Imprimir acórdão
Processo n.º 995/2005
2ª Secção
Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
(Conselheira Maria Fernanda Palma)
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.Pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Maio de 2005 foi negado a
A., na acção que intentara contra Companhia de Seguros B., AS, o direito a
“indemnização por danos não patrimoniais” sofridos pela morte da vítima de um
acidente de viação com quem convivia em união de facto. Pode ler-se nesse
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça:
«1. – A. intentou contra “Companhia de Seguros B., AS” acção declarativa, para
efectivação de responsabilidade civil emergente de acidente de viação,
reclamando da Ré o pagamento de € 49.879,79, dos quais € 42.771,92 por danos não
patrimoniais, quer decorrentes do abalo que sofreu com o acidente quer com a
morte da sua companheira.
A final, a Seguradora foi condenada a pagar a quantia de € 26.436,28, a título
de indemnização pelos danos não patrimoniais – sendo € 1.496,39 referentes aos
danos sofridos directamente pelo A. e € 24.939,89 pela morte da companheira – e,
a título de danos patrimoniais, o que vier a ser liquidado em execução de
sentença, decisão de que ambas as Partes interpuseram recurso.
A Relação reduziu a indemnização pelos danos sofridos pelo A. com o acidente
para € 500,00, absolveu a R. do pedido indemnizatório fundado na morte da
companheira do A. e manteve, no mais, o decidido na 1ª Instância.
Pede ainda revista o Autor, que sustenta nas conclusões:
- A questão prende-se apenas com os danos directamente sofridos pelo Recorrente,
primeiro quanto à conformidade com a Constituição do art. 496.º-2 do C. Civil e
depois quanto à fixação do quantum indemnizatório;
- A inconstitucionalidade decorre do facto de a não abrangência do unido de
facto sobrevivo pela norma do n.º 2 do art. 496.º violar a 1.ª parte do n.º 1 do
art. 36.º da CRP quando prevê expressamente o direito de constituir família para
além da relação matrimonial;
- O art. 496.º-2 deve, portanto, ser objecto de uma interpretação extensiva pelo
argumento a pari, por paridade de razão;
- Assim, deve a indemnização pelos danos não patrimoniais ser fixada em não
menos de € 42.771,92, acrescida de juros legais desde a citação.
- Quando assim se não entenda deve ser fixada indemnização não inferior a €
12.500,00 para ressarcimento dos danos morais próprios emergentes do acidente em
causa.
A Recorrida apresentou resposta em que pugna pela manutenção do julgado.
2. – Das conclusões formuladas resulta serem duas as questões propostas e para
decidir:
- A inconstitucionalidade da norma do n.º 2 do art. 496.º do C. Civil, quando
interpretada no sentido de excluir o “cônjuge da facto” do direito a ser
indemnizado pela morte do companheiro; e,
- A fixação da compensação pelos danos não patrimoniais reclamados pelo Autor.
3. – Das Instâncias vem assente a seguinte factualidade:
A 30/01/00, pelas 1,45h., na EN 347, no sentido Alfarelos-Condeixa, ocorreu um
acidente de viação que consistiu num despiste e colisão com uma árvore do
veículo ligeiro de passageiros de matrícula PJ----, que era conduzido por C. e
no qual seguiam como passageiros o Autor e D.;
Em consequência do embate, D. sofreu lesões corporais, das quais resultou a sua
morte;
O Autor trabalha na Embaixada de Espanha, em Portugal como funcionário
administrativo;
No momento imediatamente anterior ao acidente, o A. pensou que poderia ficar
gravemente ferido ou mesmo morrer em consequência do mesmo, o que lhe causou
angústia e terror;
O Autor receou que todos os seus projectos de vida pessoais e profissionais
pudessem ser interrompidos em consequência do acidente;
O Autor também exercia a actividade de tradutor por conta própria;
Em consequência do acidente, deixou de fazer trabalhos de tradução que já tinha
ajustado, facto que lhe causou prejuízo;
Estragou o seu blusão, as calças e perdeu o seu relógio;
O A. foi imediatamente assistido no Hospital dos Covões, em Coimbra, e
posteriormente no de Santa Maria, em Lisboa;
Ainda em consequência do acidente, o A. sofre de falta de concentração no
trabalho;
À data do acidente o Autor vivia maritalmente com a D., desde Novembro de 1997,
e projectavam casar e ter filhos;
Entre os dois existia amor, união e carinho;
O A. sofreu um choque e uma grande dor com a morte da D., vivendo hoje com
tristeza e recordando-a constantemente;
O Autor nasceu em 07/02/961;
A responsabilidade civil por danos causados pelo veículo PJ--- encontrava-se
transferida para a Seguradora Ré.
4. – Mérito do recurso.
4. 1. – A constitucionalidade e interpretação do n.º 2 do art. 496.º do Código
Civil.
O Recorrente funda a sua pretensão de interpretação extensiva da norma do n.º 2
do art. 496.º e correspondente afastamento da interpretação literal, por forma a
nela incluir as pessoas que viviam com a vítima numa situação de união de facto,
na violação do direito de constituir família para além da relação matrimonial,
acolhido pelo n.º 1 do art. 36.º da Constituição da República, que não já no
princípio da igualdade que o art. 13.º da mesma Lei Fundamental consagra.
O preceito em causa dispõe assim: “Por morte da vítima, o direito à indemnização
por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado
judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta
destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos
que os representem”.
Trata-se de um caso em que a lei atribui a determinadas pessoas ou grupos de
pessoas, sucessivamente, a titularidade do direito a indemnização por danos
próprios, mas por factos em que considera lesado alguém que não é o titular do
direito violado.
Desaparecido, pela produção do dano-morte, o sujeito do direito de personalidade
violado, a quem pelos princípios gerais da responsabilidade civil caberia o
direito à indemnização, a lei elege como titulares originários desta certos
terceiros em atenção às suas relações familiares com a vítima.
A opção pela indicação taxativa e graduada das pessoas cujos danos são
atendíveis deve-se a razões de certeza e segurança, apesar de poder verificar-se
que o facto cause danos, porventura mais graves, a outras pessoas ou mesmo que
as pessoas contempladas sofram dor ou desgosto por forma não coincidente com a
ordem de precedências estabelecida no preceito. O legislador quis sacrificar “as
excelências da equidade (...) às incontestáveis vantagens do direito estrito”
(P. DE LIMA e A. VARELA, C. Civi Anotado, 4ª ed., p. 501).
A letra da lei exclui, pois, da titularidade do direito, quer quaisquer pessoas
nela não referidas, quer, de entre as referidas, as que resultem afastadas pela
precedência da respectiva graduação.
Exclui-o também, quanto ao “cônjuge de facto”, como se refere no Acórdão deste
Tribunal de 4/11/03 (CJ, XI-III, p. 135), “o enquadramento histórico da norma,
nascida num tempo e num espaço de absoluta rejeição dos valores que suportam as
uniões de facto”.
Mas, será que a norma deve ser interpretada extensivamente, incluindo na classe
do cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens, filhos ou outros
descendentes, o unido de facto ou companheiro do falecido, relevando os
elementos teleológico e actualista postulados pelo direito constitucionalmente
reconhecido de constituir família para além da relação matrimonial (art. 36.º,
n.º 1, 1ª parte) e pela evolução legislativa sobre o reconhecimento das uniões
de facto?
O art. 36.º, n.º 1, da CRP, revelando abertura à “pluralidade e diversidade das
relações familiares”, admite expressamente o direito de constituir família sem
casamento, inculcando claramente adoptar o conceito de “família” como uma
realidade mais ampla que a da família conjugal, resultante do casamento.
A Constituição da República reconhece uma relevância fundamental à família
assente no casamento e ainda, independentemente do vínculo conjugal, à família
constituída por pais e filhos. É o que resulta da autonomização do direito de
contrair casamento e do estatuto e efeitos da sociedade conjugal aludidos nos
n.ºs 1 e 2 do art. 36.º, por um lado, e da preocupação com o estatuto da
filiação e da família constituída por pais e filhos, nascidos ou não de
casamento, por outro lado – arts. 36.º, n.ºs 3, 4, 5 e 6, 68.º e 69.º.
Deste modo, como escrevem JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS ( CRP Anotada, Tomo I, p.
399), “nesta perspectiva, no direito de constituir família, o art. 36.º-1
abrange, ao lado da família conjugal, a família constituída por pais e filhos,
podendo extrair-se do preceito um direito fundamental, não apenas a procriar,
mas também ao conhecimento e reconhecimento da paternidade e maternidade”.
Para além disso, o art. 36.º, não excluindo do seu âmbito de previsão outras
relações de tipo familiar ou parafamiliar e a respectiva tutela jurídica,
nomeadamente quanto às uniões de facto, também não conduz a que nele se veja,
sem mais, a consagração do direito a estabelecer a união de facto como
alternativa ao casamento, exigindo um tratamento indiferenciado para cônjuges e
unidos de facto, apesar de, como dito, o direito de constituir família poder
resultar de uma união de facto estável e duradoura, nos termos que o legislador
ordinário fixar, dentro da liberdade de conformação (cfr. ob. cit., p. 402).
Da diferença entre a situação de cônjuges e “cônjuges de facto” ou unidos de
facto – para além do âmbito da protecção específica do casamento e da família
constituída por pais e filhos, como se deixou referido – resulta, pois, que não
possam ser excluídas discriminações de tratamento entre uns e outros.
Ponto é averiguar se umas tais discriminações, quando existam, carecem de “uma
justificação razoável”, revelando-se, à luz do princípio da proporcionalidade,
vedadas pelo conteúdo das normas fundamentais, o que poderá acontecer quanto a
disposições que 'directamente contendam com a protecção dos membros da família,
protegendo designadamente o membro enfraquecido e que não sejam aceitáveis como
instrumento de eventuais políticas de incentivo à família que se funda no
casamento” (id. ib., 404, citando o Ac. TC n.º 275/02 – DR, II, de 24/7/02, pg.
12901).
Ora, também se aceita que, em abstracto, não haverá uma justificação atendível
para a solução de excluir de plano todos e quaisquer danos não patrimoniais
sofridos pessoalmente por quem não convivia com a vítima de um homicídio doloso
em condições análogas à dos cônjuges, à luz do preceito constitucional em apreço
e dos princípios subjacentes à Lei n.º 7/2001, de 11/5, estranhos que são os
objectivos da indemnização aos mencionados meios e desígnios de incentivo à
família assente no casamento, como se ponderou e escreveu no douto acórdão
citado.
Acontece que perante a concreta inconstitucionalidade arguida, a decisão não
pode ser desligada da também concreta situação substantiva em análise, ou seja,
dos específicos contornos e fisionomia do caso retratado no processo.
A Lei apenas atribui relevância às relações decorrentes da união de facto em
casos pontuais, referindo taxativamente esses casos e respectivos efeitos, todos
com incidência na área das normas de protecção (alimentos, transmissão da casa
de morada de família e benefícios sociais) – arts. 3.º a 7.º da Lei n.º 7/01.
E, apesar disso, só o faz quando a situações em que a relação de facto se
apresente com carácter de estabilidade e durabilidade, numa situação análoga à
dos cônjuges, que “convença” da sua tendência para a perpetuidade, numa “ficção
de casamento” (FRANÇA PITÃO, “Os novos Casamentos ...”, in Comemorações dos 35
Anos do Código Civil, vol. I, p. 192).
Como se faz notar no acima citado aresto deste Tribunal, o também invocado
acórdão do T.C. foi tirado sobre um caso de homicídio doloso e a solução nele
encontrada tem confessadamente a marca da gravidade extrema do ilícito e tem,
acrescentamos nós, a particularidade de contemplar uma situação de facto da qual
havia filhos.
Vale isto por dizer que ali está presente uma família constituída por pais e
filhos, a situação que o art. 36º directamente confere tutela. No caso sub
juditio, diversamente, sabe-se apenas que o Autor e a falecida “viviam
maritalmente desde Novembro de 1997 (dois anos e dois meses antes do acidente),
projectavam casar e ter filhos” sem que algo mais se saiba, designadamente
quando ao facto impeditivo aludido na al. c) do art. 2.º da Lei 7/01, apesar de
se saber, porque alegado pelo Autor, haver um casamento anterior (seria
divorciado quando instaurou a acção) e uma filha dele e de Clara Garcia da
Silva, nascida em 16/10/2000, muito depois do acidente (cfr. p.i e fls. 335).
Ora, no concreto circunstancialismo reflectido nos autos, não nos parece que, na
enunciada perspectiva da proporcionalidade, o reconhecimento do direito à
compensação por danos não patrimoniais atribuído pelo n.º 2 do art. 496.º C.
Civil seja reclamado pelo sistema jurídico como uma medida de protecção exigível
para o unido de facto, malgrado a tutela constitucional directa imposta para a
família natural constituída por pais e filhos, com carácter de estabilidade.
Como também já se deixou referido, o direito conferido ao cônjuge no falado
preceito do Código Civil encontra a sua razão de ser na vontade legislativa de
evitar a apresentação de uma multiplicidade de pretensões indemnizatórias por
danos morais por morte da vítima, ainda que, não fora essa opção, se mostrassem
atendíveis.
Por isso, como se argumenta no voto de vencido lavrado no mesmo Ac. T.C. 275/02,
em tese, nada obstaria a que, com o mesmo objectivo e na mesma perspectiva
limitadora, o legislador viesse a reconhecer o direito à indemnização a quem
estivesse mais proximamente ligado à vítima, designadamente por via da união de
facto. Porém, não o quis fazer, concedendo a sua titularidade apenas às pessoas
taxativamente indicadas e pela ordem de preferência que, repete-se, bem pode não
coincidir com a gravidade do dano realmente sofrido.
Ora, uma vez mais, se esse comportamento do legislador não pode considerar-se
constitucionalmente imposto, na medida em que não encontra fundamento directo na
exigência no direito à protecção da família, aceitando‑se como razoável o escopo
prosseguido com a limitação e graduação vertidas na norma de direito ordinário,
não caberá falar de violação do princípio da proporcionalidade.
Em conclusão, entende-se que a interpretação feita pelo acórdão impugnado da
norma do n.º 2 do art. 496.º C. Civil, no sentido de excluir o Recorrente da
titularidade do direito a indemnização por danos não patrimoniais por morte da
sua companheira não merece censura e não padece da inconstitucionalidade que lhe
é assacada.
4. 2. – Os danos morais próprios do Autor emergentes do acidente.
A este título o Recorrente reclama a quantia de € 12.500,00, insurgindo-se
contra a exiguidade da verba de € 500,00 que a Relação lhe atribuiu.
A factualidade relevante, recorde-se, diz respeito à angústia e terror que o A.
sentiu, receando a morte ou ferimentos graves, ao aperceber-se do acidente; a
ter recebido assistência em dois hospitais – Coimbra e Lisboa; e, como sequela,
a ter ficado a sofrer de falta de concentração no trabalho.
Não se questiona a gravidade dos danos, para efeito de merecimento da tutela do
direito, devendo a compensação a atribuir abranger tanto as consequências
passadas como as futuras resultantes do evento danoso – art. 496.º-1 do C.
Civil.
Trata-se de compensar prejuízos de natureza infungível, em que não é possível a
reintegração por equivalente, em que o critério de fixação assenta na equidade.
Tais compensações não devem, como é hoje jurisprudência firme, ter um alcance
que não se restrinja à atribuição de valores meramente simbólicos, mas que
efectivamente permitam ao beneficiário obter as satisfações que, de algum modo,
constituam um lenitivo para o mal sofrido.
Assim, tudo ponderado, mas atendendo a que não se sabe, por não alegado, em que
grau e medida se reflectiu ou reflecte na vida do A. a dita falta de
concentração, tem-se por equitativa a compensação de 4.000 euros, para a qual se
eleva a que, já actualizada, vem arbitrada pela Relação.
5. – Decisão.
Pelo exposto, decide-se:
- Conceder parcialmente a revista;
- Alterar o decidido no acórdão recorrido quanto à quantia em que a Ré foi
condenada a pagar ao Autor 'a título de danos morais', fixando-a, agora, em €
4.000,00 (quatro mil euros), com juros moratórios, à taxa legal, desde a data do
acórdão impugnado (12/10/04), mantendo-se, em tudo o mais, a decisão proferida
[…].»
2.O demandante interpôs recurso desta decisão para o Tribunal Constitucional,
com um requerimento em que diz pretender ver apreciada conformidade à
Constituição da norma do artigo 496.º, n.º 2, do Código Civil, interpretada “no
sentido em que não admite que a pessoa que vive em união de facto com uma vítima
de acidente de viação, do qual resulte a morte dessa vítima, tem o direito a
receber uma indemnização por danos não patrimoniais”, e que o recurso de
constitucionalidade foi interposto ao abrigo das alíneas b) e g) do nº 1 do
artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, invocando o decidido no Acórdão do
Tribunal Constitucional nº 275/2002.
3.O recorrente apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
«1 – O recorrente é divorciado desde o dia 4 de Maio de 1999, cfr. certidão
judicial constante de fls. ... que aqui se dá por integralmente reproduzida;
2 – As suas filhas nasceram em 16/11/1990 e 8/6/1994 (muito antes do acidente
ocorrido em 30/01/2000 ), cfr. respectivas certidões de nascimento constantes de
fls. ... e que aqui se dão por integralmente reproduzidas;
3 – A matéria de facto provada, supra discriminada e que com a devida vénia aqui
se dá por integralmente reproduzida, consubstancia uma situação de união de
facto, estável e duradoura, em condições análogas às dos cônjuges;
4 – O recorrente ASSISTIU (à morte da companheira) e ele próprio foi também
vítima do acidente de que veio a resultar o decesso daquela e a dor e o
sofrimento do recorrente não seriam maiores caso com fossem casados e não foram
menores pelo facto de não o serem;
5 – A dor e o sofrimento – danos não patrimoniais – não dependem de vínculos
familiares e matrimoniais formais e, simultaneamente, as pessoas que optam por
viver em união de facto não se tomam por isso portadoras de um estigma que as
diminua, sendo essa uma das formas de constituir família;
6 – A improcedência do pedido de condenação da recorrida em indemnização ao
recorrente por danos morais decorrentes da morte da sua companheira, D., com
quem vivia em união de facto é injusta, ilegal e inconstitucional;
7 – O art. 496.°, n.º 2, do CC, interpretado no sentido de excluir a
indemnização por danos não patrimoniais próprios sofridos por aquele que vivia
com a vítima mortal numa situação de união de facto, estável e duradoura, em
condições análogas às dos cônjuges, é inconstitucional, por violação do art.
36.°, n.º 1, da CRP, conforme aliás já decidiu o Tribunal Constitucional no
acórdão n.º 275/02 (DR, II, 24/07/00);
8 – E, simultaneamente, é outrossim inconstitucional por violação do princípio
da igualdade previsto no art. 13.° da Constituição;
9 – A questão em apreço prende-se apenas com os danos directamente sofridos pelo
recorrente - pessoa que vivia em união de facto com a vítima - limitando-se
inicialmente à prévia apreciação da inconstitucionalidade supra alegada e
posteriormente à fixação do quantum indemnizatório, isto é, da conformidade com
a Constituição do art. 496.º, n.º 2, do Cód. Civil, na parte em que, em caso de
morte da vítima, exclui a atribuição de um direito de 'indemnização por danos
não patrimoniais' pessoalmente sofridos pela pessoa que convivia com a vítima em
situação de união de facto, estável e duradoura, em condições análogas à dos
cônjuges - ou seja, uma indemnização que seria adquirida originariamente por tal
pessoa e por danos não patrimoniais (dor, sofrimento, etc.) sofridos por ela
própria;
10 – A inconstitucionalidade decorre, por um lado, do facto da não abrangência
do unido de facto sobrevivo pela norma civil constante do n.º 2 do art. 496.° do
Cód. Civil, violar claramente a primeira parte do n.º 1 do art. 36.° da CRP
quando prevê expressamente o direito de constituir família para além da relação
matrimonial;
11 – E, por outro, da distinção entre casados e não casados que o princípio da
igualdade proíbe;
12 – Não ignoramos, que o citado acórdão desse mui douto Tribunal Constitucional
foi objecto de dois votos de vencidos, dos Exmos. Srs. Juízes Conselheiros Bravo
Serra e Cardoso da Costa, no sentido de que o escopo da norma – art. 496.°, n.º
2 – é o limite da possível multiplicidade dos pedidos e não a protecção da
família na esteira aliás da doutrina da Escola de Coimbra também amplamente
citada no douto acórdão recorrido;
13 – Contudo, tal argumento não colhe, uma vez que, na realidade, o art. 456.°,
n.° 2, do Cód. Civil limita as pretensões indemnizatórias ao delimitar classes
preferenciais de beneficiários, no entanto, tais classes têm exclusivamente por
beneficiários familiares: na primeira classe beneficia em conjunto o cônjuge e
os descendentes; na falta destes, irão beneficiar os ascendentes, enquanto
segunda classe de beneficiários; e por fim na falta de qualquer um destes
membros da família da vítima, beneficiam os seus colaterais no 2.° ou 4.° grau.
Existe aqui, inquestionavelmente, um claro paralelismo com as regras que
encontramos no âmbito do Direito das Sucessões, nomeadamente no artigo 2133.° no
que refere à ordem dos beneficiários e com o artigo 85.° do RAU, que tem como
escopo a protecção da casa de morada de família, sendo certo que neste último
caso o legislador contemplou directamente os unidos de facto circunstância a que
não é alheio o facto de ser norma mais recente;
14 – Admitimos que o legislador tenha pretendido delimitar as pretensões
indemnizatórias, no entanto, não aceitamos que este seja o escopo principal e
fundamental de tal preceito, considerando antes que a protecção da família é um
valor que ali manifestamente se sobrepõe ao referido objectivo delimitativo e ao
legislador ordinário;
15 – Neste sentido, deve o intérprete, em conformidade com a Constituição e com
a evolução legislativa actual, fazer uma interpretação actualista do preceito em
análise e incluir na mesma classe que o cônjuge não separado de pessoas e bens,
o unido de facto sobrevivo;
16 – O art. 496.º, n.º 2, do Cód. Civil deve, portanto, ser objecto de uma
interpretação extensiva pelo argumento a pari, por paridade de razão. Ou seja, a
interpretação extensiva assume normalmente a forma de extensão teleológica,
i.e., a própria ratio do preceito postula a obrigação de aplicação a casos que
não são directamente abrangidos pela letra da lei, mas são‑no pela finalidade
da mesma. O argumento por paridade de razão postula que se a lei explicitamente
contempla certas situações, às quais atribui um certo regime, há-de forçosamente
pretender abranger outras situações cuja justificação de aplicação seja
exactamente a mesma;
17 – Ora, se a lei contempla os ascendentes, os irmãos, os sobrinhos, bem como
outros parentes de grau mais afastado, é imperativo que contemple também o unido
de facto, na medida em que entre este e a vítima existe uma comunhão plena de
vida em condições análogas às dos cônjuges, cuja protecção enquanto entidade
familiar se coloca num plano superior das restantes relações de parentesco supra
enunciadas. O próprio preceito assim o reconhece ao garantir o direito
indemnizatório em primeiro lugar ao cônjuge sobrevivo e descendentes;
18 – Actualmente a lei consagra expressamente ao unido de facto sobrevivo, entre
os demais discriminados no saliente id. acórdão n.° 275/02 e previstos
designadamente nas Lei n.º 135/99, de 28 de Agosto, e n.° 7/2001, de 11 de Maio,
direito a:
- Exigir alimentos da herança do falecido desde que verificadas as
circunstâncias previstas na lei;
- Transmissão do arrendamento da casa de habitação onde residiam em
condições análogas às dos cônjuges;
- Protecção na eventualidade de morte do beneficiário, pela aplicação do
regime geral da segurança social e da lei;
- Prestação por morte resultante de acidente de trabalho ou doença
profissional, nos termos da lei.
- Pensão de preço de sangue e por serviços excepcionais e relevantes
prestados ao País, nos termos da lei;
19 – Inexistindo qualquer razão para que o unido de facto sobrevivo não tenha
também direito à indemnização prevista no art. 496.°, n.º 2, do Cód. Civil;
20 – Iguais são as razões que levaram o legislador a criar o comando inscrito na
al. e) do n.° 1 do art. 85.° do RAU- aprovado pelo DL n.º 321-B/90, de 15 de
Outubro – argumento de igualdade de razão.
21 – Assim, enquanto nada for legislado quanto à norma objecto do presente
recurso, deve esse mui douto Tribunal Constitucional, mais uma vez, julgar
inconstitucional, por violação, não só do art. 36.° da Constituição mas, também
por violação do princípio da igualdade garantido no art. 13.° da Lei Fundamental
(proibição de diferenciações ou discriminações), a norma do n.° 2 do artigo
496.° do Código Civil, na parte em que não admite que a pessoa que vive em união
de facto com uma vítima de acidente de viação de que resulte a morte dessa
vítima, tem direito a receber uma indemnização por danos não patrimoniais;
Termos em que e sempre com o douto suprimento de V. Exas. no mais de Direito
deve conceder-se provimento ao recurso e determinar‑se a reforma da decisão
recorrida em conformidade com o juízo de constitucionalidade e com as legais
consequências.
Assim confiadamente se espera ver julgado, porque assim se mostra ser de
Lei, Direito e Justiça.»
A recorrida contra‑alegou, concluindo o seguinte:
«(…)
a) Está adquirida na doutrina e na jurisprudência desse Alto Tribunal que
o noção do princípio de igualdade, apesar do imperativo de tratamento idêntico
de situações idênticas, postula o tratamento diferenciado de situações
substancialmente distintas;
b) Tem também o douto Tribunal Constitucional decidido, em conformidade
com este conteúdo de princípio de igualdade, que o casamento e a união de facto
são situações jurídicas distintas, de cuja existência decorrem consequências
jurídicas diversas e que esta diversidade não colide com o princípio da
igualdade constitucionalmente consagrado;
c) Essa distinção de situações jurídicas não só permite como postula,
atento o princípio da igualdade, diferenças no tratamento legislativo;
d) Ou seja, o legislador ao determinar diferenças de regime entre o
estado de casado e o estado de união de facto agiu em conformidade com os
imperativos constitucionais, no quadro dos quais definiu opções concretas de
conformação normativa:
e) Assim, a opção legislativa constante do n.º 2 do artigo 496.º do
Código Civil de não reconhecer também ao unido de facto o direito de
indemnização por danos não patrimoniais não merece, no que à compatibilidade com
o princípio da igualdade respeita, qualquer censura;
f) Também o n.º 2 do artigo 496.º do Código Civil não viola o principio
da igualdade;
g) Efectivamente, as relações especiais que o legislador elegeu como
relevantes no n.º 2 do artigo 496.º do Código Civil são, apenas, o “vínculo
conjugal” e o “parentesco” até ao 4.º grau da linha colateral;
h) O que significa que esse mesmo legislador no âmbito da sua liberdade
de coordenação normativa optou por reconhecer o direito de indemnização sub
judice à por vezes designado por família-estirpe ou família-linhagem e ao
cônjuge;
i) Compreende-se a opção pela família-estirpe porquanto a morte de
alguém é, antes do mais, um fenómeno que se repercute na esfera familiar
afectando a comunhão de vida que caracteriza este tipo de família;
j) Justifica-se a opção pelo cônjuge porquanto, através do complexo de
direitos e deveres que derivam do casamento, a vida pessoal e patrimonial dos
cônjuges fica radicalmente integrada na plena comunhão de vida a que se refere o
artigo 1577.º do Código Civil;
k) Ora, ao invés do casamento, a união de facto não gera juridicamente,
qualquer comunhão de vida nem, juridicamente, determinados efeitos relevantes,
como, por exemplo, o fenómeno sucessório, são desencadeados;
l) A tese “ex adverso” sustentada só poderia ser relevante se o
legislador tivesse erigido o sofrimento como critério fundamental para o
reconhecimento do direito a indemnização, o que não é, manifestamente, o caso;
m) Em resumo, portanto, a opção do legislador, constante do n.º 2 do artigo
496.º do Código Civil, não colide com a consagração constitucional de família
fundada no casamento, ou seja, não viola o princípio da igualdade, nem contende
com o artigo 36.º do C.R.P;
n) Por outro lado, o princípio da autonomia de vontade é um dos
princípios estruturantes de ordenamento jurídico português e está inscrito na
concepção de pessoa humana reconhecida e consagrada no art. 2.º do C.R.P.
(dignidade da pessoa humana) e no artigo 26.º do C.R.P. (especificamente o
preceito da capacidade civil), tendo, portanto, dignidade e protecção
constitucional;
o) Assim, o casamento é uma manifestação de vontade dos sujeitos de
direito e a união de facto é uma outra forma dessa manifestação de vontade, só
que, nele, os sujeitos recusam a produção de efeitos jurídicos decorrentes da
celebração do contrato de casamento;
p) Passando ao caso dos autos, essa opção voluntariamente tomada pelo
Recorrente e pela sua falecida Companheira deve ser reflectida na decisão
jurisdicional;
q) Em resumo, o legislador ordinário goza da liberdade na conformação
normativa, liberdade da qual, sempre que constituída nos limites legalmente
impostos, o Tribunal Constitucional não sindica;
r) Sendo esse o caso dos autos, deve, portanto, negar-se provimento ao
recurso e confirmar-se a constitucionalidade da norma do n.º 2 do artigo 496.º
do Código Civil por não violação dos princípios da Constituição da Republica
Portuguesa, como é de
JUSTIÇA.»
Após mudança de relator, por vencimento, cumpre decidir.
II. Fundamentos
4.O presente recurso foi interposto ao abrigo das alíneas b) e g) do n.º 1 do
artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, visando, nos termos do respectivo
requerimento, a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 496.º, n.º
2, do Código Civil, interpretada “no sentido em que não admite que a pessoa que
vive em união de facto com uma vítima de acidente de viação, do qual resulte a
morte dessa vítima, tem o direito a receber uma indemnização por danos não
patrimoniais”.
Ora, a inconstitucionalidade desta norma foi suscitada pelo recorrente nas
alegações do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que deu origem ao
Acórdão recorrido, de 24 de Maio de 2005, no qual se fez aplicação dessa mesma
norma, como ratio decidendi. Estão, pois, verificados os requisitos
indispensáveis para se poder tomar conhecimento do recurso de
constitucionalidade interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da
Lei do Tribunal Constitucional.
Já o mesmo não pode dizer-se, porém, do recurso interposto ao abrigo da alínea
g) do mesmo preceito, nos termos da qual cabe recurso para o Tribunal
Constitucional de decisões dos tribunais que “apliquem norma já anteriormente
julgada inconstitucional ou ilegal pelo próprio Tribunal Constitucional”,
exigindo, pois, identidade entre a norma impugnada e a norma anteriormente
julgada inconstitucional ou ilegal.
É certo que o Tribunal Constitucional já tratou, em várias decisões, da
constitucionalidade da distinção de regime jurídico, em vários aspectos, entre
as posições do cônjuge e de quem vive com outrem numa situação de união de facto
– v. as decisões cits. no Acórdão n.º 275/2002, de 19 de Junho (Diário da
República [DR], II Série, n.º 169, de 24 de Julho de 2002, p. 12896, e Acórdãos
do Tribunal Constitucional [ATC], vol. 53.º, p. 479), e, posteriormente, em
matéria de requisitos para atribuição de pensão de sobrevivência, os Acórdãos
n.ºs 195/2003, 88/2004, 233/2005 e 159/2005, este último confirmado em recurso
para o Plenário do Tribunal Constitucional pelo Acórdão n.º 614/2005 (publicados
respectivamente em ATC, respectivamente vol. 55.º, p. 897, e vol. 58.º, p. 423,
DR, II série, n.º 149, de 4 de Agosto de 2005, p. 11132, ATC, vol. 61.º, p. 535,
e DR, n.º 249, de 29 de Dezembro de 2005, p. 18116, e todos disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt). E o Tribunal Constitucional teve já mesmo
ocasião de apreciar uma dimensão normativa em que estava em causa a distinção
entre o cônjuge e o convivente em união de facto para o efeito previsto no
artigo 496.º, n.º 2, isto é, para o reconhecimento de uma “indemnização” de
danos não patrimoniais por morte da vítima.
No entanto, o Tribunal Constitucional não procedeu nunca à apreciação da
constitucionalidade da mesma dimensão normativa impugnada no presente recurso de
constitucionalidade.
O recorrente invoca nesse sentido o Acórdão n.º 275/2002, de 19 de Junho.
Todavia, neste não esteve então em causa dimensão normativa idêntica à agora
impugnada no presente recurso, antes o que o Tribunal Constitucional decidiu foi
julgar inconstitucional a “norma do n.º 2 do artigo 496.º do Código Civil, na
parte em que, em caso de morte da vítima de um crime doloso, exclui a atribuição
de um direito de ‘indemnização por danos não patrimoniais’ pessoalmente sofridos
pela pessoa que convivia com a vítima em situação de união de facto, estável e
duradoura, em condições análogas às dos cônjuges”.
O objecto do presente recurso é diverso: não é questionada, como no caso do
Acórdão n.º 275/2002, a consequência, no plano da compensação por danos não
patrimoniais, da prática de um crime (de um homicídio), e de um crime doloso,
mas antes a consequência de um acidente de viação que se deveu a negligência do
lesante (v. a sentença de 1.ª instância, de 20 de Novembro de 2003, fls. 206 e
v. dos autos), cuja responsabilidade fora transferida para a companhia de
seguros demandada.
Não tendo objecto a apreciação da mesma dimensão normativa, não poderá, pois,
tomar-se conhecimento do recurso interposto ao abrigo da alínea g), mas apenas
do interposto nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal
Constitucional.
5.É óbvio que a referida diferença de objecto dos recursos de
constitucionalidade (o decidido pelo Acórdão n.º 275/2002 e o presente,
interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal
Constitucional) não é logo bastante para conduzir a qualquer solução sobre a
questão de constitucionalidade.
Não só há que apurar se a norma impugnada no presente recurso é, ela própria,
conforme com as normas e princípios constitucionais, como se impõe averiguar se,
sob o ponto de vista da fundamentação expendida (e não do objecto do recurso), a
questão ora trazida ao Tribunal Constitucional é, ou não, substancialmente
idêntica à decidida, no Acórdão n.º 275/2002 – designadamente, se os fundamentos
desta decisão são transponíveis para os presentes autos. Apenas em caso de
resposta afirmativa a esta pergunta se pode remeter, para fundamentar um juízo
de inconstitucionalidade, para esse Acórdão n.º 275/2002.
A análise dos fundamentos do citado Acórdão n.º 275/2002, para os confrontar com
o presente caso, impõe-se, aliás, tanto mais quanto este aresto é considerado na
decisão recorrida bem como já pela decisão do Tribunal da Relação de Coimbra
então recorrida, e é invocado pelo recorrente no sentido da solução de
inconstitucionalidade que defende. Esse Acórdão do Tribunal Constitucional foi,
aliás, objecto de discussão jurisprudencial (v., além das declarações de voto a
ele apostas e das decisões constantes dos presentes autos, os Acórdãos do
Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Maio de 2005 e 11 de Julho de 2006, ambos
acessíveis em www.dgsi.pt) e doutrinal (v., em sentido crítico, Francisco
Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira, Curso de direito da família, vol. I, 3.ª
ed., Coimbra, Coimbra Ed., 2003, pp. 134-136, e Nuno de Salter Cid, A comunhão
de vida à margem do casamento: entre o facto e o direito, Coimbra, Almedina,
2005, pp. 526-544, bem como, substancialmente, Américo Marcelino, Acidentes de
viação e responsabilidade civil, Lisboa, Petrony, 2005, pp. 446-454; em sentido
favorável, a anot. de M. J. Aguiar Pereira ao Acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça de 4 de Dezembro de 2003, in Maiajurídica – Revista de Direito, ano II,
n.º 2, Julho-Dezembro de 2004, pp. 127 e ss.; e, questionando a extensão da
solução a outros casos, António Abrantes Geraldes, Temas da responsabilidade
civil, II: indemnização dos danos reflexos, Coimbra, Almedina, 2005, p. 27). E
esta discussão incidiu, em parte, justamente, sobre as consequências
alegadamente justificadas (ou até impostas) pela fundamentação do juízo de
inconstitucionalidade então alcançado, no Acórdão n.º 275/2002 – assim, além de
M. J. Aguiar Pereira e A. A. Geraldes, locs. cits., F. Pereira Coelho/G. de
Oliveira, ob. cit., pp. 135 e s., e N. Salter Cid, ob. cit., pp. 534 (e n. 65),
544.
Não é, porém, uma “reanálise” ou reapreciação dos fundamentos do Acórdão n.º
275/2002 que pode estar em causa no presente recurso, em que é, como se disse,
impugnada diversa dimensão normativa do artigo 496.º, n.º 2, apenas importando
recordar essa fundamentação na medida em que a referida decisão foi invocada
como precedente.
6.Recorde-se, pois, a fundamentação expendida do Acórdão n.º 275/2002 para se
concluir pelo julgamento de inconstitucionalidade, “por violação do artigo 36.º,
n.º 1, da Constituição conjugado com o princípio da proporcionalidade”, da
“norma do n.º 2 do artigo 496.º do Código Civil, na parte em que, em caso de
morte da vítima de um crime doloso, exclui a atribuição de um direito de
‘indemnização por danos não patrimoniais’ pessoalmente sofridos pela pessoa que
convivia com a vítima em situação de união de facto, estável e duradoura, em
condições análogas às dos cônjuges”. Depois de se delimitar o objecto do recurso
e de, para enquadrar a questão de constitucionalidade, se referir a evolução do
regime jurídico da união de facto (com a Lei n.º 135/99, de 28 de Agosto, e a
Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio) e a jurisprudência do Tribunal Constitucional
então existente sobre normas que previam uma diferenciação de tratamento entre
pessoas casadas e pessoas em situação de união de facto, disse-se:
«(…)
10. Numa certa perspectiva, segundo a qual a distinção entre pessoas casadas e
pessoas em situação de união de facto, para efeitos de atribuição de uma
compensação por danos não patrimoniais sofridos por morte da vítima, se afigura
destituída de fundamento razoável, constitucionalmente relevante, poder-se-ia
chegar, no presente recurso, logo a uma conclusão de inconstitucionalidade por
violação do princípio da igualdade.
A aplicação do princípio da igualdade constitucionalmente consagrado tem sido
reconduzida à censura de distinções sem fundamento racional, justo ou objectivo
(veja-se, no direito privado, e a propósito do direito da família, Carlos
Alberto da Mota Pinto, Teoria geral do direito civil, 3ª ed., Coimbra, 1985,
págs. 78-80 e 148, nota 2). Como se disse no Acórdão n.º 14/2000 (DR, II série,
de 19 de Outubro de 2000):
“A propósito do princípio da igualdade, teve já este Tribunal, por inúmeras
vezes, oportunidade de sobre o mesmo discretear, citando‑se, a título de exemplo
o Acórdão n.º 1007/96 (publicado no Diário da República, 2ª Série, de 12 de
Dezembro de 1996), onde, uma vez mais, se realçou que o princípio da igualdade
‘obriga que se trate como igual o que for necessariamente igual e como diferente
o que for essencialmente diferente; não impede a diferenciação de tratamento,
mas apenas a discriminação arbitrária, a irrazoabilidade, ou seja, o que aquele
princípio proíbe são as distinções de tratamento que não tenham justificação e
fundamento material bastante. Prossegue-se assim uma igualdade material, que não
meramente formal’. E acrescentou-se nesse aresto que ‘[p]ara que haja violação
do princípio constitucional da igualdade, necessário se torna verificar,
preliminarmente, a existência de uma concreta e efectiva situação de
diferenciação injustificada ou discriminação’.
Nas palavras de Maria da Glória Ferreira Pinto (in Boletim do Ministério da
Justiça, n.º 358, pág. 44), ‘[o] critério valorativo a que o princípio da
igualdade, enquanto princípio jurídico, apela, não deve ser, em consequência, um
critério de valores subjectivos, mas, pelo contrário, um critério retirado do
quadro de valores vigentes numa sociedade, interpretados objectivamente. É certo
que tais valores vivem no âmbito das alterações históricas e civilizacionais, só
sendo materialmente determináveis em presença de uma sociedade em concreto, mas
nem por isso deixa de ser um quadro de valores objectivo’.”
E pode, ainda, recordar-se o que, recentemente, se escreveu a propósito no
Acórdão n.º 187/2001 (DR, II série, de 26 de Junho de 2001):
«(...)
É sabido que o princípio da igualdade, tal como tem sido entendido na
jurisprudência deste Tribunal, não proíbe ao legislador que faça distinções –
proíbe apenas diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, sem
uma justificação razoável, segundo critérios objectivos e relevantes. É esta,
aliás, uma formulação repetida frequentemente por este Tribunal (cf., por
exemplo, os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 39/88, 325/92, 210/93, 302/97, 12/99 e
683/99, publicados, nos ATC, respectivamente, vol. 11º, pp. 233 e ss.,vol. 23º,
pp. 369 e ss., vol. 24º, pp. 549 e ss., vol. 36º, pp. 793 e ss., e no Diário da
República, II Série, de 25 de Março de 1999 e de 3 de Fevereiro de 2000).
Como princípio de proibição do arbítrio no estabelecimento da distinção, tolera,
pois, o princípio da igualdade a previsão de diferenciações no tratamento
jurídico de situações que se afigurem, sob um ou mais pontos de vista,
idênticas, desde que, por outro lado, apoiadas numa justificação ou fundamento
razoável, sob um ponto de vista que possa ser considerado relevante.
Ao impor ao legislador que trate de forma igual o que é igual e desigualmente o
que é desigual, esse princípio supõe, assim, uma comparação de situações, a
realizar a partir de determinado ponto de vista. E, justamente, a perspectiva
pela qual se fundamenta essa desigualdade, e, consequentemente, a justificação
para o tratamento desigual, não podem ser arbitrárias. Antes tem de se poder
considerar tal justificação para a distinção como razoável, constitucionalmente
relevante.
O princípio da igualdade apresenta-se, assim, como um limite à liberdade de
conformação do legislador. Como se salientou no Acórdão n.º 425/87 (ATC, vol.
10º, pp. 451 e ss.),
“O âmbito de protecção do princípio da igualdade abrange diversas dimensões:
proibição do arbítrio, sendo inadmissíveis, quer a diferenciação de tratamento
sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de valor objectivos
constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações
manifestamente desiguais; proibição de discriminação, não sendo legítimas
quaisquer diferenciações de tratamento entre os cidadãos baseadas em categorias
meramente subjectivas ou em razão dessas categorias; obrigação de diferenciação,
como forma de compensar a desigualdade de oportunidades, o que pressupõe a
eliminação pelos poderes públicos de desigualdades fácticas de natureza social,
económica e cultural (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da
República Portuguesa Anotada, I vol., 2ª ed., Coimbra, 1984, pp. 149 e segs.).
A proibição do arbítrio constitui um limite externo da liberdade de conformação
ou de decisão dos poderes públicos, servindo o princípio da igualdade como
princípio negativo do controlo.
Todavia, a vinculação jurídico-material do legislador a este princípio não
elimina a liberdade de conformação legislativa, pois lhe pertence, dentro dos
limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as
relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar
igual ou desigualmente.
Só existe violação do princípio da igualdade enquanto proibição de arbítrio
quando os limites externos da discricionariedade legislativa são afrontados por
carência de adequado suporte material para a medida legislativa adoptada.
Por outro lado, as medidas de diferenciação devem ser materialmente fundadas sob
o ponto de vista da segurança jurídica, da praticabilidade, da justiça e da
solidariedade, não se baseando em qualquer razão constitucionalmente imprópria.”
Mais recentemente, no Acórdão n.º 409/99 (DR, II série, de 10 de Março de 1999)
disse-se que:
“O princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República
Portuguesa, impõe que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e
que se trate diferentemente o que for essencialmente diferente. Na verdade, o
princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionariedade
legislativa, não veda à lei a adopção de medidas que estabeleçam distinções.
Todavia, proíbe a criação de medidas que estabeleçam distinções
discriminatórias, isto é, desigualdades de tratamento materialmente não fundadas
ou sem qualquer fundamentação razoável, objectiva e racional. O princípio da
igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se numa ideia geral de
proibição do arbítrio (cf., quanto ao princípio da igualdade, entre outros, os
Acórdãos nºs 186/90, 187/90, 188/90, 1186/96 e 353/98, publicados in ‘Diário da
República’, respectivamente, de 12 de Setembro de 1990, 12 de Fevereiro de 1997,
e o último, ainda inédito).”
E no Acórdão n.º 245/2000 (DR, II série, de 3 de Novembro de 2000) salientou-se
que
“(...) tem, de há muito, vindo a afirmar este Tribunal que é ‘sabido que o
princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionaridade
legislativa, não veda à lei a realização de distinções. Proíbe-lhe, antes, a
adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias – e assumem,
desde logo, este carácter as diferenciações de tratamentos fundadas em
categorias meramente subjectivas, como são as indicadas, exemplificativamente,
no n.º 2 do artigo 13º da Lei Fundamental –, ou seja, desigualdades de
tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável
(vernünftiger Grund) ou sem qualquer justificação objectiva e racional. Numa
expressão sintética, o princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da
lei, traduz-se na ideia geral de proibição do arbítrio (Willkürverbot)’ (cfr.,
por entre muitos outros, o Acórdão nº 1186/96, publicado no Diário da República,
2ª Série, de 12 de Fevereiro de 1997), ou, dito ainda de outra forma, o
‘princípio da igualdade (...) impõe se dê tratamento igual ao que for
essencialmente igual e se trate diferentemente o que diferente for. Não proíbe
as distinções de tratamento, se materialmente fundadas; proíbe, isso sim, a
discriminação, as diferenciações arbitrárias ou irrazoáveis, carecidas de
fundamento racional’ (verbi gratia, Acórdão nº 1188/96, ob. cit., 2ª Série, de
13 de Fevereiro de 1997).”»
Ora, admitir-se-á que, na perspectiva referida, se entenda que a diferenciação
entre o cônjuge e a pessoa que convivia com a vítima em união de facto estável e
duradoura, para o efeito de excluir a possibilidade de compensar os danos não
patrimoniais sofridos por esta última com a morte da vítima, é destituída de
fundamento razoável.
Na verdade, como destituída de fundamento razoável não há que considerar apenas
a diferenciação de tratamento que possa considerar-se verdadeiramente
arbitrária, mas também aquela que se baseie num critério que não possa ser
relevante, considerando o efeito jurídico visado.
E, na referida perspectiva, aceitar-se-á que a existência de um vínculo
matrimonial, por contraposição à convivência em união estável e duradoura, não
constitui só por si um fundamento razoável para excluir a compensação do
sofrimento e da dor sofridos com a morte pela(o) companheira(o) da vítima de um
homicídio doloso.
Designadamente, o fundamento apontado em geral para a previsão de um conjunto de
pessoas cujos danos não patrimoniais, resultantes da morte da vítima, são
susceptíveis de ser levados em conta, consistente em evitar a multiplicação das
pretensões indemnizatórias em consequência desta lesão (razão pela qual as
“excelências da equidade” teriam de ser “sacrificadas às incontestáveis
vantagens do direito estrito” – Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil
anotado, vol. I, 4ª ed., com a colab. de Henrique Mesquita, pág. 501), não é
aplicável à dimensão normativa em causa, em que está em causa a compensação da
dor e do sofrimento da pessoa que convivia em união estável e duradoura, em
condições análogas às dos cônjuges, da qual existiam até dois filhos menores,
com a vítima de um homicídio doloso.
É certo que a morte de uma pessoa é um evento que é susceptível de causar danos
não patrimoniais a um círculo alargado de pessoas. E pode também concordar-se
com a conveniência em evitar que o lesante por mera culpa se veja assoberbado
por pretensões indemnizatórias deduzidas por um número ilimitado de pessoas. Por
estas razões, compreende-se que no n.º 2 do artigo 496º o legislador se tenha
preocupado em enumerar o círculo de pessoas cujos danos não patrimoniais,
causados pela morte da vítima, são atendíveis, e que se tenha mesmo preocupado
em dividir tais pessoas em três grupos (primeiro, o cônjuge não separado
judicialmente de pessoas e bens e os filhos ou outros descendentes; “na falta
destes”, os pais ou outros ascendentes; e, “por último”, os irmãos ou sobrinhos
que os representem). Isto, aliás, diversamente do que acontecia no anteprojecto
do articulado relativo ao direito das obrigações, para o Código Civil de 1966, o
qual previa, no seu artigo 759º, n.º 3, que no caso de morte de uma pessoa,
“quando as circunstâncias o impuserem, pode reconhecer-se direito de satisfação
a outros parentes, a afins ou estranhos à família, desde que tais pessoas
estivessem ligadas à vítima de maneira a constituírem de facto família dela” –
Adriano Vaz Serra, Direito das obrigações (com excepção dos contratos em
especial) – Anteprojecto, Lisboa, 1960, artigo 759.º, n.º 3, pág. 624.
Na dimensão normativa em causa, porém, não só o beneficiário da indemnização se
encontra perfeitamente delimitado, e é apenas um (pretendendo ser colocado no
mesmo plano do cônjuge, e, portanto, no primeiro grupo dos titulares de
indemnização), como – conforme bem nota o Ministério Público – não merece
certamente tutela o eventual interesse do homicida doloso em se eximir à
compensação de todos os danos que provocou com o homicídio.
Por outro lado, sob a perspectiva do fundamento para o reconhecimento da
compensação – que reside, obviamente, na verificação da dor e do sofrimento por
causa do falecimento da vítima, e na justeza de uma compensação por tais danos
–, não se vê como possa relevar a existência de um vínculo matrimonial, em lugar
apenas de uma convivência em união estável e duradoura com outra pessoa, em
condições análogas às dos cônjuges, para excluir completamente a atendibilidade
dos padecimentos sofridos por esta. Estes não são, na verdade, nem qualitativa
nem quantitativamente menos merecedores da tutela do direito por não existir um
vínculo matrimonial.
Não se divisando, pois, fundamento razoável na exclusão da ressarcibilidade dos
danos não patrimoniais sofridos por quem vivia em união de facto com a vítima,
chegar-se-ia, por esta via, a uma conclusão de inconstitucionalidade, por
violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição.
11. Entende-se, porém, que, mesmo a não se perfilhar tal entendimento do
princípio da igualdade, não se é por isso necessariamente conduzido a uma
solução de compatibilidade com a Constituição da solução normativa em apreciação
no presente recurso de constitucionalidade.
Segundo uma outra perspectiva, não se pode excluir a liberdade do legislador de
prever um regime jurídico específico para os cônjuges, visando, por exemplo, a
prossecução de objectivos políticos de incentivo ao matrimónio. Considerando
desde logo a existência de especiais deveres entre os cônjuges, dir-se-ia, como
se afirmou no citado Acórdão n.º 14/2000, que “(...) de harmonia com o nosso
ordenamento (ainda suportado constitucionalmente), o regime das pessoas unidas
pelo matrimónio confrontadamente com a união de facto não permite sustentar que
nos postamos perante situações idênticas à partida e, consequentemente, que
requeiram tratamento igual”. E, portanto, não se divisaria na norma em apreço
violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Lei Fundamental.
Ainda quem adopta tal perspectiva, há-de, porém, necessariamente interrogar-se
sobre a existência de uma justificação atendível para a solução de excluir de
plano e em abstracto todos e quaisquer danos não patrimoniais sofridos
pessoalmente por quem convivia com a vítima de um homicídio doloso em condições
análogas às dos cônjuges.
Na verdade, como este Tribunal já afirmou, o legislador constitucional dispensa
no artigo 36º, n.º 1, protecção à família, enquanto “elemento fundamental da
sociedade”, distinguindo-a, no n.º 1 e no n.º 2 desse artigo, do casamento. E,
portanto, dispensa protecção a uma realidade social que se não funda
necessariamente no matrimónio – uma família não fundada no casamento. Tal
“distinção constitucional entre família, por um lado, e matrimónio por outro”,
que “parece espelhar um entendimento e reconhecimento da família como uma
realidade mais ampla do que aquela que resulta do casamento, que pode ser
denominada de família conjugal”, foi referida por este Tribunal, recentemente,
no Acórdão n.º 690/98 (ATC, vol. 41º, págs. 579 e segs.); na doutrina
civilística, veja-se C. Mota Pinto, ob. cit., pág. 149.
No artigo 36º, n.º 1, a Constituição da República consagra, na verdade, o
“direito de constituir família e de contrair casamento”, distinguindo as duas
realidades – e regista-se, a propósito, que também a recente Carta dos Direitos
Fundamentais da União Europeia (a qual, apesar de não ter eficácia jurídica
obrigatória, pode aqui ser convocada por exprimir princípios comuns aos
ordenamentos europeus) consagra diferenciadamente, no seu artigo 9º, o “direito
de contrair casamento e o direito de constituir família”, podendo ler-se, nas
anotações explicativas pela mesa da Convenção que elaborou a Carta, que a
redacção deste artigo, fundada no artigo 12º da Convenção Europeia dos Direitos
do Homem, “foi modernizada de modo a abranger os casos em que as legislações
nacionais reconhecem outras formas de constituir família além do casamento”.
A Constituição da República Portuguesa, depois de reconhecer o direito a
constituir família, que se não funda necessariamente no casamento, reconhece no
artigo 67º, n.º 1, à “família, como elemento fundamental da sociedade”, o
“direito à protecção da sociedade e do Estado e à efectivação de todas as
condições que permitam a realização pessoal dos seus membros.”
Ainda que se entenda que daquela distinção e desta norma não resulta uma
imposição para o legislador de reconhecer e proteger, em geral, a união de facto
estável e duradoura, em condições análogas às dos cônjuges, e a família nela
fundada, em termos idênticos aos da família baseada no casamento, há-de
certamente extrair-se daí, pelo menos, o dever de não desproteger, sem uma
justificação razoável, a família que se não fundar no casamento – isto, pelo
menos quanto àqueles pontos do regime jurídico que directamente contendam com a
protecção dos seus membros e que não sejam aceitáveis como instrumento de
eventuais políticas de incentivo à família que se funda no casamento.
12. Ora, é justamente tal justificação que não se divisa para a dimensão
normativa em análise, permitindo tal falta distinguir também a situação presente
de outras, já apreciadas por este Tribunal.
Na verdade, já se disse que não procede, em relação à compensação dos
sofrimentos e da dor sofrida por quem convivia com a vítima de um homicídio
doloso em condições análogas às dos cônjuges, nem a justificação consistente na
necessidade de limitar as pretensões indemnizatórias, nem a que valoriza a
necessidade de uma solução certa, já que a expectativa do lesante de se não ver
confrontado com um número não definido de pretensões indemnizatórias não merece
protecção e que o titular do direito à compensação se encontra perfeitamente
determinado. E já se disse também que, para o fundamento do reconhecimento da
compensação por danos não patrimoniais – a verificação da dor e do sofrimento
por causa do falecimento da vítima, e a justeza de uma compensação por tais
danos –, a existência de um vínculo matrimonial, em lugar apenas de uma
convivência em união estável e duradoura com outra pessoa, em condições análogas
às dos cônjuges, é irrelevante.
Acresce, com relevo para a determinação dos limites da discricionariedade
legislativa, que a solução normativa em apreço se reporta a um problema que se
afigura como inadequado para a prossecução de eventuais objectivos políticos de
protecção ou incentivo ao casamento. Basta, para o concluir, considerar que não
está em causa a concessão de um benefício em relação ao qual se verifique a
previsibilidade necessária para se poder descortinar qualquer efeito de
incentivo (ao contrário do que, em certa perspectiva, poderia ser o caso de
outras medidas, como, por exemplo, a concessão de uma preferência para as
pessoas casadas, por exemplo, na colocação como funcionário).
Na norma em questão trata-se, antes, de compensar um dano – e um dano
normalmente de grande gravidade, consistente em sofrimentos e dores, cuja
compensação “merece a tutela do direito”, sendo “indemnizável” nos termos do
regime geral do artigo 496º, n.º 1, do Código Civil. E trata-se de um dano que
resulta de um evento que é evidentemente imprevisível (um homicídio doloso).
Pelo que, mesmo dispensando outras considerações, não se afiguraria adequada e
aceitável, à luz do reconhecimento constitucional de protecção também da família
não fundada no casamento – e do próprio valor da dignidade humana –, a
utilização do regime da “indemnização” pela dor e pelo sofrimento resultantes da
morte para as pessoas que conviviam com a vítima em condições análogas às dos
cônjuges, como instrumento para a prossecução de eventuais objectivos políticos
de incentivo à família fundada no casamento.
Nesta linha, cumpre anotar, por último, que, se já se não encontra justificação
atendível para a desprotecção da família não fundada no casamento, que
resultaria da proibição de consideração dos danos não patrimoniais sofridos pela
pessoa que convivia em união estável e duradoura, em condições análogas às dos
cônjuges, com a vítima de um homicídio doloso, menos ainda será divisável tal
justificação no actual normativo, considerando o regime de protecção da união de
facto actualmente em vigor, previsto na Lei n.º 7/2001. Na verdade, não se
encontra justificação para se reconhecer a tais pessoas variados direitos (cfr.
o artigo 3º do citado diploma), que podem ter como destinatários também
particulares, mas limitar aos cônjuges a protecção que, em caso de morte,
resulta da compensabilidade dos danos não patrimoniais pessoalmente sofridos –
que se refere a danos de grande gravidade e pessoais, que por natureza revestem
sempre uma dimensão individual e de incomensurabilidade.
Também nesta perspectiva – próxima da que, nas suas contra-alegações, adopta o
Ex.mº representante do Ministério Público neste Tribunal – se chegará, pois, a
uma solução de inconstitucionalidade, por violação do artigo 36º, n.º 1, da
Constituição conjugado com o princípio da proporcionalidade, da norma do n.º 2
do artigo 496º do Código Civil por, em caso de morte da vítima de um crime
doloso, excluir o direito de “indemnização por danos não patrimoniais” sofridos
pela pessoa que convivia com a vítima em situação de união de facto, estável e
duradoura, em condições análogas às dos cônjuges.»
Como resulta da fundamentação transcrita, no Acórdão n.º 275/2002 não se
considerou inconstitucional a norma do artigo 496.º, n.º 2, na interpretação
então questionada, por violação do princípio da igualdade, mas antes, e apenas,
“por violação do artigo 36.º, n.º 1, da Constituição conjugado com o princípio
da proporcionalidade” (fundamentos distintos, mas não incompatíveis, para o
juízo de inconstitucionalidade a que se chegou). Esta distinção de fundamentos
resulta claramente, além da fórmula decisória adoptada, do confronto com este
segundo parâmetro (n.ºs 11 e seg. do aresto), exposto “mesmo a não se perfilhar
tal entendimento do princípio da igualdade”, segundo “uma outra perspectiva”,
que não exclui “a liberdade do legislador de prever um regime jurídico
específico para os cônjuges, visando, por exemplo, a prossecução de objectivos
políticos de incentivo ao matrimónio”, considerando “desde logo a existência de
especiais deveres entre os cônjuges”, para se dizer “como se afirmou no citado
Acórdão n.º 14/2000, que ‘(...) de harmonia com o nosso ordenamento (ainda
suportado constitucionalmente), o regime das pessoas unidas pelo matrimónio
confrontadamente com a união de facto não permite sustentar que nos postamos
perante situações idênticas à partida e, consequentemente, que requeiram
tratamento igual’”.
A ratio decidendi do juízo de inconstitucionalidade do Acórdão n.º 275/2002
acha‑se, pois, ainda para “quem adopta tal perspectiva” segundo a qual “não se
divisaria na norma em apreço violação do princípio da igualdade consagrado no
artigo 13º da Lei Fundamental”, apenas na “violação do artigo 36.º, n.º 1, da
Constituição conjugado com o princípio da proporcionalidade”.
7.Afigura-se, porém, essencial recordar a forma como se concretizou o confronto
com o princípio da proporcionalidade. Com efeito, depois de se observar que o
legislador constitucional não quis reduzir a noção de família à união conjugal
baseada no casamento, e que impõe a protecção da “família, como elemento
fundamental da sociedade”, com “um dever de não desproteger, sem uma
justificação razoável, a família que se não fundar no casamento”, a apreciação
da conformidade com o princípio da proporcionalidade não se centrou em qualquer
“desproporção” das consequências do regime jurídico (que, efectivamente, podem
ser tão ou mais gravosas, por exemplo, no não reconhecimento da qualidade de
sucessível na sucessão legitimária). O iter seguido para o confronto com o
princípio da proporcionalidade, passou, antes, pela averiguação daquela
“justificação razoável” especificamente para a solução normativa em questão,
atentando, precisamente, na relação entre a justificação que para ela é
adiantada e os dados do caso em que a dimensão normativa impugnada fora aplicada
(e recorde-se que se tratou de decisão proferida em fiscalização concreta e
incidental da constitucionalidade).
No contexto dessa averiguação da conformidade com o princípio da
proporcionalidade, enquanto princípio geral atinente à relação entre meios e
fins da actuação do poder público (conjugada com a protecção constitucional
também da “família não fundada no casamento”), logo se pôde verificar a total
desadequação da dimensão normativa então em apreçiação às justificações ou
finalidades para ela adiantadas. Salientou-se, assim, que, para a “compensação
dos sofrimentos e da dor sofrida por quem convivia com a vítima de um homicídio
doloso em condições análogas às dos cônjuges”, não podia proceder, nem a
justificação da solução do artigo 496.º, n.º 2, “consistente na necessidade de
limitar as pretensões indemnizatórias, nem a que valoriza a necessidade de uma
solução certa, já que a expectativa do lesante de se não ver confrontado com um
número não definido de pretensões indemnizatórias não merece protecção e que o
titular do direito à compensação se encontra perfeitamente determinado”
(itálicos aditados – e cf. também já antes, a propósito do princípio da
igualdade, no n.º 10 da fundamentação do Acórdão n.º 275/2002). E ainda se
verificou, “com relevo para a determinação dos limites da discricionariedade
legislativa”, que a solução normativa em apreço se reporta a um problema que se
afigura como “inadequado para a prossecução de eventuais objectivos políticos de
protecção ou incentivo ao casamento”, não só por estar em causa compensar um
dano, normalmente de grande gravidade, como por este resultar de “um evento que
é evidentemente imprevisível (um homicídio doloso)”.
Só estes passos permitiram concluir pela existência de “violação do artigo 36.º,
n.º 1, da Constituição conjugado com o princípio da proporcionalidade” no caso
decidido pelo Acórdão n.º 275/2002, como resulta logo da leitura da sua
fundamentação.
E note-se, ainda, que as considerações expendidas na fundamentação do Acórdão
n.º 275/2002, relevantes, nos termos expostos, à luz do princípio da
proporcionalidade não dependeram de qualquer tomada de posição na discussão
sobre a verdadeira natureza ou função da “indemnizaçao”, “compensação” ou
“satisfação” (“Genugtuung”) por danos não patrimoniais (nos termos do artigo
496.º, n.º 1, apenas dos que “pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”),
isto é, numa discussão em que, como é sabido, tem também sido defendida, entre
outras posições, a da atribuição de uma função sancionatória ou punitiva, ou
pelo menos de uma dupla função, compensatória e punitiva, a tal “satisfação” –
dando nota desta posição, v. António Pinto Monteiro, “Sobre a reparação dos
danos morais”, in Revista Portuguesa do Dano Corporal, ano 1.º, 1, 1992, pp.
17-25 (20 e s.); Júlio Gomes, “Uma função punitiva para a responsabilidade civil
e uma função reparatória para a responsabilidade penal?”, Revista de Direito e
Economia, Coimbra, ano 15, 1989, pp. 105-144 (116 e ss.); recentemente, v. Paula
Meira Lourenço, A função punitiva da responsabilidade civil, Coimbra, Coimbra
Ed., 2006, pp. 278 e ss., e Mafalda Miranda Barbosa, “Reflexões em torno da
responsabilidade civil: teleologia e teleonomologia em debate”, Boletim da
Faculdade de Direito, Coimbra, vol. , 2005, pp. 511-600 (565 e ss., contra o
reconhecimento de uma função punitiva).
8.A decisão proferida no Acórdão n.º 275/2002 foi objecto de análise sobretudo
no plano da comparação entre a posição do cônjuge e de quem vive em “união de
facto” com outrem, à luz das normas e princípios constitucionais sobre a família
e o casamento. É certo que, como se disse, se aceitou então a relevância, para a
noção constitucional de família, também da “família não fundada no casamento”,
rejeitando a redução da família à que assenta no matrimónio (contra tal redução
à família “matrimonializada”, v. também J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira,
Constituição da República Portuguesa anotada, 4.ª ed., Coimbra, Coimbra Ed.,
2006, art. 36.º, anot. II, p. 561), e que se afirmou “um dever de não
desproteger, sem uma justificação razoável”.
Nos presentes autos, pode reiterar-se este entendimento, que só por si está,
porém, longe de implicar qualquer equiparação geral do regime da família fundada
no casamento e da família não assente no matrimónio (v. também J. J. Gomes
Canotilho/Vital Moreira, ob. e loc. cits.). Antes tem mesmo sido defendido entre
nós que uma tal equiparação geral esbarraria também com obstáculos
jurídico‑constitucionais (v. F. Pereira Coelho/G. de Oliveira, Curso…, cit., p.
106, F. Pereira Coelho, “Casamento e divórcio no ensino de Manuel de Andrade”,
in Ciclo de conferências em homenagem póstuma ao Prof. Manuel de Andrade,
Coimbra, Almedina, 2002, pp. 55-72, 67 e s., falando de violação do direito de
não casar; e N. Salter Cid, ob. cit., pp. 540 e s.), ou que seria contrariada
pela própria ideia de igualdade perante a lei (António Arnaut, Ética e Direito,
Coimbra, Livraria Mateus, 1999, p. 26).
9.Mais do que uma comparação “transversal” entre a posição do cônjuge e de quem
vive em “união de facto” com outrem, a “revisitação” efectuada à decisão do
Tribunal Constitucional que o recorrente invoca impõe, porém, que se recorde e
aprofunde a referência, contida já no Acórdão n.º 275/2002, especificamente à
ratio da delimitação, pelo n.º 2 do artigo 496.º dos titulares de um direito a
uma “indemnização” (compensação ou “satisfação”) por danos não patrimoniais por
morte da vítima, e em particular no que toca ao problema da exclusão daqueles
que de facto, tendo em conta as circunstâncias do caso, eram mais próximos
desta.
O problema é – contrariamente ao que se poderia pensar – bastante anterior ao
reconhecimento legislativo de efeitos jurídicos da “união de facto”, entre nós e
lá fora. Adriano Vaz Serra tratou-o assim já em 1959, nos trabalhos
preparatórios do Código Civil (“Reparação do dano não patrimonial”, Boletim do
Ministério da Justiça, n.º 83, pp. 69-111, esp. 96-98), depois de perguntar a
quem deve ser reconhecido o direito à compensação em causa (e baseando-se em
doutrina alemã e suíça da primeira metade do século XX):
«Não parece que deva ser reconhecido aos herdeiros como tais, os quais podem ser
estranhos à família, caso em que não terão, em regra, dor moral suficiente para
justificar uma compensação.
Tal direito deve ser reservado para os familiares da vítima, que são as pessoas
nas quais é de presumir a existência de sentimentos de afeição bastante fortes.
Mas, por um lado, esses sentimentos podem ser ainda mais fortes da parte de
pessoas estranhas à família juridicamente entendida; e, por outro lado, o facto
de ser membro da família não implica necessariamente a existência de uma afeição
suficiente.
Pareceria assim, que por família, para este efeito, deveriam entender-se aquelas
pessoas que, segundo as circunstâncias materiais do caso concreto, desempenham
de facto as funções de família [citando, neste sentido, A. von Tuhr]. Essas
pessoas seriam as que, pelas especiais relações com a vítima, é de presumir
sofrerem mais, na sua afeição, com a morte dela. O critério não seria, pois,
jurídico, mas de facto.
No entanto, poderia também entender-se que só às pessoas ligadas juridicamente
por laços de família (Cônjuge, parentes e afins) deveria reconhecer-se o direito
à satisfação de danos não patrimoniais. As outras não tinham o direito de contar
com a continuação da situação de facto em que se encontravam com o falecido e
não poderiam, portanto, alegar danos, patrimoniais ou não, resultantes da morte
dele.
Assim, a concubina ou a noiva não poderiam reclamar a referida satisfação, nem o
poderiam fazer outras pessoas colocadas de facto na situação de familiares.
Dadas as razões que podem ser invocadas num sentido e no outro, talvez seja
preferível usar uma fórmula que permita à jurisprudência decidir como lhe
parecer melhor, ou, reconhecendo, em princípio, o direito de satisfação aos
parentes, permitir que se atribua tal direito a pessoas estranhas à família mas
ligadas à vítima de modo a constituírem de facto família dela.
(…)
Se não se limitasse assim o direito à satisfação do dano não patrimonial,
poderia ele ser invocado por vezes por um número considerável de pessoas, com o
resultado de o responsável ter que pagar quantia avultadíssima ou com o de a
cada um dos prejudicados se dar uma importância tão diminuta que seria
praticamente nula.»
Vaz Serra referia ainda, em nota, que, “quanto à concubina”, poderia intervir,
para excluir o direito à compensação, a consideração da “atitude tomada a
respeito da união livre” (p. 98, n. 58, e pp. 91-92). Mas concluía propondo
(também como alternativa) que no caso de morte de uma pessoa, quando as
circunstâncias de facto o impusessem, poderia “reconhecer-se direito de
satisfação a outros parentes, a afins ou estranhos à família, desde que tais
pessoas estivessem ligadas à vítima de maneira a constituírem de facto família
dela” – ob. cit., p. 107, e Adriano Vaz Serra, Direito das obrigações (com
excepção dos contratos em especial) – Anteprojecto, Lisboa, 1960, artigo 759º,
n.º 3, p. 624 (itálico aditado).
O projecto de Código Civil (artigo 498.º, n.º 2) veio, porém, a fixar-se na
alternativa de reconhecimento da “indemnização por danos não patrimoniais” por
morte “em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e
aos filhos ou outros descendentes, na falta destes, aos pais ou outros
ascendentes, e, por último aos irmãos ou sobrinhos que os representem”, numa
solução em que (segundo Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado,
vol. I, 4.ª ed., Coimbra, Coimbra Ed., 1987, art. 496.º, anot. 5, p. 501), as
“excelências da equidade tiveram de ser sacrificadas às incontestáveis vantagens
do direito estrito”.
Considerando que a morte de uma pessoa é um evento lesivo susceptível de causar
danos não patrimoniais a um círculo alargado de pessoas, a delimitação dos
possíveis titulares da compensação por danos não patrimoniais (próprios) em caso
de morte da vítima obedeceu, fundamentalmente, já a uma razão de certeza,
evitando-se a multiplicação indeterminada de pretensões indemnizatórias em
consequência da morte, já à conveniência em evitar que o lesante por mera culpa
se visse assoberbado por pretensões indemnizatórias deduzidas por um número
alargado, ou mesmo ilimitado, de pessoas, com as quais não poderia contar. Por
estas razões, no n.º 2 do artigo 496º o legislador limitou o leque de pessoas
cujos danos não patrimoniais, causados directamente pela morte da vítima, são
atendíveis, e dividiu mesmo tais pessoas em dois grupos, segundo uma presunção
assente na proximidade familiar (primeiro, o cônjuge não separado judicialmente
de pessoas e bens e os filhos ou outros descendentes; “na falta destes”, os pais
ou outros ascendentes; e, “por último”, os irmãos ou sobrinhos que os
representem).
Disse-se no Acórdão n.º 275/2002 que tais justificações se revelavam
desajustadas à dimensão normativa em questão nesse caso, por o beneficiário da
indemnização se encontrar então perfeitamente delimitado e ser apenas um, e por
não merecer “certamente tutela o eventual interesse do homicida doloso em se
eximir à compensação de todos os danos que provocou com o homicídio”.
Há que apurar se é igualmente assim no presente caso.
10.Revertendo então ao caso dos autos – em que (recorde-se) o que está em causa
é a constitucionalidade do artigo 496.º, n.º 2, na medida “em que não admite que
a pessoa que vive em união de facto com uma vítima de acidente de viação, do
qual resulte a morte dessa vítima, tem o direito a receber uma indemnização por
danos patrimoniais”–, pode igualmente proceder-se a um confronto com os
parâmetros constitucionais relevantes em dois momentos, e desdobrando a análise
segundo o invocado pelo recorrente – que é, recorde-se também, a “violação, não
só do art. 36.° da Constituição mas também por violação do princípio da
igualdade garantido no art. 13.° da Lei Fundamental (proibição de diferenciações
ou discriminações)”.
Assim, quem não acompanhasse a decisão proferida no Acórdão n.º 275/2002 (tirado
com dois votos de vencido) dificilmente chegará a uma solução de
inconstitucionalidade no presente caso, considerando que se não está perante um
crime doloso, mas perante um acidente de viação provocado por negligência, com
violação de deveres de cuidado, isto é, não só perante diferentes graus de
culpa, mas perante ilícitos também de diverso tipo e gravidade, como se notou na
decisão recorrida; e considerando, ainda, que, sob a perspectiva (se não da
normal previsibilidade, pelo menos) da frequência dos ilícitos e dos eventos
lesivos em questão, se estava, no caso então decidido, perante um evento
(homicídio doloso) muito pouco frequente, o que, infelizmente, já se não pode
seguramente dizer do que deu origem ao acidente de viação ocorrido no caso dos
autos.
Não existem, com efeito, na dimensão normativa em apreciação no presente
recurso, outras particularidades que, para quem não acompanhasse o juízo de
inconstitucionalidade a que se chegou no Acórdão n.º 275/2002, possam conduzir a
uma conclusão de desconformidade com a Constituição da República, por violação
dos princípios da igualdade ou de outros princípios ou normas constitucionais.
11.Mas mesmo quem tenha subscrito o julgamento de inconstitucionalidade do
Acórdão n.º 275/2002 não é necessariamente conduzido, pelo seus fundamentos, a
uma solução de incompatibilidade com a Constituição da solução normativa em
apreciação no presente recurso de constitucionalidade
Quanto ao princípio da igualdade, já se notou que ele não constituiu o
fundamento decisivo para a decisão tomada maioritariamente no Acórdão n.º
275/2002. E recorde‑se, a propósito, o que se disse no citado Acórdão n.º
195/2003:
«Ora, como este Tribunal tem reconhecido, existem diferenças importantes, que o
legislador pode considerar relevantes, entre a situação de duas pessoas casadas,
e que, portanto, voluntariamente optaram por alterar o estatuto jurídico da
relação entre elas – mediante um “contrato celebrado entre duas pessoas de sexo
diferente que pretendem constituir familía mediante uma plena comunhão de vida,
nos termos das disposições deste Código”, como se lê no artigo 1577.º do Código
Civil –, e a situação de duas pessoas que (embora convivendo há mais de dois
anos “em condições análogas às dos cônjuges”) optaram, diversamente, por manter
no plano de facto a relação entre ambas, sem juridicamente assumirem e
adquirirem as obrigações e os direitos correlativos ao casamento.»
E, posteriormente, no também citado Acórdão n.º 159/2005:
«Assim, na óptica do princípio da igualdade, a situação de duas pessoas que
declaram a intenção de conceder relevância jurídica à sua união e a submeter a
um determinado regime (um específico vínculo jurídico, com direitos e deveres e
um processo especial de dissolução) não tem de ser equiparada à de quem,
intencionalmente, opta por o não fazer. O legislador constitucional não pode ter
pretendido retirar todo o espaço à prossecução, pelo legislador
infra-constitucional, cujo programa é sufragado democraticamente, de objectivos
políticos de incentivo ao matrimónio enquanto instituição social, mediante a
formulação de um regime jurídico próprio – por exemplo, distinguindo entre a
posição sucessória do convivente em união de facto (reduzida ao referido direito
a exigir alimentos da herança) e a do cônjuge.»
O regime da indemnização por danos não patrimoniais em caso de morte da vítima
é, justamente, um desses pontos submetidos a um regime jurídico distinto, tal
como distintas são, também, as relações entre a vítima e quem pede a
indemnização.
Não existe, pois, violação do princípio da igualdade na norma em apreciação.
12.Como resulta do que se disse, e também se afirmou no citado Acórdão n.º
159/2005,
«Superada a objecção que se pudesse pretender extrair do princípio da igualdade,
e admitida a presente diferenciação à luz da política legislativa que o
legislador democrático entenda dever prosseguir, não ficam, porém, dissipados
todos os argumentos conducentes a uma conclusão de inconstitucionalidade. Aliás,
o acórdão recorrido [dir-se-á, agora, o Acórdão n.º 275/2002] baseou o seu
julgamento de inconstitucionalidade, decisivamente, na invocação do princípio da
proporcionalidade (conjugado com o reconhecimento constitucional da “família não
fundada no casamento”) […].»
Sobre o confronto com o princípio da proporcionalidade conjugado com o
reconhecimento constitucional da “família não fundada no casamento” importa
novamente recordar que, como também já se notou (e se disse igualmente no
Acórdão n.º 159/2005),
«[…]o que está em causa no confronto de uma solução normativa com o princípio da
proporcionalidade não é simplesmente a gravidade ou a dimensão das desvantagens
ou inconvenientes que pode acarretar para os visados (com, por exemplo, a
necessidade da prova da carência de alimentos, ou, mesmo, a exclusão total de
certos direitos). O recorte de um regime jurídico – como o da destruição do
vínculo matrimonial ou o dos seus efeitos sucessórios – pela hipótese do
casamento, deixando de fora situações que as partes não pretenderam
intencionalmente submeter a ele, tem necessariamente como consequência a
exclusão dos respectivos efeitos jurídicos. O que importa apurar é se tal
recorte é aceitável – se segue um critério constitucionalmente aceitável – tendo
em conta o fim prosseguido e as alternativas disponíveis – sem deixar de
considerar a ampla margem de avaliação de custos e benefícios e como de escolha
dessas alternativas, que, à luz dos objectivos de política legislativa que ele
próprio define dentro do quadro constitucional, tem de ser reconhecida ao
legislador (e que este Tribunal reconheceu, por exemplo, no Acórdão n.º
187/2001, publicado no Diário da República, II série, de 26 de Junho de 2001).»
Mas lembre-se, também, o que este Tribunal tem afirmado sobre o alcance do
princípio da proporcionalidade como parâmetro de controlo jurisdicional da
actividade legislativa. Afirmou-se, assim, citando anterior jurisprudência, no
citado Acórdão n.º 187/2001, o seguinte:
«Não pode contestar-se que o princípio da proporcionalidade, mesmo que
originariamente relevante sobretudo no domínio do controlo da actividade
administrativa, se aplica igualmente ao legislador. Dir-se-á mesmo – como o
comprova a própria jurisprudência deste Tribunal – que o princípio da
proporcionalidade cobra no controlo da actividade do legislador um dos seus
significados mais importantes. Isto não tolhe, porém, que as exigências
decorrentes do princípio se configurem de forma diversa para a actividade
administrativa e legislativa – que, portanto, o princípio, e a sua prática
aplicação jurisdicional, tenham um alcance diverso para o Estado‑Administrador e
para o Estado-Legislador.
Assim, enquanto a administração está vinculada à prossecução de finalidades
estabelecidas, o legislador pode determinar, dentro do quadro constitucional, a
finalidade visada com uma determinada medida. Por outro lado, é sabido que a
determinação da relação entre uma determinada medida, ou as suas alternativas, e
o grau de consecução de um determinado objectivo envolve, por vezes, avaliações
complexas, no próprio plano empírico (social e económico). É de tal avaliação
complexa que pode, porém, depender a resposta à questão de saber se uma medida é
adequada a determinada finalidade. E também a ponderação suposta pela
exigibilidade ou necessidade pode não dispensar essa avaliação.
Ora, não pode deixar de reconhecer-se ao legislador – diversamente da
administração –, legitimado para tomar as medidas em questão e determinar as
suas finalidades, uma “prerrogativa de avaliação”, como que um “crédito de
confiança”, na apreciação, por vezes difícil e complexa, das relações empíricas
entre o estado que é criado através de uma determinada medida e aquele que dela
resulta e que considera correspondente, em maior ou menor medida, à consecução
dos objectivos visados com a medida (que, como se disse, dentro dos quadros
constitucionais, ele próprio também pode definir). Tal prerrogativa da
competência do legislador na definição dos objectivos e nessa avaliação (com o
referido “crédito de confiança” – falando de um “Vertrauensvorsprung”, v. Bodo
Pieroth/Bernhard Schlink, Grundrechte. Staatsrecht II, 14.ª ed., Heidelberg,
1998, n.ºs 282 e 287) afigura-se importante sobretudo em casos duvidosos, ou em
que a relação medida-objectivo é social ou economicamente complexa, e a
objectividade dos juízos que se podem fazer (ou suas hipotéticas alternativas)
difícil de estabelecer.
Significa isto, pois, que, em casos destes, em princípio o Tribunal não deve
substituir uma sua avaliação da relação, social e economicamente complexa, entre
o teor e os efeitos das medidas, à que é efectuada pelo legislador, e que as
controvérsias geradoras de dúvida sobre tal relação não devem, salvo erro
manifesto de apreciação – como é, designadamente (mas não só), o caso de as
medidas não serem sequer compatíveis com a finalidade prosseguida –, ser
resolvidas contra a posição do legislador.
Contra isto não vale, evidentemente, o argumento de que, perante o caso
concreto, e à luz do princípio da proporcionalidade, ou existe violação – e a
decisão deve ser de inconstitucionalidade – ou não existe – e a norma é
constitucionalmente conforme. Tal objecção, segundo a qual apenas poderia
existir “uma resposta certa” do legislador, conduz a eliminar a liberdade de
conformação legislativa, por lhe escapar o essencial: a própria averiguação
jurisdicional da existência de uma inconstitucionalidade, por violação do
princípio da proporcionalidade por uma determinada norma, depende justamente de
se poder detectar um erro manifesto de apreciação da relação entre a medida e
seus efeitos, pois aquém desse erro deve deixar-se na competência do legislador
a avaliação de tal relação, social e economicamente complexa.»
As considerações que precedem afiguram-se relevantes no caso dos autos: o
legislador goza de uma considerável margem de discricionariedade na delimitação,
no artigo 496.º, n.º 2, do círculo das pessoas que podem pedir indemnização por
morte da vítima.
E a apreciação da conformidade com o princípio da proporcionalidade, nos termos
referidos, não deve, também, deixar de tomar em conta – sobretudo em
fiscalização concreta e incidental da constitucionalidade – as particularidades
da dimensão normativa ora em apreciação, e o diverso recorte do caso a que foi
aplicada.
E há, ainda, que recordar que, como este Tribunal tem repetidamente afirmado,
não está em causa, no controlo da constitucionalidade a que procede, a
qualificação do “melhor direito” (e a “desqualificação” do “pior direito”) em si
mesmo, isto é, o juízo sobre qual seria a solução mais conveniente ou que melhor
concilia todos os interesses em presença. Tal é missão do legislador. Ao
Tribunal Constitucional compete apenas um controlo de constitucionalidade, ou
seja, ajuizar sobre a questão de saber se uma solução ou dimensão normativa
viola normas ou princípios constitucionais: não, neste sentido, avaliar o
“melhor direito”, mas apenas dizer o “não direito”, porque incompatível com a
Constituição da República (cf. os seus artigos 3.º, n.º 3, 204.º, 223.º, n.º 1,
e 277.º, n.º 1).
13.Ora, entende-se que o confronto, que levou no citado aresto de 2002 a afirmar
a “violação do artigo 36.º, n.º 1, da Constituição conjugado com o princípio da
proporcionalidade”, entre a justificação da delimitação operada no artigo 496.º,
n.º 2, e a dimensão normativa em análise no presente recurso conduz a resultados
diversos dos alcançados naquele aresto. Falta, pois, identidade substancial,
neste aspecto constitucionalmente relevante, entre as normas ou dimensões
normativas em apreciação nos dois.
Não é, com efeito, possível detectar no presente caso qualquer falta grosseira
ou evidente de adequação entre a dimensão normativa ora em apreço e as
finalidades dessa delimitação, resultante do artigo 496.º, n.º 2 (note-se,
aliás, e como se referiu, que o legislador goza, neste âmbito, de uma
considerável margem de discricionariedade para ponderar os vários interesses
envolvidos, e sem que se possa retirar da Constituição um certo e único regime
constitucionalmente admissível, e que, na dúvida, sobre tal inadequação sempre
seria de decidir no sentido da inexistência de inconstitucionalidade).
É o que facilmente se conclui, desde logo, para a justificação consistente na
necessidade de limitar as pretensões indemnizatórias, por razões de certeza, que
se pode revelar procedente para lesões que se verificam com uma frequência
diária, e sem qualquer relação prévia entre lesante e lesado (diversamente do
que acontecia com a lesão provocada pelo homicídio no caso do Acórdão n.º
275/2002). Sem tal limitação, os prejuízos não patrimoniais resultantes da morte
poderiam ser invocados frequentemente, e “por vezes por um número considerável
de pessoas, com o resultado de o responsável ter que pagar quantia avultadíssima
ou com o de a cada um dos prejudicados se dar uma importância tão diminuta que
seria praticamente nula” (nas palavras citadas de Vaz Serra).
O que é reforçado pela consideração da expectativa do lesante de se não ver
assoberbado com um número não definido de pretensões indemnizatórias. Na
verdade, afirmou-se, no caso decidido pelo Acórdão n.º 275/2002, que “não merece
certamente tutela o eventual interesse do homicida doloso em se eximir à
compensação de todos os danos que provocou com o homicídio”. Tal posição do
lesante, se não merecia protecção, dada a “gravidade extrema do ilícito” e o
dolo do lesante, no caso do Acórdão n.º 275/2002, não tem de ser considerada
irrelevante – sob pena de erro grosseiro de avaliação do legislador – num caso
como o dos autos, em que está em causa a infracção de regras legais de
circulação rodoviária e de deveres de cuidado, com negligência do lesante, da
qual veio a resultar o acidente que provocou a morte. Não pode, com efeito,
excluir-se que o legislador atenda à conveniência em que os lesantes por mera
culpa se não vejam assoberbados por pretensões indemnizatórias deduzidas por um
número ilimitado de pessoas, dada a frequência estatística de situações como a
dos autos.
Neste sentido pode, pois, dizer-se que a solução encontrada no Acórdão n.º
275/2002 assentou, confessadamente, na gravidade extrema do ilícito e da culpa,
num crime de homicídio doloso, diversamente do que acontece no presente caso, em
que está em causa a negligência que provocou o acidente do qual resultou a
morte, sendo que tais diferenças não podem ser reduzidas à mera forma como a
vítima morreu. E pode concordar-se também com quem considera questionável a
extensão dessa solução “às situações, mais frequentes, em que a pretensão
indemnizatória se insere no quadro da responsabilidade civil por negligência ou
pelo risco” (como A. A. Geraldes, ob. cit., p. 27). E isto, repete-se, quer para
quem não subscrevesse o juízo de inconstitucionalidade a que se chegou no
Acórdão n.º 275/2002, quer para quem adoptasse a posição que nele fez
vencimento.
14.Conclui-se, pois, que a norma do artigo 496.º, n.º 2, do Código Civil, na
medida em que não admite que a pessoa que vive em união de facto com uma vítima
de acidente de viação, do qual resulte a morte dessa vítima, tem o direito a
receber uma indemnização por danos patrimoniais, não viola nem o princípio da
igualdade nem o artigo 36.º, n.º 1, da Constituição conjugado com o princípio da
proporcionalidade, parâmetros constitucionais invocados pelo recorrente.
Não se descortinando outros fundamentos para um juízo de inconstitucionalidade,
há, pois, que negar provimento ao presente recurso.
III. Decisão
Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não tomar conhecimento do recurso interposto ao abrigo do artigo
70.º, n.º 1, alínea g), da Lei do Tribunal Constitucional;
b) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 496.º, n.º 2, do
Código Civil, na medida em que não admite que a pessoa que vive em união de
facto com uma vítima de acidente de viação, do qual resulte a morte dessa
vítima, tem o direito a receber uma indemnização por danos não patrimoniais;
c) Consequentemente, negar provimento ao recurso e confirmar a
decisão recorrida, no que à questão de constitucionalidade respeita;
d) Condenar o recorrente em custas, com 20 (vinte) unidades de conta
de taxa de justiça.
Lisboa, 6 de Fevereiro de 2007
Paulo Mota Pinto
Benjamim Rodrigues
Mário José de Araújo Torres (Vencido quanto à decisão contida na precedente
alínea b), pelas razões constantes da declaração de voto junta)
Maria Fernanda Palma (vencida nos termos de declaração de voto junta)
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido, não especificamente por
considerar constitucionalmente intolerável qualquer diferenciação de tratamento
entre casados e unidos de facto, mas antes por entender que a estatuição do n.º
2 do artigo 496.º do Código Civil, ao restringir às classes de familiares nele
previstas, escalonados em três grupos, é susceptível de não respeitar o direito
à reparação dos “danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a
tutela do direito”, que, a meu ver, constitui uma imposição do princípio do
Estado de direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição da República
Portuguesa (CRP).
Afigura‑se‑me que o artigo 36.º, n.º 1, da CRP
não constitui suporte adequado ou suficiente para o reconhecimento
constitucional da união de facto e, muito menos, para a imposição ao legislador
ordinário da obrigação de atribuir à união de facto efeitos idênticos ao
casamento, seguindo, neste ponto, a posição de Francisco Pereira Coelho e
Guilherme de Oliveira (Curso de Direito da Família, vol. I, 3.ª edição, 2003,
pp. 103‑105 e 161‑166). Ao invés, sendo o estabelecimento de uma união de facto
uma manifestação ou forma de exercício do direito ao desenvolvimento da
personalidade, que a revisão constitucional de 1997 reconheceu de modo explícito
no n.º 1 do artigo 26.º, “a legislação que proibisse a união de facto, que a
penalizasse, impondo sanções aos membros de relação e coarctando de modo
intolerável o direito de as pessoas viverem em união de facto, seria pois
manifestamente inconstitucional” por violação deste artigo 26.º, n.º 1 (e não do
artigo 36.º, n.º 1).
Mas, para além desta vertente “negativa” (isto
é: aquilo que a Constituição diz que a lei não pode fazer), cabe à liberdade de
conformação do legislador a eventual extensão à união de facto de direitos e
deveres tradicionalmente ligados à relação matrimonial. Na vertente “positiva”
(isto é: aquilo que a Constituição impõe que o legislador faça), a aferição da
conformidade constitucional das soluções legislativas deve fazer‑se com apelo ao
concreto direito constitucional em causa (direito à habitação, direito à saúde,
direito à segurança social, direito à protecção da maternidade e da paternidade,
etc.), conjugado com o princípio da proporcionalidade, e não com suporte no
artigo 36.º, n.º 1, da CRP.
No que especificamente concerne ao direito à
reparação dos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela
do direito, a inconstitucionalidade da solução consagrada no n.º 2 do artigo
469.º do Código Civil não se resume à exclusão desse direito quanto aos unidos
de facto, mas, mais amplamente, à não previsão de uma “válvula de segurança” que
permita aos tribunais o reconhecimento desse direito a pessoas que
comprovadamente tenham sofrido um dano dessa intensidade mas que não figurem
nos três grupos de familiares contemplados nessa norma (1.º – cônjuge não
separado judicialmente de pessoas e bens e filhos ou outros descendentes; 2.º –
na falta destes, pais ou outros ascendentes; 3.º – na falta de membros dos dois
anteriores grupos, os irmãos ou os sobrinhos que os representem).
A injustiça dessa solução legal foi logo
reconhecida, no âmbito dos trabalhos preparatórios do Código Civil de 1966, por
Adriano Paes da Silva Vaz Serra (“Reparação do dano não patrimonial”, Boletim do
Ministério da Justiça, n.º 83, pp. 69‑109, em especial pp. 106‑109), quando, a
propósito do direito à reparação pela dor sofrida com a morte de alguém (iure
proprio, e não iure hereditate, este ligado à transmissão do direito à reparação
do sofrimento ou angústia sofridos pela própria vítima), interrogava e
respondia:
“A quem deve ser reconhecido?
Não parece que deva ser atribuído aos herdeiros como tais, os
quais podem ser estranhos à família, caso em que não terão, em regra, dor moral
suficiente para justificar uma compensação. Tal direito deve ser reservado para
os familiares da vítima, que são as pessoas nas quais é de presumir a existência
de sentimentos de afeição bastante fortes. Mas, por um lado, esses sentimentos
podem ser ainda mais fortes da parte de pessoas estranhas à família
juridicamente entendida; e, por outro lado, o facto de ser membro da família
não implica necessariamente a existência de uma afeição suficiente.
Pareceria, assim, que por família, para este efeito, deveriam
entender‑se aquelas pessoas que, segundo as circunstâncias materiais do caso
concreto, desempenham de facto as funções de família.
Essas pessoas seriam as que, pelas especiais relações com a
vítima, é de presumir sofrerem mais, na sua afeição, com a morte dela. O
critério não seria, pois, jurídico, mas de facto.
No entanto, poderia também entender‑se que só às pessoas
ligadas juridicamente por laços de família (cônjuge, parentes e afins) deveria
reconhecer‑se o direito à satisfação de danos não patrimoniais. As outras não
tinham o direito de contar com a continuação da situação de facto em que se
encontravam com o falecido e não poderiam, portanto, alegar danos, patrimoniais
ou não, resultantes da morte dele.
Assim, a concubina ou a noiva não poderiam reclamar a referida satisfação, nem
o poderiam fazer outras pessoas colocadas de facto na situação de familiares.
Dadas as razões que podem ser invocadas num sentido e no outro, talvez seja
preferível usar uma fórmula que permita à jurisprudência decidir como lhe
parecer melhor, ou, reconhecendo, em princípio, o direito de satisfação aos
parentes, permitir que se atribua tal direito a pessoas estranhas à família mas
ligadas à vítima de modo a constituírem de facto família dela.
Os parentes (legais ou de facto, conforme a orientação que se adoptar) ou afins
com direito à satisfação do dano não patrimonial seriam, não quaisquer
parentes, mas os próximos parentes, entendendo‑se como tais aqueles que, pela
proximidade do parentesco, é de presumir tivessem pelo falecido uma afeição tal
que justifique a satisfação.
Poderia pensar‑se que deveriam indicar‑se precisamente quais são esses parentes.
À semelhança do nosso Código actual (artigo 2384.°), poderiam ser os
descendentes e os ascendentes, além do cônjuge.
Mas pode haver outros parentes, a quem parece razoável conceder a satisfação, v.
g., um irmão ou irmã que vivesse com a vítima. Talvez, por conseguinte, seja
preferível não indicar, com carácter exaustivo, os parentes a quem pode ser
reconhecido o direito à satisfação de prejuízos não patrimoniais. Bastará aludir
aos próximos parentes, dependendo depois das circunstâncias de cada caso o saber
se se encontravam em situação que faça presumir a dor. Todavia, poderia
porventura indicar‑se certa ordem entre os parentes, a qual o juiz poderia
alterar, no caso concreto, se as circunstâncias o impusessem.
Se não se limitasse assim o direito à satisfação do dano não patrimonial,
poderia ele ser invocado por vezes por um número considerável de pessoas, com o
resultado de o responsável ter que pagar quantia total avultadíssima ou com o de
a cada um dos prejudicados se dar uma importância tão diminuta que seria
praticamente nula.”
E depois de aludir aos termos em que o direito
deveria ser consagrado relativamente aos cônjuges (viúva e viúvo), filhos
(menores ou menores, nascidos fora ou dentro do casamento), pais (incluindo os
“naturais”), avós e netos (mesmo que existam pais ou filhos, pois “não se trata
aqui de transmissão de indemnização de dano, mas de dar uma compensação pela
dor pessoalmente sofrida; ora, os avós ou os netos podem ter uma dor bastante
forte, não obstante a existência de pais ou de filhos”, pelo que “se as
circunstâncias o justificarem, deve poder o juiz alterar a ordem de precedência
ou lei sucessória”), acrescenta:
“O que se diz desta hipótese pode dizer‑se de outras, em que existam vários
parentes: todos eles, desde que nas suas pessoas se verifiquem os pressupostos
do direito de satisfação, devem poder exigir esta, pois esse direito, baseado na
dor pessoal sofrida, não depende de não existirem outras pessoas em condições
análogas.
O tribunal, porém, a fim de que os parentes mais próximos (e que são aqueles que
presumivelmente terão sofrido maior dor) não sejam prejudicados injustamente com
a concorrência dos outros, parece dever dar, em princípio, preferência aos
parentes mais próximos e proporcionar as satisfações à dor de cada um, além de
excluir aqueles em relação aos quais não se verifiquem os sentimentos de afeição
bastantes.”
Em sintonia com estas considerações, propôs,
como formulação legal alternativa, a seguinte:
“No caso de morte de uma pessoa, podem as pessoas de família
dela exigir a satisfação do dano não patrimonial a elas causado. Essas pessoas
são, em conjunto, o cônjuge e os descendentes, observando‑se, quanto a estes: a
precedência da lei sucessória; na falta de cônjuge ou de descendentes, os
descendentes ou o cônjuge, respectivamente; na falta de cônjuge e de
descendentes, os ascendentes; na falta de cônjuge, descendentes e ascendentes,
os irmãos e os descendentes destes, segundo a ordem da lei sucessória. O direito
de satisfação destas pessoas supõe a existência de laços afectivos que o
justifiquem, e as regras de precedência podem ser alteradas quando as
circunstâncias de facto o impuserem. Quando estas circunstâncias o impuserem,
pode reconhecer‑se direito de satisfação a outros parentes, a afins ou estranhos
à família, desde que tais pessoas estivessem ligadas à vítima de maneira a
constituírem de facto família dela. (…)” (sublinhado acrescentado).
Como é sabido, não foi esta a solução que veio
a ser acolhida na versão final do Código Civil, por se haver entendido que as
“excelências da equidade” deviam ser “sacrificadas às incontestáveis vantagens
do direito estrito” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol.
I, 4.ª edição, p. 501).
Afigura‑se, porém, que a prevenção de uma
incontrolável responsabilidade do causador do dano (“poder‑se‑ia mesmo dizer, no
limite, que a morte de uma pessoa vem prejudicar a Humanidade” – António
Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I – Parte Geral, Tomo III
– Pessoas, Coimbra, 2004, p. 138) pode operar‑se por outros mecanismos
(estabelecimento de limites máximos legais, previsão do recurso à equidade,
etc.) que não pela negação da justa reparação de danos não patrimoniais
merecedores da tutela do direito e comprovadamente sofridos por quem reclama tal
reparação.
Trata‑se de solução que, apesar da orientação
contrária que parece ser preconizada no n.º 19 da Resolução (75)7 do Comité de
Ministros do Conselho da Europa (cf. Nuno de Salter Cid, A comunhão de vida à
margem do casamento: entre o facto e o direito, Coimbra, 2005, pp. 542‑543, nota
83), é legal ou jurisdicionalmente reconhecida em diversas ordens jurídica
próxima da nossa. Em Espanha, face ao artigo 113.º do Código Penal, inserido no
título relativo à responsabilidade civil derivada da criminal (que estatui: “La
indemnización de perjuicios materiales y morales comprenderá no sólo los que se
hubieren causado al agraviado, sino también los que se hubieren irrogado a sus
familiares o a terceros” – sublinhado acrescentado), tem sido sustentada a
legitimidade, para efeitos de reparação de danos não patrimoniais derivados da
morte, de pessoas que, não estando ligadas à vítima por vínculos familiares ou
parafamiliares, a ela estejam ligados por laços de especial afeição (cf. Laura
Gázquez Serrano, La indemnización por causa de morte, Dykinson, Madrid, 2000,
pp. 86‑87). O mesmo se passando em Itália, como assinala Giuseppe Cricenti (Il
danno non patrimoniale, Cedam, Milão, 1999, pp. 276‑277), com diversas
referências jurisprudenciais.
Na verdade, embora seja normal que os
familiares mais próximos da vítima sejam os que maior sofrimento sintam com a
sua perda, não se pode excluir que em vários casos assim não seja, quer dentre o
grupo de familiares em sentido jurídico, quer mesmo fora deles, sejam ou não de
qualificar como familiares “de facto”. Um exemplo dessa realidade, embora a
propósito da legitimidade para constituição como assistente em processo penal,
pode ver‑se no Acórdão n.º 690/98 deste Tribunal, que julgou inconstitucional,
por violação do disposto no artigo 20.º, n.º 1, conjugado com o artigo 67.º, n.º
1, da CRP, a norma constante do artigo 68.º, n.º 1, alínea c), do CPP, quando
interpretada no sentido de não admitir a constituição como assistentes, em
processo penal, aos ascendentes do ofendido falecido, quando lhe haja sobrevivo
cônjuge separado de facto, embora não separado judicialmente de pessoas e bens,
e não tenha descendentes. Como aí se constatou, apesar da preferência legal, era
muito mais forte a ligação afectiva, e consequentemente maior o sofrimento com a
perda da vítima, entre o pai e o filho do que entre este e o seu cônjuge, de
quem estava separado de facto.
Em suma, o carácter taxativo da enumeração das
pessoas com direito a reparação por danos não patrimoniais derivados da morte
de outrem (agravada pelo estabelecimento de classes de precedência), constante
do n.º 2 do artigo 496.º do Código Civil, sem previsão da possibilidade de o
tribunal, em casos especiais, uma vez efectivamente comprovada a existência
desses danos, com gravidade merecedora da tutela do direito, reconhecer o
direito a reparação a terceiros, surge, a meu ver, como constitucionalmente
insolvente.
Mário José de Araújo Torres
DECLARAÇÃO DE VOTO
Tendo sido a primitiva relatora nos presentes autos, voto vencida o Acórdão
considerando o seguinte:
O Tribunal Constitucional já procedeu à apreciação da questão de
constitucionalidade que constitui o objecto do presente recurso de
constitucionalidade.
No Acórdão nº 275/2002, de 19 de Junho (D.R., II Série, de 24 de Julho de 2002)
o Tribunal Constitucional decidiu julgar inconstitucional a norma do artigo
496º, nº 2, do Código Civil, na parte em que, em caso de morte da vítima de um
crime doloso, exclui a atribuição de um direito de indemnização por danos não
patrimoniais pessoalmente sofridos pela pessoa que convivia com a vítima em
situação de união de facto, estável e duradoura, em condições análogas às dos
cônjuges.
A questão objecto do presente recurso é substancialmente idêntica à então
decidida. Com efeito, é agora submetida à apreciação do Tribunal Constitucional
a norma do artigo 496º, nº 2, do Código Civil, na parte em que nega o direito
indemnizatório à pessoa que vivia em união de facto, estável e duradoura, com a
vítima de acidente de viação exclusivamente resultante de culpa de outrem. Os
fundamentos do Acórdão nº 275/2002 são, a meu ver, e diferentemente do que é
considerado no presente Acórdão, transponíveis para os presentes autos.
Ao contrário do que parece ser afirmado no acórdão recorrido (fls. 771), “a
marca da gravidade extrema do ilícito” que originou a morte da vítima no caso
subjacente ao Acórdão nº 275/2002 (tratou‑se de um homicídio doloso) não exclui
a identidade substancial entre a questão de constitucionalidade normativa então
apreciada e a que constitui objecto dos presentes autos. Nesse aresto o Tribunal
Constitucional não configurou o direito indemnizatório da pessoa que vivia em
união de facto com a vítima como sanção do ilícito penal doloso cometido pelo
obrigado à indemnização, não sendo tal circunstância ratio decidendi daquele
Acórdão. Também as expectativas do responsável exclusivo de um acidente de
viação mortal de não vir a ser confrontado com o dever de indemnizar a pessoa
que vivia em condições análogas às dos cônjuges com a vítima de acidente por si
provocado não merecem tutela, quando confrontadas com o interesse do membro
sobrevivente da união de facto ao ressarcimento dos danos não patrimoniais por
si efectivamente sofridos.
Discordo da linha de argumentação expendida no Acórdão do Tribunal
Constitucional quanto à não verificação de semelhança para efeitos de reparação
por danos morais entre a situação dos cônjuges e a das pessoas em união de facto
estável, já que entendo que, nesse plano – o da dor pelo falecimento do parceiro
íntimo – não relevam as diferenças legais e jurídicas entre a situação do
casamento e a de união de facto. Verifica‑se, sim, uma essencial analogia da
relação, na sua base (sexual), e na sua finalidade social (relação familiar).
Finalmente, parece‑me injustificada a diferenciação entre a relevância da
posição do unido de facto sobrevivo quando o outro elemento da relação foi
vítima de um crime doloso e quando se trate de crime negligente (no caso de
acidente de viação). Trata‑se, em ambos os casos, de factos ilícitos e fatais
para a vítima.
A lógica civilística da protecção da entidade seguradora não tem qualquer apoio
em valores constitucionalmente relevantes, nem a diferença entre a união de
facto e o casamento se reflecte, minimamente, no que está em causa – a
responsabilidade do agente por danos morais relativamente às pessoas em união de
facto estável e duradoura com a vítima. Não há qualquer círculo de risco e
expectativas do agente de crime negligente que possam fundamentar uma solução
diferente para o cônjuge sobrevivo e para quem vive, comprovadamente, em
situação análoga.
Discordo, por estas razões, do presente Acórdão, mantendo a convicção de que
nada distingue, na sua essência jurídica, este caso da situação do cônjuge de
vítima de crime negligente.
Maria Fernanda Palma