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Processo n.º 307/06
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.Por acórdão de 11 de Janeiro de 2006, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu
negar provimento ao recurso interposto por A. da decisão do Tribunal da Relação
de Coimbra que, no âmbito do processo comum colectivo n.º 272/99.1TBLRA,
confirmou a decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria que o havia
condenado como autor do crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelo
artigo 132.º, n.º 2, al. c), do Código Penal de 1982, na pena de 8 anos de
prisão (sendo que, ao abrigo do disposto no art.º 8.º, n.º 1, alínea d), da Lei
n.º 15/94, de 11 de Maio, lhe foi declarado perdoado um sexto da pena, ou seja,
16 meses de prisão). Consequentemente, o Supremo Tribunal de Justiça confirmou a
decisão recorrida. Pode ler-se nesse aresto, para o que ora importa:
«[…]
VII
Nos termos do art.º 434.º do CPP, e sem prejuízo do disposto no art.º 410.°,
n.ºs 2 e 3, o recurso para o STJ visa exclusivamente o reexame da matéria de
direito.
No que respeita à primeira das questões enunciadas em V, importa distinguir:
A fixação factual levada a cabo pelas instâncias, na medida em que se apoiou em
convicção ou mesmo presunção natural;
A fixação factual na vertente em que para se alcançar se observaram ou não
observaram normas jurídicas que tinham que se observar.
No primeiro caso, estamos em sede factual e, consequentemente, imune à
sindicância deste STJ.
Mas no segundo, não obstante se aludir a fixação factual, estamos perante
questões de direito (Assim, já escreveu este tribunal que “pretendendo o
recorrente que o Supremo Tribunal indague ... se o tribunal recorrido deu
cobertura a um procedimento ilegal na formação da convicção a que chegou, não
está a pedir que se aprecie matéria de facto, antes a ilegalidade do processo da
sua aquisição – Ac. de 15.1.2004 – CJ STJ, XII, 1, 170 – podendo ver-se no mesmo
sentido, em www.dgsi.pt, a fundamentação 7.ª do Ac., também deste tribunal, de
15.1.2004).
Sendo matéria de direito, nada obsta ao seu conhecimento pelo STJ.
VIII
De acordo com o art.º 412.°, n.ºs 3 e 4, na parte que agora nos interessa,
quando seja impugnada a matéria de facto:
Há-de o recorrente indicar:
Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
As provas que impõem decisão diversa da recorrida.
Aquele n.º 3 alude ainda a transcrição, mas esta – embora, sem dúvida face ao
Ac. Uniformizador de 16.1.2003, publicado no Diário da República, I-A, de 30.1.,
a cargo do tribunal – só teria que vir a lume após a motivação com impugnação da
matéria de facto ou, noutros entendimentos, após requerimento a manifestar essa
intenção.
Temos, pois, três etapas que importa não confundir, sendo de afastar,
nomeadamente, a confusão entre as duas primeiras e a terceira. Esta só pode
ganhar foros de realidade se observadas as duas primeiras. Não o sendo, não se
deve raciocinar sobre ela.
Por outro lado, não devemos perder de vista a “ratio legis” das alíneas a) e b)
daquele n.º 3 do art.º 412.°.
Visou-se, manifestamente, evitar que o recorrente se limitasse a indicar
vagamente a sua discordância no plano factual e a estribar-se probatoriamente em
referências não situadas, porquanto, de outro modo, os recursos sobre a matéria
de facto constituiriam um encargo tremendo sobre o tribunal de recurso, que
teria praticamente em todos os casos de proceder a novo julgamento na sua
totalidade. Terá, pois, de se ir para uma exigência rigorosa na aplicação destes
preceitos.
IX
Isto posto, atentemos no presente caso.
Na motivação do recurso da 1.ª instância para a Relação – pois é esse que
interessa para a presente questão – o recorrente não só não precisa,
convenientemente, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados,
como não alude, concretizando, às provas com referência ao suporte técnico que
eram as cassetes.
Talvez se possa depreender que sustenta que o arguido empunhava a arma, que o
antagonista deitou a mão a esta e que ela se disparou então, sem que aquele
quisesse. Mas fá-lo de modo particularmente vago, quando tinha até os factos
enumerados e concisos e tinha também por aí o caminho facilitado para dizer o
que queria ou não queria a nível factual. O mesmo se passando relativamente à
demais matéria que põe em causa, sendo ainda certo que, conforme os factos
provados, a diferença de estaturas entre o arguido e a vítima não tem interesse.
Mas onde nos parece mais nítido o incumprimento é na necessidade de indicação
das provas. Limita-se a remeter para a gravação do depoimento da testemunha B.,
aludindo ainda à confirmação da versão dela por parte do arguido, para depois
dizer “conforme se pode verificar pelas cassetes e da necessária transcrição das
mesmas” e referir, finalmente, o depoimento da testemunha C., sem qualquer
alusão ao suporte técnico.
Ou seja, seguiu o caminho que o legislador pretendeu evitar e a que nos
reportámos no número anterior a propósito da “ratio legis”.
X
Pecando a motivação por inobservância destes elementos, seria possível o
entendimento de que a Relação devia convidar o recorrente a supri-los e só, na
ausência de suprimento, rejeitar, nesta parte, o recurso.
Decisões houve do TC que impuseram convite no sentido do suprimento da omissão
das menções a que aludem as várias alíneas do n.º 2 do art.º 412.° (Cfr-se, por
todos, o Ac., com força obrigatória geral, n.º 320/2002, de 9.7, que se pode ver
no sítio daquele tribunal).
Mas é o próprio Tribunal Constitucional que no acórdão n.º 140/2004, de 10.3
(também acessível em tal sítio), acentua a diferença relativamente ao
incumprimento do exigido pelo n.ºs 3, b), e 4 daquele art.º 412.°, indo para a
solução de que, no plano constitucional, não há que exigir o mencionado convite.
É que, enquanto as menções do n.º 2 respeitam à forma da motivação, as do n.º 3
situam-se na sua essência. Secundamos aqui as palavras que podemos ler em tal
aresto:
“As menções a que aludem as alíneas a), b) e c) do n.º 3 e o n.º 4 do artigo
412.° do Código de Processo Penal não traduzem um ónus de natureza puramente
secundária ou formal que sobre o recorrente impenda, antes se conexionando com a
inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre
a matéria de facto. É o próprio ónus de impugnação da decisão da matéria de
facto que não pode considerar-se minimamente cumprido quando o recorrente se
limite a, de uma forma vaga ou genérica, questionar a bondade da decisão
proferida sobre a matéria de facto”.
Este modo de ver as coisas não pode deixar de valer no campo da lei ordinária,
já que só se pode convidar a corrigir o que está mal cumprido e não o que tem de
se considerar incumprido.
Temos, então, que nada há a censurar no acórdão recorrido quando recusou nova
valoração probatória e considerou fixada a matéria de facto, tal como vinha da
1.ª instância. […]».
Notificado do teor desse acórdão, o arguido/recorrente requereu a sua aclaração,
afirmando não entender “como se pode afirmar, como no mesmo se faz, que ‘a
Relação recusou a segunda atenuação especial, com base no art.º 72.º, n.º 3, do
CP agora vigente’, constante de fls. 16, quando tal não corresponde à verdade”,
sendo tal lapso “factor de peso na determinação da moldura da pena aplicável e,
consequentemente, na medida da pena”, e ainda que tal decisão padece de nulidade
por omissão de pronúncia “já que esse Venerando Tribunal não cuidou de apreciar
a questão da irregularidade arguida pelo arguido a propósito da falta de
transcrição das cassetes aquando da remessa do processo de 1.ª instância para o
Tribunal da Relação, arguição essa que constava também das conclusões do seu
recurso para o STJ”.
2.Por acórdão tirado em conferência em 1 de Março de 2006, o Supremo Tribunal de
Justiça indeferiu o requerido, pelos seguintes fundamentos:
«[…]
III
O pedido de aclaração reporta-se a dois pontos.
O primeiro por se entender que não corresponde à verdade a afirmação, feita no
acórdão, de que a Relação de Coimbra tenha recusado a segunda atenuação
especial, com base no art.º 72.°, n.º 3, do Código Penal agora vigente.
O segundo por se ter consignado no nosso acórdão que o arguido não impugnou a
matéria de facto.
IV
Nem um nem o outro dos pontos tem apoio factual.
Assim, como se pode ver de folhas 777, o Tribunal da Relação consignou que “por
imperativo do n.º 3, deste mesmo artigo acabado de citar, só pode ser tomada em
conta uma única vez a circunstância que ... der lugar simultaneamente a uma
atenuação especialmente prevista na lei e à prevista neste artigo”.
Corresponde, pois, o afirmado no nosso acórdão, à realidade.
Mas, mesmo que não correspondesse, isso não bulia com a nossa decisão já que a
construção havida na segunda instância não nos vincula, como é evidente.
Por outro lado, nunca se consignou no nosso acórdão que o arguido não tenha
impugnado a matéria de facto no recurso da 1.ª para a segunda instâncias. O que
se considerou – e claramente – foi que ele a não tinha impugnado nos termos
exigidos pela lei de processo, o que é diferente.
V
Entendendo-se, como se entendeu, que a impugnação da matéria factual não podia
ser conhecida pelo Tribunal da Relação em virtude da dita não observação das
normas processuais interessantes, ficou prejudicada a questão da correcção da
transcrição das cassetes.
Não tinha que ser conhecida e, deste modo, não se verifica a invocada nulidade».
3.O arguido veio então interpor o presente recurso de constitucionalidade ao
abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento
e Processo do Tribunal Constitucional, dizendo no requerimento de recurso:
«1. O recurso é interposto ao abrigo da norma da alínea b) do n.º 1 do art.º
70.º da Lei n.º 28/82, de 15/11, com as alterações introduzidas pela Lei n.º
143/85, de 26/11, pela Lei n.º 85/89, de 7/09, pela Lei n.º 88/95, de 1/09, e
pela Lei n.º 13-A/98, de 26/02.
2. Pretende o recorrente com o recurso ver apreciada pelo douto Tribunal
Constitucional a inconstitucionalidade material da norma do 412°, n.ºs 3, alínea
b), e 4, do Código de Processo Penal, interpretadas no sentido de que a falta de
indicação, na motivação de recurso em que se impugne matéria de facto, das
menções exigidas nesses n.ºs 3 e 4, tem como efeito o não conhecimento desta
matéria, sem que ao recorrente seja dada oportunidade de suprir tais
deficiências.
3. Mais se deverá apreciar a inconstitucionalidade das mesmas normas quando
interpretadas no sentido de que a remissão para as cassetes nas quais constam os
depoimentos das testemunhas, de forma genérica, e sem identificação da rotação,
não satisfaz a exigência do n.º 4 do referido art.º 412.° do CPP.
4. Não podemos olvidar que nunca as cassetes, que contêm as declarações de
arguidos e testemunhas, são enviadas para o tribunal superior, juntamente com os
autos, sendo certo que naqueles apenas se aprecia, ou deveria apreciar, a
matéria de facto, com base nas transcrições das mesmas cassetes.
5. Não pode deixar, assim, de se entender ser de um preciosismo exagerado e de
todo injustificado pretender-se que o recorrente que pretenda recorrer também de
facto tenha de indicar as rotações das declarações a que se refere na sua
motivação de recurso.
6. Tal interpretação parece ter como único objectivo complicar o que é e deve
ser simples, dada a total inutilidade de tal remissão.
7. Ainda se o recorrente tivesse, antes de motivar o seu recurso, acesso à
transcrição das cassetes, até se compreenderia que tivesse de fazer a remissão
para o número das páginas de tal transcrição onde constassem as afirmações que
entendia terem sido mal apreciadas, agora, indicar rotações de cassetes que nem
sequer são presentes a quem aprecia o recurso??????
8. E cabe aqui também perguntar porque é que se entende ser inconstitucional a
norma do n.º 2 do art.º 412.° do CPP, interpretada no sentido de que a falta de
indicação, nas conclusões da sua motivação, de qualquer das menções contidas nas
suas alíneas a), b) e c) tem como efeito a rejeição liminar do recurso do
arguido, sem que ao mesmo seja facultada a oportunidade de suprir tal
deficiência, e se não há-de ter entendimento semelhante quando está em causa não
a matéria de direito, mas a matéria de facto, ainda mais quando se trata de
fazer uma indicação que até é perfeitamente inútil.
9. Tendo presente a amplitude de que se deve revestir o direito de defesa do
arguido, consagrado no art.º 32.° da CRP, nunca o arguido deve ser impedido de
recorrer por uma mera questão formal e sem qualquer interesse, antes devendo,
quando muito, dar-se ao arguido a oportunidade de suprir tal deficiência.
10. A questão da inconstitucionalidade foi suscitada na motivação e nas
conclusões do recurso penal ordinário interposto para o Supremo Tribunal de
Justiça.»
Nas alegações que produziu no Tribunal Constitucional, o recorrente concluiu:
«1. Pretende o recorrente com o recurso ver apreciada pelo douto Tribunal
Constitucional a inconstitucionalidade material da norma do 412.º, n.ºs 3,
alínea b), e 4, do Código de Processo Penal, interpretadas no sentido de que a
falta de indicação, na motivação de recurso em que se impugne matéria de facto,
das menções exigidas nesses n.ºs 3 e 4, tem como efeito o não conhecimento desta
matéria, sem que ao recorrente seja dada oportunidade de suprir tais
deficiências.
2. Mais se deverá apreciar a inconstitucionalidade das mesmas normas quando
interpretadas no sentido de que a remissão para as cassetes nas quais constam os
depoimentos das testemunhas, de forma genérica, e sem identificação da rotação,
não satisfaz a exigência do n.º 4 do referido art.º 412.º do CPP.
3. Não podemos olvidar que nunca as cassetes que contêm as declarações de
arguidos e testemunhas são enviadas para o tribunal superior, juntamente com os
autos, sendo certo que naqueles apenas se aprecia, ou deveria apreciar, a
matéria de facto, com base nas transcrições das mesmas cassetes.
4. Não pode deixar, assim, de se entender ser de um preciosismo exagerado e de
todo injustificado, pretender-se que o recorrente que pretenda recorrer também
de facto tenha de indicar as rotações das declarações a que se refere na sua
motivação de recurso.
5. Tal interpretação parece ter como único objectivo complicar o que é e deve
ser simples, dada a total inutilidade de tal remissão.
6. Ainda se o recorrente tivesse, antes de motivar o seu recurso, acesso à
transcrição das cassetes, até se compreenderia que tivesse de fazer a remissão
para o número das páginas de tal transcrição onde constassem as afirmações que
entendia terem sido mal apreciadas, agora, indicar rotações de cassetes que nem
sequer são presentes a quem aprecia o recurso??????
7. E cabe aqui também perguntar porque é que se entende ser inconstitucional a
norma do n.º 2 do art.º 412.º do CPP, interpretada no sentido de que a falta de
indicação, nas conclusões da sua motivação, de qualquer das menções contidas nas
suas alíneas a), b) e c) tem como efeito a rejeição liminar do recurso do
arguido, sem que ao mesmo seja facultada a oportunidade de suprir tal
deficiência, e se não há-de ter entendimento semelhante quando está em causa não
a matéria de direito, mas a matéria de facto, ainda mais quando se trata de
fazer uma indicação que até é perfeitamente inútil.
8. Tendo presente a amplitude de que se deve revestir o direito de defesa do
arguido, consagrado no art.º 32.º da CRP, nunca o arguido deve ser impedido de
recorrer por uma mera questão formal e sem qualquer interesse, antes devendo,
quando muito, dar-se ao arguido a oportunidade de suprir tal deficiência.
9. A questão da inconstitucionalidade foi suscitada na motivação e nas
conclusões do recurso penal ordinário interposto para o Supremo Tribunal de
Justiça.
10. Este Venerando Tribunal já por variadas vezes, como se disse, entendeu ser
inconstitucional rejeitar os recursos por não cumprimento do estabelecido no
art.º 412.º do CPP, sem que antes se dê ao recorrente a oportunidade de proceder
às devidas correcções, como, por exemplo, nos Acórdãos n.ºs 323/2003 e 320/2002.
11. Assim, mesmo por analogia, deverá decidir-se que é inconstitucional a
interpretação dos n.ºs 3 e 4 do art.º 412.º do CPP, segundo a qual é de rejeitar
os recursos, não os conhecendo nessa parte, por não cumprimento de tais
normativos, sem que antes se dê oportunidade ao recorrente para proceder às
devidas correcções.
Deverá, pelo exposto
a) Julgar-se inconstitucional, por violação do art.º 32.º da Constituição da
República Portuguesa, a interpretação normativa do artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do
Código de Processo Penal, segundo a qual deve ser rejeitado o recurso e se não
deve tomar conhecimento do recurso quanto à matéria de facto, quando a motivação
não contenha conclusões formuladas segundo aqueles preceitos, sem previamente se
facultar ao recorrente a possibilidade de suprir tal ou tais omissões;
b) Julgar-se inconstitucional, por violação do art.º 32.º da Constituição da
República Portuguesa, a interpretação normativa do artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do
Código de Processo Penal, no sentido de que a remissão para as cassetes nas
quais constam os depoimentos das testemunhas, de forma genérica, e sem
identificação da rotação, não satisfaz a exigência do n.º 4 do referido art.º
412.º do CPP e, consequentemente,
Determinar-se a baixa do processo para correcção das conclusões e transcrição da
prova gravada, assim se fazendo JUSTIÇA.»
O Ministério Público, nas suas contra-alegações, suscitou a questão prévia do
não conhecimento do recurso, por falta de verificação dos seus pressupostos,
designadamente a suscitação, durante o processo, da inconstitucionalidade da
dimensão normativa que impugna, e a aplicação desta dimensão normativa, como
ratio decidendi, pelo tribunal recorrido.
Notificado para, querendo, se pronunciar sobre a questão prévia assim suscitada,
veio o recorrente dizer:
«Queremos deixar desde já aqui expresso, com o devido respeito por opinião,
prática e entendimento contrários, que nos entristece que se pretenda sobrepor a
justiça formal à JUSTIÇA material, sejam quais forem as circunstâncias.
Mas, no caso em apreço, não nos parece que o MP tenha razão com o que alega, já
que o recorrente se vem batendo, desde que a questão surgiu, com o problema que
entendeu por bem, e espera-se, em boa hora, submeter à apreciação de V. Excias.
É que, como se disse e resulta à saciedade do acórdão do STJ, o que se entendeu,
a nosso ver erradamente e violando preceitos constitucionais, foi que decidiu
não se ter satisfeito as exigências do art.º 412.º do CPP, por se não ter feito
referência ao suporte técnico.
Perdoe-se-nos a insistência, mas, de facto, resulta inequívoco do acórdão do STJ
que, tivesse a referência aos suportes técnicos sido feita com precisão, e tudo
se passaria de forma diferente.
Como dissemos, estamos habituados a lidar com pessoas, seres humanos, cidadãos,
e não apenas com papéis, pelo que o nosso entendimento de JUSTIÇA não pode nunca
ser dissociado da EQUIDADE e, logicamente, não aceitamos de bom grado que uma
pessoa possa ser privada da sua LIBERDADE sem sequer ser “olhada” como pessoa,
antes o sendo como um mero dossier.
É tempo de, ao invés de se “escudar” em meras questões formais, cuja apreciação,
por vezes, até é mais trabalhosa do que a análise da questão de fundo, seja esta
apreciada e a JUSTIÇA feita, ao invés de se argumentar com um “fez-se justiça”
(esta com letra necessariamente pequena.
Entendemos assim carecer de razão o MP, devendo esse Venerando Tribunal apreciar
a questão suscitada e decidir fazendo JUSTIÇA, ou seja, determinando que o
arguido seja notificado para suprir as alegadas e eventuais falhas formais».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos
4.Importa começar por tratar da questão prévia relativa ao não conhecimento do
recurso, suscitada pelo Ministério Público.
No terceiro parágrafo da resposta à questão prévia suscitada pelo Ministério
Público, o recorrente veio indicar pela primeira vez que “o que se entendeu, a
nosso ver erradamente e violando preceitos constitucionais, foi que decidiu não
se ter satisfeito as exigências do art.º 412.º do CPP, por não se ter feito
referência ao suporte técnico” (itálico aditado).
Ora, não se pode tomar conhecimento da constitucionalidade de uma dimensão
interpretativa do artigo 412.º do Código de Processo Penal correspondente a esta
alegação, o que constituiria um alargamento do objecto do recurso a coberto de
uma resposta à questão prévia suscitada pelo Ministério Público. Na verdade, a
referência a uma tal dimensão interpretativa não constava nem do requerimento de
interposição de recurso, nem das alegações, não tendo sido neles incluídas pelo
recorrente. E é sabido que o objecto do recurso fica, desde logo, delimitado por
aquele requerimento, conforme resulta do disposto nos n.ºs 1 e 2 do art.º 75º-A
da Lei do Tribunal Constitucional. A este respeito pode ler-se no Acórdão n.º
20/97 (Acórdão do Tribunal Constitucional, 36.º vol., pp. 193 e ss., e
disponível em www.tribunalconstitucional.pt):
«(…)
Escreveu-se recentemente no Acórdão deste Tribunal n.º 379/96, publicado no
Diário da República, II Série, de 15 de Julho de 1996, que “o requerimento de
interposição de recurso limita o seu objecto às normas nele indicadas (cfr. o
artigo 684º, n.º 2 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 69º da
Lei do Tribunal Constitucional, conjugado com o artigo 75º-A, n.º 1, deste lei),
sem prejuízo, obviamente, de esse objecto, assim delimitado, vir a ser
restringido nas conclusões da alegação (cfr. citado artigo 684º, n.º 3). O que
na alegação (recte, nas suas conclusões), o recorrente não pode fazer é ampliar
o objecto do recurso antes definido.” (No mesmo sentido, cfr. os Acórdãos n.º
71/92, 323/93, 10/95 e 35/96, publicados na II Série do Diário da República, de
18 de Agosto de 1992, de 22 de Outubro de 1993, de 22 de Março de 1995 e de 2 de
Maio de 1996, respectivamente).» (Cf. também, entre muitos, os Acórdãos deste
Tribunal n.os 641/99, 205/2002 e 215/2002, inéditos).
Estamos, pois, no que diz respeito ao entendimento referido na resposta à
questão prévia, perante uma ampliação, não permitida por lei, do objecto do
recurso de fiscalização concreta de inconstitucionalidade, pelo que não se
conhecerá da questão a que se refere.
5.Segundo o requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, este
vem intentado ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do
Tribunal Constitucional, pretendendo-se a apreciação da inconstitucionalidade
das seguintes normas:
a) artigo 412.°, n.ºs 3, alínea b), e 4, do Código de Processo Penal,
interpretado no sentido de que “a falta de indicação, na motivação de recurso em
que se impugne matéria de facto, das menções exigidas nesses n.ºs 3 e 4, tem
como efeito o não conhecimento desta matéria, sem que ao recorrente seja dada
oportunidade de suprir tais deficiências”;
b) artigo 412.°, n.ºs 3, alínea b), e 4, do Código de Processo Penal,
interpretado no sentido de que “a remissão para as cassetes nas quais constam os
depoimentos das testemunhas, de forma genérica, e sem identificação da rotação,
não satisfaz a exigência do n.º 4 do referido art.º 412.° do CPP”.
No final das alegações que apresentou junto deste Tribunal, o recorrente veio,
porém, dizer, em relação à primeira das referidas normas, que a interpretação
normativa que entende dever ser julgada inconstitucional é, não aquela, mas uma
outra “segundo a qual deve ser rejeitado o recurso e se não deve tomar
conhecimento do recurso quanto à matéria de facto, quando a motivação não
contenha conclusões formuladas segundo aqueles preceitos, sem previamente se
facultar ao recorrente a possibilidade de suprir tal ou tais omissões” (itálico
aditado).
Importa apurar se se verificam os requisitos para se poder tomar conhecimento do
presente recurso, interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei
do Tribunal Constitucional.
Como se sabe, são os seguintes esses requisitos: antes de mais, que a(s)
norma(s) jurídicas impugnada(s) tenha(m) sido aplicada(s) na decisão recorrida
como ratio decidendi; que o recorrente tenha suscitado a inconstitucionalidade
dessa(s) norma(s) jurídica(s) durante o processo; e, ainda, que não seja
possível interpor recurso ordinário de tal decisão (cfr., entre muitos, por
exemplo, os Acórdãos n.ºs 114/89, 469/91 e 178/95, publicados, respectivamente,
no Diário da República, II Série, de 24 de Abril de 1989, de 24 de Abril de 1992
e de 21 de Junho de 1995).
Nas alegações de recurso indicou-se, como vimos, como objecto deste, a
apreciação da inconstitucionalidade da “interpretação normativa do artigo 412.º,
n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal, segundo a qual deve ser rejeitado o
recurso e se não deve tomar conhecimento do recurso quanto à matéria de facto,
quando a motivação não contenha conclusões formuladas segundo aqueles preceitos,
sem previamente se facultar ao recorrente a possibilidade de suprir tal ou tais
omissões”, bem como da “interpretação normativa do artigo 412.°, n.ºs 3 e 4, do
Código de Processo Penal, no sentido de que a remissão para as cassetes nas
quais constam os depoimentos das testemunhas, de forma genérica, e sem
identificação da rotação, não satisfaz a exigência do n.º 4 do referido art.º
412.º do CPP”.
Ora, a decisão do Supremo Tribunal de Justiça recorrida negou provimento ao
recurso fundamentando-se, entre o mais, no seguinte:
«(…)
Na motivação do recurso da 1.ª instância para a Relação – pois é esse que
interessa para a presente questão – o recorrente não só não precisa,
convenientemente, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados,
como não alude, concretizando, às provas com referência ao suporte técnico que
eram as cassetes.
(…).»
[itálicos aditados]
Basta analisar o trecho transcrito para reconhecer que assiste razão ao
Ministério Público quando afirma que a decisão recorrida se fundou, como ratio
decidendi, nas insuficiências detectadas, na impugnação da decisão proferida
sobre matéria de facto, no teor da motivação do recurso e não apenas nas
respectivas conclusões. Aquela norma é que funcionou como razão de decidir do
acórdão recorrido, e não qualquer norma, pretendida apreciar nesta sede,
reportada à falta de indicação, nas conclusões da motivação do recurso, das
menções contidas naqueles preceitos do Código de Processo Penal.
Tal conclusão é de reiterar também a respeito da segunda das normas supra
enunciadas, que o recorrente pretende que este Tribunal aprecie, reportada à
forma de identificar a localização dos depoimentos gravados em cassetes,
indicando as rotações da cassete, por se poder afirmar que esta interpretação
normativa não foi sequer aplicada como ratio decidendi pelo tribunal recorrido.
Este assentou antes, como razão de decidir – que permaneceria intocada mesmo que
o Tribunal Constitucional pudesse julgar inconstitucional a citada interpretação
normativa –, na insuficiência da motivação do recurso quanto à necessidade de
indicação das provas, “sem qualquer alusão ao suporte técnico”.
Não pode, pois, tomar-se conhecimento do presente recurso.
6.Cumpre notar, ainda, que, como diz o Ministério Público, é duvidoso que, mesmo
relativamente à dimensão normativa do artigo 412.º, n.ºs 3, alínea b), e 4, do
Código de Processo Penal, “interpretadas no sentido de que a falta de indicação,
na motivação de recurso em que se impugne matéria de facto, das menções exigidas
nesses n.ºs 3 e 4, tem como efeito o não conhecimento desta matéria, sem que ao
recorrente seja dada oportunidade de suprir tais deficiências”, o recorrente
tenha suscitado a sua inconstitucionalidade durante o processo, nas alegações
que produziu perante o Supremo Tribunal de Justiça.
Com efeito, o que se pode ler nessas alegações (tanto no seu teor como nas
conclusões) é que o recorrente pugnou pela necessidade de um convite a corrigir
e aperfeiçoar a motivação do recurso, impugnando o facto de assim não se ter
concretamente procedido (“Ao assim não se proceder, violou-se…”), sem enunciar
ou identificar uma dimensão ou interpretação normativa a que imputasse a
inconstitucionalidade.
Recorde-se que, como o Tribunal Constitucional tem afirmado em jurisprudência
constante (v., por exemplo, o Acórdão n.º 178/95, in Diário da República, II
série, de 21 de Junho de 1995), impunha-se que o recorrente tivesse
«(...) indicado (…) o segmento de cada norma, a dimensão normativa de cada
preceito – o sentido ou interpretação, em suma – que [tem] por violador da
Constituição.
De facto, tendo a questão da constitucionalidade de ser suscitada de forma clara
e perceptível (cfr., entre outros, o Acórdão n.º 269/94, in Diário da República,
2ª Série, de 18 de Junho de 1994), impõe-se que, quando se questiona apenas uma
certa interpretação de determinada norma legal, se indique esse sentido (essa
interpretação) em termos de que, se este Tribunal o vier a julgar desconforme
com a Constituição, o possa enunciar na decisão que proferir, por forma que o
tribunal recorrido que houver de reformar a sua decisão, os outros destinatários
daquela e os operadores jurídicos em geral saibam qual o sentido da norma em
causa que não pode ser adoptado, por ser incompatível com a lei fundamental».
Também por esta razão não poderia tomar-se conhecimento de uma dimensão
normativa do artigo 412.º, n.ºs 3, alínea b), e 4, do Código de Processo Penal,
relativa ao efeito preclusivo, sem convite para aperfeiçoamento, da falta de
indicação, na motivação de recurso em que se impugne matéria de facto, das
menções exigidas nesses n.ºs 3 e 4.
A este propósito, diga-se, aliás, por fim, que a jurisprudência do Tribunal
Constitucional se vem orientando no sentido de “não julgar inconstitucional a
norma do artigo 412º, n.ºs 3, alínea b), e 4, do Código de Processo Penal,
interpretada no sentido de que a falta, na motivação e nas conclusões de recurso
em que se impugne matéria de facto, da especificação nele exigida tem como
efeito o não conhecimento desta matéria e a improcedência do recurso, sem que ao
recorrente tenha sido dada oportunidade de suprir tais deficiências” (assim, o
Acórdão n.º 140/2004, já citado na decisão recorrida e disponível em Acórdão do
Tribunal Constitucional, vol. 58.º, pp. 633 e ss., e em
www.tribunalconstitucional.pt).
III. Decisão
Com estes fundamentos, decide-se não tomar conhecimento do presente recurso e
condenar o recorrente em custas, fixando em 15 (quinze) unidades de conta a taxa
de justiça.
Lisboa, 30 de Janeiro de 2007
Paulo Mota Pinto
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues
Maria Fernanda Palma
Rui Manuel Moura Ramos