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Processo n.º 164/07
1ª Secção
Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
Acordam em Conferência no Tribunal Constitucional
1.1 A. reclama para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no n.º 4 do
artigo 76º da Lei 28/82 de 25 de Novembro (LTC), contra a decisão que, no
Supremo Tribunal de Justiça, lhe não admitiu o recurso que pretendia interpor
nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da citada Lei. Alega o seguinte:
«[…]
Consta expressamente do texto do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, em
5.14. o seguinte:
“Actualmente, com efeito. Quem pretenda impugnar um acórdão final do tribunal
colectivo, de duas, uma: se visar exclusivamente o reexame da matéria de direito
(art. 432ºd), dirige o recurso directamente ao Supremo Tribunal de Justiça e, se
o não visar, dirige-o “de facto e de direito”, à Relação, caso em que da decisão
desta, se não for “irrecorrível nos termos do art. 400º”, poderá depois recorrer
para o STJ (art.432.b). 5.15. Só que, nesta hipótese, o recurso — agora
puramente, de revista — terá que visar exclusivamente o reexame da decisão
recorrida (a da Relação) em matéria de direito (com exclusão, por isso, dos
eventuais “erro(s)” das instâncias “na apreciação das provas e na fixação dos
factos materiais em causa”).”
Por via disso, refere o acórdão em 5.10. que “ o recorrente não poderá impugnar
o “dolo homicida” fixado pela Relação (“o arguido - utilizando um instrumento de
natureza corto-perfurante do tipo navalha, cujas características altamente
letais conhecia, manipulando-o de forma inesperada para B. — previu a morte
deste, como consequência possível da sua conduta, conformando-se com tal
possibilidade”), a pretexto de uma qualquer incompatibilidade entre o “dolo”
(ainda que eventual) de morte e a utilização de um canivete/corta-unhas. Pois
que as instâncias fixaram definitivamente que a arma utilizada foi uma arma
branca com lâmina, tipo navalha, (...) cujas características altamente letais (o
arguido) conhecia”.
5.11. Do mesmo modo, o recorrente — com vista a negar o “dolo eventual” em favor
da negligência consciente” — não poderá impugnar, ante o Supremo (como tribunal
de revista), o facto — em que as instâncias assentaram — de que o arguido, ao
utilizar o tal “instrumento de natureza corto-perfurante do tipo navalha, cujas
características altamente letais conhecia”), não só previu a morte como
consequência possível da sua conduta como se conformou com essa eventualidade.”
Ora, baseado no princípio da livre apreciação da prova estipulado no art. 127º
do CPP, e quanto ao tipo de “arma” utilizada, o Supremo Tribunal de Justiça
defendeu em 5.3. que a Relação entendeu que a “convicção do tribunal
(colectivo), se encontrava inequivocamente suportada por elementos objectivos
bastantes: os depoimentos das pessoas que presenciaram os factos; o exame
pericial realizado ao corta-unhas (que não apresentava vestígios de sangue) e os
esclarecimentos da perita médica que descreveu, vistos os efeitos que observou,
as características necessárias da arma” acabando por concluir que o
“corta-unhas” e lâmina nele incorporada não poderiam ter sido “a arma em causa”.
Todavia, o princípio do “in dubio pro reo” obrigava a uma conclusão diferente,
uma vez que a conclusão de que o “corta-unhas” e lâmina nele incorporada não
poderiam ter sido “a arma em causa, não foi uma conclusão da perita médica que
nunca observou o referido objecto, mas sim do tribunal colectivo, então, não
podia este considerar que o arguido conhecia as características altamente letais
de um objecto, que nunca foi identificado ou examinado.
O Supremo Tribunal de Justiça furtou-se a apreciar esta questão, socorrendo-se
da limitação do Art. 410º, 2 e 3.
Aquele imperativo constitucional funciona como um limitação à livre apreciação
da prova, mas se ao STJ fica vedado, no caso concreto, dela conhecer, por força
do preceituado no art. 410º, 2 e 3, é inconstitucional tal interpretação porque
violadora daquele princípio constitucional.
O Recorrente sempre pugnou por esta interpretação, nos recursos interpostos para
a Relação e para o Supremo Tribunal de Justiça. Contudo, não podia prever que o
STJ não apreciasse a questão.
Nestes termos, deve a presente Reclamação ser defenda, admitindo-se o Recuso
para o Tribunal Constitucional.»
1.2 Sobre o mérito esta reclamação diz o representante do Ministério Público
neste Tribunal:
“A presente reclamação é manifestamente infundada.
Na verdade, o STJ não realizou a interpretação normativa especificada, de forma
aliás confusa, pelo recorrente — limitando-se a aplicar o entendimento segundo o
qual — existindo presentemente um duplo grau de jurisdição quanto à matéria de
facto, plenamente exercido pelas Relações — ao Supremo, como tribunal de revista
apenas cabe sindicar o decidido pelas instâncias quanto à matéria de direito.”
1.3 O requerimento de interposição de recurso apresentava o seguinte teor:
“O recurso é interposto nos termos da alínea b) do n.º 1 do Art. 280º da
Constituição da República Portuguesa e ao abrigo da alínea b) do n.º1 do Art.
70ºda Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº 28/82 de 15.11, alterada pelas Leis
nº 143/85 de 26.11, n.º 85/89 de 07.09, nº 88/95 de 01.09, e n.º 13-A/98, de
26.02);
Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do art. 127º do CPP,
conjugada com as do nº 2 e 3 do Art. 410°, também do CPP, e a do n.º 2 do Art.
722º do CPC, com a interpretação com que foram aplicadas na decisão recorrida,
de que o recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça visa
exclusivamente o reexame da matéria de direito, sem considerar como limitação ao
principio da livre apreciação da prova, o princípio “in dubio pro reo”,
consagrado no nº 2 do art. 32º da Constituição da República Portuguesa, tal como
foi pugnado pele Recorrente em sede de Recurso.
Nestes termos porquanto tal é admissível, está em tempo e tem legitimidade,
requer a V. Exa. se digne admitir o presente recurso com subida imediata nos
próprios autos e efeito suspensivo, seguindo-se os demais termos legais. ”
1.4 Este requerimento foi indeferido por despacho do seguinte teor:
“[…]
Nas conclusões do recurso do arguido para o Supremo nem da decisão do Supremo
consta qualquer referência ao art. 127º do CPP.
Por outro lado, da decisão do Supremo não consta qualquer alusão a que o recurso
de revista para o Supremo «vise exclusivamente o reexame da matéria de direito,
sem considerar como limitação ao princípio da livre apreciação da prova o
princípio in dubio pro reo».
É certo que, na motivação do recurso para o Supremo, o arguido sustentou que
«12. Quanto ao objecto do crime, deve funcionar o princípio in dubio pro reo —
art. 32º da Constituição da República Portuguesa» e que «tendo em conta que o
arguido apenas desferiu um golpe, afigura-se-nos tendo presente o princípio in
dubio pro reo — que não pode considerar-se suficientemente provado que tenha
agido com intenção de matar”.
No entanto, o Supremo, ao encarar essas alegações, jamais desconsiderou «o
princípio in dubio pro reo», como (aliás, óbvia) «limitação ao princípio da
livre apreciação».
Aliás, logo o MP, na sua resposta ao recurso, salientou que, «quanto à invocada
violação do princípio «in dubio pro reo», o Supremo Tribunal de Justiça poderia
«censurar o exercício feito do aludido princípio se da decisão impugnada
resultasse que o tribunal recorrido chegou a um estado de dúvida insanável e
que, perante ela, optou por enveredar pela tese desfavorável ao agente».
Porém, não tendo — nas instâncias — «subsistido aos julgadores uma qualquer
dúvida acerca de um ou outro dos referenciados aspectos, injustificado seria
apelar ao [mau] uso do princípio in dubio pro reo para fazer vingar a sua
pretensão».
Desde logo, quanto ao tipo de «arma» utilizada pelo arguido na prática do crime,
constava, na acusação, tratar-se — alternativamente — de «uma arma branca com
lâmina, tipo navalha ou canivete suíço». O tribunal colectivo considerou —
afastando uma das alternativas — tratar-se de «uma arma branca com lâmina, tipo
navalha», mas não «do tipo canivete suíço». Ora, sobre esta questão, a Relação
entendeu que «a convicção do tribunal [colectivo], relativamente a este ponto,
se encontrava inequivocamente suportada por elementos objectivos bastantes: os
depoimentos das pessoas que presenciaram os factos; o exame pericial realizado
ao corta-unhas (que não apresentava vestígios de sangue) e os esclarecimentos da
perita médica que descreveu, vistos os efeitos que observou, as características
necessárias da arma», acabando por concluir que o «corta-unhas» e a lâmina nele
incorporada não poderiam ter sido «a arma em causa».
Não tendo, pois, as instâncias sido acometidas de quaisquer dúvidas quanto à
utilização do «corta-unhas e da lâmina nele incorporada» na prática do crime
(pois que concluíram, inequivocamente, que tais instrumentos «não poderiam ter
sido a arma em causa»), não se vê em que é que o Supremo (ao «excluir,
genericamente, do recurso de revista os eventuais «erros» das instâncias na
apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa») tenha — na
prática — desconsiderado «o princípio in dubio pro reo como limitação ao
princípio da livre apreciação».
O mesmo se diga, de resto, quanto do «dolo homicida» fixado pela Relação («O
arguido — utilizando um instrumento de natureza um instrumento de natureza
corto-perfuante do tipo navalha, cujas características altamente letais
conhecia, manipulando-o de forma inesperada para B. — previu a morte deste, como
consequência possível da sua conduta, conformando-se com tal possibilidade»).
Com efeito, não se poderia pretextar — para sustentar que as instâncias optaram,
in dubio, pelo «dolo homicida» (em detrimento da «negligência consciente») — uma
qualquer incompatibilidade entre o «dolo» (ainda que eventual) de morte e a
utilização de um canivete/corta-unhas. Pois que as instâncias haviam concluído —
já se viu que «inequivocamente» — que a arma utilizada foi, não um corta-unhas,
mas uma «arma branca com lâmina, tipo navalha, (…) cujas características (…)
letais [o arguido] conhecia».
Ora, «o requerimento de recurso para o TC deve ser indeferido quando (…) no caso
dos recursos previstos na alínea b) (…) do n.º 1 do art. 70º, for manifestamente
improcedente» (art. 76.2 da LTC).
Por ser esse o caso, indefiro o requerimento de recurso, de 11DEZ06, do cidadão
A..”
2. Cumpre decidir.
O recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade previsto na alínea b)
do n.º 1 do artigo 70º da LTC tem carácter normativo, isto é, tem por objecto a
apreciação da constitucionalidade de normas (ou de uma sua interpretação
normativa) que tenham sido aplicadas na decisão recorrida, apesar de ter sido
suscitada a sua inconstitucionalidade durante o processo, de modo
processualmente adequado (cfr. n.º 2 do artigo 72º da LTC).
Sucede, porém, que a norma questionada pelo recorrente não foi aplicada na
decisão recorrida como seu fundamento jurídico. Na verdade, aquela decisão nunca
considerou, como alega o reclamante, “que o recurso de revista para o Supremo
Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, sem
considerar como limitação ao princípio da livre apreciação da prova, o princípio
“in dubio pro reo”, consagrado no nº 2 do art. 32º da Constituição”.
Com efeito, o acórdão recorrido não apreciou as matérias relativas à decisão de
facto questionadas pelo recorrente por, no exercício do seu poder de cognição
como tribunal de revista, ao Supremo Tribunal de Justiça caber apenas sindicar o
decidido pela Relação em matéria de direito. Como se diz no seguinte trecho:
“5.14. Actualmente, com efeito, quem pretenda impugnar um acórdão final do
tribunal colectivo, de duas, uma: se visar exclusivamente o reexame da matéria
de direito (art.432.d), dirige o recurso directamente ao Supremo Tribunal de
Justiça e, se o não visar, dirige-o, «de facto e de direito», à Relação, caso em
que da decisão desta, se não for «irrecorrível nos termos do art. 400.º», poderá
depois recorrer para o STJ (art. 432.b).
5.15. Só que, nesta hipótese, o recurso – agora, puramente, de revista – terá
que visar exclusivamente o reexame da decisão recorrida (a da Relação) em
matéria de direito (com exclusão, por isso, dos eventuais «erro(s)» das
instâncias «na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da
causa»).”
A circunstância de a norma impugnada não ter sido aplicada na decisão recorrida
impede que se conheça do recurso.
Em face do exposto, decide-se indeferir a reclamação.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 8 de Fevereiro de 2007
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria Helena Brito
Rui Manuel Moura Ramos