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Processo n.º 871/2005
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
(Conselheira Maria Fernanda Palma)
Acordam Na 2.ª Secção Do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.No âmbito do processo n.º 1718/02.9JBLSB, que correu seus termos no 3.º Juízo
do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, A. requereu o desentranhamento da
sua fotografia, utilizada no processo, entre outros, para efeito de
identificação de suspeito de ilícitos investigados nos autos.
O requerimento foi indeferido por despacho com o seguinte teor:
«Veio A., Deputado ao Parlamento Europeu, requerer que seja mandada desentranhar
imediatamente do apenso ao processo a fotografia do requerente que lá se
encontra para ser a ele entregue ou destruída.
Sucede, porém, que não vejo fundamento para tal pretensão.
A fotografia do Ilustre Requerente, obtida pela Polícia Judiciária através de
pesquisa na Internet, consta efectivamente de um dos apensos deste processo – AJ
– sob o número “2”.
Trata-se de uma entre muitas outras fotografias de “figuras públicas” (pelo
cargo que desempenham os retratados ou a profissão que exercem),
maioritariamente recolhidas da Internet, revistas e jornais.
Foram, sempre no decurso da fase de inquérito, aleatoriamente numeradas e
organizadas no dito apenso para serem exibidas a testemunhas com o propósito de
identificarem ou não os suspeitos dos ilícitos criminais sob investigação.
O mesmo apenso constitui, assim, um dos elementos de prova constante destes
autos mencionado na acusação e que deverá ser apreciado na fase processual em
curso (na perspectiva da sua validade ou invalidade de que ora, naturalmente, se
não cura).
A fotografia do Requerente no apenso AJ não foi obtida de forma ilegal (mediante
designadamente, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na
correspondência ou nas telecomunicações – cf. art.º 126.° do CPP); nem a sua
inclusão no apenso e subsequente exibição para fins puramente investigatórios
constituiu actuação ilegítima por banda dos órgãos de polícia criminal ou dos
Magistrados do Ministério Público então titulares do inquérito.
O direito à imagem goza de reconhecimento e tutela tanto por parte da Lei
Fundamental (art.º 26.°, n.º 1, da CRP) como por parte das leis penal (art.º
199.°, n.º 2, do CP) e civil (art.º 79.° do CC). “Mas a consagração do direito à
imagem como autónomo bem jurídico-criminal não implica necessariamente uma
tutela penal global e congruente, sc., uma protecção em todas as direcções e à
custa da criminalização de todos os atentados, sob a forma de lesão ou perigo”
(Costa Andrade, Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Coimbra
Editora, 1996, p. 143).
Estatui o citado art.º 79.° do CC:
1. O retrato de uma pessoa não pode ser exposto, reproduzido ou lançado no
comércio sem o consentimento dela; (...)
2. Não é necessário o consentimento da pessoa retratada quando assim o
justifiquem a sua notoriedade, o cargo que desempenhe, exigências de polícia ou
de justiça, finalidades científicas, didácticas ou culturais, ou quando a
reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos, ou na de factos de
interesse público ou que hajam decorrido publicamente.
3. (...)
Regime de “excepção” (o do transcrito n.° 2 do art.º 79.° do CC) que
manifestamente se verifica no caso em apreço. A utilização da fotografia do
Requerente norteou-se por exigências de polícia ou de justiça e mostrou-se
necessária pela notoriedade e a natureza do cargo que desempenhava (público,
actualmente Deputado do Parlamento Europeu, exerceu anteriormente vários outros
cargos públicos importantes, é escritor distinguido, etc.).
Em suma: inexiste fundamento legal que possibilite os propugnados
desentranhamento, restituição ou destruição da fotografia do Requerente
incorporada nestes autos (e seguramente que o não permitem as invocadas
disposições dos art.ºs 125.° do CPP e 71.° do CC).
Finalmente, cumpre-me tão-só acrescentar o seguinte.
Não me compete sindicar, nesta sede, o teor das aludidas notícias publicadas no
semanário “…” e no “…”, mas a análise dos autos evidencia que qualquer mancha
que delas tenha resultado para a honra, bom nome e reputação quer do Ilustre
Requerente quer de outras personalidades públicas não pode ser atribuída ao
estrito uso do dito apenso AJ como técnica exclusiva de investigação criminal.
Pelo exposto, indefiro o requerido pelo Sr. Dr. A..»
Desta decisão interpôs o requerente recurso para o Tribunal da Relação de
Lisboa, sustentando nas conclusões o seguinte:
«a) – Porque o processo penal é considerado “direito constitucional aplicado” e,
num Estado de Direito, os direitos naturais se antepõem aos direitos da
colectividade, daqui decorre que estes só podem ser “restringidos nos casos
expressamente previstos pela Constituição, devendo as restrições limitar-se ao
necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente
protegidos”,
ou seja, face a exigências objectivas de “necessidade” e “proporcionalidade”.
Qualquer diferente interpretação viola o referido artigo 18.° da C.Rep., como
ensinam Prof. F. Dias, in “Direito Processual Penal”, ed. de 1974, págs. 96 e
97, e Gil Moreira dos Santos, in “O Direito Processual Penal”, pág. 38.
b) – Trate-se de “reforço” da razão de ciência ou meio de esclarecimento,
“reconhecimento” ou “prova documental”, nada legitima já, em termos probatórios,
a manutenção nos autos de algo que deixou de ser pertinente porque relativo aos
que “nada têm a ver com os factos” – artigos 340.º, n.º 4, a) e b), e 291.º, n.º
1, do C.P.P..
Outro entendimento quanto à necessidade de permanecer “junto” aos autos e
validade de tais “indícios” viola, em erro de interpretação o regime dos artigos
138.º, n.ºs 4 e 5, como 147.º, n.º 4, 340.º, n.º 4, a) e b), e 291.º, n.º 1, do
C.P.P..
c) – Se atentarmos no regime prescrito quanto à permanência nos autos de “meios
de prova”, sempre aferidos pela ideia de “necessidade” e “proporcionalidade”,
vemos que manter nos autos “retratos” que, no momento da acusação, deixaram de
ter relevo para qualquer identificação (?), contraria o regime dos artigos 18.°
da C.Rep., 267.º – “meios de prova necessários” –, 186.º do C.P.P. – “logo que
se tornar desnecessário para efeitos de prova” – e 188.º, n.º 3 – IIª parte –
como 190.º – “destruição” de gravações se e porque “não relevantes”, todos do
C.P.P., e os princípios da interpretação da norma processual penal, tal como
apontado na antecedente al. a) destas conclusões.
d) – Se o douto despacho recorrido aceita que “Figuras públicas há muitas”, mas
não explica nem fundamenta a razão por que dentre nada menos de 230 deputados na
Assembleia da República, mais 25 deputados portugueses no Parlamento Europeu, só
foram escolhidas as personalidades que constam do apenso,
ou dentre os responsáveis políticos com alguma notoriedade e militância
partidária, não se encontra ninguém do Partido Comunista Português ou da
coligação CDU/Os Verdes, enquanto foram incluídas personalidades de todos os
outros partidos com assento parlamentar,
e também a razão para que de entre os escritores, analistas, comentadores e
colaboradores regulares da comunicação social, só foram escolhidos os que alguma
vez tiveram oportunidade de se pronunciar sobre o segredo de justiça, as escutas
telefónicas, a prisão preventiva ou mesmo aspectos ligados ao processo Casa Pia,
ali não figurando nenhuma “quota” de outras categorias de figuras públicas
(directores de órgãos de comunicação social, banqueiros, empresários,
magistrados, etc., etc.),
manter “junto aos autos”, para a prevista “devassa” e “deleite da maledicência”,
uns quantos,
é violar o princípio da proibição do arbítrio, segundo o qual se consideram
“inadmissíveis as diferenciações de tratamento desprovidas de justificação
razoável segundo critérios objectivos e a identidade de tratamento para
situações manifestamente desiguais” (Gomes Canotilho, Direito Constitucional e
Teoria da Constituição, 7.ª edição, p. 1298, com referência ao Ac. TC. 644/94,
DR, II, 1.2.95),
ou seja, inconstitucionalidade material.
e) – Fundamentar em “exigências de polícia ou de justiça”, tuteladas no n.º 2 do
art.º 79.º do Código Civil, a manutenção da fotografia do recorrente nos autos,
é fazer errada interpretação daquele preceito,
bem como da noção de Offentlichkeit, que envolve a aparição ou utilização da
imagem de alguém no espaço público, incluindo o da comunicação social, e não
para quaisquer outros, já que, como ensinam Vital Moreira e Gomes Canotilho:
“O direito à imagem tem um conteúdo assaz rigoroso, abrangendo, primeiro, o
direito de cada um de não ser fotografado nem ver o seu retrato exposto em
público sem o seu consentimento (...)” (Constituição da República Portuguesa,
3.ª ed., p. 181, itálico nosso).
Isto porque a compressão da privacidade apenas atinge “os factos ou a actividade
que tem que ver com a notoriedade da pessoa”. (Cunha Rodrigues, Lugares do
Direito, p. 36), o que não é nunca o caso de Quem “nada tem a ver com os
factos”.
Termos em que, reparada a douta decisão, pelo agravo continuado que está a
causar ao recorrente,
e sempre pela sua revogação, se fará
JUSTIÇA
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 30 de Junho de 2005, considerou
o seguinte:
«Das conclusões extraídas pelo recorrente da sua motivação (e como se sabe são
as conclusões que demarcam o objecto do recurso) vemos que a decidir está da
legitimidade e utilidade ou não da manutenção da sua fotografia no apenso AJ,
utilizado no decurso do inquérito para viabilizar eventuais identificações de
pessoas que houvesse de investigar nos autos já que denúncias aí feitas se
reportavam a pessoas não concretamente identificadas mas pertencentes a um
universo que se pode caracterizar como de pessoas com notoriedade pública,
legitimidade que o recorrente põe em causa pretendendo:
- que deixou de ser pertinente em termos probatórios, mesmo como reforço da
razão de ciência ou meio de esclarecimento, a manutenção nos autos de prova
(reconhecimento ou prova documental) que “nada tem a ver com os factos” –
artigos 340.º, n.º 4, a) e b), e 291.º, n.º 1, do C.P.P. II, (considerando que
outro entendimento quanto à necessidade de permanecer “junto” aos autos e
validade de tais “indícios” viola, em erro de interpretação, o regime dos
artigos 138.º, n.ºs 4 e 5, como 147.º, n.º 4, 340.º, n.º 4, a) e b), e 291.º,
n.º 1, do C.P.P.),
- que em vista do regime de permanência nos autos de “meios de prova”, que se
pauta pela ideia de “necessidade” e “proporcionalidade”, manter nos autos
“retratos “ que, no momento da acusação, deixaram de ter relevo para qualquer
identificação (?), contraria o regime dos artigos 18.° da C. Rep., 267.º – “meio
de prova necessários”, 186.º do C.P.P. – “logo que se tornar desnecessário para
efeitos de prova” – e 188.°, n.º 3 – II parte – 190.° – “destruição” de
gravações se e porque “não relevantes” – todos do C.P.P., e os princípios da
interpretação da norma processual penal,
- que, fundamentar tal manutenção com “as exigências de polícia ou de justiça”
tuteladas no art.º 79.° do C. Civil é fazer errada interpretação deste preceito,
sendo que, na medida em que foi, a seu ver, arbitrário o critério de selecção
das fotografias incluídas em tal apenso, com o decidido – não explicando ou
fundamentando a razão dessa selecção – se violou o princípio da proibição do
livre arbítrio, bem como o seu direito à imagem.
A respeito desta última vertente da sua argumentação na medida em que o
recorrente põe em causa o critério que presidiu à selecção das fotografias – e
em particular da sua fotografia – a incluir no Apenso AJ dos autos (inclusão
que, dada a divulgação por órgãos de comunicação social, lhe terá causado
grandes incómodos), nada mais se nos oferece dizer do que o que se refere na
douta resposta a tal respeito, que, na medida a seguir consignada, aqui
transcreveremos:
“...o Ministério Público através de comunicado da Procuradoria-Geral da
República, e o próprio Procurador-Geral da República pessoalmente, prestaram os
esclarecimentos necessários e bastantes ao recorrente...”
Os procedimentos e legalidade “e o porquê da inclusão de uma sua fotografia, e
porque não a de outrem, no Apenso AJ” foram já explicados ao recorrente, não
decorrendo essa inclusão “de nenhum facto, porque foi aleatória”, não carecendo
o Ministério Público “de solicitar ao recorrente ou a quem quer que fosse
(designadamente figuras públicas cuja imagem caiu no domínio público), quer
autorização para tal inclusão, tendo em conta os fins a que se destinava, quer a
opinião de que fotografias de outrem deveriam, ou não, aí ser incluídas.”
…
“Nos presentes autos denunciavam-se factos susceptíveis de enquadrar crimes
contra a autodeterminação sexual de crianças e de lenocínio ocorridos na Casa
Pia de Lisboa”.
“Assim, o universo das potenciais vítimas estava, à partida, delimitado; e o
mesmo circunscrevia-se aos alunos e ex-alunos da Casa Pia de Lisboa”.
“Foram inquiridos centenas de menores que descreviam os seus abusadores como
sendo personalidades “que usavam fato; que tinham carros de alta cilindrada, que
apareciam na televisão ou que eram políticos, descrição aproximada do conceito
de figura pública”.
“Foram assim, logo à partida, referenciadas várias pessoas como estando
envolvidas no abuso sexual de alunos da CPL, mencionadas pelos nomes, umas com
maior ou menor projecção pública e outras completamente anónimas”.
“De forma a viabilizar o prosseguimento da investigação, e a garantir que a
eventual confirmação das pessoas em causa como estando envolvidas na prática de
crimes sexuais contra crianças era feita de forma a não suscitar dúvidas, nos
casos em que as vítimas não soubessem identificar os autores dos factos de que
foram vítimas pelos nomes, foi organizado um apenso a estes autos contendo um
número elevado de fotografias, não só dos indivíduos suspeitos mas também de
muitos outros indivíduos, não relacionados com os factos em investigação.”
…
“As suspeitas que chegaram à investigação apontavam no sentido de que entre os
abusadores sexuais das crianças da CPL se contavam políticos, desportistas,
artistas e pessoas ligadas à carreira diplomática com elevada notoriedade
pública.”
“Assim, o critério adoptado na elaboração do Apenso AJ foi o da notoriedade
pública das figuras dele constantes, escolhendo-se personalidades dos diversos
quadrantes políticos e áreas de intervenção pública, aleatoriamente
(“...qualquer critério que estipulasse quotas em função da filiação partidária,
da confissão religiosa, da modalidade desportiva praticada, do clube de futebol
ou do grupo profissional seria insusceptível de perseguir o objectivo policial
de identificação de suspeitos, uma vez que o critério da notoriedade pública
ficaria comprometido, porquanto tais personalidades não têm a mesma projecção
pública, em função até das funções que exercem...).
Outrossim, “... o Apenso AJ foi organizado de forma completamente aleatória, ...
de modo a excluir toda e qualquer influência nos eventuais reconhecimentos que
viriam a ser realizados pelas vítimas “...resultando ainda “em casos pontuais”
“o critério de inclusão dos nomes...” “da circunstância de ter revelado uma
proximidade com os arguidos dos autos, permitindo suspeitar que pudessem ser
seus companheiros no desenrolar da actividade criminosa - inclusões que
ocorreram, “na maior parte dos casos, antes de qualquer pronunciamento público”.
…
…
Assim, a organização do Apenso AJ obedeceu ao critério da notoriedade pública
das pessoas que nele constam, nele figurando pessoas que nada tinham a ver com a
matéria dos autos, mas, também, e obviamente, pessoas que foram referenciadas
nos autos como abusadores sexuais de menores, como frequentadores de locais onde
os menores eram recrutados para essas práticas ou como estando próximas de
abusadores sexuais”.
“Tal critério é pois sindicável, o que basta para garantir a sua aleatoriedade e
a sua necessidade em razão das exigências policiais e processuais que in casu se
faziam sentir”.
Temos pois que nenhuma razão assiste a A. quando invoca arbitrariedade no
critério de selecção das fotografias incluídas em tal apenso e consequente
violação do princípio da proibição do livre arbítrio: como bem refere ainda o MP
na sua resposta, ao fazer tal invocação “... o recorrente enferma” – com o
devido respeito – “num vício de raciocínio ao confundir conceitos como
arbitrariedade com aleatoriedade.”
Não pode assim a sua argumentação, no que a tal invocação se refere, ter
acolhimento.
Claudica, por outro lado, na medida em que dela decorria, a sua alegação de que
ao fundamentar a manutenção da sua fotografia no Apenso AJ com “as exigências de
polícia ou de justiça” tuteladas no art.º 79.º do C. Civil se fez errada
interpretação deste preceito.
Estabelecendo tal preceito que “o retrato de uma pessoa não pode ser exposto,
reproduzido ou lançado no comércio sem o consentimento dela” estabelece no
entanto também que (...) “não é necessário o consentimento da pessoa retratada
quando assim o justifiquem a sua notoriedade, o cargo que desempenhe, exigências
de polícia ou de justiça, finalidades científicas, didácticas ou culturais, ou
quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos, ou na de
factos de interesse público que hajam decorrido publicamente (...)”
Ora, perante as sobreditas exigências procedimentais de recolha de prova e
patente que é ser o recorrente uma figura pública, quer por cargos públicos
desempenhados e condição de escritor de renome, quer por se dedicar à escrita
regular em vários órgãos de comunicação social, onde aparece frequentemente a
sua fotografia (estatuto que ele próprio reconhece quando invoca prejuízos em
razão da inclusão dessa fotografia no Apenso AJ), tal inclusão por forma alguma
constitui “actuação ilegítima dos órgãos de polícia criminal ou dos Magistrados
do Ministério Público então titulares do inquérito”, estando perfeitamente
justificada nos termos do preceito na sua mais correcta interpretação.
Temos pois e em suma que, contrariamente ao que sustenta, perfilando‑se
exigências de polícia ou de justiça previstas nessa norma, é, ao abrigo da
mesma, justificada (não envolvendo, como se expôs, qualquer arbitrariedade) e
conforme à letra e espírito do preceito, a utilização da fotografia em causa
(obtida de forma legal), sem consentimento do recorrente, pela forma e para os
fins referidos, nenhuma objecção, do ponto de vista do direito à imagem, podendo
fazer-se a essa utilização, do modo autorizado por essas exigências e pelo tempo
necessário em vista das mesmas.
De forma alguma essa utilização decorre assim de má interpretação do preceito –
nem a implicará a sua manutenção nos autos enquanto se mantiverem essas
exigências – não tendo o recorrente razão quando defende o contrário.
Também nesta vertente não poderá a sua argumentação ter acolhimento.
Importa depois decidir – de tal decisão dependerá a posição a assumir quanto às
demais vertentes da impugnação do recorrente – se existe ainda interesse na
manutenção nos autos da fotografia em causa e bem assim se a sua permanência
(que é autorizada – mas também, reflexamente, depende – da exigências de polícia
ou de justiça) no processo é lícita.
Defende o recorrente que, deduzida a acusação, deixou de ter relevo para
qualquer identificação nos autos a manutenção nos autos da fotografia em causa,
considerando por outro lado que, não tendo sido reconhecido – nem acusado – se
trata de prova que nada tem a ver com os factos, em tais termos sendo
irrelevante (mesmo como reforço da razão de ciência ou meio de esclarecimento),
do que, tudo, conclui tratar-se de elemento desnecessário aos autos cuja
permanência nos mesmos deixou de ser pertinente em termos probatórios,
contrariando as ideias de “necessidade” e “proporcionalidade” que a ela devem
presidir e bem assim o disposto nos preceitos legais que invoca, incluindo o
art.º 18.° da CRP.
É certo que, deduzida acusação, cessaram as necessidades investigatórias, não
estando já autorizada qualquer nova indicação de identidade (foi para a
identificação de eventuais suspeitos das práticas criminosas em investigação nos
autos e não para reconhecimento pessoal nos termos do art.º 147.° do CPP que se
usou o apenso em causa) com recurso ao Apenso AJ.
Todavia (e também neste aspecto a argumentação expendida na douta resposta, por
incontornável a sua razoabilidade, merece a nossa inteira concordância, sendo
que, por inexcedivelmente clara e incisiva a forma como é exposta, dela faremos
parcial transcrição) a pretendida extracção da sua fotografia ou de qualquer
outra nas mesmas circunstâncias (de pessoa que não foi identificada por qualquer
vítima nem acusada, assim integrando nos autos, definitivamente, o grupo
daqueles a quem podemos chamar, passe o termo e sem qualquer falta ao respeito,
de meros “figurantes” da fase de identificação do processo) seria “gravemente
atentatória do respeito dos direitos fundamentais constitucionalmente
consagrados, sendo, até, esse sim, o plasmar da consagração do principio do
livre arbítrio da actuação policial”.
Daí não encontrar na lei, naturalmente, nenhum suporte.
De facto, “...se se tivesse destruído o Apenso AJ, ou mesmo se nela fossem
apenas mantidas as fotografias das pessoas que vieram a ser constituídas
arguidas nos autos, de que forma é que a actuação investigatória poderia ser
sindicada? E como valorar o processo de identificação se tinham sido destruídas
as fotografias dos não suspeitos e dos não arguidos? Que Estado de Direito
sobreviveria a actuações policiais não sindicáveis e não transparentes?
“Aliás, se se tivessem destruído as fotografias referidas, como poderia o ora
recorrente pedir aos Tribunais que reparassem a alegada violação dos seus
direitos fundamentais?”
O apenso AJ constitui assim, já não, é certo, um meio de prova, “activo”, ou “de
sentido positivo” da/s condutas/s criminalmente perseguidas nos autos, mas um
elemento de prova que permite aferir “da transparência e do rigor da ...
investigação” e “reflecte o exercício da legalidade democrática contra o livre
arbítrio policial...”, nessa medida e em tais termos sendo indiscutível não
apenas o interesse mas mesmo a necessidade imperiosa da sua manutenção no
processo – até final de cujo desenrolar essa legalidade deve poder ser sindicada
– e bem assim a subsistência das exigências de justiça que autorizaram a
utilização, mediante a sua junção ao processo, da fotografia do recorrente e a
legalidade da decisão que a determinou que, contrariamente ao por ele invocado,
não violou qualquer princípio ou norma legal, maxime constitucional.
Na realidade, nem a junção, nem a manutenção da fotografia do recorrente no
apenso AJ puseram em causa os direitos que a lei quis tutelar (designadamente
com as normas invocadas pelo recorrente) em medida que exceda o cabível na
ressalva da parte final do n.º 2 do art.º 79.° do Código Civil, sendo em tais
termos a “retracção” desses direitos que envolvam justificada pelos valores que
informaram o estabelecimento dessa ressalva, seguramente prevalecentes sobre
aqueles direitos inclusivamente do ponto de vista constitucional:
Assim, se é indiscutível que a CRP salvaguarda – e bem assim as leis civil e
penal – o direito à imagem, indiscutível é também a necessidade de promover e
assegurar o exercício da acção da justiça em ordem a garantir a concretização
pelo Estado (através da acção dos seus órgãos, como sejam, na medida das suas
atribuições, as polícias) a quem compete, da justiça e da segurança, valores
constitucionais fundamentais consagrados cuja tutela amplamente justifica a
cedência, na medida do necessário, do direito em causa.
E se já a prevalência do interesse da prossecução da justiça sobre direitos
pessoais em nada colide com a letra ou o espírito da nossa lei “mãe” (que, antes
pelo contrário, a tem implícita e, em certos casos, sempre tendo em vista aquela
prossecução, até expressamente consagra) muito menos com essa letra e espírito
colide a prevalência sobre o direito pessoal em causa do interesse em garantir
que o exercício da acção dos agentes do Estado (como sejam, na medida das suas
atribuições, as polícias) na prossecução daqueles valores, nomeadamente a
justiça, possa ser sindicado em termos de se aferir da sua conformidade legal,
interesse necessariamente intrínseco a todo o texto constitucional, que na sua
mais pura essência visa a implementação de uma ordem legal transparente
“fiscalizável”.
Em suma, temos pois que nenhuma razão assiste ao recorrente em qualquer das
vertentes da sua argumentação, não merecendo a decisão recorrida, ponderada sob
que enfoque for, qualquer censura.
Deverá pois manter-se, o que se decidirá, sem prejuízo de se deixar consignado
que muito se respeitam e lamentam eventuais consequências desagradáveis que as
referências feitas pela comunicação social (decerto desacompanhadas das
justificações necessárias à compreensão do seu exacto alcance e das motivações
legais que a determinaram) à inclusão da sua fotografia no Apenso supra referido
possam ter tido para o recorrente, sendo porém, (e em consonância ainda com
referência também feita pelo MP na sua resposta) que tais consequências
decorrerão do tratamento que haja sido dado ao facto e não de ilegalidade do uso
da dita fotografia no processo em causa (legítimas que são, como se disse, a sua
inclusão e subsistência no processo até final).»
2.Veio, então, o recorrente interpor recurso de constitucionalidade através de
um requerimento em que disse:
«Dr. A., recorrente nos autos,
porque parte vencida nos autos – o que lhe confere legitimidade e interesse em
agir –, e porque o faz relativamente a decisão que não admite recurso ordinário
– artigo 400.º do C.P.P. – o faz em tempo, e sobre questão de
inconstitucionalidade suscitada nas alegações – e conclusões – de recurso, que
foi implicitamente desatendida,
vem interpor RECURSO para o Tribunal Constitucional,
que terá regime de subida imediata, nos autos, e com efeito devolutivo.
O fundamento invocado é o da inconstitucionalidade material decorrente da
aplicação das normas dos artigos 186.º do C.P.P. – “logo que se tornar
desnecessário para efeitos de prova” – e n.º 2 do art.º 79.º do Código Civil,
quando interpretadas estas no sentido de permitir “manter nos autos ‘retratos’
que, no momento da acusação, deixaram de ter relevo para qualquer
identificação”, na medida em que assim se “contraria o regime do artigo 18° da
C.Rep.”, por ofensa da ideia de “necessidade” e “proporcionalidade”, bem como se
“violar o princípio da proibição do arbítrio, segundo o qual se consideram
“inadmissíveis as diferenciações de tratamento desprovidas de justificação
razoável segundo critérios objectivos e a identidade de tratamento para
situações manifestamente desiguais”.
(Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição,
p. 1298, com referência ao Ac. TC. 644/94, DR, II, 1.2.95).
E, para mais, quando, na douta decisão recorrida se diz que:
“a pretendida extracção da sua fotografia ou de qualquer outra nas mesmas
circunstâncias (... de meros “figurantes” da fase de identificação do processo)
seria “gravemente atentatória do respeito dos direitos fundamentais
constitucionalmente consagrados...”, enquanto ocorre, no caso, “prevalência
sobre o direito pessoal em causa do interesse em garantir que o exercício da
acção dos agentes do Estado ... na prossecução daqueles valores, nomeadamente a
justiça, possa ser sindicado em termos de se aferir da sua conformidade legal”
(sic – !)»
Proferido despacho de convite ao aperfeiçoamento do requerimento de recurso, ao
abrigo do artigo 75.º-A da Lei do Tribunal Constitucional, respondeu o
recorrente o seguinte:
«A., recorrente nos autos,
vem, para os efeitos da douta notificação, e do artigo 75.º-A da Lei do Tribunal
Constitucional,
dizer que a razão da solicitação da intervenção desse Venerando Tribunal é fazer
apreciar a constitucionalidade da interpretação feita, no caso concreto, dos
artigos 125.º, 147.º, como 186.º, com referência à parte final do artigo 178.º,
n.ºs 1, in fine, e 2, todos do C.P.P., por violação dos artigos 26.º, n.ºs 1 e
2, com referência à ideia de necessidade e proporcionalidade – artigo 18.º, como
o anterior da lei fundamental –, quando se mantém nos autos imagem de terceiros,
nem sequer indiciados como suspeitos, se colhidas à sua revelia, sem seu
consentimento, se dessa manutenção nos autos, passada a fase de secretismo,
puder resultar prejuízo para a honra, reputação ou simples decoro da pessoa
retratada.
Requer, pois, fique este nos autos.»
O recorrente produziu alegações que concluiu do seguinte modo:
«a) – Porque o processo penal é considerado “direito constitucional aplicado” e,
num Estado de Direito, os direitos naturais se antepõem aos direitos da
colectividade, daqui decorre que estes só podem ser “restringidos nos casos
expressamente previstos pela Constituição, devendo as restrições limitar-se ao
necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente
protegidos”,
ou seja, face a exigências objectivas de “necessidade” e “proporcionalidade”,
pelo que qualquer diferente interpretação viola o referido artigo 18.° da C.
Rep., como ensinam Prof. F. Dias, in “Direito Processual Penal”, ed. de 1974,
págs. 96 e 97, e Gil Moreira dos Santos, in “O Direito Processual Penal”, pág.
38.
b) – Se se entende que dadas fotos ou documentos devem ficar apensos a um
processo em fase de inquérito, ou temos um caso de “apreensão para servir de
prova” – artigo 178.°, n.º 1 – in fine, do C.P.P.,
ou um meio de prova, e temos que aferir da sua legalidade – artigo 125.° do
C.P.P.
b.1) – Se era apreensão, desde que se concluiu que “nada têm a ver com os
factos” e o processo a que respeita fica aberto à consulta de todos, nos autos,
haveria que fazer cessar a exposição da “imagem” de que poderia advir lesão do
bom nome”.
b.1.1) – E isto é mais exigível se a manutenção visa só “garantir que o
exercício da acção dos agentes do Estado ... na prossecução daqueles valores,
nomeadamente a justiça, possa ser sindicado em termos de se aferir da sua
conformidade legal”, e já não, como “um meio de prova, “activo” ...da/s
conduta/s criminalmente perseguidas nos autos”,
Viola o regime dos artigos 186.° n.º 1, e 125.° do C.P.P., por ofensa dos
artigos 18.° n.º 2, e 26.°, n.ºs 1 e 2, da C. Rep, uma tal interpretação.
c) – Se, relativamente à inserção de vários nomes, o critério é o de que
“Figuras públicas há muitas”, mas não explica nem fundamenta a razão por que
dentre nada menos de 230 deputados na Assembleia da República, mais 25 deputados
portugueses no Parlamento Europeu, só foram escolhidas as personalidades que
constam do apenso,
ou dentre os responsáveis políticos com alguma notoriedade e militância
partidária, não se encontra ninguém do Partido Comunista Português ou da
coligação CDU/Os Verdes, enquanto foram incluídas personalidades de todos os
outros partidos com assento parlamentar,
ou ainda por que razão, de entre os escritores, analistas, comentadores e
colaboradores regulares da comunicação social, só foram escolhidos os que alguma
vez tiveram oportunidade de se pronunciar sobre o segredo de justiça, as escutas
telefónicas, a prisão preventiva ou mesmo aspectos ligados ao processo Casa Pia,
ali não figurando nenhuma “quota” de outras categorias de figuras públicas
(directores de órgãos de comunicação social, banqueiros, empresários,
magistrados, etc., etc.),
é violar o princípio da proibição do arbítrio, segundo o qual se consideram
“inadmissíveis as diferenciações de tratamento desprovidas de justificação
razoável segundo critérios objectivos e a identidade de tratamento para
situações manifestamente desiguais” (Gomes Canotilho, Direito Constitucional e
Teoria da Constituição, 7.ª edição, p. 1298, com referência ao Ac. TC. 644/94,
DR, II, 1.2.95),
ou seja, inconstitucionalidade material, por ofensa do regime dos artigos 13.°,
n.ºs 1 e 2, da C. Rep.
d) – Fundamentar em “exigências de polícia ou de justiça”, tuteladas no n.º 2 do
art.º 79.º do Código Civil, a manutenção da fotografia do recorrente nos autos,
e admitir manter esse elemento probatório por entender que “a um direito
fundamental como é o direito à imagem – “direito pessoal em causa”, se reconhece
no douto aresto –, se deve sobrepor um outro interesse quando, in casu, se
reconhece que não é de polícia nem de justiça,
é interpretar o regime dos artigos 125.° e 147.° do C.P.P. em colisão com o
regime dos artigos 26.°, n.º 1, e 18.°, n.º 3, da C. Rep.
Termos em que deve ser declarada a inconstitucionalidade dos artigos 147.°,
186.°, n.º 1, e 125.° do C.P.P., por ofensa do regime dos artigos 26.°, n.º 1, e
18.°, n.º 3, da C. Rep., quando interpretados, como no caso, no sentido de que
devem manter-se nos autos, ainda que agora para “prova ... da “transparência e
rigor” “da ... investigação” e “exercício da legalidade democrática contra o
livre arbítrio policial” (sic), elementos indiciários utilizados na fase de
inquérito e relativos à imagem e bom nome de cidadão que ali é descrito como
“mero figurante da fase da identificação” (sic), demais se a recolha da sua
imagem não tem nada a ver com a notoriedade do retratado e da manutenção desse
elemento no processo, atenta a tendencial publicidade do processo, pode advir
lesão desses direitos fundamentais, direitos cuja garantia é para o próprio
Estado “tarefa fundamental” – artigo 9.°, alínea b), da lei “mãe”, na expressão
da douta decisão que suscitou este recurso.
Pensa que, na procedência deste recurso,
se fará
JUSTIÇA»
Por seu turno, o Ministério Público contra-alegou, concluindo o seguinte:
«1.º – O objecto dos recursos de constitucionalidade, tipificados na alínea b)
do n.º 1 do artigo 70.° da Lei n.º 28/82, tem carácter necessariamente
normativo, cabendo ao recorrente o ónus de suscitar, durante o processo e em
termos processualmente adequados, uma questão de inconstitucionalidade
normativa, indicando os preceitos legais, integradores da “ratio decidendi”, e
especificando a concreta interpretação normativa que deles foi feita e padece da
apontada inconstitucionalidade.
2 – Limitando-se o recorrente, durante o processo, a questionar a legalidade e
conformidade a certos princípios constitucionais de um concreto acto processual
– a manutenção nos autos da respectiva fotografia, utilizada para o efeito de
identificação de possíveis suspeitos de práticas criminosas – sem questionar a
constitucionalidade da norma que verdadeiramente constitui “ratio decidendi” do
acórdão recorrido – que consta do artigo 79.°, n.º 2, do Código Civil – não se
verificam os pressupostos do recurso interposto, pelo que não se deverá dele
conhecer.»
O recorrente respondeu à questão prévia suscitada pelo Ministério Público do
seguinte modo:
«1.º A asserção suscitada agora, já o fora anteriormente pela MMª
Conselheira-Relatora, antes de mandar produzir alegações,
2.° que, face ao esclarecimento-aperfeiçoamento, mandou prosseguir o processo.
3.° Reconhecendo o brilho da argumentação que sustenta a arguição da “questão
prévia”, a que nos habituou o seu Ilustre subscritor,
4.° cremos que não deixou de se observar os princípios que permitem e legitimam
o controlo da constitucionalidade.
De facto,
5.° na fundamentação do recurso interposto para a Veneranda Relação, analisando
os pontos 9 a 15 dessa peça, parece ter que se concluir que se reagia contra uma
interpretação do artigo 79.°, n.º 2, do C.C. que, aproveitando a sua
interpretação face às exigências do processo penal, permitisse uma limitação a
um direito de personalidade,
6.° onde se viole a regra da “proibição do arbítrio” – n.ºs 37 e 38 dessa peça,
7.° ou fazendo prevalecer o regime dos artigos 186.º e 188.º do C.P.P. – n.ºs
56, 57 e conclusão c) –, mas aqui, violando a regra da “necessidade e
proporcionalidade”.
8.° A questão central é a interpretação do n.º 2 do artigo 79.º do C.C., quando
em confronto com o artigo 18.º da C.Rep.,
9.° ou, o que é o mesmo, se o regime do n.º 2 do artigo 79.º do C.C. consagra,
em termos constitucionais, a interpretação que faça prevalecer às regras da
“necessidade” e “proporcionalidade”, meios de prova, se estes forem colhidos com
base em critérios de “livre arbítrio”.
10.° Isso parece ser claro no requerimento de interposição de recurso para o
Venerando Tribunal Constitucional,
11.º como na seriação das “questões fundamento”, que antecedem a formulação da
“questão-resolução” – alínea c) das conclusões das alegações neste Tribunal:
viola – ou não – a Constituição – artigo 26.º, n.º 1 – fundamentar no n.º 2 do
artigo 79.º do C.C., com apelo a “exigências de justiça ou de polícia”, o
direito à imagem, se a situação nada tem a ver com necessidades de polícia nem
de justiça, porque o recurso a regras do processo penal que para tal se
invocavam nunca tal podia legitimar, tendo em conta as regras constitucionais da
“proibição do livre arbítrio” e da “necessidade” e “proporcionalidade” – artigo
18.°, n.º 3, da C.Rep.?
12.° Esta a conclusão que parece inferir-se da formulação da síntese conclusiva,
e que parece ter sido entendida como tal aquando do douto despacho notificado ao
recorrente, em 15 de Dezembro p.p., quando, suscitada a questão do objecto do
recurso, se mandou prosseguir para alegações.
Termos em que se requer que, junto este aos autos, se conheça da
inconstitucionalidade – imoralidade da questão que se traduz numa “tranquila”
exposição de um qualquer cidadão a “linchamento moral”.»
Cumpre decidir (após inscrição do processo em tabela, discussão com base num
“memorando” apresentado pela primitiva relatora e mudança de relator por
vencimento).
II. Fundamentos
A) Questão prévia
3.Há que começar por tratar da questão prévia suscitada pelo Ministério Público
nas suas contra-alegações, a qual, a proceder, conduziria ao não conhecimento do
recurso.
Segundo o Ministério Público, o recorrente limitou-se a, durante o processo,
“questionar a legalidade e conformidade a certos princípios constitucionais de
um concreto acto processual – a manutenção nos autos da respectiva fotografia,
utilizada para o efeito de identificação de possíveis suspeitos de práticas
criminosas”, sem, porém, suscitar a inconstitucionalidade da norma que teria
constituído ratio decidendi do acórdão recorrido – o artigo 79.°, n.º 2, do
Código Civil.
O requerimento do presente recurso de constitucionalidade define, porém, como
objecto do recurso a apreciação de uma questão de constitucionalidade normativa,
mais precisamente, a apreciação da
«inconstitucionalidade material decorrente da aplicação das normas dos artigos
186.º do C.P.P. – “logo que se tornar desnecessário para efeitos de prova” – e
n.º 2 do art.º 79.º do Código Civil, quando interpretadas estas no sentido de
permitir “manter nos autos ‘retratos’ que, no momento da acusação, deixaram de
ter relevo para qualquer identificação”, na medida em que assim se “contraria o
regime do artigo 18° da C.Rep.”, por ofensa da ideia de “necessidade” e
“proporcionalidade”, bem como se “violar o princípio da proibição do arbítrio,
segundo o qual se consideram “inadmissíveis as diferenciações de tratamento
desprovidas de justificação razoável segundo critérios objectivos e a identidade
de tratamento para situações manifestamente desiguais”».
Consultando as alegações produzidas pelo recorrente junto do Tribunal da Relação
de Lisboa, verifica-se que estas invocam, desde o seu início, também o artigo
79.º do Código Civil, e a interpretação que o recorrente considera mais
correcta, no sentido de impor a eliminação dos autos da sua fotografia. Nas
conclusões das alegações, por sua vez, pode ler-se que
«manter “junto aos autos”, para a prevista “devassa” e “deleite da maledicência”
de uns quantos, é violar o princípio da proibição do arbítrio, segundo o qual se
consideram “inadmissíveis as diferenciações de tratamento desprovidas de
justificação razoável segundo critérios objectivos e a identidade de tratamento
para situações manifestamente desiguais”.
(…)
manter nos autos “retratos” que, no momento da acusação, deixaram de ter relevo
para qualquer identificação (?), contraria o regime do artigo 18.° da C.Rep.».
E ainda:
«Fundamentar em “exigências de polícia ou de justiça”, tuteladas no n.º 2 do
art.º 79.º do Código Civil, a manutenção da fotografia do recorrente nos autos,
é fazer errada interpretação daquele preceito,
bem como da noção de Offentlichkeit, que envolve a aparição ou utilização da
imagem de alguém no espaço público, incluindo o da comunicação social, e não
para quaisquer outros, já que, como ensinam Vital Moreira e Gomes Canotilho:
“O direito à imagem tem um conteúdo assaz rigoroso, abrangendo, primeiro, o
direito de cada um de não ser fotografado nem ver o seu retrato exposto em
público sem o seu consentimento (...)” (Constituição da República Portuguesa,
3.ª ed., p. 181, itálico nosso).
Isto porque a compressão da privacidade apenas atinge “os factos ou a actividade
que tem que ver com a notoriedade da pessoa”. (Cunha Rodrigues, Lugares do
Direito, p. 36), o que não é nunca o caso de Quem “nada tem a ver com os
factos”.»
Está fora de dúvida que o recorrente, ao invocar, perante o tribunal a quo, a
desconformidade com a Constituição, não chega a efectuar uma enunciação expressa
do critério normativo, recondutível a determinado (e apenas a um) preceito
legal, que considerava violador da Constituição. Entende-se, porém, que resulta
das expressões transcritas ainda a indicação de um critério normativo, e que,
confrontado com essas alegações, o tribunal recorrido foi posto em condições de
saber que lhe era posta uma questão de conformidade com a Constituição, não
apenas do concreto acto de manutenção dos autos da fotografia do recorrente, mas
dos critérios normativos (da “interpretação daquele preceito”, que é o artigo
79.º do Código Civil) que a permitiam – isto é, com uma questão de
constitucionalidade normativa.
Improcede, pois, a questão prévia do não conhecimento do recurso por falta de
suscitação da questão de constitucionalidade da dimensão normativa que se
pretende ver apreciada.
É certo que se regista, mesmo posteriormente, alguma flutuação do recorrente na
identificação precisa das disposições legais a que imputa essa dimensão
interpretativa. Designadamente, na fórmula com que encerrou as suas alegações
refere-se ao julgamento de inconstitucionalidade “dos artigos 147.°, 186.°, n.º
1, e 125.° do C.P.P., por ofensa do regime dos artigos 26.°, n.º 1, e 18.°, n.º
3, da C. Rep., quando interpretados, como no caso, no sentido de que devem
manter-se nos autos, ainda que agora para “prova ... da “transparência e rigor”
“da ... investigação” e “exercício da legalidade democrática contra o livre
arbítrio policial” (sic), elementos indiciários utilizados na fase de inquérito
e relativos à imagem e bom nome de cidadão que ali é descrito como “mero
figurante da fase da identificação” (sic), demais se a recolha da sua imagem não
tem nada a ver com a notoriedade do retratado e da manutenção desse elemento no
processo, atenta a tendencial publicidade do processo, pode advir lesão desses
direitos fundamentais, direitos cuja garantia é para o próprio Estado “tarefa
fundamental” – artigo 9.°, alínea b), da lei “mãe”, na expressão da douta
decisão que suscitou este recurso”.
Mas, além de já não estar então em causa o requisito da suscitação da questão de
inconstitucionalidade “durante o processo”, a verdade é que resulta dessas
alegações (v. os n.ºs 22 a 27) que o recorrente impugna a conformidade com a
Constituição da interpretação do artigo 79.º, n.º 2, do Código Civil segundo a
qual pode manter-se nos autos a sua fotografia, devido a “exigências de polícia
ou de justiça”. E a mesma referência a esta norma encontra-se, aliás,
posteriormente, na resposta à questão prévia suscitada pelo Ministério Público.
Deixar-se-á, pois, de lado o conjunto de disposições do Código de Processo Penal
relativas à prova (aos meios de prova, e, designadamente, às apreensões) a que o
recorrente imputa a interpretação a apreciar, no final das suas alegações (os
artigos “125.º, 147.º e 186.º, com referência à parte final do artigo 178.º,
n.ºs 1, in fine, e 2, todos do Código de Processo Penal”). Substancialmente, a
questão de constitucionalidade é, aliás, a mesma, reportando-se à interpretação
do n.º 2 do artigo 79.º do Código Civil no sentido de permitir manter nos autos
“retratos” de “figuras públicas” utilizados na fase de inquérito sem
consentimento do retratado, para identificação dos arguidos em processo penal
que ainda não tem decisão transitada em julgado.
Tomar-se-á, pois, conhecimento do recurso com tal objecto.
4.Antes de prosseguir importa, porém, precisar alguns pontos relativos à
delimitação da dimensão normativa em apreciação, que tem de corresponder, quer à
que foi definida pelo recorrente no requerimento de recurso, quer à norma
aplicada como ratio decidendi pelo tribunal recorrido.
Em primeiro lugar, não está em causa (pelo menos directamente) a apreciação da
legalidade da recolha e utilização da fotografia do recorrente, em si mesma, ou
do meio de identificação ou de prova que com ela se pretendeu obter. A eventual
ilicitude do emprego da fotografia do recorrente – utilizada sem o seu
consentimento, recorde-se – apenas pode relevar enquanto pressuposto da dimensão
normativa em análise, para a consequência jurídica pretendida pelo recorrente, e
que é a sua eliminação dos autos e devolução ao recorrente.
Da mesma forma, com a apreciação da dimensão normativa indicada não está o
Tribunal Constitucional a pronunciar-se, directa ou indirectamente, sobre a
legalidade, e possibilidade de utilização no processo, do meio de identificação
e de prova – um “álbum” de fotografias de “figuras públicas” – para o qual foi
utilizada a fotografia do requerente, ou sobre a manutenção da necessidade de
identificação, e prova da identidade dos arguidos em julgamento (isto é, a
afirmação de que, alegadamente, as fotografias “deixaram de ter relevo para
qualquer identificação”). E também não está em causa no presente recurso a
apreciação do critério – aleatório ou alegadamente “arbitrário” – que presidiu à
elaboração do meio de identificação e prova em causa, consistente na busca de
pessoas pertencentes ao universo de “figuras públicas”, identificado pelas
vítimas.
Estas questões terão de ser apreciadas no local próprio, que é, designadamente,
o processo penal em que a imagem do recorrente, constante da sua fotografia, foi
utilizada.
O que está em causa é, apenas, como resulta do pedido efectuado pelo recorrente,
a existência de uma obrigação, para protecção do seu direito à imagem, de
eliminação da fotografia dos autos e sua devolução ao recorrente,
independentemente da valoração que a sua recolha e utilização possa ter, quer no
processo penal em questão quer até noutros processos. E pode, mesmo, dizer-se
que a manutenção da possibilidade de um juízo sobre tal recolha e emprego, para
identificação e prova, não são irrelevantes para o juízo a fazer sobre a
conformidade com a Constituição da dimensão normativa em análise.
Por fim – mas não por último –, tem de deixar-se bem vincado o facto de também
não estar em causa qualquer juízo sobre condutas que se tenham referido à
presença da fotografia do recorrente nos autos, ou, mesmo, sobre apreciações
relativas ao sentido dessa presença, designadamente em confronto com o direito à
honra (quer à “honra propriamente dita”, quer ao bom nome e reputação
profissional, ao crédito pessoal ou ao simples decoro) do recorrente. É óbvio –
deveria mesmo ser desnecessário referir – que, objectivamente, do emprego da
fotografia em causa, inserindo-a no referido “álbum” de fotografias de “figuras
públicas” que foi utilizado para identificação de futuros arguidos no processo,
não resulta, por si só, a imputação de qualquer facto ou a formulação de
qualquer juízo de valor, sequer sob a forma de suspeita, relativo ao recorrente
ou a qualquer outra das muitas e respeitadas “figuras públicas” que aí se
encontram. Se tal utilização foi objecto de explorações, designadamente
jornalísticas, em notícias, títulos ou artigos de opinião, lesivos da honra do
recorrente pela sua associação à matéria em causa no processo penal em questão,
então tais condutas deverão ser igualmente objecto de valoração e julgamento na
sede própria, eventualmente como caluniosas ou difamatórias, com relevância
civil e/ou penal. E não está também excluído que, se o emprego da fotografia do
recorrente pelos órgãos de polícia criminal ou pelo Ministério Público tiverem
sido ilícitos, e lhe tiver causado danos, tais condutas lesivas fundamentem uma
correspondente acção, intentada pelo lesado.
Não é, porém, este julgamento que pode estar agora em questão no presente
recurso, limitado, como é, à apreciação de questões de constitucionalidade, e,
no presente caso, de constitucionalidade de uma norma que apenas se refere à
manutenção nos autos, ou eliminação e devolução ao recorrente, da sua
fotografia.
Não pode, aliás, considerar-se que a norma a que o recorrente se refere no
requerimento de recurso, na parte em que se refere ao facto de “dessa manutenção
nos autos, passada a fase de secretismo, [poder] resultar prejuízo para a honra,
reputação ou simples decoro da pessoa retratada”, tenha sido aplicada pelo
tribunal recorrido. Este concluiu, antes, que por lamentar “eventuais
consequências desagradáveis que as referências feitas pela comunicação social
(decerto desacompanhadas das justificações necessárias à compreensão do seu
exacto alcance e das motivações legais que a determinaram) à inclusão da sua
fotografia no Apenso”, dizendo que “tais consequências decorrerão do tratamento
que haja sido dado ao facto”, mas não de “ilegalidade do uso da dita fotografia
no processo em causa”, que considerou legítimo.
5.Tomar-se-á, pois, conhecimento do recurso de constitucionalidade, tendo por
objecto a apreciação da conformidade com a Constituição da norma do artigo 79.º,
n.º 2, do Código Civil, na interpretação segundo a qual pode ser mantida nos
autos, por “exigências de polícia ou de justiça”, a imagem de terceiro, não
indiciado como suspeito, que foi, conjuntamente com outras fotografias de
figuras públicas, utilizada sem seu consentimento, durante o inquérito, para
identificação pelas vítimas de suspeitos que são arguidos em processo penal,
ainda sem decisão transitada em julgado.
B) Questão de constitucionalidade
6.O recorrente entende que a norma em questão viola os artigos 26.º, n.º 1, e
18.º da Constituição, este último na medida em que consagra a exigência de
necessidade e de proporcionalidade para as restrições a direitos, liberdades e
garantias – no caso, o direito à imagem.
Ora, é sem dúvida correcta a conclusão de que a norma em causa contende com um
direito fundamental submetido ao regime dos direitos, liberdades e garantias,
que é o direito à imagem. Já a invocação do direito à honra – enquanto ideia ou
“imagem” moral externa da pessoa –, essa, está deslocada na medida em que, como
se referiu, da mera inclusão da imagem ou retrato do recorrente no “álbum”
constante dos autos não resulta objectivamente qualquer imputação de facto ou
formulação de juízo de valor (para além da qualificação como “figura pública”)
que sejam depreciativos, mesmo apenas para o “simples decoro” (artigo 79.º, n.º
3, do Código Civil) do retratado, e em que – repete-se – a “exploração” dessa
inclusão em termos difamatórios ou caluniosos deverá ser objecto de apreciação
noutra sede.
O direito à imagem é afectado pela dimensão normativa em apreciação, na medida
em que se possa configurar como direito a controlar a captação, recolha e
utilização de sinais visualmente identificadores da pessoa, e em particular do
retrato (o Código Civil, no artigo 79.º, n.º 1, apenas se refere, aliás, ao
retrato, que é o que está em questão no presente caso). Com efeito, a manutenção
nos autos do retrato do recorrente, contra a sua vontade (depois, aliás, de a
sua inclusão ter ocorrido também sem consentimento, ou, sequer, conhecimento),
configura uma restrição a essa possibilidade de controlo da utilização do
retrato, e, portanto, uma limitação ao direito à imagem.
7.O facto de a manutenção do retrato do recorrente nos autos, contra a sua
vontade, afectar o “âmbito de protecção” do direito à imagem não legitima,
porém, a conclusão imediata, sem mais, de que qualquer solução normativa que a
permita será inconstitucional.
Com efeito, além dos limites a que, em abstracto, o direito à imagem está
submetido – como os decorrentes das necessidades de polícia ou de justiça, ou,
para as figuras públicas, da compatibilização com outros direitos fundamentais,
como o direito à informação (situação, esta última, que não está em causa no
presente recurso) – há que ter em conta a necessidade de compatibilização, na
situação concreta, entre o direito à imagem e outros direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos, alguns igualmente elevados pelo legislador
constitucional ao estatuto de “direitos, liberdades e garantias”.
Não está aqui em causa apenas, nem é aqui relevante de modo decisivo – note-se
bem – a necessidade de um controlo, público (pela opinião pública) ou pelos
órgãos superiores de administração da policia e das magistraturas, do desempenho
dos sujeitos processuais que levou à inclusão da fotografia do recorrente nos
autos, ou, em geral, do inquérito em que esta se inseriu. Nem é necessário tomar
posição na questão de saber se o emprego e utilização da fotografia do
recorrente foram ilícitos – questão que se deixa em aberto, por não competir a
este Tribunal a sua apreciação.
Mesmo supondo tal ilicitude, a referida compatibilização com outros direitos ou
interesses constitucionalmente relevantes apresenta-se especialmente delicada
quando, como é o caso, o retrato do recorrente foi já utilizado no processo
penal, com consequências processuais significativas para terceiros –
designadamente, para os arguidos em processo ainda sem decisão transitada em
julgado, que tenham sido identificados com base no conjunto das fotografias,
entre as quais se contou a do recorrente. Devido a tal utilização (e tenha ela
sido, ou não, legalmente permitida), passa a perfilar-se um conflito de
interesses tutelados como direitos fundamentais (cf., a propósito da destruição
de elementos obtidos mediante a intercepção de telecomunicações, recentemente, o
Acórdão n.º 660/2006, in www.tribunalconstitucional.pt), entre os arguidos e os
titulares do direito à imagem utilizada, que não é eliminado apenas pela simples
proibição de valoração do “álbum” como elemento de prova. Com efeito, a
eliminação, com devolução ao recorrente, das imagens (no caso, do “álbum”)
utilizadas para identificação dos arguidos, que estes poderiam pretender invocar
também em seu benefício, para contestar a identificação efectuada, e, até, para
invocação e prova da ilegalidade de actos do inquérito, constitui, também, uma
compressão das garantias de defesa do arguido, particularmente notória na
comparação da sua posição com a da acusação, que elaborou o meio de
identificação em causa e se baseou nele para a acusação.
Nestas circunstâncias, a eliminação da fotografia dos autos e sua devolução ao
recorrente, com a consequente destruição (total ou parcial, mas possivelmente na
parte relevante) do meio que serviu para a identificação de arguidos sem decisão
transitada em julgado (antes ainda a ser julgados), afectaria sem dúvida também
as possibilidades de defesa dos arguidos. Independentemente da legalidade do
emprego da fotografia em causa e do meio de identificação a que se recorreu, o
que é certo é que a impossibilidade de o analisar e contraditar, na sua versão
originária (incluindo a fotografia do recorrente), limitaria agora as “garantias
de defesa” dos arguidos (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição) ainda sem decisão
transitada em julgado. E tal eliminação inviabilizaria, ainda, as possibilidades
de prova e de controlo da ilegalidade do inquérito, em acção intentada contra o
Estado pelos arguidos que tenham sido lesados pela utilização de meios ilegais
de identificação.
Não está em causa a necessidade, ou a possibilidade, de cometimento de novos
ilícitos, ou de prolongamento dos efeitos de ilícitos passados (isto, mesmo
supondo que o emprego e utilização da fotografia do recorrente foram ilícitos –
questão que se deixa em aberto, por não competir a este Tribunal a sua
apreciação), mediante a manutenção da fotografia do recorrente nos autos. Antes
a necessidade (ou melhor, a possibilidade) dessa manutenção, para tutela de
interesses dos terceiros afectados, igualmente elevados ao estatuto de
“direitos, liberdades e garantias”, se compreenderá, se tal for o caso, ainda
como um efeito causado pela utilização ilícita da fotografia, que pode
igualmente ser invocado pelo titular do direito à imagem que nessa medida sofra
prejuízos.
Já se vê, pois, que, ainda que se reconheça que a manutenção da imagem do
recorrente nos autos afecta o direito à imagem deste, que nessa medida não
controla o seu emprego – como não controlou a sua utilização no inquérito –, tal
manutenção pode ser justificada no caso concreto, à luz de um juízo de
ponderação, pela protecção dos interesses dos arguidos “contra os quais” ela foi
utilizada, para sua identificação (e, em particular, das suas garantias de
defesa) e pelo próprio controlo e prova da eventual ilegalidade do meio de
identificação e de prova, pelo menos, enquanto o processo penal em que este foi
utilizado ainda não tiver decisão transitada em julgado.
Não pode, aliás, dizer-se que a afectação da imagem do recorrente, enquanto
direito ao controlo da recolha e utilização do retrato (à “auto-determinação” em
relação à informação pessoal em que consiste a imagem), seja, no presente caso,
um efeito desproporcionadamente gravoso, mesmo para um terceiro, designadamente,
considerando a ausência de um seu objectivo sentido depreciativo – e
desconsiderando, por isso, eventuais atentados à honra ou ao decoro, e a
responsabilidade dos seus autores (ou mesmo de quem utilizou a fotografia, por
ter indirectamente causado tais ofensas) –, designadamente em confronto com a
posição dos arguidos no processo penal, que podem ter de recorrer às fotografias
em causa para se defender, ou aos lesados por actos de investigação processual
penal violadores da lei (incluindo, até, outros titulares de fotografias
incluídas no processo).
Conclui-se, assim, ponderando com o direito à imagem do requerente os
interesses, também constitucionalmente tutelados, que pode servir a preservação
da fotografia em questão, constante dos autos, que a norma em apreciação não é
inconstitucional, pelo que é de negar provimento ao presente recurso.
III. Decisão
Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 79.º, n.º 2, do Código
Civil, na interpretação segundo a qual pode ser mantida nos autos, por
“exigências de polícia ou de justiça”, a imagem de terceiro, não indiciado como
suspeito, que foi, conjuntamente com outras fotografias de figuras públicas,
utilizada sem seu consentimento, durante o inquérito, para identificação pelas
vítimas de suspeitos que são arguidos em processo penal ainda sem decisão
transitada em julgado.
b) Consequentemente, negar provimento ao presente recurso e condenar o
recorrente em custas, com 20 (vinte ) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa,6 de Fevereiro de 2007
Paulo Mota Pinto
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues (vencido quanto à questão prévia do conhecimento, pois
entendo que o recorrente não suscitou em termos adequados, ou seja, em termos
tais que dessem suficientemente a entender ao Tribunal da Relação - que se
postava uma questão de constitucionalidade de uma certa dimensão normativa do
art.º 79.º, n.º 2 do Cód. Civil que se lhe impunha conhecer).
Maria Fernanda Palma (vencida nos termos de declaração de voto junta).
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Tendo sido a primeira relatora do Acórdão, voto vencida pelas razões constantes
do Memorando que, então, apresentei e que aqui reproduzo, por corresponder ainda
à minha posição actual.
Assim, resulta da solução dada à questão prévia que o problema de
constitucionalidade normativa objecto do presente recurso consiste na norma
segundo a qual se permite manter nos autos elementos que já não funcionam como
material probatório, por deixarem de ter relevo para a prova no momento da
acusação (isto é, no caso concreto, fotografias que já não relevam para qualquer
identificação).
O problema que se coloca é, portanto, o de saber se tal norma, ancorada pelo
tribunal recorrido no artigo 79º, nº 2, do Código Civil, e nos artigos 29º e
340º, nº 4, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal, restringe de modo
injustificado algum direito fundamental, tal como o direito à imagem ou se os
valores constitucionais do Processo Penal ainda justificarão aquele critério
normativo.
A resposta a tal questão tem de considerar o seguinte:
a) Os valores constitucionais do Processo Penal visam proteger um processo
justo e equitativo, o que abarca a salvaguarda de garantias de defesa e a
preservação de um núcleo irredutível de protecção da pessoa do arguido, mas
também a realização do Direito e a realização da justiça penal.
Assim, da conjugação dos artigos 32º, nº 1, 2º, e 20º, da Constituição,
extrai‑se, para o que aqui nos interessa, que a restrição de direitos
fundamentais pelo Processo Penal tem limitações irredutíveis, derivadas de um
princípio de justiça processual e da própria preservação no Processo Penal da
dignidade da pessoa humana.
b) Do enquadramento constitucional do Processo Penal resulta também que as
restrições aos direitos fundamentais são orientadas pelas necessidades inerentes
a um Processo Penal justo, segundo uma lógica de adequação e de
proporcionalidade.
De acordo com estas considerações, a conclusão que se impõe é a de que as
restrições ao direito à imagem inerentes às necessidades de investigação no
inquérito são justificáveis no plano de uma ponderação de valores que se
aproxime da lógica de um estado de necessidade de investigação, admitindo‑se,
eventualmente, que o visado pelas medidas investigatórias possa não ser
suspeito.
Porém, a manutenção no processo da imagem de um não suspeito sem qualquer
directa relação com a matéria da acusação levanta um nítido problema de
necessidade e de adequação.
Com efeito, a razão invocada pelo Ministério Público – o controlo e
transparência da investigação – como justificação para manter nos autos
fotografias de um não suspeito apenas utilizadas para fins como confirmar a
plausibilidade da identificação dos arguidos ou tornar compreensíveis os métodos
de investigação, consubstancia uma restrição do direito à imagem (no caso de não
existir consentimento mesmo que presumido) em que qualquer lógica de um estado
de necessidade investigatório não tem cabimento.
Somente a atribuição de um valor absoluto a quaisquer fins de utilidade
processual justificaria que estes se pudessem sobrepor à restrição de direitos
fundamentais de pessoas não suspeitas e não arguidas. Uma tal visão, que
envolveria e sacrificaria os direitos fundamentais de todas as pessoas não
suspeitas e não arguidas na realização dos fins do Processo Penal, pressuporia
que a realização da justiça penal deveria ser colocada num patamar de valor
absoluto que admitiria a instrumentalização utilitarística dos direitos de
terceiros à realização não só dos fins principais do Processo Penal como também
de fins colaterais e puramente instrumentais.
Sendo, sobretudo, esta última situação a que se revela nos presentes autos,
entendo que deveria ser julgada inconstitucional a norma sub judice, por
violação dos artigos 18º, nº 2, e 26º, da Constituição, relativamente à qual o
Tribunal Constitucional entendeu também, como a primeira relatora já
propugnara, não ser atendível a questão prévia.
Maria Fernanda Palma