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Processo nº 579/98
Plenário
Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam em Plenário no Tribunal Constitucional
I
O pedido
1. O objecto do pedido
O Provedor de Justiça requer, ao abrigo do artigo 281º, nº 2, alínea a), da
Constituição, a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral
da norma constante do artigo 27º do Decreto-Lei nº 268/92, de 28 de Novembro,
que estabelece o regime de exploração das apostas mútuas hípicas.
A norma em causa tem o seguinte teor:
“A publicidade das apostas mútuas hípicas beneficia do regime de excepção
previsto no nº 2 do artigo 21º do Decreto-Lei nº 330/90, de 23 de Outubro.”
2. Fundamentos do pedido
Fundamentando o seu pedido, o Provedor de Justiça alegou, designadamente, o
seguinte:
– O Decreto-Lei nº 330/90, de 23 de Outubro, aprovou o Código da Publicidade,
consagrando o regime da actividade publicitária.
– O referido diploma enuncia as restrições ao objecto da publicidade, entre
as quais se conta a restrição à publicidade de jogos de fortuna e azar, com
excepção dos “jogos promovidos pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa”.
– O Decreto-Lei nº 268/92, de 28 de Novembro, estabelece o regime jurídico
das apostas mútuas hípicas, sendo, por força do artigo 27º, concedido à
publicidade destas regime de excepção idêntico ao dos jogos da Santa Casa da
Misericórdia de Lisboa, afastando-se, deste modo, a aplicação do regime geral
restritivo da publicidade de jogos de fortuna ou azar.
– Subsistem, assim, em paralelo, dois regimes diferenciados de
publicidade de jogos de fortuna e azar: o regime geral, restritivo, que impõe
que tais jogos não possam surgir como objecto essencial da mensagem
publicitária, e o posterior regime, específico das apostas mútuas hípicas, que
isenta a publicitação daquele jogo de fortuna e azar das restrições quanto ao
objecto publicitado.
– A Constituição associa, no artigo 60º, nºs 1 e 2, os direitos do consumidor
à actividade publicitária, facto que pode justificar, por parte do legislador,
restrições ao objecto publicitado, tais como a restrição ou proibição à
publicidade de bebidas alcoólicas, tabaco, medicamentos e jogos de fortuna e
azar.
– Aliás, o preâmbulo do Código da Publicidade sublinha a importância dessa
actividade como “motor do mercado”, mas não sem prever “a definição de regras
mínimas, cuja inexistência permitiria, na prática, desvirtuar o próprio e
intrínseco mérito da actividade publicitária”, o que, numa perspectiva de
direito do consumidor, se deverá entender como a necessidade de acautelar um
eventual papel negativo da publicidade, através da informação que veicula, na
formação da vontade do consumidor.
– No caso do regime de restrições ao objecto de publicidade dos jogos de
fortuna e azar, consagrado pelo artigo 21º do Código da Publicidade, o intuito
do legislador foi limitar o estímulo à sua prática gerado pela divulgação
publicitária, considerando os danos económicos e sociais decorrentes da prática
compulsiva e reiterada dos jogos de fortuna e azar, e cercear as tentativas
irreflectidas de ganhos rápidos através de apostas consideráveis em tais jogos.
– As apostas mútuas hípicas constituem um jogo de fortuna e azar, conforme
resulta do regime do Decreto-Lei nº 422/89, de 2 de Dezembro, alterado pelo
Decreto-Lei nº 10/95, de 19 de Janeiro, e o seu regime é semelhante ao regime
geral dos jogos de fortuna e azar, nomeadamente quanto à concessão de
exploração, inspecção e fiscalização do Estado e às obrigações de investimento.
– O preâmbulo do Decreto-Lei nº 268/92 enuncia as razões que presidiram à
criação do regime de exploração das apostas mútuas hípicas, designadamente, os
“efeitos benéficos” para a “economia em geral” que resultam das corridas de
cavalos “em termos de fomento de exportações, de emprego e de melhoria de oferta
turística”, considerando ser a sua organização economicamente inviável sem o
apoio financeiro proporcionado pela exploração da aposta mútua.
– Assim, o objectivo da norma do artigo 27º do Decreto-Lei nº 268/92 parece
ser o de fomentar uma ampla divulgação das apostas mútuas hípicas através da
publicidade, com o objectivo de incentivar o consumidor a apostar nas corridas
hípicas, de forma a aumentar as receitas do jogo, que reverterão, em parte, a
favor da realização dos objectivos mencionados.
– Porém, as razões económicas, de incremento do emprego e do turismo, não
podem constituir fundamento material bastante para a diferenciação legal entre o
regime publicitário das apostas mútuas hípicas e o dos restantes jogos de
fortuna e azar, porquanto tais vantagens decorrem igualmente da exploração
destes últimos, nomeadamente dos jogos praticados em casinos, nos termos do
artigo 3º, nº 1, do Decreto-Lei nº 422/89.
– Tão-pouco o fomento da criação de cavalos, a promoção do desporto equestre
e de outras finalidades de interesse social poderão configurar tal justificação,
uma vez que todas as entidades que exploram jogos de fortuna e azar estão
vinculadas ao cumprimento de obrigações de diversa natureza, como contrapartida
da atribuição do direito de exploração do jogo, o que sempre se traduz em
benefícios para a comunidade.
– Assim sendo, não se vislumbram razões materiais que possam, de forma
objectiva e razoável, sustentar um tratamento legal da publicidade das apostas
mútuas hípicas diverso e mais favorável do que aquele que é concedido aos
restantes jogos de fortuna e azar, já que também não procedem aqui as razões de
interesse público que justificam o regime mais benévolo concedido aos jogos
promovidos pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
Conclui o Provedor de Justiça no sentido de a norma constante do artigo 27º do
Decreto-Lei nº 268/92 ser inconstitucional, por desconformidade com o disposto
no artigo 13º, nº 1, da Constituição.
3. A resposta do órgão autor da norma
Notificado do pedido, veio o Primeiro-Ministro responder, alegando, em suma, o
seguinte:
– As restrições legais ao objecto da publicidade não são impostas pela
Constituição (que directamente apenas proíbe a “publicidade oculta, indirecta ou
dolosa”), mas sim por ela justificadas em defesa de direitos constitucionalmente
relevantes como são os direitos do consumidor, havendo aqui uma margem de
liberdade para o legislador ordinário.
– O legislador ordinário utilizou essa margem de liberdade na proibição de
jogos de fortuna ou azar, afastando assim a regra geral que é a da possibilidade
de publicidade, mas voltou a essa regra geral em dois casos: os jogos promovidos
pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e as apostas mútuas hípicas.
– A questão situa-se, pois, no plano dos limites da liberdade do legislador
ordinário na regulamentação da publicidade, não por efeito de qualquer obrigação
constitucional na matéria concreta em causa, mas pelos limites que o princípio
constitucional da igualdade lhe impõe na regulamentação da matéria.
– As apostas mútuas hípicas constituem, de entre os jogos de fortuna e azar,
e tal como resulta do artigo 26º do Decreto-Lei nº 268/92, um jogo de apostas
mútuas, o que faz com que estejam mais próximos, pela sua natureza, dos jogos da
Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, em que pode haver publicidade, do que
daqueles em que essa mesma publicidade é alvo de restrição.
– A proximidade das apostas mútuas hípicas com o regime dos jogos de fortuna
e azar resulta, aliás, mais da natureza da entidade concessionária do que da
natureza do jogo, de onde não se retira nenhuma conclusão quanto à razoabilidade
ou impossibilidade de fazer publicidade.
– O preâmbulo do Decreto-Lei nº 268/92 silencia quaisquer fundamentos no que
respeita ao regime da publicidade, mas justifica a criação do regime de
exploração das apostas mútuas hípicas como forma de sustentar a organização das
corridas e ainda como meio de “obter receitas para o fomento da criação de
cavalos, do desporto equestre e de outras finalidades de interesse social”.
Deste modo, se a instituição das apostas mútuas serve estes interesses, a
respectiva publicidade visa tornar mais efectiva a sua promoção, aumentando
também o interesse pela organização das próprias apostas.
– O legislador entendeu, assim, que as apostas mútuas hípicas e a sua
publicidade se justificam como forma de promover uma actividade relevante para a
economia nacional que são as corridas de cavalos, o que as diferencia de
actividades que possam ser promovidas por outros jogos de fortuna e azar, por si
não relevantes para a economia nacional em termos semelhantes, já que os casinos
são basicamente locais de jogo.
– É, pois, legítimo, na contraposição entre o interesse dos consumidores em
que se proíba a publicidade a jogos de fortuna e azar e o interesse de promoção
das corridas de cavalos, que o legislador, neste caso limitado, permita a
publicidade, tal como o fez para os jogos da Santa Casa da Misericórdia de
Lisboa, aqui por razões do interesse social do destino das receitas.
– Além disso, as corridas de cavalos e respectivas apostas mútuas são novas
em Portugal, pelo que o seu desenvolvimento necessita de ser publicitado, sob
pena de não se verificarem as vantagens que se visam para efeitos de promoção da
economia nacional – coisa que, de forma nenhuma, sucede com os restantes jogos
de fortuna e azar.
O órgão autor da norma conclui que o artigo 27º do Decreto-Lei nº 268/92 não
viola o princípio constitucional da igualdade, já que se limita a permitir um
regime de publicidade para as apostas mútuas hípicas em defesa de um interesse
relevante também do ponto de vista constitucional.
Fixada, em sessão plenária, a orientação do Tribunal, cumpre agora formular e
fundamentar a decisão.
II
Fundamentação
4. Não há, no Direito português, uma definição em sentido próprio do jogo.
O legislador português omite, no artigo 1245º do Código Civil, na verdade,
qualquer definição. Todavia, a doutrina não deixa de enunciar as características
jurídicas do jogo e da aposta, concluindo tratar‑se de contratos consensuais,
sinalagmáticos, onerosos e aleatórios (cf. Mota Pinto, Pinto Monteiro e Calvão
da Silva, Jogo e Aposta, 1982, p. 8).
No jogo e aposta, o risco assumido pelas partes não preexiste como noutros
contratos aleatórios mas é criado pelas partes.
É precisamente o facto de o risco não ser uma necessidade mas algo que se
procura por si mesmo, desenvolvendo, por vezes, paixões e obsessões lesivas das
pessoas que se dedicam excessivamente ao jogo, que tem levado a uma consciência
crítica, manifestada na Cultura e no próprio pensamento jurídico, a uma certa
“condenação” do contrato de jogo (cf. Maria Isabel Namorado Clímaco, “Os Jogos
de Fortuna e Azar”, em Saldanha Sanches e outro (org.), Homenagem a José
Guilherme Xavier de Basto, 2006, p. 469 e ss.).
É assim, por isso, que os chamados jogos de fortuna e azar são
normalmente ilícitos (cf. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado,
Vol. II, 4.ª edição revista e actualizada, 1997, p. 926 e ss.), sendo, porém,
lícitos quando autorizados –segundo Mota Pinto, Pinto Monteiro e Calvão da
Silva, ob. cit., p. 30 e ss. ao autorizar certos jogos de fortuna e azar,
regulamentando e fiscalizando a sua prática, o Estado assegura a satisfação de
uma tendência natural do homem, sabendo que serão observadas as condições por
ele (Estado) impostas, as quais contribuem para atenuar os efeitos negativos do
jogo. Por outro lado, obtém importantes receitas fiscais, incentiva o turismo e
canaliza parte considerável das receitas do jogo para fins de ordem social.
No actual quadro jurídico, a exploração e prática de jogos de fortuna e azar é
permitida nas zonas de jogo criadas por lei.
No que concerne à publicidade dos referidos jogos, está ela sujeita ao regime
geral da publicidade, hoje contido no Código da Publicidade, aprovado pelo
Decreto‑Lei nº 330/90, de 23 de Outubro.
Para além de proibir a publicidade que encoraje comportamentos prejudiciais à
saúde e segurança dos consumidores, o Código da Publicidade estabelece diversas
restrições à publicidade, quanto ao seu conteúdo e ao seu objecto. E é assim que
ele proíbe ou limita a publicidade a bebidas alcoólicas (artigo 17º), tabaco
(artigo 18º), tratamentos e medicamentos (artigo 19º), cursos (artigo 22º),
veículos automóveis (artigo 22º-A), produtos e serviços milagrosos (artigo
22º-B), e jogos de fortuna e azar (artigo 21º).
No que a estes últimos respeita, a proibição legal incide sobre a publicidade
que tenha por objecto essencial da mensagem os jogos de fortuna e azar (artigo
21º, nº 1). Tal proibição não abrange, porém, os jogos promovidos pela Santa
Casa da Misericórdia de Lisboa (nº 2 do mesmo artigo). Deste regime de excepção
vêm mais tarde a beneficiar as apostas mútuas hípicas por força da norma do
artigo 27º do Decreto-Lei nº 268/92, cuja constitucionalidade agora se
questiona.
4. Regime constitucional da publicidade
A Constituição não define o conceito de publicidade. Recorrendo ao Código da
Publicidade (na redacção do Decreto-Lei nº 275/98, de 9 de Setembro, com as
últimas alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 224/2004, de 4 de Dezembro),
a publicidade é considerada como qualquer forma de comunicação feita por
entidades de natureza pública ou privada, no âmbito de uma actividade comercial,
industrial, artesanal ou liberal, com o objectivo directo ou indirecto de: a)
Promover, com vista à sua comercialização ou alienação, quaisquer bens ou
serviços; b) Promover ideias, princípios, iniciativas ou instituições (artigo
3º).
Não obstante a referida falta de definição constitucional, a Constituição não
remete, no artigo 60º, nº 2, a disciplina da publicidade inteiramente para a
lei, mas estabelece, desde logo, a proibição de todas as formas de publicidade
oculta, indirecta ou dolosa, situações estas em que a natureza publicitária da
mensagem não é identificável pelo consumidor ou em que a publicidade não é
verdadeira (cfr. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da
República Portuguesa Anotada, 3.ª edição revista, p. 324).
O artigo 60º da Constituição tem como epígrafe “Direitos dos consumidores” e
integra-se no capítulo referente aos “Direitos e deveres económicos”. Com
efeito, e como se afirmou no Acórdão nº 348/03 (Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 56º Vol., p. 639 e ss.), existe, no texto constitucional uma
articulação entre direitos do consumidor e publicidade, entendida esta como meio
potente de promover o consumo e influenciar o consumidor. E é considerando este
efeito potenciador do consumo e de condicionamento das decisões dos
destinatários da mensagem publicitária que a Constituição tutela – através de
uma reserva de lei e da proibição de certas formas de publicidade – os direitos
dos consumidores. Para além deste efeito de condicionamento, a publicidade é
muitas vezes criticada como instrumento da criação artificial de necessidades e
sobrevalorização de produtos e serviços (cf. Carlos Ferreira de Almeida, Os
direitos dos consumidores, 1982, p. 78).
Todas estas razões explicam, no que respeita à publicidade comercial, que o
artigo 60º, nº 2, da Constituição, seja interpretado como âncora constitucional
para a previsão de restrições legais quer ao conteúdo, quer ao objecto da
publicidade (cf., nesse sentido, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob.
cit., p. 324). Tais restrições são destinadas à protecção dos consumidores,
impedindo o consumo acrítico de produtos nocivos à saúde e segurança das pessoas
e as possibilidades de abuso de confiança dos destinatários da mensagem
publicitária (cf., sobre tais restrições, Francisco Pereira Coelho, “La
publicité et le consommateur – rapport général”, in La publicité – propagande
(Journées portugaises), 1981, p. 19).
Podendo discutir-se se a Constituição consagra, ou não, uma liberdade de
publicidade ou um direito à expressão publicitária (cf., em sentido negativo, a
Informação-parecer nº 178/92 do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da
República, em Pareceres, Vol. III, Procuradoria-Geral da República, 1997, pp.
85‑87), a publicidade não deixa de constituir uma realidade complexa, em que
convergem vários outros direitos fundamentais previstos na Constituição. Estes
não poderão deixar de ser considerados na apreciação de eventuais restrições à
actividade publicitária.
O Tribunal Constitucional admitiu já, no Acórdão nº 348/03 (Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 56º Vol., p. 639 e ss.) que a publicidade pode englobar-se no
direito de informar e este constitui uma das dimensões do direito de informação
consagrado no artigo 37º da Constituição. No mesmo aresto, o Tribunal afirmou
ainda que a publicidade traduz igualmente o exercício de um outro direito
fundamental – a liberdade de iniciativa económica privada.
De qualquer modo, a apreciação da conformidade constitucional do regime jurídico
da publicidade tem de considerar a sua relação com a liberdade de expressão e
informação (artigo 37º), a liberdade de imprensa e meios de comunicação social
(artigo 38º), a liberdade de criação cultural (artigo 42º), a liberdade de
escolha de profissão (artigo 47º), o direito de propriedade (artigo 62º) e a
liberdade individual em geral (artigo 25º, nº 1).
Torna-se, pois, necessário, no caso em apreço, fazer uma ponderação entre os
direitos constitucionais potencialmente afectados pelas restrições legais à
publicidade ao jogo e os valores ou direitos constitucionais que o legislador
visa proteger com essas mesmas restrições.
6. A publicidade aos jogos de fortuna e azar e a protecção dos direitos dos
consumidores
A defesa dos consumidores constitui uma das incumbências prioritárias do Estado
e encontra-se prevista na Constituição desde a sua redacção originária [artigo
81º, alínea m), actual alínea i)].
Com a revisão de 1982, essa incumbência ganhou destaque, passando a ser regulada
num Título específico (Título VI – Comércio e protecção do consumidor) da Parte
II da Constituição (organização económica), onde também se consagrou um elenco
de direitos dos consumidores (artigo 110º, nº 1). A revisão de 1989 consagrou a
protecção dos consumidores como um dos objectivos da política comercial [artigo
102º, alínea e), actual artigo 99º, mesma alínea] e transferiu o elenco dos
direitos dos consumidores para a Parte I da Constituição, passando a ser
regulados entre os direitos fundamentais, no artigo 60º.
A consagração dos direitos dos consumidores como direitos fundamentais radica na
necessidade de proteger as pessoas (enquanto consumidoras de bens e serviços),
em face da especial vulnerabilidade a que estão sujeitas no relacionamento com
os operadores económicos (produtores, fornecedores, prestadores), num contexto
de produção, distribuição e consumo massificados. Essa vulnerabilidade resulta,
designadamente, de o consumidor não poder determinar o conteúdo dos contratos
que celebra e de não estar em condições de avaliar cabalmente a qualidade dos
bens e serviços (cf., neste sentido, Vieira de Andrade, “Os direitos dos
consumidores como direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976”,
Boletim da Faculdade de Direito, Vol. LXXVIII, 2002, pp. 46 e 47, e Pinto
Monteiro, “Sobre o direito do consumidor em Portugal”, Sub Judice – justiça e
sociedade, nº 24, 2003, p. 9, e “Quadro jurídico da protecção do consumidor”,
Forum Iustitiae – Direito & Sociedade, Ano 1º, nº 1, 1999, p. 45).
No artigo 60º, nº 1, a Constituição reconhece aos consumidores um conjunto de
direitos: à qualidade de bens e serviços consumidos, à formação e à informação,
à protecção da saúde, da segurança e dos seus interesses económicos e à
reparação de danos.
O legislador ordinário procedeu à concretização e ao desenvolvimento do regime
constitucional de protecção dos consumidores através da Lei nº 29/81, de 22 de
Agosto, e posteriormente, da Lei nº 24/96, de 31 de Julho (que substituiu a
primeira).
Sensível à ideia de que a publicidade constitui um instrumento de promoção do
consumo e de influência sobre os consumidores, o legislador constitucional –
viu‑se já – apesar de ter remetido para a lei a disciplina jurídica da
publicidade, proibiu directamente e desde logo todas as formas de publicidade
oculta, indirecta ou dolosa (artigo 60º, nº 2 da CRP).
Deste quadro constitucional resulta, assim, claro que a publicidade aos jogos de
fortuna e azar não é, em si mesma, e directamente, proibida pela Constituição.
É ao legislador ordinário que compete estabelecer o regime da publicidade em
geral. Mas terá de fazê‑lo, compatibilizando todos os valores em jogo,
designadamente, o direito dos consumidores a serem informados (artigo 60º, nº 1)
o direito dos produtores e intermediários a prestar informação (artigo 37º, nº
1), a concorrência equilibrada entre as empresas [artigo 81º, alínea f)] e a
liberdade de consumo (quanto a esta cf. Jorge Miranda e Rui Medeiros,
Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2005, p. 618, e ainda Maria da Assunção
Esteves, “Direitos dos consumidores”, Colectânea de Jurisprudência, Ano VIII,
Tomo III, 2000, p. 7).
Certo é que, no que concerne ao regime da publicidade aos jogos de fortuna e
azar, o legislador ordinário optou, no âmbito da sua liberdade de conformação,
por uma regra geral de proibição.
A referida liberdade de conformação outorgada ao legislador ordinário, no âmbito
da qual se optou pela regra da proibição da publicidade aos jogos de fortuna e
azar, não significa, no entanto, uma ausência de limites na modelação do regime
adoptado, designadamente na previsão de excepções àquela regra, como é o caso da
publicidade às apostas mútuas hípicas, que o requerente questiona por violação
do princípio da igualdade.
7. A publicidade aos jogos de fortuna e azar e a proibição de discriminação
infundada
O problema suscitado pelo requerente é, neste contexto, o de saber se o regime
de publicidade das apostas mútuas hípicas, enquanto excepção ao regime geral de
proibição legal da publicidade aos jogos de fortuna e azar, configura uma
violação do princípio da igualdade.
Sublinhe-se, desde já, que o problema de constitucionalidade sub iudice é
colocado numa perspectiva comparativa, relativamente ao regime contido noutra
norma legal, não abrangida no pedido (o artigo 21º, nº 1, do Código da
Publicidade). Tal circunstância não constitui um obstáculo à apreciação da
questão de constitucionalidade, tendo o mesmo sucedido em diversos casos
anteriormente decididos pelo Tribunal, designadamente os constantes dos Acórdãos
nº 563/96, nº 695/98, nº 135/99, nº 247/05 e nº 351/05 (Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 33º Vol., p. 47 e ss, 41º Vol., p. 603 e ss., 42º Vol., p. 629 e
ss., e Diário da República, II Série, de 27 e de 20 de Outubro de 2005,
respectivamente).
Por outro lado, o Tribunal Constitucional tem pacificamente evidenciado que o
princípio da igualdade se apresenta como um limite à liberdade de conformação do
legislador (cfr. Acórdão nº 187/01, de 2 de Maio) – o que justifica a
pertinência do apelo ao parâmetro da igualdade neste contexto.
O princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição, é um
princípio estruturante do Estado de Direito democrático, postulando que se dê
tratamento igual a situações essencialmente iguais e tratamento desigual a
situações desiguais, proibindo-se, consequentemente, o tratamento desigual de
situações iguais e o tratamento igual de situações desiguais. Neste sentido,
impede‑se a discriminação e o privilégio.
Enquanto princípio estruturante informa toda a ordem jurídico‑constitucional,
impondo‑se desde logo ao legislador e não apenas à actuação dos poderes públicos
ou aos Tribunais.
Assim, o princípio constitucional em questão vincula o legislador, numa dupla
perspectiva: proíbe as discriminações ilegítimas por via da lei e obriga à
concretização das imposições constitucionais de eliminação de desigualdades.
É, aliás, a primeira vertente do princípio da igualdade que o requerente
sustenta ser violada pela norma questionada, entendendo ser ilegítimo o regime
excepcional de permissão de publicidade às apostas mútuas hípicas face ao regime
geral de proibição da publicidade aos jogos de fortuna e azar.
Como é sabido, a proibição de discriminação que deriva do princípio da igualdade
não retira ao legislador liberdade de conformação no estabelecimento de
diferenciações de tratamento, quando diversas forem as situações a regular. O
princípio da igualdade funciona antes como limite objectivo da
discricionariedade legislativa, exigindo que as diferenciações efectuadas pelo
legislador ordinário sejam razoável, racional e objectivamente fundadas. Numa
expressão sintética, o princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da
lei, traduz-se na ideia geral de proibição do arbítrio (neste sentido, citem-se,
entre muitos outros, os Acórdãos nºs. 251/92, 688/98, 287/00, 319/00, 378/00 e
232/03 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 22º Vol., p. 717 e ss., 41º Vol.,
p. 567 e ss., 47º Vol., p. 447 e ss., p. 497º e ss. e p. 791 e ss., 56º Vol., p.
7 e ss., respectivamente).
Considerando, neste quadro, o problema proposto importa, então, comparar o
regime geral de publicidade dos jogos de fortuna e azar (contido no artigo 21º,
nº 1, do Código da Publicidade) e o regime excepcional de publicidade das
apostas mútuas hípicas (contido na norma questionada – artigo 27º do Decreto-Lei
nº 268/92), atentando especialmente nas razões que terão determinado a diferença
desses regimes (proibição no primeiro caso – a regra geral e autorização no
segundo – a excepção).
Quanto ao regime geral de proibição da publicidade aos jogos de fortuna e azar,
consagrada no artigo 21º, nº 1, do Código da Publicidade, o legislador não
deixou documentação dos interesses que terão presidido a tal opção (as
disposições preambulares do Código da Publicidade e os trabalhos preparatórios a
que se teve acesso são omissos relativamente a esta matéria).
São, contudo, apreensíveis as razões de tal opção, numa perspectiva de o Estado,
sem proibir o jogo, limitar a possibilidade da sua promoção (cf., no sentido de
uma explicação da opção legislativa, Paz Ferreira, “A Santa Casa da Misericórdia
de Lisboa e o Monopólio Público do Jogo”, in Estudos de Direito Público, 2003,
p. 141).
Uma das formas que o Estado adoptou para “controlar”, ou não promover o jogo,
foi, precisamente, a de proibir a publicidade que o tenha por objecto. O jogo
aparece, assim, como uma actividade tolerada, numa sociedade aberta, mas cuja
promoção o Estado não permite, em atenção às razões de protecção das suas
consequências, salvo se razões de interesse público alterarem a ponderação de
valores cujo resultado lhe é, em geral, desfavorável.
Já quanto às apostas mútuas hípicas aqui em causa, o legislador considerou que
as corridas de cavalos têm efeitos benéficos na “criação equídea e na economia
em geral, em termos de fomento de exportações, de emprego e de melhoria da
oferta turística “(1º parágrafo do preâmbulo do Decreto-Lei nº 268/92).
Entendeu-se, todavia, que a organização de corridas de cavalos em Portugal seria
“economicamente inviável sem o apoio financeiro proporcionado pela exploração da
aposta mútua
(2º parágrafo). A autorização de tais apostas surge como “forma de sustentar a
organização destas (corridas) e ainda de obter receitas para o fomento da
criação de cavalos, do desporto equestre e de outras finalidades de interesse
social “(4º parágrafo).
Permitir a publicidade, neste contexto, pode constituir, interpretando o
pensamento do legislador, um instrumento de fomento das apostas mútuas hípicas
e, consequentemente, de cumprimento dos objectivos das corridas de cavalos.
Todos os benefícios em princípio decorrentes das corridas de cavalos –
nomeadamente, o estímulo à criação equídea e ao desporto equestre, bem como os
benefícios para a economia, criação de emprego, melhoria da oferta turística e
aumento das exportações – são, assim, considerados como efeitos, ainda que
indirectos, das apostas mútuas hípicas. E o sucesso da exploração das apostas
mútuas seria, deste modo, potenciado pela permissão de publicidade [sobre a
matéria, cf. o Relatório do Grupo de Trabalho criado para a definição de uma
política nacional de jogos, publicado no D.R., II Série, nº 50, de 11 de Março
de 2005, p. 4004‑(2)].
Este entendimento é, aliás, sufragado pelo autor da norma questionada quando
afirma, na resposta, que “se a instituição das apostas mútuas hípicas serve
aqueles interesses, a respectiva publicidade visa tornar mais efectiva a sua
promoção, aumentando também o interesse pela organização das próprias apostas”.
Ora, é, desde logo, manifesto que a “criação de emprego”, a “melhoria da oferta
turística”, o estímulo à criação equídea e ao desporto equestre – objectivos que
se podem, aliás, integrar em tarefas e deveres do Estado com respaldo
constitucional [cfr. artigos 9º, alínea d), 58º, nº 2, alínea a), 81º, alíneas
a) e c) e 93º, nº 1, alíneas a) e b) da Constituição] – são fundamentos
objectivos e racionais para justificar o tratamento diferenciado que o artigo
27º do Decreto-Lei nº 268/92 dá à publicidade das apostas mútuas hípicas face ao
regime-regra da publicidade dos jogos de fortuna e azar.
Em suma, o regime instituído pelo artigo 27º do Decreto-Lei nº 268/92, enquanto
estabelece a referida diferenciação, não se mostra racionalmente infundado ou
arbitrário – sem violação, pois, do princípio da igualdade – sendo, para o
efeito, irrelevante qualquer valoração axiológica comparativa entre os
interesses agora em causa e os que justificarão a aplicação do mesmo regime à
publicidade dos jogos promovidos pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
III
Decisão
Pelo exposto e em conclusão, o Tribunal Constitucional decide não declarar a
inconstitucionalidade da norma ínsita no artigo 27º do Decreto-Lei nº 268/92, de
28 de Novembro.
Lisboa, 21 de Novembro de 2006
Maria Fernanda Palma
Rui Manuel Moura Ramos
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Paulo Mota Pinto
Bravo Serra
Benjamim Rodrigues
Gil Galvão
Maria João Antunes
Vítor Gomes
Mário José de Araújo Torres
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria Helena Brito
Artur Maurício