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Processo nº 961/06
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Évora, em que é
recorrente a A. e são recorridos o Ministério Público e B., foi interposto
recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº
1, alínea b), da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional (LTC), do acórdão daquele Tribunal de 16 de Maio de 2006.
2. Em 9 de Janeiro de 2007, foi proferida decisão sumária (artigo 78º-A, nº 1,
da LTC), no sentido de que não podia conhecer-se do objecto do recurso em causa,
com os seguintes fundamentos:
«Constitui um dos requisitos do recurso de constitucionalidade interposto que o
(a) recorrente suscite, durante o processo, a questão de inconstitucionalidade
normativa cuja apreciação é requerida ao Tribunal Constitucional (artigos 70º,
nº 1, alínea b), e 72º, nº 2, da LTC).
Segundo a recorrente, em resposta ao convite formulado ao abrigo do disposto no
nº 6 do artigo 75º-A da LTC, a questão de inconstitucionalidade formulada no
requerimento de interposição de recurso foi suscitada “na penúltima página e nas
Conclusões (6ª)” da motivação do recurso interposto para o Tribunal da Relação
de Évora. Sucede, porém, que analisadas tais passagens – e a peça processual
onde se inserem – é de concluir que a recorrente não suscitou qualquer questão
de inconstitucionalidade normativa, tendo antes questionado, do ponto de vista
jurídico-constitucional, a decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Moura de
rejeição liminar do requerimento de abertura de instrução.
Nas passagens indicadas, a recorrente considera, por um lado, que o Tribunal a
quo violou o artigo 287º, nºs 1, alínea b), 2 e 3, do Código de Processo Penal
e, por outro, que esta instância violou igualmente o artigo 20º da Constituição,
com a interpretação que faz das normas contidas naquele preceito, “uma vez que
com a sua decisão veda à assistente o acesso ao Direito que lhe é conferido pela
Lei Fundamental” (itálico aditado). Conclui que “ao interpretar daquele modo o
artigo 287º nº 1 alínea b), nº 2 e nº 3, o Tribunal a quo violou o preceituado
no artigo 20º da C.R.P. ao vedar o acesso ao Direito por parte da assistente”.
Para além de decorrer da peça processual indicada que não houve suscitação de
uma questão de inconstitucionalidade normativa, na medida em que se afirma,
simultaneamente, a violação de uma norma de direito infra-constitucional e de um
preceito da Constituição, resulta ainda, expressamente, que a alegada violação
do artigo 20º da Constituição é da responsabilidade do Tribunal a quo, o que
sugere que se está a questionar a constitucionalidade da decisão e não,
propriamente, da norma.
Ainda que das passagens indicadas pela recorrente – e da peça processual onde se
inserem – pudesse extrair-se a suscitação de uma questão de
inconstitucionalidade normativa, na medida em que a recorrente refere a
interpretação que o Tribunal a quo fez do artigo 287º, nºs 1, alínea b), 2 e 3
do Código de Processo Penal, seria sempre de concluir que tal suscitação não foi
feita de forma adequada, uma vez que não houve a identificação da interpretação
cuja constitucionalidade era questionada. Tal identificação ocorreu apenas no
requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, onde se
explicita que se pretende a apreciação do disposto naquele artigo, interpretado
no sentido de haver rejeição liminar do requerimento de abertura de instrução,
por estas normas excluírem o aperfeiçoamento de tal requerimento.
É de concluir, por conseguinte, que, durante o processo, não foi suscitada a
questão de inconstitucionalidade normativa formulada no requerimento de
interposição recurso para o Tribunal Constitucional, o que obsta ao conhecimento
do objecto do recurso e justifica a prolação da presente decisão (nº 1 do artigo
78º-A da LTC).
3. Desta decisão reclama agora a recorrente para a conferência, ao abrigo do
disposto no nº 3 do artigo 78º-A da LTC, com base nos seguintes factos e
fundamentos:
«Por decisão sumária, ao abrigo do disposto no n° 1 do art°. 78-A da L.T.C.
Exmª. Sra. Dra. Juiz Conselheira Relatora considerou que … “durante o processo
não foi suscitada a questão de inconstitucionalidade normativa formulada no
requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, e que
obsta ao conhecimento do recurso e justifica a prolação da presente decisão …
Ora com todo o respeito que é, devido, o recorrente discorda de tal decisão na
medida em que ela não corresponde à realidade processual.
Com efeito o recorrente suscitou DURANTE O PROCESSO a inconstitucionalidade
normativa.
Na página 3ª das suas Alegações para o Tribunal da Relação de Évora está
inscrito... “Assim, deveria o requerimento de Abertura de Instrução ter sido
aceite, ou, sendo caso disso, convidada a assistente a aperfeiçoá-lo. Não o
tendo feito, o Tribunal a quo violou o preceituado no art°. 287, n° 1, als. a) e
b) e n°3 do CPP, violando igualmente com a interpretação que faz nas normas
contidas neste preceito, o art°. 20 da CRP, uma vez que com a sua decisão veda à
assistente o acesso ao Direito que lhe é conferido pela lei Fundamental”...
Relendo esta parte da Alegação entende a recorrente que suscitou a
inconstitucionalidade normativa ao escrever que ... O Tribunal a quo violou o
preceituado no art°. 287, nº 1 als. a) e b) e n° 3 do CPP, VIOLANDO IGUALMENTE
COM A INTERPRETAÇÃO QUE FAZ DAS NORMAS CONTIDAS NESTE ARTIGO 20 DA CRP.
Parece claro à recorrente que durante o processo suscitou que a interpretação
que o Tribunal a quo faz daqueles preceito viola o art°. 20 da CRP.
A questão não é a interpretação do n° 3 como sendo ou não aplicada ao caso pelo
Tribunal a quo (enquanto sua decisão), mas sim a de saber se o Tribunal podia
aplicá-la sem o convite ao aperfeiçoamento, na medida em que a ausência desse
convite ao aperfeiçoamento impede o exercício da tutela jurisdicional
efectivamente prevista no art°. 20 da CRP.
Ora essa questão foi suscitada, ao afirmar-se que a interpretação feita do n° 3
do art°. 287 do CPP, no sentido de não convidar a recorrente a aperfeiçoar o
requerimento de Abertura de Instrução, viola o artº. 20 da CRP, por lhe vedar a
protecção da tutela do seu direito fundamental que é o acesso ao DIREITO.
A recorrente atacou na sua Alegação a decisão de o Tribunal de 1ª Instância não
ter formulado o convite para o aperfeiçoamento.
Não fez mais do que isso: assumiu que a interpretação do nº 3 do art°. 287 do
CPP no sentido de que o Tribunal não estava obrigado a convidar a recorrente a
aperfeiçoar o seu requerimento é inconstitucional.
É suficiente ler para verificar que assim foi suscitado.
Claro que se admite que há sempre um modo mais cristalino de suscitar, que o
texto devia ser eventualmente mais escorreito, em suma, podia estar mais bem
redigido. Assume-se. Porém, está suscitada a inconstitucionalidade normativa
durante o processo.
Tendo sido suscitada durante o processo a inconstitucionalidade normativa como
se demonstrou ao longo do presente articulado não estão preenchidos os
requisitos exigidos pelo n° 1 do art°. 78 da LTC, pelo que a decisão de não ter
conhecimento deve ser revogada, e ser proferida decisão de tomar conhecimento do
recurso, seguindo-se os ulteriores termos».
4. Notificados os recorridos, respondeu o Ministério Público, nos termos
seguintes:
«1°
A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2°
Na verdade a argumentação da reclamante não tem na devida conta o conceito de
suscitação processualmente adequada de uma questão de inconstitucionalidade
normativa, nem a dimensão dos ónus que justificadamente incidem sobre o
recorrente, nos recursos tipificados na al. b) do n° 1 do artigo 70° da Lei n°
28/82».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Na decisão reclamada concluiu-se pelo não conhecimento do objecto do recurso
interposto, por não se poder dar como verificado o requisito da suscitação
prévia da questão de inconstitucionalidade normativa formulada no respectivo
requerimento de interposição (artigos 70º, nº 1, alínea b), e 72º, nº 2, da
LTC).
Com efeito, foi só nesta peça processual que a recorrente mostrou pretender
questionar, efectivamente, a constitucionalidade de uma norma – o 287º, nºs 1,
alínea b), 2 e 3 do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de haver
rejeição liminar do requerimento de abertura de instrução, por estas normas
excluírem o aperfeiçoamento de tal requerimento (fl. 188 dos presentes autos).
Independentemente de se tratar ou não da mesma norma, não decorre, de todo, do
teor da “página 3ª das (…) Alegações para o Tribunal da Relação de Évora”, que a
recorrente questionou, então, a constitucionalidade da interpretação feita do nº
3 do artigo 287º daquele Código, no sentido de não convidar a recorrente a
aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução.
Naquela página – a que, por indicação do recorrente (fl. 197 dos presentes
autos), foi já considerada na decisão reclamada – pode ler-se apenas o seguinte:
«Por tudo isto, nunca deveria ter sido rejeitado in limine o requerimento de
abertura de instrução, devendo, quando muito, ser sujeito a aperfeiçoamento,
caso fosse exigível esse aperfeiçoamento. E que, ao contrário do propugnado pelo
Tribunal a quo, o convite ao aperfeiçoamento encontra-se implícito no nº 3 do
artigo 287º, ao determinar que a rejeição do requerimento só poderá fundar-se em
três causas: extemporaneidade; incompetência do juiz; inadmissibilidade legal da
instrução, o que manifestamente não é o caso.
Assim, deveria o requerimento de abertura de instrução ter sido aceite, ou,
sendo caso disso, convidada a assistente a aperfeiçoá-lo. Não o tendo feito, o
Tribunal a quo violou o preceituado no artigo 287º, nº 1 alínea b), nº 2 e nº 3
do C.P.P., violando igualmente com a interpretação que faz das normas contidas
neste preceito, o artigo 20º da C.R.P., uma vez que com a sua decisão veda à
assistente o acesso ao Direito que lhe é conferido pela Lei Fundamental».
Ou seja, desta passagem, lida juntamente com a 6ª conclusão, também indicada
expressamente pela recorrente (fl. 197, já mencionada) – ao interpretar daquele
modo o artigo 287º nº’ 1 alínea b), nº 2 e nº 3, o Tribunal a quo violou o
preceituado no artigo 20º da C.R.P. ao vedar o acesso ao Direito por parte da
assistente – decorre, isso sim, como foi dito na decisão sumária, que a
recorrente questionou a constitucionalidade da decisão de rejeição liminar do
requerimento de abertura de instrução, à qual não deixou imputar, expressamente,
a violação do preceituado no artigo 287º, nºs 1, alínea b), 2 e 3, do Código de
Processo Penal e a negação do acesso ao Direito por parte da assistente.
É certo que a recorrente se acabou por referir à interpretação normativa feita
pelo Tribunal, considerando-a violadora do artigo 20º da Constituição. Só que,
como então também se afirmou, ainda que se pudesse extrair das passagens
indicadas que foi suscitada uma questão de inconstitucionalidade normativa,
seria sempre de concluir que tal suscitação não foi feita de forma adequada, uma
vez que não houve a identificação da interpretação cuja constitucionalidade era
questionada. Acompanhando o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 361/2006 (não
publicado), é de afirmar que “o cumprimento do ónus a que se refere o artigo
72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional não se basta, com efeito, com a
mera afirmação, perante o tribunal recorrido, de que certa interpretação
normativa, não concretizada, é inconstitucional, pois que tal não traduz a
invocação de uma verdadeira questão de inconstitucionalidade: o preceito vai
mais longe, impondo ao recorrente a delimitação dessa questão, de forma a
possibilitar ao tribunal recorrido a sua cabal compreensão e, portanto, a sua
efectiva decisão”.
Importa, pois, concluir, como na decisão reclamada, pelo não conhecimento do
objecto do recurso interposto.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência,
confirmar a decisão de não conhecimento do objecto do recurso.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 27 de Fevereiro de 2007
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos
Artur Maurício