” (“Genugtuung”) por danos não patrimoniais (nos termos do artigo
496.º, n.º 1, apenas dos que “pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”),
isto é, numa discussão em que, como é sabido, tem também sido defendida, entre
outras posições, a da atribuição de uma função sancionatória ou punitiva, ou
pelo menos de uma dupla função, compensatória e punitiva, a tal “satisfação” –
dando nota desta posição, v. António Pinto Monteiro, “Sobre a reparação dos
danos morais”, in Revista Portuguesa do Dano Corporal, ano 1.º, 1, 1992, pp.
17-25 (20 e s.); Júlio Gomes, “Uma função punitiva para a responsabilidade civil
e uma função reparatória para a responsabilidade penal?”, Revista de Direito e
Economia, Coimbra, ano 15, 1989, pp. 105-144 (116 e ss.); recentemente, v. Paula
Meira Lourenço, A função punitiva da responsabilidade civil, Coimbra, Coimbra
Ed., 2006, pp. 278 e ss., e Mafalda Miranda Barbosa, “Reflexões em torno da
responsabilidade civil: teleologia e teleonomologia em debate”, Boletim da
Faculdade de Direito, Coimbra, vol. , 2005, pp. 511-600 (565 e ss., contra o
reconhecimento de uma função punitiva).
7.A decisão proferida no Acórdão n.º 275/2002 foi objecto de análise sobretudo
no plano da comparação entre a posição do cônjuge e de quem vive em “união de
facto” com outrem, à luz das normas e princípios constitucionais sobre a família
e o casamento. É certo que, como se disse, se aceitou então a relevância, para a
noção constitucional de família, também da “família não fundada no casamento”,
rejeitando a redução da família à que assenta no matrimónio (contra tal redução
à família “matrimonializada”, v. também J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira,
Constituição da República Portuguesa anotada, 4.ª ed., Coimbra, Coimbra Ed.,
2006, art. 36.º, anot. II, p. 561), e que se afirmou “um dever de não
desproteger, sem uma justificação razoável”.
Nos presentes autos, pode reiterar-se este entendimento, que só por si está,
porém, longe de implicar qualquer equiparação geral do regime da família fundada
no casamento e da família não assente no matrimónio (v. também J. J. Gomes
Canotilho/Vital Moreira, ob. e loc. cits.). Antes tem mesmo sido defendido entre
nós que uma tal equiparação geral esbarraria também com obstáculos
jurídico‑constitucionais (v. F. Pereira Coelho/G. de Oliveira, Curso…, cit., p.
106, F. Pereira Coelho, “Casamento e divórcio no ensino de Manuel de Andrade”,
in Ciclo de conferências em homenagem póstuma ao Prof. Manuel de Andrade,
Coimbra, Almedina, 2002, pp. 55-72, 67 e s., falando de violação do direito de
não casar; e N. Salter Cid, ob. cit., pp. 540 e s.), ou que seria contrariada
pela própria ideia de igualdade perante a lei (António Arnaut, Ética e Direito,
Coimbra, Livraria Mateus, 1999, p. 26).
8.Mais do que uma comparação “transversal” entre a posição do cônjuge e de quem
vive em “união de facto” com outrem, a “revisitação” efectuada à decisão do
Tribunal Constitucional que o recorrente invoca, e que o acórdão recorrido se
preocupou em “desqualificar” como precedente, impõe, porém, que se recorde e
aprofunde a referência, contida já no Acórdão n.º 275/2002, especificamente à
ratio da delimitação, pelo n.º 2 do artigo 496.º, dos titulares de um direito a
uma “indemnização” (compensação ou “satisfação”) por danos não patrimoniais por
morte da vítima, e em particular no que toca ao problema da exclusão daqueles
que de facto, tendo em conta as circunstâncias do caso, eram mais próximos
desta.
O problema é – contrariamente ao que se poderia pensar – bastante anterior ao
reconhecimento legislativo de efeitos jurídicos da “união de facto”, entre nós e
lá fora. Adriano Vaz Serra tratou-o assim já em 1959, nos trabalhos
preparatórios do Código Civil (“Reparação do dano não patrimonial”, Boletim do
Ministério da Justiça, n.º 83, pp. 69-111, esp. 96-98), depois de perguntar a
quem deve ser reconhecido o direito à compensação em causa (e baseando-se em
doutrina alemã e suíça da primeira metade do século XX):
«Não parece que deva ser reconhecido aos herdeiros como tais, os quais podem ser
estranhos à família, caso em que não terão, em regra, dor moral suficiente para
justificar uma compensação.
Tal direito deve ser reservado para os familiares da vítima, que são as pessoas
nas quais é de presumir a existência de sentimentos de afeição bastante fortes.
Mas, por um lado, esses sentimentos podem ser ainda mais fortes da parte de
pessoas estranhas à família juridicamente entendida; e, por outro lado, o facto
de ser membro da família não implica necessariamente a existência de uma afeição
suficiente.
Pareceria assim, que por família, para este efeito, deveriam entender-se aquelas
pessoas que, segundo as circunstâncias materiais do caso concreto, desempenham
de facto as funções de família [citando, neste sentido, A. von Tuhr]. Essas
pessoas seriam as que, pelas especiais relações com a vítima, é de presumir
sofrerem mais, na sua afeição, com a morte dela. O critério não seria, pois,
jurídico, mas de facto.
No entanto, poderia também entender-se que só às pessoas ligadas juridicamente
por laços de família (Cônjuge, parentes e afins) deveria reconhecer-se o direito
à satisfação de danos não patrimoniais. As outras não tinham o direito de contar
com a continuação da situação de facto em que se encontravam com o falecido e
não poderiam, portanto, alegar danos, patrimoniais ou não, resultantes da morte
dele.
Assim, a concubina ou a noiva não poderiam reclamar a referida satisfação, nem o
poderiam fazer outras pessoas colocadas de facto na situação de familiares.
Dadas as razões que podem ser invocadas num sentido e no outro, talvez seja
preferível usar uma fórmula que permita à jurisprudência decidir como lhe
parecer melhor, ou, reconhecendo, em princípio, o direito de satisfação aos
parentes, permitir que se atribua tal direito a pessoas estranhas à família mas
ligadas à vítima de modo a constituírem de facto família dela.
(…)
Se não se limitasse assim o direito à satisfação do dano não patrimonial,
poderia ele ser invocado por vezes por um número considerável de pessoas, com o
resultado de o responsável ter que pagar quantia avultadíssima ou com o de a
cada um dos prejudicados se dar uma importância tão diminuta que seria
praticamente nula.»
Vaz Serra referia ainda, em nota, que, “quanto à concubina”, poderia intervir,
para excluir o direito à compensação, a consideração da “atitude tomada a
respeito da união livre” (p. 98, n. 58, e pp. 91-92). Mas concluía propondo
(também como alternativa) que no caso de morte de uma pessoa, quando as
circunstâncias de facto o impusessem, poderia “reconhecer-se direito de
satisfação a outros parentes, a afins ou estranhos à família, desde que tais
pessoas estivessem ligadas à vítima de maneira a constituírem de facto família
dela” – ob. cit., p. 107, e Adriano Vaz Serra, Direito das obrigações (com
excepção dos contratos em especial) – Anteprojecto, Lisboa, 1960, artigo 759º,
n.º 3, p. 624 (itálico aditado).
O projecto de Código Civil (artigo 498.º, n.º 2) veio, porém, a fixar-se na
alternativa de reconhecimento da “indemnização por danos não patrimoniais” por
morte “em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e
aos filhos ou outros descendentes, na falta destes, aos pais ou outros
ascendentes, e, por último aos irmãos ou sobrinhos que os representem”, numa
solução em que (segundo Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado,
vol. I, 4.ª ed., Coimbra, Coimbra Ed., 1987, art. 496.º, anot. 5, p. 501), as
“excelências da equidade tiveram de ser sacrificadas às incontestáveis vantagens
do direito estrito”.
Considerando que a morte de uma pessoa é um evento lesivo susceptível de causar
danos não patrimoniais a um círculo alargado de pessoas, a delimitação dos
possíveis titulares da compensação por danos não patrimoniais (próprios) em caso
de morte da vítima obedeceu, fundamentalmente, já a uma razão de certeza,
evitando-se a multiplicação indeterminada de pretensões indemnizatórias em
consequência da morte, já à conveniência em evitar que o lesante por mera culpa
se visse assoberbado por pretensões indemnizatórias deduzidas por um número
alargado, ou mesmo ilimitado, de pessoas, com as quais não poderia contar. Por
estas razões, no n.º 2 do artigo 496º o legislador limitou o leque de pessoas
cujos danos não patrimoniais, causados directamente pela morte da vítima, são
atendíveis, e dividiu mesmo tais pessoas em dois grupos, segundo uma presunção
assente na proximidade familiar (primeiro, o cônjuge não separado judicialmente
de pessoas e bens e os filhos ou outros descendentes; “na falta destes”, os pais
ou outros ascendentes; e, “por último”, os irmãos ou sobrinhos que os
representem).
Disse-se no Acórdão n.º 275/2002 que tais justificações se revelavam
desajustadas à dimensão normativa em questão nesse caso, por o beneficiário da
indemnização se encontrar então perfeitamente delimitado e ser apenas um, e por
não merecer “certamente tutela o eventual interesse do homicida doloso em se
eximir à compensação de todos os danos que provocou com o homicídio”.
Há que apurar se é igualmente assim no presente caso.
9.Revertendo então ao caso dos autos – em que (recorde-se) o que está em causa é
a constitucionalidade da exclusão da “indemnização por danos não patrimoniais”
sofridos pela pessoa que vivia em união de facto com a vítima mortal de acidente
de viação resultante de culpa exclusiva de outrem –, pode igualmente proceder-se
a um confronto com os parâmetros constitucionais relevantes em dois momentos, e
desdobrando a análise segundo o invocado pelo recorrente – que é, recorde-se
também, a “violação do princípio da igualdade consagrado no art.º 13.º da CRP;
do direito a constituir família independentemente de qualquer vínculo formal
estabelecido no art.º 36.º, n.º 1 da nossa Lei Fundamental e da concepção
constitucional de família vertida no art.º 67.º, n.º 1 da Constituição”.
Assim, quem não acompanhasse a decisão proferida no Acórdão n.º 275/2002 (tirado
com dois votos de vencido) dificilmente chegará a uma solução de
inconstitucionalidade no presente caso, considerando que se não está perante um
crime doloso, mas perante um acidente de viação (com violação de regras de
circulação e de deveres de cuidado) provocado por negligência, isto é, não só
perante diferentes graus de culpa, mas perante ilícitos também de diverso tipo e
gravidade, como se notou na decisão recorrida; e considerando, ainda, que, sob a
perspectiva (se não da normal previsibilidade, pelo menos) da frequência dos
ilícitos e dos eventos lesivos em questão, se estava, no caso então decidido,
perante um evento (homicídio doloso) muito pouco frequente, o que, infelizmente,
já se não pode seguramente dizer do que deu origem ao acidente de viação
ocorrido no caso dos autos.
Não existem, com efeito, na dimensão normativa em apreciação no presente
recurso, outras particularidades que, para quem não acompanhasse o juízo de
inconstitucionalidade a que se chegou no Acórdão n.º 275/2002, possam conduzir a
uma conclusão de desconformidade com a Constituição da República, por violação
dos princípios da igualdade ou de outros princípios ou normas constitucionais.
10.Mas mesmo quem tenha subscrito o julgamento de inconstitucionalidade do
Acórdão n.º 275/2002 não é necessariamente conduzido, pelo seus fundamentos, a
uma solução de incompatibilidade com a Constituição da solução normativa em
apreciação no presente recurso de constitucionalidade.
Quanto ao princípio da igualdade, já se notou que ele não constituiu o
fundamento decisivo para a decisão tomada maioritariamente no Acórdão n.º
275/2002. E recorde‑se, a propósito, o que se disse no citado Acórdão n.º
195/2003:
«Ora, como este Tribunal tem reconhecido, existem diferenças importantes, que o
legislador pode considerar relevantes, entre a situação de duas pessoas casadas,
e que, portanto, voluntariamente optaram por alterar o estatuto jurídico da
relação entre elas – mediante um “contrato celebrado entre duas pessoas de sexo
diferente que pretendem constituir familía mediante uma plena comunhão de vida,
nos termos das disposições deste Código”, como se lê no artigo 1577º do Código
Civil –, e a situação de duas pessoas que (embora convivendo há mais de dois
anos “em condições análogas às dos cônjuges”) optaram, diversamente, por manter
no plano de facto a relação entre ambas, sem juridicamente assumirem e
adquirirem as obrigações e os direitos correlativos ao casamento.»
E, posteriormente, no também citado Acórdão n.º 159/2005:
«Assim, na óptica do princípio da igualdade, a situação de duas pessoas que
declaram a intenção de conceder relevância jurídica à sua união e a submeter a
um determinado regime (um específico vínculo jurídico, com direitos e deveres e
um processo especial de dissolução) não tem de ser equiparada à de quem,
intencionalmente, opta por o não fazer. O legislador constitucional não pode ter
pretendido retirar todo o espaço à prossecução, pelo legislador
infra-constitucional, cujo programa é sufragado democraticamente, de objectivos
políticos de incentivo ao matrimónio enquanto instituição social, mediante a
formulação de um regime jurídico próprio – por exemplo, distinguindo entre a
posição sucessória do convivente em união de facto (reduzida ao referido direito
a exigir alimentos da herança) e a do cônjuge.»
O regime da indemnização por danos não patrimoniais em caso de morte da vítima
é, justamente, um desses pontos submetidos a um regime jurídico distinto, tal
como distintas são, também, as relações entre a vítima e quem pede a
indemnização.
Não existe, pois, violação do princípio da igualdade na norma em apreciação.
11.Como resulta do que se disse, e também se afirmou no citado Acórdão n.º
159/2005,
«Superada a objecção que se pudesse pretender extrair do princípio da igualdade,
e admitida a presente diferenciação à luz da política legislativa que o
legislador democrático entenda dever prosseguir, não ficam, porém, dissipados
todos os argumentos conducentes a uma conclusão de inconstitucionalidade. Aliás,
o acórdão recorrido [dir-se-á, agora, o Acórdão n.º 275/2002] baseou o seu
julgamento de inconstitucionalidade, decisivamente, na invocação do princípio da
proporcionalidade (conjugado com o reconhecimento constitucional da “família não
fundada no casamento”) […].»
Sobre o confronto com o princípio da proporcionalidade conjugado com o
reconhecimento constitucional da “família não fundada no casamento” importa
novamente recordar que, como também já se notou (e se disse igualmente no
Acórdão n.º 159/2005),
«[…]o que está em causa no confronto de uma solução normativa com o princípio da
proporcionalidade não é simplesmente a gravidade ou a dimensão das desvantagens
ou inconvenientes que pode acarretar para os visados (com, por exemplo, a
necessidade da prova da carência de alimentos, ou, mesmo, a exclusão total de
certos direitos). O recorte de um regime jurídico – como o da destruição do
vínculo matrimonial ou o dos seus efeitos sucessórios – pela hipótese do
casamento, deixando de fora situações que as partes não pretenderam
intencionalmente submeter a ele, tem necessariamente como consequência a
exclusão dos respectivos efeitos jurídicos. O que importa apurar é se tal
recorte é aceitável – se segue um critério constitucionalmente aceitável – tendo
em conta o fim prosseguido e as alternativas disponíveis – sem deixar de
considerar a ampla margem de avaliação de custos e benefícios e como de escolha
dessas alternativas, que, à luz dos objectivos de política legislativa que ele
próprio define dentro do quadro constitucional, tem de ser reconhecida ao
legislador (e que este Tribunal reconheceu, por exemplo, no Acórdão n.º
187/2001, publicado no Diário da República, II série, de 26 de Junho de 2001).»
Mas lembre-se, também, o que este Tribunal tem afirmado sobre o alcance do
princípio da proporcionalidade como parâmetro de controlo jurisdicional da
actividade legislativa. Afirmou-se, assim, seguindo anterior jurisprudência, no
citado Acórdão n.º 187/2001:
«Não pode contestar-se que o princípio da proporcionalidade, mesmo que
originariamente relevante sobretudo no domínio do controlo da actividade
administrativa, se aplica igualmente ao legislador. Dir-se-á mesmo – como o
comprova a própria jurisprudência deste Tribunal – que o princípio da
proporcionalidade cobra no controlo da actividade do legislador um dos seus
significados mais importantes. Isto não tolhe, porém, que as exigências
decorrentes do princípio se configurem de forma diversa para a actividade
administrativa e legislativa – que, portanto, o princípio, e a sua prática
aplicação jurisdicional, tenham um alcance diverso para o Estado‑Administrador e
para o Estado-Legislador.
Assim, enquanto a administração está vinculada à prossecução de finalidades
estabelecidas, o legislador pode determinar, dentro do quadro constitucional, a
finalidade visada com uma determinada medida. Por outro lado, é sabido que a
determinação da relação entre uma determinada medida, ou as suas alternativas, e
o grau de consecução de um determinado objectivo envolve, por vezes, avaliações
complexas, no próprio plano empírico (social e económico). É de tal avaliação
complexa que pode, porém, depender a resposta à questão de saber se uma medida é
adequada a determinada finalidade. E também a ponderação suposta pela
exigibilidade ou necessidade pode não dispensar essa avaliação.
Ora, não pode deixar de reconhecer-se ao legislador – diversamente da
administração –, legitimado para tomar as medidas em questão e determinar as
suas finalidades, uma “prerrogativa de avaliação”, como que um “crédito de
confiança”, na apreciação, por vezes difícil e complexa, das relações empíricas
entre o estado que é criado através de uma determinada medida e aquele que dela
resulta e que considera correspondente, em maior ou menor medida, à consecução
dos objectivos visados com a medida (que, como se disse, dentro dos quadros
constitucionais, ele próprio também pode definir). Tal prerrogativa da
competência do legislador na definição dos objectivos e nessa avaliação (com o
referido “crédito de confiança” – falando de um “Vertrauensvorsprung”, v. Bodo
Pieroth/Bernhard Schlink, Grundrechte. Staatsrecht II, 14.ª ed., Heidelberg,
1998, n.ºs 282 e 287) afigura-se importante sobretudo em casos duvidosos, ou em
que a relação medida-objectivo é social ou economicamente complexa, e a
objectividade dos juízos que se podem fazer (ou suas hipotéticas alternativas)
difícil de estabelecer.
Significa isto, pois, que, em casos destes, em princípio o Tribunal não deve
substituir uma sua avaliação da relação, social e economicamente complexa, entre
o teor e os efeitos das medidas, à que é efectuada pelo legislador, e que as
controvérsias geradoras de dúvida sobre tal relação não devem, salvo erro
manifesto de apreciação – como é, designadamente (mas não só), o caso de as
medidas não serem sequer compatíveis com a finalidade prosseguida –, ser
resolvidas contra a posição do legislador.
Contra isto não vale, evidentemente, o argumento de que, perante o caso
concreto, e à luz do princípio da proporcionalidade, ou existe violação – e a
decisão deve ser de inconstitucionalidade – ou não existe – e a norma é
constitucionalmente conforme. Tal objecção, segundo a qual apenas poderia
existir “uma resposta certa” do legislador, conduz a eliminar a liberdade de
conformação legislativa, por lhe escapar o essencial: a própria averiguação
jurisdicional da existência de uma inconstitucionalidade, por violação do
princípio da proporcionalidade por uma determinada norma, depende justamente de
se poder detectar um erro manifesto de apreciação da relação entre a medida e
seus efeitos, pois aquém desse erro deve deixar-se na competência do legislador
a avaliação de tal relação, social e economicamente complexa.»
As considerações que precedem afiguram-se relevantes no caso dos autos: o
legislador goza de uma considerável margem de discricionariedade na delimitação,
no artigo 496.º, n.º 2, do círculo das pessoas que podem pedir indemnização por
morte da vítima.
E a apreciação da conformidade com o princípio da proporcionalidade, nos termos
referidos, não deve, também, deixar de tomar em conta – sobretudo em
fiscalização concreta e incidental da constitucionalidade – as particularidades
da dimensão normativa ora em apreciação, e o diverso recorte do caso a que foi
aplicada (pelo que é de acompanhar o Acórdão recorrido, quando salienta a
“faceta de casuísmo” que, para a referida apreciação, teve de impregnar também o
Acórdão n.º 275/2002).
E há, ainda, que recordar que, como este Tribunal tem repetidamente afirmado,
não está em causa, no controlo da constitucionalidade a que procede, a
qualificação do “melhor direito” (e a “desqualificação” do “pior direito”) em si
mesmo, isto é, o juízo sobre qual seria a solução mais conveniente ou que melhor
concilia todos os interesses em presença. Tal é missão do legislador. Ao
Tribunal Constitucional compete apenas um controlo de constitucionalidade, ou
seja, ajuizar sobre a questão de saber se uma solução ou dimensão normativa
viola normas ou princípios constitucionais: não, neste sentido, avaliar o
“melhor direito”, mas apenas dizer o “não direito”, porque incompatível com a
Constituição da República (cf. os seus artigos 3.º, n.º 3, 204.º, 223.º, n.º 1,
e 277.º, n.º 1).
12.Ora, entende-se que o confronto, que levou no citado aresto de 2002 a afirmar
a “violação do artigo 36.º, n.º 1, da Constituição conjugado com o princípio da
proporcionalidade” , entre a justificação da delimitação operada no artigo
496.º, n.º 2, e a dimensão normativa em análise no presente recurso conduz a
resultados diversos dos alcançados naquele aresto. Falta, pois, identidade
substancial, neste aspecto constitucionalmente relevante, entre as normas ou
dimensões normativas em apreciação nos dois casos (podendo, também aqui,
concordar‑se com a decisão recorrida quando não qualifica o Acórdão n.º 275/2002
como “precedente” a seguir pelo tribunal a quo no caso dos autos).
Não é, com efeito, possível detectar no presente caso qualquer falta grosseira
ou evidente de adequação entre a dimensão normativa ora em apreço e as
finalidades dessa delimitação, resultante do artigo 496.º, n.º 2 (note-se,
aliás, e como se referiu, que o legislador goza, neste âmbito, de uma
considerável margem de discricionariedade para ponderar os vários interesses
envolvidos, e sem que se possa retirar da Constituição um certo e único regime
constitucionalmente admissível, e que, na dúvida, sobre tal inadequação sempre
seria de decidir no sentido da inexistência de inconstitucionalidade).
É o que facilmente se conclui, desde logo, para a justificação consistente na
necessidade de limitar as pretensões indemnizatórias, por razões de certeza, que
se pode revelar procedente para lesões que se verificam com uma frequência
diária, e sem qualquer relação prévia entre lesante e lesado (diversamente do
que acontecia com a lesão provocada pelo homicídio no caso do Acórdão n.º
275/2002). Sem tal limitação, os prejuízos não patrimoniais resultantes da morte
poderiam ser invocados frequentemente, e “por vezes por um número considerável
de pessoas, com o resultado de o responsável ter que pagar quantia avultadíssima
ou com o de a cada um dos prejudicados se dar uma importância tão diminuta que
seria praticamente nula” (nas palavras citadas de Vaz Serra).
O que é reforçado pela consideração da expectativa do lesante de se não ver
assoberbado com um número não definido de pretensões indemnizatórias. Na
verdade, afirmou-se, no caso decidido pelo Acórdão n.º 275/2002, que “não merece
certamente tutela o eventual interesse do homicida doloso em se eximir à
compensação de todos os danos que provocou com o homicídio”. Tal posição do
lesante, se não merecia protecção, dada a “gravidade extrema do ilícito” e o
dolo do lesante, no caso do Acórdão n.º 275/2002, não tem de ser considerada
irrelevante – sob pena de erro grosseiro de avaliação do legislador – num caso
como o dos autos, em que está em causa a infracção de regras legais de
circulação rodoviária e de deveres de cuidado, com negligência do lesante, da
qual veio a resultar o acidente que provocou a morte. Não pode, com efeito,
excluir-se que o legislador atenda à conveniência em que os lesantes civis por
mera culpa se não vejam assoberbados por pretensões indemnizatórias deduzidas
por um número ilimitado de pessoas, dada a frequência estatística de situações
como a dos autos.
E neste sentido pode, pois, também concordar-se com a decisão recorrida quando
salienta que a solução encontrada no Acórdão n.º 275/2002, “diferente da, aqui,
defendida, tem, confessadamente, a marca da gravidade extrema do ilícito”, ou
com quem considera questionável a extensão dessa solução “às situações, mais
frequentes, em que a pretensão indemnizatória se insere no quadro da
responsabilidade civil por negligência ou pelo risco” (como A. A. Geraldes, ob.
cit., p. 27). E isto, repete-se, quer para quem não subscrevesse o juízo de
inconstitucionalidade a que se chegou no Acórdão n.º 275/2002, quer para quem
adoptasse a posição que nele fez vencimento.
13.Conclui-se, pois, que a norma do artigo 496.º, n.º 2, do Código Civil, na
parte em que exclui o direito a indemnização por danos não patrimoniais da
pessoa que vivia em união de facto com a vítima mortal de acidente de viação
resultante de culpa exclusiva de outrem, não viola nem o princípio da igualdade
nem o artigo 36.º, n.º 1, da Constituição conjugado com o princípio da
proporcionalidade, parâmetros constitucionais invocados pelo recorrente (já que
nada mais se pode retirar, no sentido da inconstitucionalidade, da invocação da
“concepção constitucional de família vertida no art.º 67.º, n.º 1 da
Constituição”, que não tenha já sido considerado na fundamentação que antecede).
Não se descortinando outros fundamentos para um juízo de inconstitucionalidade,
há que negar provimento ao presente recurso.
III. Decisão
Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 496.º, n.º 2, do
Código Civil, na parte em que exclui o direito a indemnização por danos não
patrimoniais da pessoa que vivia em união de facto com a vítima mortal de
acidente de viação resultante de culpa exclusiva de outrem;
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso e confirmar a decisão
recorrida, no que à questão de constitucionalidade respeita;
c) Condenar o recorrente em custas, com 20 (vinte) unidades de conta
de taxa de justiça.
Lisboa, 6 de Fevereiro de 2007
Paulo Mota Pinto
Benjamim Rodrigues
Mário José de Araújo Torres (vencido, nos termos da declaração de voto junta)
Maria Fernanda Palma (vencida, nos termos de declaração de voto junta)
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido, não especificamente por
considerar constitucionalmente intolerável qualquer diferenciação de tratamento
entre casados e unidos de facto, mas antes por entender que a estatuição do n.º
2 do artigo 496.º do Código Civil, ao restringir às classes de familiares nele
previstas, escalonados em três grupos, é susceptível de não respeitar o direito
à reparação dos “danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a
tutela do direito”, que, a meu ver, constitui uma imposição do princípio do
Estado de direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição da República
Portuguesa (CRP).
Afigura‑se‑me que o artigo 36.º, n.º 1, da CRP
não constitui suporte adequado ou suficiente para o reconhecimento
constitucional da união de facto e, muito menos, para a imposição ao legislador
ordinário da obrigação de atribuir à união de facto efeitos idênticos ao
casamento, seguindo, neste ponto, a posição de Francisco Pereira Coelho e
Guilherme de Oliveira (Curso de Direito da Família, vol. I, 3.ª edição, 2003,
pp. 103‑105 e 161‑166). Ao invés, sendo o estabelecimento de uma união de facto
uma manifestação ou forma de exercício do direito ao desenvolvimento da
personalidade, que a revisão constitucional de 1997 reconheceu de modo explícito
no n.º 1 do artigo 26.º, “a legislação que proibisse a união de facto, que a
penalizasse, impondo sanções aos membros de relação e coarctando de modo
intolerável o direito de as pessoas viverem em união de facto, seria pois
manifestamente inconstitucional” por violação deste artigo 26.º, n.º 1 (e não do
artigo 36.º, n.º 1).
Mas, para além desta vertente “negativa” (isto
é: aquilo que a Constituição diz que a lei não pode fazer), cabe à liberdade de
conformação do legislador a eventual extensão à união de facto de direitos e
deveres tradicionalmente ligados à relação matrimonial. Na vertente “positiva”
(isto é: aquilo que a Constituição impõe que o legislador faça), a aferição da
conformidade constitucional das soluções legislativas deve fazer‑se com apelo ao
concreto direito constitucional em causa (direito à habitação, direito à saúde,
direito à segurança social, direito à protecção da maternidade e da paternidade,
etc.), conjugado com o princípio da proporcionalidade, e não com suporte no
artigo 36.º, n.º 1, da CRP.
No que especificamente concerne ao direito à
reparação dos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela
do direito, a inconstitucionalidade da solução consagrada no n.º 2 do artigo
469.º do Código Civil não se resume à exclusão desse direito quanto aos unidos
de facto, mas, mais amplamente, à não previsão de uma “válvula de segurança” que
permita aos tribunais o reconhecimento desse direito a pessoas que
comprovadamente tenham sofrido um dano dessa intensidade mas que não figurem
nos três grupos de familiares contemplados nessa norma (1.º – cônjuge não
separado judicialmente de pessoas e bens e filhos ou outros descendentes; 2.º –
na falta destes, pais ou outros ascendentes; 3.º – na falta de membros dos dois
anteriores grupos, os irmãos ou os sobrinhos que os representem).
A injustiça dessa solução legal foi logo
reconhecida, no âmbito dos trabalhos preparatórios do Código Civil de 1966, por
Adriano Paes da Silva Vaz Serra (“Reparação do dano não patrimonial”, Boletim do
Ministério da Justiça, n.º 83, pp. 69‑109, em especial pp. 106‑109), quando, a
propósito do direito à reparação pela dor sofrida com a morte de alguém (iure
proprio, e não iure hereditate, este ligado à transmissão do direito à reparação
do sofrimento ou angústia sofridos pela própria vítima), interrogava e
respondia:
“A quem deve ser reconhecido?
Não parece que deva ser atribuído aos herdeiros como tais, os
quais podem ser estranhos à família, caso em que não terão, em regra, dor moral
suficiente para justificar uma compensação. Tal direito deve ser reservado para
os familiares da vítima, que são as pessoas nas quais é de presumir a existência
de sentimentos de afeição bastante fortes. Mas, por um lado, esses sentimentos
podem ser ainda mais fortes da parte de pessoas estranhas à família
juridicamente entendida; e, por outro lado, o facto de ser membro da família
não implica necessariamente a existência de uma afeição suficiente.
Pareceria, assim, que por família, para este efeito, deveriam
entender‑se aquelas pessoas que, segundo as circunstâncias materiais do caso
concreto, desempenham de facto as funções de família.
Essas pessoas seriam as que, pelas especiais relações com a
vítima, é de presumir sofrerem mais, na sua afeição, com a morte dela. O
critério não seria, pois, jurídico, mas de facto.
No entanto, poderia também entender‑se que só às pessoas
ligadas juridicamente por laços de família (cônjuge, parentes e afins) deveria
reconhecer‑se o direito à satisfação de danos não patrimoniais. As outras não
tinham o direito de contar com a continuação da situação de facto em que se
encontravam com o falecido e não poderiam, portanto, alegar danos, patrimoniais
ou não, resultantes da morte dele.
Assim, a concubina ou a noiva não poderiam reclamar a referida satisfação, nem
o poderiam fazer outras pessoas colocadas de facto na situação de familiares.
Dadas as razões que podem ser invocadas num sentido e no outro, talvez seja
preferível usar uma fórmula que permita à jurisprudência decidir como lhe
parecer melhor, ou, reconhecendo, em princípio, o direito de satisfação aos
parentes, permitir que se atribua tal direito a pessoas estranhas à família mas
ligadas à vítima de modo a constituírem de facto família dela.
Os parentes (legais ou de facto, conforme a orientação que se adoptar) ou afins
com direito à satisfação do dano não patrimonial seriam, não quaisquer
parentes, mas os próximos parentes, entendendo‑se como tais aqueles que, pela
proximidade do parentesco, é de presumir tivessem pelo falecido uma afeição tal
que justifique a satisfação.
Poderia pensar‑se que deveriam indicar‑se precisamente quais são esses parentes.
À semelhança do nosso Código actual (artigo 2384.°), poderiam ser os
descendentes e os ascendentes, além do cônjuge.
Mas pode haver outros parentes, a quem parece razoável conceder a satisfação, v.
g., um irmão ou irmã que vivesse com a vítima. Talvez, por conseguinte, seja
preferível não indicar, com carácter exaustivo, os parentes a quem pode ser
reconhecido o direito à satisfação de prejuízos não patrimoniais. Bastará aludir
aos próximos parentes, dependendo depois das circunstâncias de cada caso o saber
se se encontravam em situação que faça presumir a dor. Todavia, poderia
porventura indicar‑se certa ordem entre os parentes, a qual o juiz poderia
alterar, no caso concreto, se as circunstâncias o impusessem.
Se não se limitasse assim o direito à satisfação do dano não patrimonial,
poderia ele ser invocado por vezes por um número considerável de pessoas, com o
resultado de o responsável ter que pagar quantia total avultadíssima ou com o de
a cada um dos prejudicados se dar uma importância tão diminuta que seria
praticamente nula.”
E depois de aludir aos termos em que o direito
deveria ser consagrado relativamente aos cônjuges (viúva e viúvo), filhos
(menores ou menores, nascidos fora ou dentro do casamento), pais (incluindo os
“naturais”), avós e netos (mesmo que existam pais ou filhos, pois “não se trata
aqui de transmissão de indemnização de dano, mas de dar uma compensação pela
dor pessoalmente sofrida; ora, os avós ou os netos podem ter uma dor bastante
forte, não obstante a existência de pais ou de filhos”, pelo que “se as
circunstâncias o justificarem, deve poder o juiz alterar a ordem de precedência
ou lei sucessória”), acrescenta:
“O que se diz desta hipótese pode dizer‑se de outras, em que existam vários
parentes: todos eles, desde que nas suas pessoas se verifiquem os pressupostos
do direito de satisfação, devem poder exigir esta, pois esse direito, baseado na
dor pessoal sofrida, não depende de não existirem outras pessoas em condições
análogas.
O tribunal, porém, a fim de que os parentes mais próximos (e que são aqueles que
presumivelmente terão sofrido maior dor) não sejam prejudicados injustamente com
a concorrência dos outros, parece dever dar, em princípio, preferência aos
parentes mais próximos e proporcionar as satisfações à dor de cada um, além de
excluir aqueles em relação aos quais não se verifiquem os sentimentos de afeição
bastantes.”
Em sintonia com estas considerações, propôs,
como formulação legal alternativa, a seguinte:
“No caso de morte de uma pessoa, podem as pessoas de família
dela exigir a satisfação do dano não patrimonial a elas causado. Essas pessoas
são, em conjunto, o cônjuge e os descendentes, observando‑se, quanto a estes: a
precedência da lei sucessória; na falta de cônjuge ou de descendentes, os
descendentes ou o cônjuge, respectivamente; na falta de cônjuge e de
descendentes, os ascendentes; na falta de cônjuge, descendentes e ascendentes,
os irmãos e os descendentes destes, segundo a ordem da lei sucessória. O direito
de satisfação destas pessoas supõe a existência de laços afectivos que o
justifiquem, e as regras de precedência podem ser alteradas quando as
circunstâncias de facto o impuserem. Quando estas circunstâncias o impuserem,
pode reconhecer‑se direito de satisfação a outros parentes, a afins ou estranhos
à família, desde que tais pessoas estivessem ligadas à vítima de maneira a
constituírem de facto família dela. (…)” (sublinhado acrescentado).
Como é sabido, não foi esta a solução que veio
a ser acolhida na versão final do Código Civil, por se haver entendido que as
“excelências da equidade” deviam ser “sacrificadas às incontestáveis vantagens
do direito estrito” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol.
I, 4.ª edição, p. 501).
Afigura‑se, porém, que a prevenção de uma
incontrolável responsabilidade do causador do dano (“poder‑se‑ia mesmo dizer, no
limite, que a morte de uma pessoa vem prejudicar a Humanidade” – António
Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I – Parte Geral, Tomo III
– Pessoas, Coimbra, 2004, p. 138) pode operar‑se por outros mecanismos
(estabelecimento de limites máximos legais, previsão do recurso à equidade,
etc.) que não pela negação da justa reparação de danos não patrimoniais
merecedores da tutela do direito e comprovadamente sofridos por quem reclama tal
reparação.
Trata‑se de solução que, apesar da orientação
contrária que parece ser preconizada no n.º 19 da Resolução (75)7 do Comité de
Ministros do Conselho da Europa (cf. Nuno de Salter Cid, A comunhão de vida à
margem do casamento: entre o facto e o direito, Coimbra, 2005, pp. 542‑543, nota
83), é legal ou jurisdicionalmente reconhecida em diversas ordens jurídica
próxima da nossa. Em Espanha, face ao artigo 113.º do Código Penal, inserido no
título relativo à responsabilidade civil derivada da criminal (que estatui: “La
indemnización de perjuicios materiales y morales comprenderá no sólo los que se
hubieren causado al agraviado, sino también los que se hubieren irrogado a sus
familiares o a terceros” – sublinhado acrescentado), tem sido sustentada a
legitimidade, para efeitos de reparação de danos não patrimoniais derivados da
morte, de pessoas que, não estando ligadas à vítima por vínculos familiares ou
parafamiliares, a ela estejam ligados por laços de especial afeição (cf. Laura
Gázquez Serrano, La indemnización por causa de morte, Dykinson, Madrid, 2000,
pp. 86‑87). O mesmo se passando em Itália, como assinala Giuseppe Cricenti (Il
danno non patrimoniale, Cedam, Milão, 1999, pp. 276‑277), com diversas
referências jurisprudenciais.
Na verdade, embora seja normal que os
familiares mais próximos da vítima sejam os que maior sofrimento sintam com a
sua perda, não se pode excluir que em vários casos assim não seja, quer dentre o
grupo de familiares em sentido jurídico, quer mesmo fora deles, sejam ou não de
qualificar como familiares “de facto”. Um exemplo dessa realidade, embora a
propósito da legitimidade para constituição como assistente em processo penal,
pode ver‑se no Acórdão n.º 690/98 deste Tribunal, que julgou inconstitucional,
por violação do disposto no artigo 20.º, n.º 1, conjugado com o artigo 67.º, n.º
1, da CRP, a norma constante do artigo 68.º, n.º 1, alínea c), do CPP, quando
interpretada no sentido de não admitir a constituição como assistentes, em
processo penal, aos ascendentes do ofendido falecido, quando lhe haja sobrevivo
cônjuge separado de facto, embora não separado judicialmente de pessoas e bens,
e não tenha descendentes. Como aí se constatou, apesar da preferência legal, era
muito mais forte a ligação afectiva, e consequentemente maior o sofrimento com a
perda da vítima, entre o pai e o filho do que entre este e o seu cônjuge, de
quem estava separado de facto.
Em suma, o carácter taxativo da enumeração das
pessoas com direito a reparação por danos não patrimoniais derivados da morte
de outrem (agravada pelo estabelecimento de classes de precedência), constante
do n.º 2 do artigo 496.º do Código Civil, sem previsão da possibilidade de o
tribunal, em casos especiais, uma vez efectivamente comprovada a existência
desses danos, com gravidade merecedora da tutela do direito, reconhecer o
direito a reparação a terceiros, surge, a meu ver, como constitucionalmente
insolvente.
Mário José de Araújo Torres
DECLARAÇÃO DE VOTO
Tendo sido a primitiva relatora nos presentes autos, voto vencida o Acórdão
considerando o seguinte:
O Tribunal Constitucional já procedeu à apreciação da questão de
constitucionalidade que constitui o objecto do presente recurso de
constitucionalidade.
No Acórdão nº 275/2002, de 19 de Junho (D.R., II Série, de 24 de Julho de 2002)
o Tribunal Constitucional decidiu julgar inconstitucional a norma do artigo
496º, nº 2, do Código Civil, na parte em que, em caso de morte da vítima de um
crime doloso, exclui a atribuição de um direito de indemnização por danos não
patrimoniais pessoalmente sofridos pela pessoa que convivia com a vítima em
situação de união de facto, estável e duradoura, em condições análogas às dos
cônjuges.
A questão objecto do presente recurso é substancialmente idêntica à então
decidida. Com efeito, é agora submetida à apreciação do Tribunal Constitucional
a norma do artigo 496º, nº 2, do Código Civil, na parte em que nega o direito
indemnizatório à pessoa que vivia em união de facto, estável e duradoura, com a
vítima de acidente de viação exclusivamente resultante de culpa de outrem. Os
fundamentos do Acórdão nº 275/2002 são, a meu ver, e diferentemente do que é
considerado no presente Acórdão, transponíveis para os presentes autos.
Ao contrário do que parece ser afirmado no acórdão recorrido (fls. 771), “a
marca da gravidade extrema do ilícito” que originou a morte da vítima no caso
subjacente ao Acórdão nº 275/2002 (tratou‑se de um homicídio doloso) não exclui
a identidade substancial entre a questão de constitucionalidade normativa então
apreciada e a que constitui objecto dos presentes autos. Nesse aresto o Tribunal
Constitucional não configurou o direito indemnizatório da pessoa que vivia em
união de facto com a vítima como sanção do ilícito penal doloso cometido pelo
obrigado à indemnização, não sendo tal circunstância ratio decidendi daquele
Acórdão. Também as expectativas do responsável exclusivo de um acidente de
viação mortal de não vir a ser confrontado com o dever de indemnizar a pessoa
que vivia em condições análogas às dos cônjuges com a vítima de acidente por si
provocado não merecem tutela, quando confrontadas com o interesse do membro
sobrevivente da união de facto ao ressarcimento dos danos não patrimoniais por
si efectivamente sofridos.
Discordo da linha de argumentação expendida no Acórdão do Tribunal
Constitucional quanto à não verificação de semelhança para efeitos de reparação
por danos morais entre a situação dos cônjuges e a das pessoas em união de facto
estável, já que entendo que, nesse plano – o da dor pelo falecimento do parceiro
íntimo – não relevam as diferenças legais e jurídicas entre a situação do
casamento e a de união de facto. Verifica‑se, sim, uma essencial analogia da
relação, na sua base (sexual), e na sua finalidade social (relação familiar).
Finalmente, parece‑me injustificada a diferenciação entre a relevância da
posição do unido de facto sobrevivo quando o outro elemento da relação foi
vítima de um crime doloso e quando se trate de crime negligente (no caso de
acidente de viação). Trata‑se, em ambos os casos, de factos ilícitos e fatais
para a vítima.
A lógica civilística da protecção da entidade seguradora não tem qualquer apoio
em valores constitucionalmente relevantes, nem a diferença entre a união de
facto e o casamento se reflecte, minimamente, no que está em causa – a
responsabilidade do agente por danos morais relativamente às pessoas em união de
facto estável e duradoura com a vítima. Não há qualquer círculo de risco e
expectativas do agente de crime negligente que possam fundamentar uma solução
diferente para o cônjuge sobrevivo e para quem vive, comprovadamente, em
situação análoga.
Discordo, por estas razões, do presente Acórdão, mantendo a convicção de que
nada distingue, na sua essência jurídica, este caso da situação do cônjuge de
vítima de crime negligente.
Maria Fernanda Palma
[1] Código Civil.
[2] Acórdão Uniformizador de Jurisprudência.
[3] Diário da República, I-A, n.º 146, de 27.06.92.
[4] P. Lima e A. Varela, em Código Civil anotado, I, 4.ª edição.
[5] Registada nos pertinentes números do Diário da Assembleia da República.
[6] Esta preocupação foi, com efeito, a primitiva bandeira dos proponentes da
abertura constitucional à união de facto.
[7] Constituição da República Portuguesa.
[8] DL n.º 496/77, de 25-11.
[9] Designação que daremos aos ”cônjuges de facto”.
[10] Lei n.º 46/85, de 20-9.
[11] Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo DL n.º 321-B/90, de 15-10.
[12] Que pôs fim à breve vida da Lei n.º 135/99, de 28-8.
[13] Pssoa que com (o falecido arrendatário) vivia em união de facto há mais de
dois anos, quando o arrendatário não seja casado ou esteja separado
judicialmente de pessoas e bens.
[14] Cfr. art.º 4.º.
[15] Cfr. o art.º 4.º da recente Lei n.º 7/01, citada no texto, onde se atribui
ao companheiro sobrevivo um direito real de habitação periódica.