Imprimir acórdão
Processo nº 1136/2006.
Plenário.
Relator: Conselheiro Bravo Serra
I
1. Em 21 de Dezembro de 2006 um grupo de quarenta e oito
Deputados à Assembleia da República em efectividade de funções pertencentes ao
Grupo Parlamentar do Partido Social Democrata veio deduzir perante este
Tribunal, ao abrigo dos números 4 e 6 do artigo 278º da Constituição, pedido de
fiscalização abstracta preventiva da constitucionalidade das seguintes normas
constantes dos, também seguintes, preceitos do Decreto da Assembleia da
República nº 94/X, diploma que, revestindo a forma de lei orgânica, aprovou a
Lei das Finanças das Regiões Autónomas e revogou a Lei Orgânica nº 13/98, de 24
de Fevereiro, diploma esse aprovado em 30 de Novembro de 2006 e enviado para
promulgação do Presidente da República em 15 de Dezembro de 2006: –
– “Artigo 3º, por, contrariando as disposições constitucionais e estatutárias a
seguir mencionadas, violar, desde logo, o princípio constitucional da
prevalência hierárquica dos Estatutos Político-Administrativos das Regiões
Autónomas em face das restantes leis, mesmo as de valor reforçado, ínsito na
conjugação dos artigos l61º, alínea b), 168º, n.º 6 alínea f), 226º, 280º, n.º 2
alínea c), e 281º, n.º 1 alínea d), da Constituição da República Portuguesa
(CRP), em consequência do desrespeito pelo disposto nos artigos 97º, n.º 2, do
Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores (EPARAA) e 105º,
n.º 2, do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira
(EPARAM), e ainda por violar o princípio contido no artigo 227º, n.º 1 alínea j)
da CRP”;
– “Artigo 7º, n.º 5, e 37º, n.ºs 2 a 7, por, contrariando as disposições
constitucionais e estatutárias a seguir mencionadas, violar, desde logo, o
princípio constitucional da prevalência hierárquica dos Estatutos
Político-Administrativos das Regiões Autónomas em face das restantes leis, mesmo
as de valor reforçado, ínsito na conjugação dos artigos 161º, alínea b), 168º,
n.º 6 alínea f), 226º, 280º, n.º 2 alínea c), e 281º, n.º 1 alínea d), da CRP,
em consequência do desrespeito pelo disposto no artigo 118º, n.º 2, do EPARAM, e
ainda por violar o princípio contido no artigo 227º, n.º 1 alínea j) da CRP”;
– “ Artigo 35º, por, contrariando as disposições constitucionais e estatutárias
a seguir mencionadas, violar, desde logo, o princípio constitucional da
prevalência hierárquica dos Estatutos Político-Administrativos das Regiões
Autónomas em face das restantes leis, mesmo as de valor reforçado, ínsito na
conjugação dos artigos 161º, alínea b), 168º, n.º 6 alínea f), 226º, 280º, n.º 2
alínea c), e 281º, n.º 1 alínea d), da CRP, em consequência do desrespeito pelo
disposto no artigo 117º do EPARAM, e ainda por violar o princípio contido no
artigo 227º, n.º1 alínea j) da CRP”;
– “Artigos 19º, n.º1, 37º, n.ºs 2 a 7, 38º, n.ºs 2 e 3, e 66º, por violação do
princípio do Estado de Direito democrático e do princípio da confiança nele
ínsito, contidos nos artigos 2º e 9º da CRP, e do regime autonómico regional
previsto no artigo 6º, nº 1, da CRP”;
– “Artigo 36º, por violação do princípio da solidariedade nacional previsto nos
artigos 225º, n.º 2, 227º, n.º1 alínea j), e 229º, n.º 1, da CRP”;
– “Artigos 2º ‘in fine’ e 57º, por violação da reserva de Estatuto prevista no
artigo 227º, n.º1 alínea h), da CRP”;
– “Artigo 62º, n.º1, por violação da competência legislativa exclusiva das
Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas prevista nos artigos 232º, n.º1,
e 227º, n.º1 alínea i), da CRP.”
Em síntese, os requerentes estribam o seu pedido nas seguintes
considerações: –
– os estatutos político-administrativos das Regiões Autónomas
têm, constitucionalmente, como se extrai da alínea c) do nº 1 do artigo 280º e
da alínea d) do nº 1 do artigo 281º, um e outro da Lei Fundamental (ao
atribuírem ao Tribunal Constitucional competência para apreciar decisões dos
tribunais que recusem aplicação de normas constantes de diplomas emanados de
órgão de soberania com fundamento em ilegalidade por violação de estatuto de uma
Região Autónoma e para declarar, com força obrigatória geral, a ilegalidade
dessas normas ou de normas emanadas de órgãos regionais, com base naquela
violação), superioridade relativamente às restantes leis, ainda que estas
revistam a forma de leis de valor reforçado, pelo que tais estatutos, no plano
da hierarquia das leis, se sobrepõem às demais – à excepção das leis de revisão
constitucional –, posicionando-se, assim, entre estas e a Constituição;
– deste modo, a contraditoriedade de uma lei ordinária e um
estatuto de Região Autónoma constitui “uma ilegalidade e mesmo uma
inconstitucionalidade, pelo menos quando se trate de norma estatutária com
directa habilitação constitucional”, pois que isso representa uma violação do
“princípio constitucional da prevalência hierárquica dos Estatutos em face das
restantes leis”, razão pela qual deverá o Tribunal Constitucional conhecer do
vertente pedido;
– em face do que se prescreve no nº 2 do artº 97º, no nº 2 do
artº 105º, no artº 117º e no nº 2 do artº 118º, todos do Estatuto
Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira (EPARAM), são estas
disposições de considerar como violadas pelos seguintes artigos do Decreto nº
94/X: –
– 3º, ao não consagrar algum “princípio destinado a garantir aos órgãos de
governo próprio da Região os meios necessários à prossecução das suas
atribuições, bem como a disponibilidade dos instrumentos adequados à promoção do
desenvolvimento económico e social e do bem-estar e da qualidade de vida das
suas populações”;
– 7º, nº 5, e 37º, números 2 a 7, ao minimizarem “a obrigação de o Estado
suportar os custos das desigualdades derivadas da insularidade” e ao remeterem
“para a fórmula de cálculo das transferências orçamentais”, já que isso implica
”uma diminuição das verbas a transferir por via do Orçamento do Estado” e “a
redução significativa das receitas de IVA, bem como do Fundo de Coesão”;
– 35º, no ponto em que dele se extrai que a permissão de o Estado garantir
pessoalmente os empréstimos a emitir pelas Regiões Autónomas, se converte em
proibição;
– a par da violação das indicadas normas do EPARAM verifica-se
também violação das alíneas i) e j) do nº 1 do artigo 227º da Constituição,
visto que da leitura do nº 3 do artigo 229º desta, desligada do demais nela
consagrado, não pode resultar que a matéria atinente às relações financeiras
entre a República e as Regiões Autónomas está excluída da matéria estatutária,
antes resultando da articulação daqueles preceitos que é acolhido
constitucionalmente o princípio de harmonia com o qual os estatutos das Regiões
Autónomas definem a matéria respeitante à autonomia financeira regional e, ao
fazê-lo, à definição aí consagrada têm de se subordinar as restantes leis, aqui
se incluindo as leis de finanças das Regiões Autónomas;
– e isso porque, tendo em atenção que a autonomia financeira das
Regiões constitui uma das mais importantes vertentes da sua autonomia,
integrando mesmo o núcleo fundamental do seu acervo material, a matéria a ela
respeitante não poderia ser amputada ou subalternizada nos estatutos, antes se
impondo necessariamente que aí seja conferido o respectivo tratamento, só
ficando a cargo da lei de finanças das Regiões Autónomas a concretização dos
princípios e normas definidoras da dita autonomia e no que concerne às relações
financeiras entre o Estado e as Regiões, lei esta que haverá de respeitar as
normas estatutárias;
– tendo em conta que, quando a Constituição prevê directamente a
regulação de certas matérias nos estatutos das Regiões Autónomas, as normas
destes que concretizem aquela previsão constitucional hão-de ser tidas, do ponto
de vista constitucional, como materialmente estatutárias, terá de entender-se
que da conjugação do nº 3 do artigo 229º com a alínea j) do nº 1 do artigo 227º,
ambos da Constituição, se extrai que foi intento do legislador constituinte
subordinar a lei de finanças das Regiões Autónomas às normas estatutárias que
regem a definição da matéria relativa à disposição das receitas fiscais cobradas
ou geradas naquelas Regiões, bem como a uma participação nas receitas
tributárias do Estado e à distribuição de outras receitas que lhes sejam
atribuídas;
– nesta parametrização, porque o nº 2 do artº 118º do EPARAM se
conforma com a Constituição, concretizando o que nesta se prescreve na alínea i)
do nº 1 do seu artigo 227º, os normativos das outras leis que contrariem aquele
nº 2 igualmente violam esta última disposição;
– os artigos 19º, nº 1, 37º, números 2 a 7, 38º, números 2 e 3,
e 66º do Decreto nº 94/X, ao restringirem de forma significativa para a Região
Autónoma da Madeira as receitas de IVA (com uma diferença, para 2007,
comparativamente com 2006, de € 3.790.000, e mesmo tendo em conta a compensação
prevista), as transferências orçamentais (com uma diferença, para 2007,
comparativamente com 2006, de € 34.000.000) e do Fundo de Coesão (com uma
diferença, em 2007, em relação a 2006, de cerca de 50%), e ao imporem a entrada
em vigor em 1 de Janeiro de 2007, vêm criar graves entorses ao regular
funcionamento democrático dos órgãos de governo próprio daquela Região,
violando, por essa forma, os princípios do Estado de direito democrático, da
confiança e do regime autonómico insular, previstos nos artigos 2º, 9º e 6º, nº
1, da Constituição, pois que, tendo os actuais titulares dos órgãos de governo
próprio da Região Autónoma da Madeira sido eleitos em Outubro de 2004 e com
mandato até 2008, estando vinculados aos seus programas de Governo, elaborados
em face do quadro jurídico então vigente, perspectivando as previsões
financeiras resultantes desse quadro, a mudança das regras deste constante, a
meio do mandato, não pode deixar de ser visualizada como ofensa dos assinalados
princípios, retirando a um governo regional legitimado pelo voto popular os
meios financeiros para fazer cumprir o seu programa;
– decorrendo dos artigos 225º, nº 1, 227º, nº 1, alínea j), e
229º, nº 1, todos da Constituição, o princípio da solidariedade nacional, e não
estabelecendo a Lei Fundamental qualquer limitação a tal princípio, nem
autorizando uma lei ordinária a derrogá-lo, o artº 36º do Decreto 94/X, ao
proibir que o Estado assuma as dívidas das Regiões Autónomas, viola esse mesmo
princípio, o qual impõe que, em função das circunstâncias de cada momento, possa
o Estado ponderar sobre a assunção, ou não, das indicadas dívidas;
– os artigos 2º, parte final – ao estabelecer que o âmbito de
aplicação da lei aprovada pelo Decreto nº 94/X abrange a matéria relativa ao
património regional –, e 57º – ao dispor que as Regiões Autónomas dispõem de
património próprio e autonomia patrimonial, nos termos da Constituição, dos
estatutos político-administrativos e da legislação aplicável – violam a chamada
reserva de estatuto consagrada na alínea h) do nº 1 do artigo 227º da
Constituição, pois não cabe à lei de finanças das Regiões Autónomas, ainda que
de forma remissiva, regular a matéria do património regional, visto tal matéria
só poder ser objecto de tratamento estatutário;
– o nº 1 do artº 62º do Decreto nº 94/X, ao reger a matéria de
transferência das atribuições e competências necessárias ao exercício do poder
tributário conferido às Regiões Autónomas, remetendo a definição de umas e
outras para decreto-lei, invade matéria de competência exclusiva das Assembleias
Legislativas das citadas Regiões, violando, pois, o nº 2 do artigo 232º e a
alínea i) do nº 1 do artº 227º, um e outro da Constituição.
2. Pronunciando-se sobre o pedido, nos termos dos artigos 54º e
56º, números 1 e 2, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, o Presidente da
Assembleia da República veio apresentar resposta na qual, após efectuar o
«historial» dos procedimentos que conduziram à aprovação do Decreto nº 94/X, em
súmula, defendeu: –
– dar por reproduzidos os argumentos que foram utilizados no
parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e
Garantias da Assembleia da República sobre o recurso interposto por alguns
Deputados pertencentes ao Grupo Parlamentar do Partido Social Democrata
relativamente ao despacho de admissão da Proposta de Lei nº 97/X;
– que, após a introdução de um número 3 ao anterior artigo 231º
da Constituição (hoje artigo 229º), levada a efeito pela Lei Constitucional nº
1/97, de 20 de Setembro, vieram a ser aprovadas a Lei nº 13/98, de 24 de
Fevereiro – Lei de Finanças das Regiões Autónomas – e a Lei nº 130/99, de 21 de
Agosto, que procedeu à revisão do Estatuto Político-Administrativo da Região
Autónoma da Madeira aprovado pela Lei nº 13/91, de 21 de Agosto, vindo este a
conter, no nº 2 do seu artº 118º, “uma cláusula de não retrocesso” das verbas a
transferir do Orçamento de Estado para aquela Região, o que se não passou
relativamente ao articulado constante do Estatuto Político-Administrativo da
Região Autónoma dos Açores;
– que na Lei de Finanças das Regiões Autónomas (que, após a
Revisão Constitucional de 1997, constituiu o cumprimento do dever jurídico do
Parlamento “de produzir legislação sobre as finanças das Regiões Autónomas”),
que é da reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República
e deve revestir a forma de lei orgânica, é “perceptível a sua função de unificar
a regulação financeira” entre o Estado e aquelas Regiões, assim se “procurando
evitar a proliferação de regras diferenciadoras”;
– que, com invocação da necessidade de evitar défices
orçamentais excessivos que decorrem das obrigações do Tratado da União Europeia
e do Pacto de Estabilidade e Crescimento, já se efectuaram revisões da primitiva
Lei de Financiamento das Regiões Autónomas, como sucedeu com a Lei Orgânica nº
2/2002, de 28 de Agosto, diploma este sobre o qual incidiu o Acórdão do Tribunal
Constitucional nº 567/2004, no qual se concluiu pela não desconformidade com a
Constituição, quer do artº 85º da Lei nº 91/2001, de 20 de Agosto (Lei de
Enquadramento Orçamental), pela não violação do princípio da solidariedade, quer
do introduzido artº 48º-A da Lei nº 13/98, pela não violação da reserva de
estatuto;
– que, dadas a natureza e regra de competência para emissão da
Lei de Financiamento das Regiões Autónomas, não se entende ser possível que um
estatuto de uma Região Autónoma possa, por via “de uma petrificação normativa”
dele constante, efectuar “uma ablação jurídica” da competência parlamentar, uma
vez que, “se da alínea t) do artigo 164.º da Constituição da República
Portuguesa, bem como do n.º 3 do seu artigo 229º, resulta que as matérias
respeitantes ao regime e às relações financeiras das Regiões Autónomas estão na
reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República”, não se
pode deixar de sustentar o exercício de competência do órgão parlamentar para a
edição do diploma em causa, do modo como foi levado a efeito.
Junta com a resposta foi enviada fotocópia do expediente
relacionado com o envio da proposta de lei de finanças das Regiões Autónomas, do
recurso de admissão dessa proposta apresentado por alguns Deputados do Grupo
Parlamentar do Partido Social Democrata, o parecer da Comissão de Assuntos
Constitucionais, Direitos Liberdades e Garantias da Assembleia da República, o
relatório e parecer da Comissão de Orçamento e Finanças da mesma Assembleia
sobre a Proposta de Lei nº 97/X, e exemplares dos Diários da Assembleia da
República números 10 – II Série-A, de 18 de Outubro de 2006 –, 16 – I Série, de
2 de Novembro de 2006 –, 14 – II Série, de 8 de Novembro de 2006 –, 17 – II
Série-A, de 16 de Novembro e 2006 –, 20 – I Série, de 16 de Novembro de 2006 –,
24 – I Série, de 2 de Dezembro de 2006 – e 103 – I Série, de 30 de Junho de 1997
–.
II
3. O Decreto da Assembleia da República nº 94/X resultou de uma
proposta de lei elaborada pelo Governo (a proposta nº 97/X), cuja exposição de
motivos pode ser verificada na II Série-A do Diário da Assembleia da República,
nº 10, de 18 de Outubro de 2006 (cfr., ainda, os objectivos enunciados na
intervenção do Ministro de Estado e das Finanças perante o Parlamento,
intervenção essa disponível no Diário da Assembleia da República, I Série, nº
20, de 16 de Novembro de 2006).
Sobre a admissão dessa proposta recaiu recurso interposto por
alguns Deputados do Grupo Parlamentar do Partido Social Democrata.
A Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos Liberdades e
Garantias da Assembleia da República, por parecer aprovado com os votos a favor
do Partido Socialista, contra do Partido Social Democrata e do Partido Comunista
Português, e a abstenção do Partido Popular CDS-PP e do Bloco de Esquerda,
pronunciou-se no sentido de ser considerado improcedente o recurso (cfr. citados
Diário e Série, nº 12, de 28 de Outubro de 2006), vindo o Plenário do
Parlamento, em 31 de Outubro de 2006, a tomar posição consonante com a proposta
constante do parecer.
Submetida a votação na generalidade no dia 15 de Novembro de
2006, a proposta nº 97/X foi aprovada com votos a favor do Partido Socialista,
contra do Partido Social Democrata, do Partido Comunista Português, do Bloco de
Esquerda e do Partido Os Verdes, e com a abstenção do Partido Popular CDS-PP
(cfr. indicadas publicação e Série, nº 20, de 16 de Novembro de 2006).
Em reunião plenária de 30 de Novembro de 2006 foi votado, em
votação global e pela maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções
(com 119 votos a favor, 91 contra e nove abstenções), o texto final apresentado
pela Comissão de Orçamento e Finanças relativo à proposta nº 97/X (cfr. aludidas
publicação e Série, nº 24, de 2 de Dezembro de 2004).
4. Os preceitos questionados nos presentes autos apresentam a
seguinte redacção: –
Artigo 2º
Âmbito
Para efeitos do disposto no artigo anterior, a presente lei abrange as matérias
relativas às receitas regionais, ao poder tributário próprio das Regiões
Autónomas, à adaptação do sistema fiscal nacional, às relações financeiras entre
as Regiões Autónomas e as autarquias locais sedeadas nas Regiões Autónomas, bem
como ao património regional.
Artigo 3º
Princípios
A autonomia financeira das Regiões Autónomas desenvolve-se no respeito pelos
seguintes princípios:
a) Princípio da legalidade;
b) Princípio da estabilidade das relações financeiras;
c) Princípio da estabilidade orçamental;
d) Princípio da solidariedade nacional;
e) Princípio da coordenação;
f) Princípio da transparência;
g) Princípio do controlo.
Artigo 7º
Princípio da solidariedade nacional
1 – (...)
2 – (...)
3 – (...)
4 – (...)
5 – A solidariedade nacional para com as Regiões Autónomas traduz-se nas
transferências do Orçamento do Estado previstas nos artigos 37.º e 38.º.
6 – (...)
Artigo 19º
Imposto sobre o valor acrescentado
1 – Constitui receita de cada circunscrição o imposto sobre o valor acrescentado
cobrado pelas operações nela realizadas, de acordo com os critérios definidos
nos n.ºs 2 e 3 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 347/85, 23 de Agosto.
2 – (...)
[Anote-se que, nos termos da alínea b), do artº 14º do Decreto
nº 94/X é considerada circunscrição o território do continente ou de uma região
autónoma, consoante o caso]
Artigo 35º
Garantia do Estado
Sem prejuízo das situações legalmente previstas, os empréstimos a emitir pelas
Regiões Autónomas não podem beneficiar de garantia pessoal do Estado.
Artigo 36º
Proibição da assunção de compromissos das Regiões
Autónomas pelo Estado
Sem prejuízo das situações legalmente previstas, o Estado não pode assumir
responsabilidade pelas obrigações das Regiões Autónomas, nem assumir os
compromissos que decorram dessas obrigações.
Artigo 37º
Transferências orçamentais
1 – (...)
2 – O montante anual das verbas a inscrever no Orçamento do Estado para o ano t
é igual às verbas inscritas no Orçamento do Estado para o ano t-1 actualizadas
de acordo com a taxa de actualização definida nos termos dos números seguintes.
3 – A taxa de actualização é igual à taxa de variação, no ano t-2, da despesa
corrente do Estado, excluindo a transferência do Estado para a Segurança Social
e a contribuição do Estado para a Caixa Geral de Aposentações, de acordo com a
Conta Geral do Estado.
4 – No caso de a taxa de variação definida no número anterior exceder a
estimativa do Instituto Nacional de Estatística da taxa de variação, no ano t-2,
do PIB a preços de mercado correntes, a taxa de actualização referida no n.º 2
será a estimativa do Instituto Nacional de Estatística da taxa de variação, no
ano t-2, do PIB a preços de mercado correntes.
5 – No ano de entrada em vigor da presente lei, o montante das verbas a
inscrever no Orçamento do Estado para o ano t é igual ao montante inscrito no
ano t-1 multiplicado pelo factor 1,5.
6 – A repartição deste montante pelas Regiões Autónomas, que tem em conta as
respectivas características estruturais e inclui um factor fixo relativo ao
impacto sobre a receita do imposto sobre o valor acrescentado decorrente da
aplicação do n.º 1 do artigo 19.º, é feita de acordo com a seguinte fórmula:
Sendo:
i=0,27 e i=0,73 ponderadores correspondentes, respectivamente, à Região Autónoma
da Madeira e à Região Autónoma dos Açores.
TR,t – Transferência orçamental para a Região Autónoma no ano t.
TRA,t – Transferência orçamental para as Regiões Autónomas no ano t, calculado
de acordo com o disposto no n.º 2 deste artigo.
PR,t-2 – População da Região Autónoma no ano t-2 segundo os últimos dados
divulgados pelo INE à data do cálculo;
PRA,t-2 – Soma da população das Regiões Autónomas no ano t-2;
P65R,t-2 – População da Região Autónoma no ano t-2 com 65 ou mais anos de idade
segundo os últimos dados divulgados pelo INE à data do cálculo;
P65RA,t-2 – Soma da população das Região Autónomas com 65 ou mais anos de idade
no ano t-2;
P14R,t-2 – População da Região Autónoma no ano t-2 com 14 ou menos anos de
idade, segundo os últimos dados divulgados pelo INE à data do cálculo.
P14RA,t-2 – Soma da população das Regiões Autónomas no ano t-2 com 14 ou menos
anos de idade;
IURA – Soma dos índices de ultra periferia.
DLR – Menor distância entre a Região Autónoma e o continente português.
DLRA – Soma das menores distâncias entre cada uma das Regiões Autónomas e o
continente português.
n.º ilhas – Número de ilhas com população residente na Região Autónoma.
n.º ilhas – Número total de ilhas com população residente nas Regiões Autónomas.
EFR,t-4=Rácio entre receitas fiscais da Região Autónoma e Produto Interno Bruto
a preços de mercado, preços correntes, no ano t-4.
EFRA,t-4=Soma dos indicadores de esforço fiscal.
7 – As transferências do Orçamento do Estado processam-se em prestações
trimestrais, a efectuar nos cinco primeiros dias de cada trimestre.
Artigo 38.º
Fundo de Coesão para as regiões ultraperiféricas
1 – (...)
2 – O Fundo de Coesão dispõe em cada ano de verbas do Orçamento do Estado, a
transferir para os orçamentos regionais, para financiar os programas e projectos
de investimento, previamente identificados, que preencham os requisitos do
número anterior e é igual a uma percentagem das transferências orçamentais para
cada Região Autónoma definidas nos termos do artigo anterior.
3 – A percentagem a que se refere o número anterior é:
20% quando 12,5% quando 5% quando 0% quando Sendo:
PIBPCR t-4 – Produto Interno Bruto a preços de mercado correntes per capita na
Região Autónoma no ano t-4.
PIBPCNt-4 – Produto Interno Bruto a preços de mercado correntes per capita em
Portugal no ano t-4.
Artigo 57.º
Remissão
As Regiões Autónomas dispõem de património próprio e autonomia patrimonial, nos
termos da Constituição, dos estatutos político-administrativos e da legislação
aplicável.
Artigo 62.º
Transferência das atribuições e competências para as Regiões Autónomas
1 – As atribuições e as competências necessárias ao exercício do poder
tributário conferido às Regiões Autónomas, nos casos em que estas considerem que
a descentralização permite corresponder melhor aos interesses das respectivas
populações e se efectue a regionalização de serviços do Estado e correspondentes
funções, são definidas por decreto-lei.
2 – (…)
3 – (...)
Artigo 66º
Entrada em vigor
A presente lei entra em vigor em 1 de Janeiro de 2007.
III
5. Como deflui do «relato» acima efectuado, a fundamentação
carreada ao pedido ancora-se, essencialmente, em três ordens de razões.
De uma banda, surpreendem os requerentes a ofensa de preceitos
constantes dos estatutos político-administrativos das Regiões Autónomas, e do
Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira em particular,
por parte de determinados normativos (os insertos nos artigos 3º, 7º, nº 5, 35º
e 37º, números 2 a 7) do Decreto nº 94/X e, por essa via, violarem o princípio
constitucional da prevalência dos estatutos sobre as restantes leis ordinárias,
ainda que revistam a forma de leis com valor reforçado, princípio esse que se
extrairá da conjugação dos artigos 161º, alínea b), 168°, nº 6, alínea f), 226º,
280º, nº 1, alínea c), e nº 2, alínea d), todos da Constituição.
De outra, entendem haver violação directa da Constituição por
parte: -
– dos artigos 19º, nº 1, 37º, números 2 a 7, 38º, números 2 e 3,
e 66º do Decreto nº 94/X, que ofenderão os princípios da confiança, decorrente
do Estado de direito democrático, e do regime autonómico regional, previstos nos
artigos 2º, 6º, nº1, e 9º da Lei Fundamental;
– do artº 36º do aludido Decreto, por ofensa do princípio da
solidariedade nacional consagrado nos artigos 225º, nº 2, 227º nº 1, alínea j),
e 229º, nº 1, do Diploma Básico;
– dos artigos 2º, parte final, e 57º do referido Decreto, por
ofensa da reserva de estatuto estabelecida na alínea h) do nº 1 do artigo 227º
da Constituição;
– do artº 62º, nº 1, do Decreto em causa, por ofensa da
competência exclusiva das Assembleias Legislativas Regionais prevista nos
artigos 232º, nº 1, e 227°, nº 1, alínea i) da Lei Fundamental.
Por fim, perspectivam que os já citados artigos 3º, 7º, nº 5,
35º e 37º, números 2 a 7, do Decreto, a par da assinalada ofensa dos estatutos
político-administrativos das Regiões Autónomas, e do Estatuto
Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira em particular, violam, de
per si, o princípio consagrado na alínea j) do nº 1 do artigo 227º da
Constituição.
Impõe-se, consequentemente, equacionar, perante uma tal postura,
esses problemas.
6. Colocadas, assim, as linhas básicas do vertente pedido,
volva-se a atenção para a questão conexionada com a invocada violação
constitucional por via da ofensa dos estatutos político-administrativos das
Regiões Autónomas e, em particular, com o Estatuto Político-Administrativo da
Região Autónoma da Madeira (Lei nº 13/91, de 5 de Junho, revista pela Lei nº
130/99, de 21 de Agosto).
De um primeiro passo, não se pode passar em claro que nos
situamos perante um pedido de fiscalização preventiva da constitucionalidade
formulado ex vi da parte final do nº 4 do artigo 278º da Constituição.
Não se escamoteia, aliás como resulta do relatado, que os
requerentes não intentam, directamente, questionar a por si descortinada
violação dos estatutos das Regiões Autónomas em geral e, em particular, de
certas normas do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira,
justamente porque entendem que essa violação acarreta, ela própria, uma ofensa
da Constituição.
Simplesmente, para se enfrentar a aduzida ofensa directa da Lei
Fundamental – e só esta poderá ser analisada num pedido do jaez do presente –
mister se torna dar resposta a uma outra questão, qual seja a de saber se a
regulação constante de uma lei do ordenamento infra-constitucional – ainda que
se trate de regulação vertida numa lei com valor reforçado — que contrarie
preceitos estatutários pode ser submetida ao escrutínio da sua
constitucionalidade por este Tribunal por, dessa sorte, infringir o princípio da
prevalência das normas estatutárias que decorre da Constituição.
Um raciocínio como o seguido neste específico ponto pelos
requerentes, poderia conduzir a que se considerasse que, nas situação e
particularismo em espécie, o que se pretenderia desenhar seria o intento de
apreciação de vícios que decorreriam de uma ofensa indirecta da Lei Fundamental,
ou seja: por se violarem, por parte de outras leis (em sentido material), regras
estatutárias, ter-se-ia igualmente por violada a Constituição, pela
ultrapassagem do referenciado princípio da prevalência das normas estatutárias.
Ora, nessa base, haverá de ter em conta que a Constituição
desenha muito especificamente, no que toca à fiscalização normativa, os poderes
cometidos a este Tribunal, distinguindo a cognição das situações de apreciação
dos vícios de inconstitucionalidade e da ilegalidade. Assim, no que se prende
com a apreciação abstracta, aquela Lei Fundamental distingue claramente os casos
de fiscalização da inconstitucionalidade e da ilegalidade, esta, no particular
que agora releva, com fundamento na violação de estatuto de uma Região Autónoma
e de violação dos direitos de uma Região consagrados no seu estatuto
[confrontem-se as diversas alíneas do nº 1 e a alínea g) do artigo 281°]. No que
respeita à fiscalização concreta, de igual modo são distinguidas
constitucionalmente as situações de constitucionalidade e de legalidade [vide
alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 280º e alíneas b), c) e d) do nº 2].
E, sendo assim, se a ofensa em crise se prender de modo directo
com o desrespeito de normas ou princípios estatutários ou de direitos
consagrados nos estatutos das Regiões Autónomas, mesmo aceitando, como se
aceita, que esses estatutos detêm valor supra legislativo confrontadamente com a
demais legislação ordinária comum (e ressalvando-se aqui as leis de Revisão
Constitucional), isso não implica que haja uma ofensa directa da Constituição;
essa ofensa posta-se, antes, como indirecta ou mediata.
Ora, concernentemente a uma situação desse género, os poderes
cognitivos deste Tribunal tão somente se circunscrevem à apreciação da questão
de ilegalidade que aí se desenha, e não à da inconstitucionalidade indirecta ou
mediata que eventualmente lhe subjaz e se possa colocar.
Isso significa, em conclusão, que o sistema português de
fiscalização normativa não comporta um tipo de fiscalização preventiva em que é
solicitada a apreciação de vícios com base numa parametricidade que acarreta a
interposição de disposições estatutárias.
Neste contexto, no que se prende com a aventada ofensa de
preceitos constantes dos estatutos político-administrativos das Regiões
Autónomas e, em particular, do Estatuto Político-Administrativo da Região
Autónoma da Madeira, por parte dos artigos 3º, 7º, nº 5, 35º e 37º, números 2 a
7, todos do Decreto nº 94/X, entende o Tribunal que se não deve conhecer do
objecto do pedido.
Isto, porém, não inculca que as referidas disposições não devam
ser analisadas, mas desta feita com enfoque na invocada violação directa dos
poderes constitucionalmente atribuídos às Regiões Autónomas e do princípio
precipitado na alínea j) do nº 1 do artigo 227º do Diploma Básico.
7. Isto posto, iniciar-se-á a apreciação da questão submetida a
este Tribunal pela imputação, efectivada pelos requerentes, de vícios assacados
aos artigos 2º, parte final, 19º, nº 1, 36º, 37º, números 2 a 7, 38º, números 2
e 3, 57º, 62º, nº 1, e 66º, todos do Decreto nº 94/X, vícios que, de acordo com
tal imputação, implicam ofensa directa de determinadas normas e princípios
constantes da Constituição, sem que, para tanto, seja aduzida argumentação que
implique a interposição de regras estatutárias, passando-se, posteriormente, à
análise dos artigos 3º, 7º, nº 5, 35º (que sofrerá tratamento seguido à análise
do artº 36º) e 37º, números 2 a 7, do Decreto, com fundamento na ofensa da
alínea j) do nº 1 do artigo 227º da Lei Fundamental.
8. De acordo com o prisma dos requerentes, os artigos 19º, nº 1,
37º, números 2 a 7, 38º, números 2 e 3, e 66º prescreverão em contrário aos
princípios da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático
consagrado no artigo 2º do Diploma Básico, e do regime autonómico regional,
previsto nos artigos 6º, nº 1, e 9º, também do mesmo Diploma, atentas as razões
acima enunciadas.
8.1. No que se prende com a alegada violação do princípio da
confiança, afigura-se que um tal vício não é descortinável.
Na verdade, mesmo aceitando-se que, do confronto da revoganda
Lei nº 13/98, de 24 de Fevereiro, e com o processamento do Imposto sobre o Valor
Acrescentado decorrente do anterior despacho do Ministro das Finanças, dos
normativos ora em crise resulte uma redução dos montantes a transferir e a
perceber pela Região Autónoma da Madeira, indo essa circunstância afectar o
cumprimento do programa do Governo Regional em funções, nem por isso se deverá
concluir no sentido que concluem os requerentes.
É certo que o princípio da confiança, como tem sido defendido
pela jurisprudência deste Tribunal, postula “uma ideia de protecção da confiança
dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que
implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas
expectativas que a elas são juridicamente criadas”, pelo que “a normação que,
por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva
àqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito
têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de direito democrático,
terá de ser entendida como não consentida pela Lei Básica” (cfr., a título
meramente exemplificativo, o Acórdão nº 303/90 in Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 17º volume, 65 a 95).
Em consequência, impõe-se perguntar se, em face de uma normação
como a ora sub iudicio, e da qual decorrerá uma diminuição do montante de verbas
a transferir e a perceber para e pelos órgãos de poder próprio da Região
Autónoma da Madeira, isso acarretará, relativamente a esses órgãos, eleitos por
sufrágio geral e democrático e com base num programa proposto ao eleitorado,
para cuja elaboração se contou com a manutenção do ordenamento jurídico vigente
ao tempo dessa elaboração, um manifesto abalar dos acima citados mínimo de
certeza e segurança na indicada manutenção.
Desde logo não se pode olvidar que, ainda que sejam reais as
considerações fácticas efectuadas pelos requerentes, o reflexo dos normativos de
que neste ponto se cura incide no desenvolvimento de uma actividade
eminentemente política.
Essa actividade, por natureza, como é comummente aceite, tende a
desenvolver mudanças na sociedade que deve servir e implica, necessariamente,
modificações legislativas, com elas devendo e podendo contar, quer quem, por
força do desenvolvimento dessa actividade, veio a ocupar a titularidade dos
órgãos políticos a que se candidatou, quer quem, pelo sufrágio, não almejou essa
titularidade ou a titularidade maioritária, e isso mesmo que aquelas
modificações legislativas incidam sobre diplomas que, em princípio, tenham
vocação de vigência mais alargada.
Não obstante o que se acaba de dizer, admite-se que se não
possa, sem mais, sustentar que, em face da prossecução de uma actividade
eminentemente política, é desde logo destituída de razão a convocação do
princípio da confiança. Efectivamente, se se, pensar por exemplo, nos casos em
que existe já uma definição de verbas inscritas em orçamento e que «contaram»
com as presumíveis dotações que poderiam ser alcançadas em face das disposições
vigentes de uma lei de financiamento das Regiões Autónomas, levar a cabo um
raciocínio como aquele constituiria um escamotear «cego» de determinadas
realidades existentes como aquelas que são argumentadas pelos requerentes.
Na realidade, se se postasse uma alteração legislativa de todo
imprevisível e inusitada que, ao menos na prática, desencadeasse uma entorse,
total ou abrupta, das expectativas na manutenção do anterior ordenamento,
dificilmente se poderia sustentar que, tão só com base na consideração de nos
situarmos no âmbito de uma actividade eminentemente política, não era possível a
convocação do princípio de que tratamos.
De facto, independentemente do relevo que não pode deixar de ser
concedido ao carácter eminentemente político da actividade em causa – e que,
decerto, não poderá ser visualizado de modo idêntico ao das situações em que a
manutenção das expectativas dos cidadãos e da comunidade em geral possa ser
devidamente pesada em nome da protecção do princípio da confiança – ponto é que,
na senda da jurisprudência deste Tribunal, as expectativas na manutenção das
disposições existentes (e, no que agora releva, no tocante à disponibilização de
meios financeiros resultantes de transferências e percepção de receitas cobradas
de harmonia com essas disposições) se mostrem dotadas de acentuada consistência,
entendida esta no sentido de não ser, em princípio, figurável a possibilidade de
alteração de um dado modelo legislativo que, patentemente, vá criar a já
referida entorse total ou abrupta.
8.2. Ora, em primeiro lugar, não se poderá esconder – sem que
isso implique um juízo sobre a «bondade» dos preceitos em apreço, ponderando as
reais situações financeiras da República e da Região Autónoma da Madeira, até
porque isso sempre estaria vedado aos poderes do Tribunal, ao menos se se não
tornasse desde logo patentemente visível que a solução legislativa adoptada pelo
Decreto se apresentava como arbitrária e sem a mínima justificação – que, de
todo o modo, não resulta, nem sequer é invocado, que tais preceitos implicam uma
constrição total, desmesurada, intolerável e arbitrária das transferências e
percepções de receitas daquela Região, não deixando, por essa razão, de ser
cumprido, ainda que sem o avultamento anterior, um regime que, do ponto de vista
de participação nas receitas tributárias do Estado e de outras receitas que lhe
sejam atribuídas, respeita o regime autonómico regional.
De outro lado, a problemática atinente à redução ou constrição
das receitas a transferir para as Regiões Autónomas, mesmo na vigência da
revoganda Lei nº 13/98, de 24 de Fevereiro, tem sido impostada por diversas
vezes, o que conduziu, inclusivamente, à prolação de alguns arestos deste
Tribunal.
Como se disse, por exemplo, no Acórdão nº 567/2004 (publicado na
II Série do Diário da República de 23 de Novembro de 2004), “em lado algum do
texto constitucional se encontra apoio para a tese … de que o valor fixado, pelo
legislador ordinário, na Lei de Finanças das Regiões Autónomas [e reportava-se à
citada Lei nº 13/98] constitui «uma referência sólida na quantificação do dever
de cooperação do Estado para com os órgãos regionais», sendo a norma que permite
a fixação de um valor inferior incompatível com a Lei Fundamental”.
Vale isto por dizer que, dada a «historicidade» do problema, não
se pode considerar como dotada de consistência suficiente uma expectativa
ancorada numa quantificação rígida (no sentido de, ao menos, não poder ser
objecto de diminuição ou constrição) do valor das transferências que defluem de
uma vigente lei de financiamento das Regiões Autónomas.
A esta consideração são, ainda, de adicionar três outras.
A primeira reside em que, analisado o vertente pedido, fácil é
de verificar que os critérios rectores das formas como se processarão as
participações das Regiões Autónomas nas receitas tributárias do Estado e de
outras receitas que lhes sejam atribuídas não são postos em crise por parte dos
requerentes do ponto de vista da sua inadequação ou desadequação – à excepção,
como é óbvio, de representaram, relativamente aos transactos anos, uma
diminuição nos quantitativos globais.
A segunda liga-se com o facto de não haver no pedido uma
concreta densificação dos efeitos da redução que advirá dos normativos agora em
apreço, inclusivamente quanto à repercussão do cumprimento de um programa de
governo, e aqui, uma vez mais, com a ressalva a que imediatamente acima se
aludiu.
A terceira prende-se com a circunstância de, de todo o modo, não
se poder olvidar a existência, no articulado do Decreto nº 94/X, de «cláusulas
de salvaguarda» tais como as previstas no seu artº 59º.
Ora, com base em todo o descrito circunstancialismo, impõe-se a
conclusão segundo a qual, aceitando-se embora que, por parte dos órgãos de
governo das Regiões Autónomas, houvesse expectativas na manutenção de um regime
de financiamento tal como aquele que resultava da vigente lei de financiamento,
com vista ao cumprimento dos programas políticos com que se apresentaram a
sufrágio – e até com as inerentes repercussões nas populações que iriam
desfrutar das concretizações práticas desses programas –, o que é certo é que
tais expectativas (ou, se se quiser, o «investimento» na confiança de manutenção
da legislação vigente) se não podiam revestir de uma consistência tal que
pudesse impedir o legislador nacional de adoptar soluções como as de que ora se
cura, as quais se não apresentam, pela realidade do «passado legislativo», como
manifestamente inusitadas e imprevisíveis e não vão, como resulta do que acima
se disse, afectar desmesuradamente os mínimos de certeza e segurança em que
essas expectativas se fundariam, sendo ainda certo que são carreadas (cfr. as
aludidas exposição de motivos e intervenção ministerial perante o Parlamento)
razões que, prima facie se não antolham como injustificadas ou sem suporte
material bastante.
Desta arte se é chegado à solução de que os indicados normativos
não ofendem o princípio da confiança inserto naqueloutro do princípio do Estado
de direito democrático consagrado no artigo 2º da Constituição.
Dados os termos que, neste particular, foram utilizados pelos
requerentes, as razões trazidas ao pedido, neste ponto da ofensa do princípio da
confiança que se extrai do princípio do Estado de direito democrático, não se
distinguem essencialmente daquelas que, no mesmo pedido, fundam a também
invocada violação do «regime autonómico insular».
Tendo-se por não procedentes as aludidas razões, quanto àquele
princípio, haverão de ter-se identicamente como não solventes quando se enfoca a
ofensa do «regime autonómico insular» que, aliás, não deixa de estar inserido
numa concretização da ideia de Estado unitário, iluminado que deve ser também
pelo princípio do Estado de direito democrático.
9. Do ponto de vista dos requerentes, o artº 36º do Decreto nº
94/X ofende o princípio da solidariedade nacional – princípio esse decorrente do
nº 2 do artigo 225º, da alínea j) do nº 1 do artigo 227º e do nº 1 do artigo
220º da Constituição –, visto não permitir a assunção de responsabilidade, pelo
Estado, pelas obrigações das Regiões Autónomas.
Não se deixa de assinalar que o princípio, dito da solidariedade
nacional, não pode ser perspectivado por forma a dele se extrair uma só
direccionalidade, qual seja a da solidariedade representar unicamente a
imposição de obrigações do Estado para com as Regiões Autónomas, pois que, sendo
uma das tarefas fundamentais do Estado a de promover o desenvolvimento
harmonioso de todo o território nacional, tendo em conta, inter alia, o carácter
ultraperiférico dos Açores e da Madeira [cfr. alínea g) do artigo 9º da
Constituição], visando a autonomia das Regiões, a par da participação
democrática dos cidadãos, do desenvolvimento económico-social e da promoção e
defesa dos interesses regionais, o reforço da unidade nacional e dos laços de
solidariedade de todos os portugueses (nº 2 do artigo 225º), torna-se inequívoco
que, neste ponto, não poderão deixar de ser ponderados também os interesses das
populações do território nacional no seu todo, consequentemente aqui se
incluindo as próprias populações do território “historicamente definido no
continente europeu”.
Mas, afora esta circunstância, analisando tão só uma perspectiva
direccionada para a solidariedade que deve ser prosseguida pelo Estado para com
as Regiões Autónomas, o que é certo é que nenhuma norma se divisa na Lei
Fundamental de onde decorra a imperatividade de o Estado assumir as
responsabilidades pelas obrigações contraídas pelas Regiões Autónomas ou ainda
que, consoante as circunstâncias, tenha obrigatoriamente de pesar se, numa
concreta situação, essa assunção pode e deve vir a ter lugar.
É que, o princípio da solidariedade, na perspectiva
unidireccional a que nos referimos, poderá vir a ser concretizado por muitas
outras formas de ajuda que não só pela assunção de responsabilidades, sendo
certo que do artº 36º do Decreto nº 94/X não se extrai que essas outras
possíveis formas estejam proscritas.
E, justamente neste particular, não se deverá olvidar que também
aqui se consagram «cláusulas de salvaguarda» – cfr. artigos 42º e 43º do Decreto
nº 94/X – que minimizam a proibição decorrente do artº 36º.
Não se surpreende, desta forma, um excesso ou um mero arbítrio
constitucionalmente claudicante em face do estabelecido na alínea j) do nº 1 do
artigo 227º da Lei Fundamental, sendo certo que, neste ponto, por um lado,
também não se podem deixar passar em claro as razões constantes, quer da
exposição da proposta de lei que deu origem ao Decreto em apreciação, quer dos
objectivos enunciados na já mencionada intervenção do Ministro de Estado e das
Finanças no Parlamento; por outro, que se trata aqui de responsabilidades
assumidas no âmbito do exercício de um poder constitucionalmente autonómico que
não podem, precisamente por representarem esse exercício, implicar
inevitavelmente a proibição de adopção de uma medida de excepcionalidade como a
constante do artº 36º do Decreto.
E a esta conclusão muito mais facilmente chegará ao se entender,
como se entende, que a asserção constante da parte inicial do artº 36º – segundo
a qual são ressalvadas as situações legalmente previstas – deverá ser
interpretada no sentido de poder vir a haver a assunção de responsabilidade
pelas obrigações das Regiões Autónomas, desde que uma tal possibilidade se
preencha por via legislativa, incidindo, pois, a proibição constante da norma em
causa tão só quanto ao preenchimento por via meramente político-administrativa.
Aliás, a revoganda Lei nº 13/98, na primitiva redacção do seu
artº 47º, estabelecia que, a partir de 1998 deixaria de haver comparticipação do
Estado nos encargos financeiros das dívidas das Regiões Autónomas, sendo certo
que, com a revisão operada pela Lei Orgânica nº 1/2002, de 29 de Junho, aquele
artigo veio a ficar com uma redacção da qual se extrairá que, uma participação
no programa especial de recuperação das dívidas públicas regionais iria ter
lugar, mas só com referência a 2002, e em relação a determinados montantes aí
indicados.
9.1. O que é dito a este propósito quanto ao artº 36º é, mutatis
mutandis, aplicável ao artº 35º que, como se viu, é entendido pelos requerentes
como violador da mesma alínea j) do nº 1 do artigo 227º da Constituição.
É certo que a proibição, como regra, da assunção, pelo
Estado, de compromissos financeiros das Regiões Autónomas e da prestação de
garantia pessoal a empréstimos a emitir por estas, coloca problemas de diferente
intensidade no que toca à articulação da autonomia político-administrativa
regional com o princípio da solidariedade nacional. A autonomia implica a
responsabilidade inerente, que sai distorcida quando as obrigações resultantes
de um centro decisor autónomo são transferidas para outro, enquanto na prestação
de garantia pessoal a empréstimos a emitir se trata de cooperar ou apoiar o
exercício da autonomia, sem prejuízo da responsabilidade do beneficiário. Mas,
ainda aqui, a regra da proibição, com ressalva das situações legalmente
previstas, é compatível com o princípio da solidariedade nacional.
Não se descortina, pois, a imposição constitucional de obrigação
de prestação de garantia pessoal do Estado aos empréstimos a emitir pelas
Regiões Autónomas ou do poder/dever de ponderar, segundo as circunstâncias, se
essa garantia deve, ou não, em face da especificidade das concretas situações,
ser levada a efeito.
Não se negando que é sobremaneira relevante para a concessão de
um empréstimo, por entre o mais, a consideração de quem pode garantir ou
avalizar a obrigação ou as obrigações que dele decorrem, o que não deixa de ser
certo é que o Decreto nº 94/X contém outras vertentes prescritivas – já
referidas aquando da análise do artº 36º – que, acolhendo-se no princípio da
solidariedade, vão minimizar a proibição de prestação de garantia aos
empréstimos a emitir pelas Regiões Autónomas.
Por outro lado, com a interpretação defendida a respeito do artº
36º do Decreto, que, como se disse, se entende ser também ser aplicável, com as
necessárias adaptações, ao artº 35º, este nem sequer se distinguirá
substancialmente, nos seus efeitos, do que se consagra no artº 29º da revoganda
Lei nº 13/98.
Pelo que se é conduzido a concluir pela não violação do aventado
princípio quanto ao artº 35º do Decreto.
10. No que tange aos artigos 2º, parte final, e 57º do referido
Decreto, os quais, na visão dos requerentes, ofenderão a reserva de estatuto
político-administrativo das Regiões Autónomas, uma vez que prescrevem que a
editanda Lei de Finanças das Regiões Autónomas, abrangerá as matérias
respeitantes ao património regional, o que conflituaria com a alínea h) do nº 1
do artigo 227º da Constituição, é de evidência que, percorrendo o texto do ora
questionado Decreto, nele se não surpreende qualquer normativo de onde resulte a
regulação dos poderes de administração e disposição por parte das Regiões
Autónomas.
Mesmo que, com o enunciado do artº 2º, intentasse o legislador
que o diploma onde ele se insere efectivasse aquela regulação, o que é
inequívoco é que um tal hipotético intento não teve, nesse mesmo diploma, a
mínima concretização.
E se, porventura, ainda num tal hipotético intento, se quisesse
referir o legislador nacional à possibilidade de, numa futura revisão da lei de
finanças das Regiões Autónomas, a matéria respeitante ao património regional vir
aí a ser regulada, então é nítido que, numa tal situação, seriam os normativos
que se encontrassem no revisto diploma que se deveriam, a esse tempo, submeter
ao escrutínio da sua compatibilidade constitucional.
Já por outro lado, o artº 57º tão só representa uma mera
enunciação não prescritiva que nada adianta ao que a própria Constituição e os
estatutos das Regiões Autónomas, nesse particular, dispõem.
Não se tem, pelo exposto, por violada, pelos normativos em
apreço, a reserva de estatuto, mesmo pressupondo que o disposto na alínea h) do
nº 1 do artigo 227º da Constituição, ao dispor do jeito que dispõe, inculca um
esgotamento total da matéria tocante ao património das Regiões Autónomas.
11. Sustentam os requerentes que o nº 1 do artº 62º do Decreto
nº 94/X viola a competência exclusiva das Assembleias Legislativas das Regiões
Autónomas, motivo pelo qual enferma aquela disposição do vício de
inconstitucionalidade, por postergar o nº 1 do artigo 232º e a alínea i) do nº 1
do artigo 227º, um e outro da Lei Básica.
De harmonia com o nº 1 daquele artigo 232º, é da exclusiva
competência da Assembleia Legislativa da Região Autónoma, no que ora interessa,
exercer poder tributário próprio, nos termos da lei, e exercer as atribuições de
adaptação do sistema fiscal nacional às especificidades regionais, nos termos da
lei-quadro da Assembleia da República.
Como se transcreveu acima, no nº 1 do artº 62º do Decreto nº
94/X estabelece-se que são definidas, por decreto-lei, as atribuições e as
competências necessárias ao exercício do poder tributário conferido às Regiões
Autónomas, nos casos em que estas considerem que a descentralização permite
corresponder melhor aos interesses das respectivas populações e se efectue a
regionalização de serviços do Estado e correspondentes funções.
No entender do Tribunal, a prescrição inserta em tal disposição
não implica que recaia nos órgãos da República (e, assim e mais concretamente,
que repouse na vontade legislativa do Governo da República) a definição de quais
as atribuições e competências que haverão de ser prosseguidas pelas Regiões
Autónomas com vista ao exercício do seu poder tributário próprio.
Na realidade, no entendimento que agora se perfilha, o que se
desenha em tal normativo é que haverão de ser as Regiões Autónomas a ponderar e
decidir, tendo em conta a sua visão sobre aquilo que entendam corresponder
melhor aos interesses das respectivas populações, se o desenvolvimento das
actividades administrativas e burocráticas se há-de processar por intermédio dos
serviços do Estado ou por intermédio de serviços regionalizados.
E, a optarem pela segunda via, então será por intermédio de
diploma emanado do Governo da República que se irá operar a transferência de
competências dos serviços estaduais para os serviços regionais, vindo depois
estes, necessariamente, a ser organizados pela forma que for determinada pelos
órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas.
Uma interpretação como a que agora é dada ao nº 1 do artº 62º do
Decreto nº 94/X significa, pois, de um lado, que, enquanto as Regiões Autónomas
não decidirem que a prossecução das actividades administrativas e burocráticas
atinentes ao exercício do poder tributário próprio que, constitucionalmente,
lhes compete, será levada a efeito por serviços regionalizados, ela é processada
pelos serviços estaduais, através dos respectivos departamentos; de outro que,
após terem as Regiões Autónomas optado pela regionalização daquelas actividades,
emitirá o Governo diploma que procederá à «transferência» dos serviços centrais
para os serviços regionalizados, cuja organização somente impende sobre os
órgãos de governo próprio das Regiões.
Ora isto em nada contende com o exercício do poder tributário
próprio das Regiões Autónomas ou com a adaptação do sistema fiscal nacional às
especificidades regionais.
Trata-se, assim, de uma mera prescrição segundo a qual será
definida por decreto-lei a regionalização dos serviços com vista ao exercício do
poder tributário próprio regional nas situações em que as Regiões Autónomas
entendam que a regionalização desses serviços irá melhor servir os interesses
das respectivas populações.
No fundo, mais não se consagra do que a definição, por
decreto-lei, do modo como se irá desenhar a futura regionalização dos serviços
estaduais, até então estruturados numa base hierárquica central, e que, até ao
momento da regionalização, têm levado a efeito a realização dos procedimentos
administrativos e burocráticos relativos à liquidação e cobrança dos tributos
que são considerados receitas próprias das Regiões, não se extraindo, assim, do
preceito o que quer que seja que vá «beliscar» a exclusividade, por banda das
Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas, do tratamento da matéria
relacionada com o exercício do poder tributário próprio de tais Regiões.
E, consequentemente, não se lobriga ferimento do disposto no nº
1 do artigo 232º e da alínea i) do nº 1 do artigo 227º, este e aquele da Lei
Fundamental.
12. Resta a impostação da questão concernente à alegada violação
da alínea j) do nº 1 do artigo 227º da Lei Fundamental por parte dos artigos 3º,
7º, nº 5, e 37º, números 2 a 7, do Decreto nº 94/X, por violação do “princípio
contido no artigo 227º, n.º 1 alínea j) da CRP”.
Este preceito constitucional estabelece que as Regiões Autónomas
têm o poder de dispor, nos termos dos estatutos e da lei de finanças dessas
Regiões, das receitas fiscais nelas cobradas ou geradas, bem como de uma
participação nas receitas tributárias do Estado, estabelecida de acordo com um
princípio que assegure a efectiva solidariedade nacional, e de outras receitas
que lhes sejam atribuídas e afectá-las às suas despesas.
O princípio que, assim, é extraível da alínea j) do nº 1 do
artigo 227º e que é tido por violado pelos requerentes é o do asseguramento da
efectiva solidariedade nacional aquando do estabelecimento da participação nas
receitas tributárias do Estado.
E, de acordo com os peticionantes, o artº 3º do Decreto nº 94/X
violaria esse princípio ao não mencionar, no seu elenco, algum princípio
destinado a garantir aos órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas os
meios necessários à prossecução das suas atribuições, bem como a disponibilidade
dos instrumentos adequados à promoção do desenvolvimento económico e social e do
bem-estar e da qualidade de vida das respectivas populações.
É facto que naquele artigo se não contém uma enunciação de
regras ou princípios de onde resulte, expressis verbis, a garantia de que os
órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas irão ser munidos dos meios
necessários e adequados às finalidades referidas pelos requerentes.
Mas menos facto não é que, na enunciação nele efectivada, é
feita clara menção ao próprio princípio da solidariedade.
Ora se este implica, no discurso dos requerentes, a assinalada
garantia, a menção dele mesmo não pode, sob pena de interna e profunda
contradição, deixar de integrar aquela.
Não se divisa, pelo exposto, o vício assacado pelos requerentes
tocantemente ao artº 3º do Decreto.
Invocam estes que o nº 5 do artº 7º do Decreto nº 94/X limita o
princípio da solidariedade quando postula que este é traduzido nas
transferências a que aludem os artigos 37º e 38º do mesmo diploma.
Em primeiro lugar, deve sublinhar-se que do normativo em questão
não se pode retirar que as transferências a que aludem os artigos 37º e 38º do
Decreto são a única forma pela qual se há-de considerar como traduzido ou
esgotado o princípio da solidariedade.
E, logo por aí, se seria levado à conclusão da improcedência do
argumento aduzido.
Mas, com maior relevo, o que é de limpidez é que, como deflui do
que já foi dito no presente aresto, outras várias prescrições, incluindo as que
se contêm no próprio artº 7º, se divisam no articulado do Decreto em análise e
das quais, indubitavelmente, se retira que a solidariedade – na óptica
unidireccional do Estado em face das Regiões Autónomas – se não esgota tão só
nas transferências (cfr., a título de exemplo, os artigos 5º e 39º a 43º).
Finalmente, pelo que toca ao artº 37º, números 2 a 7, do Decreto
nº 94/X, deve anotar-se que é facilmente verificável, dados os termos como o
pedido, quanto a esses normativos, se encontra formulado, que os solicitantes
aduzem, de uma parte, motivos que se reconduzem a uma por si descortinada ofensa
ao disposto no nº 2 do artº 118º do Estatuto Político-Administrativo da Região
Autónoma da Madeira e, de outra, razões que desaguam, substancialmente, naquilo
que qualificam como uma “violação grosseira dos princípios da boa fé e da
segurança no relacionamento institucional e do princípio da confiança no Estado,
situação que se agrava com a total imprevisibilidade, surpresa e inesperado, das
medidas adoptadas pelo Decreto em questão por contrariarem os compromissos
assumidos no Programa do Governo e as legítimas expectativas criadas à Região
Autónoma da Madeira”, e uma violação do regime autonómico insular.
Ora, quanto aos primeiros motivos, em vista do que se veio de
expor no antecedente ponto 6., não é aqui cabido enfrentar a questão nos moldes
em que foi equacionada.
Já pelo que toca às outras razões, o seu tratamento no ponto em
questão foi já levado a efeito nos precedentes pontos 8., 8.1 e 8.2.
E concluindo-se neles o que se concluiu, também agora, na
parametrização com a alínea j) do nº 1 do artigo 227º do Diploma Básico, se
rematará por juízo de não desconformidade constitucional.
IV
13. Perante o exposto, não se pronuncia este Tribunal pela
inconstitucionalidade das normas vertidas nos artigos 2º, parte final, 3º, 7º,
nº 5, 19º, nº 1, 35º, 36º, 37º, números 2 a 7, 38º, números 2 e 3, 57º, 62º, nº
1, e 66º, todos do Decreto da Assembleia da República registado com o nº 94/X.
Lisboa, 12 de Janeiro de 2007
Bravo Serra
Gil Galvão
Maria João Antunes
Vítor Gomes
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Maria Helena Brito (com declaração)
Maria Fernanda Palma (com declaração de voto)
Benjamim Rodrigues (vencido em parte
nos termos da declaração de voto anexa)
Mário José de Araújo Torres (vencido,
em parte, nos termos da declaração de voto)
Rui Manuel Moura Ramos (vencido, em
parte, nos
termos da declaração de voto junta).
Paulo Mota Pinto (vencido, em
parte, nos termos da
declaração de voto que junto)
Artur Maurício
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei integralmente o presente acórdão, pelos fundamentos que dele constam.
Relativamente à matéria tratada nos n.ºs 9.1. e 12. do acórdão, acrescento
todavia, de modo muito breve, o seguinte:
Em meu entender, a questão de constitucionalidade suscitada pelos
requerentes na parte A) do pedido quanto a certas normas do Decreto da
Assembleia da República n.º 94/X – concretamente em relação às normas dos
artigos 3º, 7º, n.º 5, 35º e 37º, n.ºs 2 a 7 (páginas 4 a 20 do requerimento
apresentado perante este Tribunal) – prende-se afinal com a competência da
Assembleia da República para aprovar tais normas.
Ora, a Constituição dispõe que “é da exclusiva competência da Assembleia da
República legislar sobre o regime de finanças das regiões autónomas” (artigo
164º, alínea t)), que “as relações financeiras entre a República e as regiões
autónomas são reguladas através da lei prevista na alínea t) do artigo 164º”
(artigo 229º, n.º 3) e que a lei que estabelece tal regime “reveste a forma de
lei orgânica” (artigo 166º, n.º 2).
Perante este quadro constitucional, a regulação das relações financeiras
entre a República e as regiões autónomas constitui matéria da reserva absoluta
da Assembleia da República, pelo que – como de resto se afirma na resposta do
Presidente da Assembleia (cfr. o n.º 2 do texto do acórdão) – “não se julga ser
possível que, por via estatutária, este órgão de soberania sofra uma ablação
jurídica na sua competência legislativa absolutamente reservada”.
Ao legislar, nos termos em que o fez, sobre as finanças das regiões
autónomas, no Decreto em apreciação, a Assembleia da República não excedeu
portanto os limites da sua competência, contrariamente ao que afirmam os
requerentes.
Maria Helena Brito
DECLARAÇÃO DE VOTO
Tal como é referido no Acórdão, entendo que não pode ser conhecida, em sede
de fiscalização preventiva da constitucionalidade, a eventual violação de normas
do Estatuto das Regiões. Ainda assim, tomaria conhecimento das normas
sindicadas, em função da interpretação que faço do pedido e tendo em conta que
os requerentes invocam a violação do artigo 227.º, n.º 1, alínea j), da
Constituição à luz do princípio da “prevalência do estatuto”.
Considero que o argumento dos requerentes segundo o qual o conteúdo
das normas em crise não é da competência das leis da República, mas sim,
exclusivamente, do estatuto, constitui uma verdadeira questão de
constitucionalidade. Trata-se, na verdade, de debater o âmbito da reserva de
estatuto – questão nuclear da organização do poder político, relativa ao
relacionamento entre os órgãos de soberania e as regiões autónomas.
No entanto, as normas em causa não se incluem na reserva de estatuto,
precisamente por dizerem respeito ao financiamento das regiões autónomas. Está
em causa, neste âmbito, o relacionamento entre o Estado e essas regiões. Por
conseguinte, não se verifica qualquer violação do artigo 227.º, n.º 1, alínea
j), da Constituição, norma que pressupõe a definição prévia dos recursos
financeiros a atribuir às regiões e lhes confere, ao abrigo da autonomia,
competência para disporem de tais recursos.
Maria Fernanda Palma
1 – Votei vencido quanto à decisão relativa às normas constantes dos artigos
35.º, 36.º e do artigo 66.º, este quando conjugado com as normas constantes dos
artigos 19.º, n.º 1, 32.º, nºs 2 a 7, e 38.º, nºs 2 e 3 do Decreto da Assembleia
da República n.º 94/X, a que se reporta o pedido, pelas razões que sucintamente
se expõem.
2 – Diz-se, respectivamente, nos artigos 35.º e 36.º:
“Sem prejuízo das situações legalmente previstas, os empréstimos a emitir
pelas Regiões Autónomas não podem beneficiar de garantia pessoal do Estado”
e
“Sem prejuízo das situações legalmente previstas, o Estado não pode assumir
responsabilidade pelas obrigações das Regiões Autónomas, nem assumir os
compromissos que decorram dessas obrigações”.
Antes de mais, importa notar que não é claro o sentido do âmbito material da
ressalva constante de qualquer destes preceitos.
Os seus termos tanto podem referir-se às situações concretas constituídas de
acordo com as leis em vigor; como às situações previstas em abstracto, sobre a
matéria, nas leis que estão em vigor; como, ainda, às situações enquadráveis nos
regimes consagrados nos artigos 42.º (protocolos financeiros) e 43.º (apoio
extraordinário), como, finalmente, às situações que venham a ser previstas em
lei futura, independentemente do seu tipo (se lei ordinária do Governo ou da
Assembleia da República, se lei orgânica, se lei reforçada).
É, todavia, claro, para nós, que o sentido mais ajustado aos termos verbais
do Decreto da Assembleia da República em causa e à teleologia dos preceitos é,
sem dúvida, o primeiro, sendo de notar, de resto, que o último,
independentemente de deixar em aberto a questão de saber a qual dos diferentes
tipos de lei se referiria, mais não corresponderia, no caso de lei de igual
valor normativo, do que a um acrescentamento futuro de uma circunstancial e
específica ressalva que, como tal, não careceria logicamente de ser
antecipadamente prevista.
De registar, ainda, que, constituindo a emissão de empréstimos e a assumpção
de obrigações uma expressão de autonomia jurídica, no caso, de natureza
político-territorial e de âmbito regional, não pode deixar de aceitar-se que a
solução de considerar directamente vinculadas, apenas, as regiões autónomas que
praticam tais actos corresponde a um simples corolário dessa autonomia.
Mas a questão não se coloca nesse plano. O que importa saber é se o Estado,
na sua veste de pessoa nacional, pode excluir, de plano, fora das “situações
legalmente previstas”, a possibilidade de ponderar, face às específicas ou
eventualmente anormais circunstâncias do caso, conceder a sua garantia pessoal
ou até assumir o cumprimento das obrigações em favor das regiões autónomas.
Não controvertemos que o Estado possa decidir, após concreta ponderação, não
conceder a sua garantia pessoal aos empréstimos que as regiões autónomas possam
vir a emitir no futuro, como, igualmente, não pomos em causa que o Estado possa
decidir não assumir responsabilidade pelas obrigações das Regiões Autónomas, nem
assumir os compromissos que decorram dessas obrigações.
O que entendemos é que, qualquer que seja o exacto sentido a conferir
àquelas expressões verbais, as normas em causa ferem diversos princípios
constitucionais, conjugadamente interpretados, quando entendidos de modo a
excluir toda a possibilidade de ponderação dos interesses regionais e nacionais
atinentes à matéria.
Na verdade, temos para nós que decorre – do princípio do Estado de direito
democrático, consagrado no artigo 2.º, na sua dimensão de Estado baseado no
pluralismo de organização política democrática e de separação e interdependência
de poderes; do princípio do Estado unitário que respeita na sua organização e
funcionamento o regime autonómico insular e os princípios da subsidiariedade, da
autonomia das autarquias locais e da descentralização administrativa, constante
do artigo 6.º; do princípio de que a organização democrática do Estado
compreende a existência de autarquias locais, afirmado no artigo 235.º, e
finalmente, do princípio da autonomia das regiões autónomas e da sua
funcionalidade constitucional, contempladas no artigo 225.º, n.º 2, todos os
preceitos da Constituição, quando conjugadamente interpretados – que o Estado,
podendo auto-organizar-se territorialmente como quiser em diferentes pessoas
colectivas territoriais, desde que o faça segundo os diversos modos
constitucionalmente previstos (Estado pessoal titular de órgãos de soberania;
regiões autónomas e autarquias locais), bem como conformar nos termos que
entender o património inalienável ou os bens do domínio público das pessoas
colectivas territoriais, restringindo, desse modo, o âmbito do património de
tais pessoas que constitui garantia comum ou especial do cumprimento das suas
obrigações (cf. art. 817.º do Código Civil e 822.º do Código de Processo Civil),
não pode afastar, de plano ou de modo absoluto, a possibilidade de ponderação do
recurso aos bens jurídicos previstos em tais preceitos (garantia pessoal do
Estado e assumpção de dívidas das regiões por parte do mesmo), por banda das
regiões autónomas (tal como as autarquias locais).
Lembre-se, de resto, que não existe preceito semelhante ao do artigo 35.º do
Decreto da Assembleia aqui em causa na Lei das Finanças Locais relativamente às
autarquias locais ou até para as empresas públicas, sem que se deslinde uma
razão material ou objectiva para a diferenciação.
A exclusão total de utilização dos bens jurídicos constantes dos artigos
35.º e 36.º constitui uma medida legislativa manifestamente desproporcionada ao
escopo da redução da despesa pública e do equilíbrio financeiro das regiões,
justificando-se apenas num eventual interesse de retirar do controlo e da
discussão políticas as concretas decisões que sobre tais matérias viesse a tomar
o Governo nacional, no caso de lhe vir a ser solicitada a sua intervenção, em
algumas situações.
É claro que as regiões autónomas (como as autarquias locais) são,
constitucionalmente, pessoas colectivas territoriais diferentes entre si e em
relação à pessoa colectiva territorial Estado soberano, pelo que,
constitucionalmente, não podem deixar de ser titulares de interesses,
atribuições e competências diferentes.
Por outro lado, não pode desconhecer-se que, dentro de cada modo de
organização política, constitucionalmente previsto, e na relação entre eles,
vale o princípio da separação e de interdependência de poderes.
Mas apesar de serem titulares de atribuições, competências e poderes
constitucionais diferentes e de, nestes, deverem respeitar o princípio da
separação e de interdependência, todos estão adstritos, nas suas relações, a
agir de acordo com o princípio da solidariedade e da coesão nacionais.
Nesta perspectiva, as regiões e as autarquias locais realizam o mesmo Estado
nacional, se bem que numa específica dimensão territorial em que o mesmo se
auto-organiza.
É nesta perspectiva que ganha todo o sentido a prescrição constante do n.º 2
do artigo 225º da Constituição, segundo a qual “a autonomia das regiões visa a
participação democrática dos cidadãos, o desenvolvimento económico-social e a
promoção e defesa dos interesses regionais, bem como o reforço da unidade
nacional e dos laços de solidariedade entre todos os portugueses”.
Ora, sendo assim, não pode o Estado soberano, sem quebra da solidariedade e
da coesão nacionais, permitir, por um lado, às suas pessoas colectivas
territoriais, em que o mesmo se organiza, o acesso a certos bens jurídicos, como
são os referidos nos preceitos, e, por outro lado, obstar a uma tal utilização
no seu máximo grau, potenciado pela sua intervenção enquanto Estado territorial
unitário soberano, sem que intervenha um concreto momento de ponderação das
situações concretas, susceptíveis de corresponder à satisfação dos interesses
regionais e nacionais cuja prossecução lhes está cometida, momento esse sedeado,
seja no Parlamento, seja no Governo.
Na verdade, há-de convir-se serem muito diferentes as possibilidades de
satisfação das suas pretensões de obtenção de crédito quando as regiões
concorram a ele sozinhas ou oferecendo a garantia pessoal que o Estado assuma
dar.
Por outro lado, são, também substancialmente, diferentes as condições em que
as regiões podem contratar se os credores souberem que o Estado não exclui de
todo uma ponderação de poder vir a assumir a responsabilidade pelo cumprimento
de obrigações decorrentes de compromissos que as regiões assumam, no caso de tal
cumprimento se lhes vir a tornar praticamente impossível ou
desproporcionadamente tardio.
Ora, pese, embora, estejam previstas, nos artigos 42.º e 43.º do Decreto da
Assembleia em causa, situações em que esse dever de solidariedade nacional se
pode concretizar, há-de convir-se – independentemente de a utilização do
instrumento previsto no primeiro preceito poder proporcionar tratamentos
políticos discriminatórios – poderem sobrevir muitas outras situações em que o
dever de solidariedade e de coesão nacionais adquire um tal grau de intensidade
que não pode deixar de reclamar uma atitude de concreta ponderação do Estado em
auxiliar, sob qualquer dos modos previstos nos artigos 35.º e 36.º, as suas
regiões autónomas.
O caso mais evidente será o de as regiões autónomas terem que assumir
dívidas para fazer face ao incumprimento das obrigações financeiras do Estado
para com as mesmas regiões autónomas.
Mas é possível cogitar outras, como sejam, por exemplo, circunstâncias
exteriores, diferentes das previstas no artigo 43.º, que incidam de tal modo
violentamente sobre a estrutura da base económica das regiões que estas fiquem
em sérias dificuldades para poder prosseguir a satisfação do essencial dos
interesses das respectivas populações.
3 – Entendemos, ainda, que a norma do artigo 66.º, conjugado com as normas
constantes dos artigos 19.º, n.º 1, 32.º, nºs 2 a 7, e 38.º, nºs 2 e 3 do
Decreto da Assembleia da República n.º 94/X, é também inconstitucional, por
violação do princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º
da Constituição, na sua dimensão de tutela da confiança.
Na verdade, conquanto o princípio da tutela da confiança tenha sido
encarado, na jurisprudência do Tribunal Constitucional, essencialmente, na
perspectiva da defesa de direitos e de interesses legalmente protegidos de
pessoas jurídicas de natureza diferente das que estão em causa, não pode deixar
de inferir-se, ainda, de tal princípio do Estado de direito democrático, uma
exigência constitucional de tutela da confiança das pessoas colectivas públicas
territoriais numa não alteração, abrupta e temporalmente inadequada, da
legislação que, dentro dos termos em que se organizam constitucional e
legalmente as suas relações de poder, prevê os meios jurídicos e financeiros com
base nos quais elas podem levar a cabo a satisfação dos interesses regionais que
a Constituição e a lei põem a seu cargo.
Ora, se não é de conferir a tal princípio, como se sustenta no acórdão, um
conteúdo tal que afaste a admissibilidade de qualquer grau de revisibilidade
legislativa dos critérios de repartição dos recursos financeiros advindos da
cobrança de IVA que tenha conexão territorial com as regiões autónomas ou dos
termos em que deve ser assegurado o tipo de receitas a que aludem os artigos
37.º e 38.º do Decreto da Assembleia da República em causa, que leve em conta as
circunstanciais dificuldades financeiras do todo nacional, não pode, todavia,
incluir-se, no âmbito dessa revisibilidade permitida constitucionalmente, a
situação em que as regiões autónomas acabaram por não poder conformar os seus
orçamentos para o ano de 2007 em função do nível de receitas provenientes de IVA
e de transferências do Orçamento do Estado que decorre da aplicação dos novos
critérios legais constantes dos referidos preceitos.
Na verdade, no momento em que estavam legalmente vinculadas a elaborar e
aprovar o seu Orçamento para o ano de 2007 e, consequentemente, a eleger, para
as respectivas suas populações, as necessidades regionais a satisfazer durante
tal ano económico, as Regiões apenas podiam desonerar-se desse dever legal
exactamente com cumprimento pela lei então vigente.
Deste modo, só com base na confiança na manutenção do regime financeiro então em
vigor poderiam elas elaborar o seu Orçamento, não lhes sendo lícito conformá-lo
em função de uma futura e profunda alteração, de conteúdo ou contornos então
indefinidos, dos critérios normativos então vigentes.
Não se diga que o art. 59.º do Decreto da Assembleia, contemplando cláusulas de
salvaguarda, obvia ao resultado intolerável no ano económico de 2007, no que
tange às receitas do Fundo de Coesão.
Na verdade, face ao seu n.º 3, é sempre possível uma redução do Fundo de Coesão
relativamente aos anos anteriores, se bem que numa percentagem inferior à que se
mostra estabelecida no artigo 38.º
As regiões vêem-se, assim, obrigadas a fazer uma aplicação retroactiva
daqueles preceitos e abdicar da satisfação de necessidades regionais cuja
pacificação tinham projectado.
Ora, traduzindo-se uma tal aplicação retroactiva, relativamente ao ano de
2007, numa diminuição substancialmente acentuada do volume de receitas, advindas
de tais fontes legais, e afectando essa diminuição de modo profundo e imprevisto
as expectativas regionais quanto ao nível efectivo das necessidades públicas
regionais a satisfazer, cuja eleição não poderia deixar, naquele momento, de ser
feita no exacto cumprimento da lei então vigente, não pode essa alteração deixar
de ser considerada como desproporcionada, injustificada e intolerável.
Benjamim Rodrigues
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido por entender que: (i) o Tribunal Constitucional devia ter
conhecido da questão de inconstitucionalidade, suscitada pelos requerentes,
relativa à violação da “reserva de estatuto”; (ii) padecem de
inconstitucionalidade, por violação dos princípios da solidariedade nacional e
da igualdade, as normas dos artigos 35.º e 36.º do Decreto da Assembleia da
República n.º 94/X, que aprova a Lei de Finanças das Regiões Autónomas,
revogando a Lei n.º 13/98, de 24 de Fevereiro; (iii) são inconstitucionais, por
violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito
democrático, as disposições conjugadas dos artigos 19.º, n.º 1, 37.º, n.ºs 2 a
7, 38.º, n.ºs 2 e 3, e 66.º do mesmo Decreto; e (iv) não é suportada pelo teor
literal do artigo 62.º, n.º 1, do referido Decreto a interpretação “conforme à
Constituição” que dele é feita no precedente acórdão.
1. Conhecimento da questão de inconstitucionalidade, suscitada pelos
requerentes, relativa à violação da “reserva de estatuto”.
Na Parte A) do pedido – epigrafada de “Violação do princípio constitucional
da prevalência hierárquica dos Estatutos Político‑Administrativos das Regiões
Autónomas em face das restantes leis, mesmo as de valor reforçado, ínsito na
conjugação dos artigos 161.º, alínea b), 168.º, n.º 6, alínea f), 226.º, 280.º,
n.º 2, alínea c), e 281.º, n.º 1, alínea d), da CRP, e ainda do princípio
contido no artigo 227.º, n.º 1, alínea j), da CRP” e que se estende sob os n.ºs
8 a 76 –, os requerentes sustentam duas questão de natureza distinta: (i) a
questão da contrariedade (material) entre, por um lado, as disposições dos
artigos 3.º, 7.º, n.º 5, 35.º e 37.º, n.ºs 2 a 7, do Decreto n.º 94/X e, por
outro lado, disposições constantes dos Estatutos Político‑Administrativos das
Regiões Autónomas, designadamente o Estatuto Político‑Administrativo da Região
Autónoma da Madeira (EPARAM); e (ii) a questão da violação da reserva de
estatuto, reportada ao artigo 227.º, n.º 1, alínea i), da Constituição da
República Portuguesa (CRP), centrada na inadmissibilidade constitucional de
serem tratadas na Lei de Finanças das Regiões Autónomas matérias que
constituiriam objecto necessário de tratamento estatutário.
1.1. Acompanho o precedente acórdão quando nele se decide que a primeira das
apontadas questões, sendo uma questão de ilegalidade, é insusceptível de ser
apreciada em sede de fiscalização preventiva de normas, já que a CRP (artigo
278.º) limita a intervenção do Tribunal Constitucional, neste âmbito, à
apreciação de questões de inconstitucionalidade. Por mais patente que se entenda
ser a contradição entre normas do Decreto em causa e disposições estatutárias
(designadamente a constante do artigo 118.º, n.º 2, do EPARAM), trata‑se de
questão que o Tribunal Constitucional apenas poderá conhecer em sede de futuro
pedido de fiscalização abstracta sucessiva da legalidade (artigo 281.º, n.º 1,
alínea d), da CRP).
1.2. Entendi, porém, que nenhum obstáculo existia à apreciação da questão –
que é manifestamente uma questão de constitucionalidade – que os requerentes
explicitamente suscitaram na segunda parte da secção A) do seu pedido (n.ºs 39
e seguintes), consistente no entendimento de que a matéria sobre que versa o
Decreto em causa (regulação das finanças regionais e das relações financeiras
entre o Estado e as Regiões Autónomas) tinha de constar dos estatutos regionais,
por tal ser constitucionalmente imposto.
Apesar da sua extensão, cumpre transcrever as pertinentes passagens do
pedido, onde, a seguir à defesa da tese de que disposições do Decreto contrariam
(materialmente) disposições dos Estatutos, se aduz (sublinhados acrescentados,
com supressão dos sublinhados originais):
“39) Mas não só: há também uma violação do artigo 227.º, n.º 1, alínea j), da
CRP.
40) É que não se pode dizer que, pelo facto de o n.º 3 do artigo 229.º da CRP
determinar que «as relações financeiras entre a República e as regiões autónomas
são reguladas através da lei prevista na alínea t) do artigo 164.º», essa não é
uma matéria estatutária e, menos ainda, que as disposições dos Estatutos
respeitantes à autonomia financeira regional cedem perante a lei de finanças das
Regiões Autónomas, porque não cedem de modo algum, já que, como se demonstrará,
da Constituição decorre exactamente o contrário.
41) É que a referida norma constitucional (artigo 229.º, n.º 3) tem de ser
articulada e conjugada com o disposto noutras normas constitucionais,
nomeadamente com a prevista no artigo 227.º, n.º 1, alínea j), da CRP, segundo
o qual «As regiões autónomas são pessoas colectivas territoriais e têm os
seguintes poderes, a definir nos respectivos estatutos: (...) dispor, nos termos
dos estatutos e da lei de finanças das regiões autónomas, das receitas fiscais
nelas cobradas ou geradas, bem como de uma participação nas receitas tributárias
do Estado, estabelecida de acordo com um princípio que assegure a efectiva
solidariedade nacional, e de outras receitas que lhes sejam atribuídas e
afectá‑las às suas despesas» (…).
42) Quer isto dizer que a Constituição não afasta, pelo contrário, acolhe, o
princípio de os Estatutos Político‑Administrativos definirem matéria
respeitante à autonomia financeira regional e, ao fazê‑lo, reconhece
expressamente que as demais leis, incluindo a lei de finanças das Regiões
Autónomas, têm de se subordinar, nesta matéria, ao disposto naqueles diplomas de
natureza para‑constitucional.
43) Não poderia ser, aliás, de outra maneira, porquanto a autonomia financeira
das Regiões Autónomas constitui uma das vertentes mais importantes da autonomia
regional.
44) Autonomia significa, como é óbvio, autonomia política, legislativa,
financeira e administrativa, estando todas estas vertentes constitucionalmente
garantidas às Regiões Autónomas, pelo que todas elas devem estar reguladas nos
respectivos Estatutos, integrando mesmo o núcleo fundamental do seu acervo
material.
45) Efectivamente, e além do mais, não há autonomia regional sem autonomia
financeira, pelo que, em nenhuma circunstância, os Estatutos poderiam ser
amputados ou subalternizados em relação a vertente tão relevante.
46) Por assim ser, a autonomia financeira das Regiões Autónomas não pode deixar
de integrar, por imperativo constitucional, o âmbito material estatutário, ou
seja, estão em causa normas relativamente às quais não pode haver discussão ou
dúvidas sobre a sua natureza materialmente estatutária – cfr. artigo 227.º, n.º
1, alíneas i) e j), da CRP.
47) Com efeito, a autonomia financeira regional não se inclui no âmbito
estatutário apenas por integrar os poderes das Regiões, a definir nos
respectivos Estatutos, já que faz mesmo parte do seu núcleo fundamental – cfr.
artigo 227.º da CRP.
48) Na verdade, as matérias da autonomia financeira regional integram os poderes
das Regiões identificados no artigo 227.º da CRP (maxime alíneas i) e j) do n.º
1), pelo que as normas que a regulam – artigo 118.º, n.º 2, da EPARAM – têm, por
isso, imperativamente, natureza materialmente estatutária na sua dimensão
essencial.
49) Por isso, os Estatutos Político‑Administrativos das Regiões Autónomas podem
e devem regular os princípios e conter as normas que balizam a autonomia
financeira regional, adquirindo estas a força jurídica específica dos normativos
estatutários – são regras para‑constitucionais e não disposições indevidamente
inseridas nos Estatutos, o mesmo é dizer, apenas formalmente estatutárias.
50) A concretização da autonomia financeira regional, isto é, a definição dos
meios financeiros concretos de que dispõem as Regiões Autónomas é que são
definidos, por força do disposto no artigo 229.º, n.º 3, da CRP, na lei de
finanças das Regiões Autónomas, mas a verdade é que tal disposição não exclui,
nem afasta, os demais normativos constitucionais aplicáveis e a que a própria
lei de finanças das Regiões Autónomas tem de se subordinar.
51) Ou seja, os princípios e as normas definidoras da autonomia financeira
regional inserem‑se no conteúdo necessário das leis estatutárias (incluem‑se na
reserva de Estatuto), por se reportarem aos poderes das Regiões (artigo 227.º) a
respectiva concretização, e sem prejuízo das demais disposições constitucionais
citadas, e no tocante às relações financeiras entre o Estado e as Regiões
Autónomas é que se encontra fora desse âmbito e deve ser regulada na lei de
finanças das Regiões Autónomas, que tem de se subordinar, designadamente, ao
disposto no artigo 118.º, n.º 2, do EPARAM, que deu expressa execução à alínea
j) do n.º 1 do artigo 227.º da CRP.
52) Tanto assim é que o próprio Decreto n.º 94/X o reconhece ao definir, no seu
artigo 1.º, que «a presente lei tem por objecto a definição dos meios de que
dispõem as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira para a concretização da
autonomia financeira consagrada na Constituição e nos estatutos
político‑administrativos» (…).
53) Ora, as normas estatutárias que supra se referiu como sendo
inconstitucionalmente contrariadas por normas do Decreto da Assembleia da
República ora em apreciação, a saber, o artigo 97.º, n.º 2, do EPARAA e os
artigos 105.º, n.º 2, 117.º e 118.º, n.º 2, do EPARAM, são normas delimitadoras
da autonomia financeira regional e, como tal, repete‑se, são normas
materialmente estatutárias e são‑no, não por mera razão de princípio ou
doutrinária, mas porque a Constituição o expressamente impõe, ao habilitar o
Estatuto a fazê‑lo (alínea j) do n.º 1 do artigo 227.º da CRP).
54) Certo é que, sempre e em qualquer caso, tratando‑se de normas que asseguram,
no plano dos princípios e das regras estruturantes, a autonomia financeira das
Regiões, devem, por isso, ser respeitadas pela lei de finanças das Regiões
Autónomas, o que, todavia, não sucedeu nos termos já atrás expostos.
55) Não será despiciendo, a este propósito, referir que os artigos 105.º, 117.º
e 118.º do EPARAM foram aditados através da Lei n.º 130/99, de 21 de Agosto
(primeira revisão ao Estatuto Político‑Administrativo da Região Autónoma da
Madeira), ou seja, depois da Revisão Constitucional de 1997, que aditou um novo
n.º 3 ao artigo 229.º da CRP, segundo o qual as relações financeiras entre a
República e as Regiões Autónomas são reguladas através da lei de finanças das
Regiões Autónomas, mas que também introduziu a alínea j) do n.º 1 do artigo
227.º, com a sua actual redacção, o que reforça precisamente a sua natureza de
normas delimitadoras da autonomia financeira regional, que se integram no âmbito
da reserva de Estatuto e, por isso, neste domínio, é aquela lei que se tem de
subordinar e respeitar o Estatuto e não o contrário.
56) Convém esclarecer que, quando a Constituição prevê directamente a regulação
de certas matérias nos Estatutos, as normas destes que concretizem tais
determinações da Lei Fundamental são, inequivocamente, por imposição
constitucional, materialmente estatutárias, sendo, assim, por natureza,
subtraídas a qualquer controvérsia neste domínio.
57) Com efeito, nos casos em que a Constituição determine a sua regulação pelos
Estatutos, as normas que têm execução ao determinado pela Lei Fundamental,
ganham materialidade estatutária, por imperativo constitucional, como é o caso
do n.º 2 do artigo 118.º do EPARAM, que mais não é, como já se referiu, do que a
concretização do previsto na alínea j) do n.º 1 do artigo 227.º da CRP.
58) Ninguém duvida, por exemplo, que, quando o artigo 231.º, n.º 7, da CRP
determina que «O estatuto dos titulares dos órgãos de governo próprio das
regiões autónomas é definido nos respectivos estatutos
político‑administrativos”, tal definição se integra no âmbito materialmente
estatutário.
59) Acresce referir que as disposições constitucionais não se excluem umas às
outras, antes se conjugam e se coordenam.
60) Assim, se é verdade que o artigo 229.º, n.º 3, da CRP determina que «As
relações financeiras entre a República e as regiões autónomas são reguladas
através da lei prevista na alínea t) do artigo 164.º», não é menos verdade que o
artigo 227.º, n.º 1, alínea j), estabelece que «As regiões autónomas são pessoas
colectivas territoriais e têm os seguintes poderes, a definir nos respectivos
estatutos: (...) dispor, nos termos dos estatutos e da lei de finanças das
regiões autónomas, das receitas fiscais nelas cobradas ou geradas, bem como de
uma participação nas receitas tributárias do Estado, estabelecida de acordo com
um princípio que assegure a efectiva solidariedade nacional, e de outras
receitas que lhes sejam atribuídas e afectá-las às suas despesas» (…).
61) Ou seja, a Constituição não se limita a dizer que as relações financeiras
entre o Estado e as Regiões Autónomas são reguladas na lei de finanças
regionais, já que, neste domínio, e como já se demonstrou, contém outras
disposições para além do artigo 229.º, n.º 3.
62) Se assim fosse (e só em tal hipótese), estaria obviamente vedado aos
Estatutos a possibilidade de integrarem no seu corpo normativo matéria
respeitante às finanças regionais, o que, aliás, atenta à relevância essencial
da questão financeira para a autonomia regional, seria absurdo.
63) Na verdade, o que a Constituição diz, duas vezes seguidas – no proémio do
n.º 1 e no corpo da alínea j) do artigo 227.º, é que aos Estatutos cabe definir
a matéria relativa à disposição das receitas fiscais cobradas ou geradas nas
Regiões Autónomas, bem como a uma participação nas receitas tributárias do
Estado (dotação orçamental anual) e à disposição de outras receitas que lhes
sejam atribuídas e afectá‑las às suas despesas, usando duas vezes a expressão
«nos termos dos Estatutos» e esses «termos» são os do artigo 118.º, n.º 2, do
EPARAM.
64) Isto significa que foi opção deliberada do legislador constituinte
subordinar a lei de finanças das Regiões Autónomas, nas vertentes referidas na
alínea j) do n.º 1 do artigo 227.º da CRP, às normas dos Estatutos
Político‑Administrativos que deram concretização àquele comando constitucional.
65) Tanto assim é que, quer a redacção do artigo 227.º, n.º 1, alínea j), quer a
do artigo 229.º, n.º 3, da CRP, foram ambas fixadas na revisão constitucional
de 1997 e, portanto, têm de ser aplicadas conjugada e coordenadamente e não de
forma a excluírem‑se entre si.
66) Com efeito, a mesma revisão constitucional que aditou um novo n.º 3 ao
artigo 229.º, segundo o qual as relações financeiras entre o Estado e as Regiões
Autónomas são reguladas na lei de finanças regionais, foi precisamente a mesma
que, em simultâneo, determinou, no artigo 227.º, n.º 1, alínea j), que as
Regiões Autónomas tivessem o poder, «a definir nos respectivos estatutos», de
«dispor, nos termos dos Estatutos e das lei de finanças das regiões autónomas,
das receitas fiscais nelas cobradas ou geradas, bem como de uma participação nas
receitas tributárias do Estado, estabelecida de acordo com um princípio que
assegure a efectiva solidariedade nacional, e de outras receitas que lhes sejam
atribuídas e afectá-las às suas despesas» (…).
67) Esta simultaneidade na fixação da redacção dos preceitos em questão não
deixa margem para dúvidas de que foi inequívoca a intenção do legislador
constitucional em habilitar duas leis a regular a matéria das finanças
regionais, conferindo, também, a uma delas – o Estatuto – o papel
parametrizador da lei das finanças regionais na vertente relativa à dotação
orçamental a atribuir pelo Estado às Regiões Autónomas (participação nas
receitas tributárias do Estado).
68) E percebe‑se perfeitamente o porquê dessa opção constitucional, de caso
pensado.
69) É que dessa forma se parametriza, por força da prevalência hierárquica dos
Estatutos em face das restantes leis, a própria lei das finanças regionais, de
modo a assegurar a efectiva solidariedade para com as Regiões Autónomas que a
Constituição impõe – cfr. artigos 225.º, 227.º, n.º 2, alínea j), e 229.º, n.º
1, da CRP.
70) O legislador constitucional quis balizar a lei das finanças das Regiões
Autónomas às disposições estatutárias, o que é perfeitamente compreensível e
desejável, pois não é pensável que dispensasse os Estatutos de regular,
minimamente, tal matéria.
71) A Constituição não quis deixar um cheque em branco ao legislador da lei das
finanças regionais, impondo que este observasse as normas relativas à autonomia
financeira regional vertidas nos Estatutos, o que, aliás, bem se compreende,
tendo em consideração que a autonomia financeira é uma vertente essencial da
autonomia regional.
72) Ao prever normas como a constante no artigo 118.º, n.º 2, do EPARAM, os
Estatutos conformam‑se com a Constituição, pelo que o desrespeito daquela
disposição estatutária pelo Decreto em causa é também, ao mesmo tempo, violação
da alínea j) do n.º 1 do artigo 227.º da CRP, enfermando, assim,
simultaneamente, de ilegalidade e de inconstitucionalidade.
73) Afinal é a própria Constituição que, no artigo 227.º, n.º 1, alínea j),
deixa ao legislador estatutário margem para definir matérias como a disposição
das receitas fiscais cobradas ou geradas nas Regiões Autónomas, a participação
nas receitas tributárias do Estado e a disposição de outras receitas que lhes
sejam atribuídas e afectá‑las às suas despesas.
74) E relativamente ao artigo 118.º, n.º 2, do EPARAM convém precisar que este
se limita a concretizar a determinação constitucional prevista no artigo 227.º,
n.º 1, alínea j), porque do que se trata, no caso deste normativo estatutário, é
de se definir a participação da Região Autónoma da Madeira nas receitas
tributárias do Estado (dotação orçamental anual), dessa forma se garantindo a
autonomia financeira regional.
75) Ora, se a Constituição determina, repetidamente, no proémio do n.º 1 e no
corpo da alínea j) do artigo 227.º, que os Estatutos estão habilitados a definir
matéria respeitante à autonomia financeira regional, e, ao mesmo tempo,
estabelece, no artigo 229.º, n.º 3, que as relações financeiras entre Estado e
as Regiões são reguladas na lei de finanças das Regiões Autónomas, é porque quis
expressamente subordinar aquela lei às disposições estatutárias, que,
obviamente, prevalecem no plano da hierarquia das fontes.”
Afigura‑se‑me patente que os requerentes, de forma explícita e reiterada,
suscitaram uma questão de constitucionalidade (violação da reserva de estatuto),
que o Tribunal Constitucional podia e devia ter apreciado no âmbito do presente
processo.
1.3. Devo, no entanto, adiantar que, conhecendo da questão, o meu actual
entendimento – sempre sem prejuízo de eventual reponderação – vai no sentido da
sua improcedência, pelas razões expressas no Acórdão n.º 567/2004 (que
subscrevi), designadamente no seu n.º 12, onde se concluiu que:
“Ora, fora da reserva de estatuto está necessariamente «o regime de
finanças das regiões autónomas» – alínea t) do artigo 164.º da Constituição –,
e nomeadamente a matéria das «relações financeiras entre a República e as
regiões autónomas» – n.º 3 do artigo 229.º da Constituição –, que é matéria
reservada à competência legislativa da Assembleia da República e deve constar da
Lei de Finanças das Regiões Autónomas. Tal opinião é também expressa no Acórdão
n.º 162/99, seguindo Gomes Canotilho e Vital Moreira.
Assim, não se verifica a apontada inconstitucionalidade, por violação da
reserva de estatuto, das suas normas ou do princípio da repartição de
competência entre o Estado e as regiões autónomas, das normas que se referem às
transferências do Estado para as regiões; nem, pelas razões já apontadas
anteriormente, das que se referem à possibilidade de limitação ao endividamento
líquido regional.”
2. Inconstitucionalidade das normas dos artigos 35.º e 36.º do Decreto da
Assembleia da República n.º 94/X, por violação dos princípios da solidariedade
nacional e da igualdade.
A norma do artigo 35.º do Decreto n.º 94/X (“Sem prejuízo das situações
legalmente previstas, os empréstimos a emitir pelas regiões autónomas não podem
beneficiar de garantia pessoal do Estado”), como foi evidenciado no debate
parlamentar, representa a aprovação de um princípio oposto ao que até agora tem
vigorado, e que consta quer do artigo 29.º da Lei n.º 13/98 (“Os empréstimos a
emitir pelas Regiões Autónomas poderão beneficiar de garantia pessoal do Estado,
nos termos da respectiva lei”), quer do artigo 117.º do EPARAM (“Os empréstimos
a emitir pela Região Autónoma da Madeira poderão beneficiar de garantia pessoal
do Estado, nos termos da respectiva lei”).
Logo na intervenção inicial do Ministro de Estado e das Finanças (Diário da
Assembleia da República (DAR), X Legislatura, 2.ª Sessão Legislativa, I Série,
n.º 20, de 16 de Novembro de 2006, p. 28) se salientou:
“Ainda em matéria de endividamento, gostaria de sublinhar outra das
novidades desta proposta de lei. Fica clarificado que os empréstimos das regiões
autónomas não podem beneficiar de garantias pessoais do Estado.” (sublinhado
acrescentado).
Isto é: substituiu‑se uma regra de permissão de concessão de garantia
pessoal do Estado a empréstimo das regiões (entendendo‑se a remissão para os
“termos da respectiva lei” como abrangendo apenas a definição dos pertinentes
procedimentos e competências) por uma regra de proibição, com a limitada
ressalva das situações já legalmente previstas à data da aprovação da nova Lei.
Neste contexto, não vejo como se possa afirmar, como o fez o precedente
acórdão, de que não há diferença substancial, quanto aos seus efeitos, entre
estes dois sistemas antagónicos.
A prestação de aval pelo Estado, com os reconhecidos efeitos de potenciação
da baixa de juros dos empréstimos, é uma das formas mais relevantes de
manifestação do princípio da solidariedade nacional, não se descortinando razão
válida para liminarmente a rejeitar, independentemente da apreciação casuística
da conveniência, ou não, da sua concessão em cada situação concreta. O
afastamento da mera possibilidade desta ponderação concreta, quando estejam em
causa empréstimos das Regiões Autónomas, em contraste com a admissibilidade
dessa ponderação relativamente a todos os demais empréstimos relativamente aos
quais é possível a prestação de garantia pessoal pelo Estado (autarquias
locais, outros entes públicos e mesmo entidades privadas), representa uma
discriminação negativa das Regiões Autónomas, absolutamente injustificada, que
representa uma “ostensiva e mesmo acintosa «dessolidarização» do Estado em
relação à dívida pública das regiões autónomas” (Deputado Mota Amaral, DAR
citado, p. 40).
As mesmas razões – possibilidade de afectação do princípio da solidariedade
nacional por impossibilidade de ponderação concreta da justificação de
intervenção do Estado em apoio das Regiões Autónomos (sendo certo que, em
diversas situações, serão claramente imprestáveis os recursos a “protocolos
financeiros” e “apoio extraordinário”, previstos nos artigos 42.º e 43.º do
Decreto em análise) e criação de uma situação de intolerável discriminação
negativa das mesmas Regiões, violadora do princípio da igualdade, valem também
(reconheço que em menor grau) quanto à norma do artigo 36.º (“Sem prejuízo das
situações legalmente previstas, o Estado não pode assumir responsabilidade
pelas obrigações das regiões autónomas, nem assumir compromissos que decorram
dessas obrigações”).
3. Inconstitucionalidade, por violação do princípio da confiança, ínsito no
princípio do Estado de direito democrático, das disposições conjugadas dos
artigos 19.º, n.º 1, 37.º, n.ºs 2 a 7, 38.º, n.ºs 2 e 3, e 66.º do Decreto n.º
94/X.
Afigurando‑se‑me inquestionável a invocação, no presente domínio, do
princípio da confiança, tal como a jurisprudência deste Tribunal o tem
delineado, a sua violação, no presente caso, resulta, a meu ver, não da
afectação de expectativas – essas, sim, de cariz político – reportadas ao
período previsível de duração normal de uma situação de governo emergente de
eleições regionais, mas da intolerável afectação “retroactiva” (com a entrada em
vigor da nova Lei fixada para o pretérito dia 1 de Janeiro de 2007 – cf. artigo
66.º) de compromissos jurídicos assumidos no Orçamento Regional já aprovado e
publicado para vigorar no ano de 2007.
Sem prejuízo do reconhecimento da eventual necessidade ou conveniência de
revisão da lei das finanças regionais, exigências elementares de previsibilidade
e de confiança impunham que a apresentação da correspondente proposta de lei
fosse feita a tempo de a nova lei, pelo seu carácter de enquadramento de opções
político‑financeiras fundamentais, estar em vigor antes do período de elaboração
dos orçamentos regionais para o novo ano.
Por outro lado, está explícito no pedido e resulta abundantemente do debate
parlamentar, não apenas a alegação de substanciais reduções nas verbas
disponíveis pela Região Autónoma da Madeira (segundo os requerentes, baixa de
3,79 milhões de euros no que respeita às receitas do IVA, redução de cerca de
50% no que diz respeito ao Fundo de Coesão, e redução em 34 milhões de euros das
transferências orçamentais), mas também a imprestabilidade do critério do
rendimento per capita, que, na Madeira, devido à existência de zona franca,
implica um empolamento artificial do PIB da Região, traduzido em riqueza que,
sendo considerada como produzida na Região, não reverte a favor dos aí
residentes (cf. intervenções dos Deputados António Filipe, Nuno Teixeira de Melo
e Luís Fazenda e do próprio Ministro de Estado e das Finanças, DAR citado, pp.
30, 31, 33, 35 e 47).
4. O regime do artigo 62.º do Decreto n.º 94/X.
Nenhuma discordância mereceria o juízo de não inconstitucionalidade contido
no precedente acórdão se fosse possível atribuir à norma em causa o sentido aí
avançado. Mas, apesar da incompreensibilidade do seu teor, parece manifesto que
se prevêem três momentos: 1.º – as Regiões consideram que a descentralização
permite corresponder melhor aos interesses das respectivas populações; 2.º – o
Governo procede à regionalização dos serviços do Estado; 3.º – um decreto‑lei
define “as atribuições e as competências necessárias ao exercício do poder
tributário conferido às regiões autónomas”.
Não vejo como esta atribuição, feita por “decreto‑lei”, se compagine com a
competência legislativa própria das Regiões Autónomas.
Mário José de Araújo Torres
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Não acompanhei a decisão do Tribunal quanto à não inconstitucionalidade dos
artigos 35º e 36 do Decreto nº 94/X, por entender que, ao afastar a assunção,
pelo Estado, de obrigações das Regiões Autónomas, e, sobretudo, ao vedar a
prestação de garantia pessoal, pelo mesmo Estado, aos empréstimos a emitir por
estas, excluindo a possibilidade de ponderação em concreto das circunstâncias de
cada caso, se viola o princípio da solidariedade nacional decorrente do nº 2 do
artigo 225º, da alínea j) do nº1 do artigo 227º e do nº 1 do artigo 220º da
Constituição.
Não está em causa, nesta posição, qualquer perspectivação unidimensional deste
princípio, que também não concebemos em termos de dispensar a ponderação dos
interesses das populações do território nacional no seu todo, aqui se incluindo,
naturalmente, as próprias populações do território historicamente definido no
continente europeu. É certo que não pretendemos que exista uma imposição
constitucional expressa deste tipo de medidas, mas o que temos por desconforme
com o referido princípio constitucional é a imposição contrária, que se traduz
em não permitir ao Estado a consideração das circunstâncias concretas que, tendo
naturalmente na devida conta os interesses das populações do território
português no seu todo, pudessem justificar, neste ou naquele caso, aquela
medida. Isto não implica, por certo que vejamos nos actos proibidos pelos
artigos 35º e 36º do Decreto nº 94/X um direito das Regiões Autónomas. Não
alcançamos é que tal vedação de princípio, por isso totalmente indiferente ao
perfil das situações concretas e à ponderação de interesses que estas pudessem
justificar, encontre justificação constitucional, quando se atenta na referida
consagração do princípio da solidariedade.
É pois a ablação de uma normal faculdade do Estado e a total desconsideração dos
interesses que poderiam justificar o seu exercício em concreto que temos por
constitucionalmente proibida, por não respeitar o princípio da solidariedade.
Nestes termos, a nossa conclusão não se modificaria ainda que, acompanhando o
acórdão, se pudesse pretender que aquele princípio tem a sua realização
possibilitada por outras formas; na verdade, sempre restaria por explicar o
porquê da exclusão radical, em todas e quaisquer circunstâncias, dos mecanismos
visados nos artigos 35º e 36º do Decreto nº 94/X. Exclusão radical, dizemos,
porque não conseguimos acompanhar o acórdão quando pretende ler aquelas
disposições, sobretudo o seu inciso inicial (“sem prejuízo das situações
legalmente previstas”), com o sentido de impor a proibição nelas consubstanciada
em relação a actuações que se concretizem por via meramente
político-administrativa, mantendo a possibilidade de elas poderem operar através
de mecanismos legais. A comparação com os termos da lei ainda vigente retira
naturalmente sentido a uma tal interpretação, que, a ser querida pelo
legislador, não deixaria de se manifestar de forma clara no dispositivo legal.
Antes vemos naquela fórmula uma referência às cláusulas de salvaguarda
mencionadas nas alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 59º do Decreto nº 94/X, onde
se garante que não ficam prejudicadas as “obrigações anteriormente assumidas
pelo Estado em relação às Regiões Autónomas e por estas em relação ao Estado” e
“as obrigações assumidas ou a assumir no âmbito de tratados e acordos
internacionais celebrados pelo Estado Português”. É no entanto claro, para nós,
que estas disposições se reportam ou a situações já existentes (e aqui, de
resto, com respeito por uma ideia de reciprocidade que abrange na sua vinculação
quer o Estado quer as próprias Regiões Autónomas), ou a situações decorrentes de
vinculações internacionais do Estado (o que dispensaria, aliás, a previsão
expressa de uma tal hipótese, a aceitar, como aceitamos, o primado do direito
internacional sobre o direito interno infraconstitucional). Também se nos não
afigura, como o pretende o acórdão, que as regras dos artigos 42º e 43º do
Decreto nº 94/X minimizem a proibição decorrente das duas disposições que
consideramos; na verdade, o particularismo da situação prevista no artigo 43º
reduz drasticamente o seu âmbito de actuação, enquanto que o mecanismo de
reciprocidade que subjaz ao artigo 42º não parece ser consentâneo com as
faculdades excluídas (especificamente para as Regiões Autónomas) pelos artigos
35º e 36º do Decreto sujeito a apreciação.
Nestes termos, não podemos deixar de concluir pela violação, por estas
disposições, do princípio da solidariedade acolhido na conjugação do nº 2 do
artigo 225º, da alínea j) do nº 1 do artigo 227ª e do nº 1 do artigo 227º da
Constituição.
2. Não acompanhamos igualmente o acórdão na análise que dedica à questão da
violação, pelos artigos 19º, nº 1, 37º, números 2 a 7, 38º, números 2 e 3, e
66º, do princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de direito
democrático consagrado no artigo 2º da Constituição. É certo que aceitamos, com
o acórdão, que não se pode considerar como dotada de consistência suficiente uma
expectativa ancorada numa quantificação rígida do valor das transferências
decorrentes de uma concreta lei de financiamento das Regiões Autónomas. Mas tudo
está em saber se nos encontramos ou não face a “uma alteração legislativa de
todo imprevisível e inusitada que, ao menos na prática, desencadeasse uma
entorse, total ou abrupta, das expectativas na manutenção do anterior
ordenamento”, circunstância que o acórdão parece reconhecer ter as virtualidades
para desencadear uma violação do princípio da proporcionalidade. Isto,
naturalmente, e para utilizar as palavras do acórdão, desde que se possa dizer,
“na senda da jurisprudência deste Tribunal,” que “as expectativas na manutenção
das disposições existentes (…) se mostrem dotadas de acentuada consistência,
entendida esta no sentido de não ser, em princípio, figurável a possibilidade de
alteração de um dado modelo legislativo que, patentemente, vá criar a já
referida entorse total ou abrupta”.
Ora o artigo 66º do Decreto nº 94/X prevê a entrada em vigor da nova Lei de
finanças das Regiões Autónomas em 1 de Janeiro de 2007, num momento em que foi
já objecto de aprovação o orçamento regional, o que implica que a aplicação dos
seus dispositivos se pretende fazer em relação a casos em que existe já uma
definição de verbas inscritas em orçamento e que contaram precisamente com as
presumíveis dotações que poderiam ser alcançadas em face das disposições a este
propósito vigentes. Não se contesta que a Assembleia da República pode alterar
os critérios que presidem às transferências orçamentais que anualmente ocorrem
para cada Região Autónoma (previstos no artigo 37º do Decreto nº 94/X), como
aliás também os que presidem à definição do montante de verbas do Fundo de
Coesão a transferir para as mesmas Regiões (e constantes do artigo 38º do mesmo
diploma), integrando aliás tal matéria a reserva de competência absoluta deste
órgão de soberania. Mas se a alteração do modelo legal vigente se afigura assim
figurável, para utilizar as palavras do acórdão, já a circunstância de essa
aplicação se fazer de imediato, sem o mínimo intervalo temporal em relação à sua
aprovação, desconsiderando de todo a circunstância de assim se poderem pôr em
causa as previsões orçamentais construídas tendo em conta o quadro legal
vigente, põe em causa, a nosso ver, o princípio da confiança. E não se diga, em
contrário, que o Decreto prevê no seu artigo 59º cláusulas de salvaguarda que
impediriam a produção de tal efeito. Na verdade, no nº 1 deste preceito apenas
se recordam o que diríamos serem os limites naturais que o Decreto não poderia
pôr em causa, enquanto as regras do seu nº 2 apenas são pertinentes para modelar
os termos em que o Fundo de Coesão (previsto no artigo 38º) é atingido nos
quatro anos que se seguem à entrada em vigor da nova lei, em nada afectando o
regime das transferências orçamentais previstas no artigo 37º. E, quanto ao
artigo 38º, o número 2 do artigo 59º limita-se a dever ser lido com ele para a
correcta definição do seu alcance, sem de algum modo limitar o efeito decorrente
da imediata aplicação da nova lei, que decorre do artigo 66º. Se a sua
existência permite perspectivar com um alcance distinto os termos da aplicação,
nesse período, do artigo 38º, em termos a que chamaríamos quantitativos, já a
incidência substancial do novo regime sobre as expectativas decorrentes da
definição de verbas inscritas em orçamento que contaram com presumíveis dotações
que resultariam das disposições legais vigentes se mantém, por resultar da
entrada em vigor imediata da nova lei, prevista no artigo 66º do Decreto 94/X.
Por outro lado, a circunstância de os requerentes não terem posto em causa os
critérios rectores da participação das Regiões Autónomas nas receitas
tributárias do Estado não se nos afigura relevante, uma vez que a violação do
princípio da confiança resulta, como dissemos, do efeito conjugado das
disposições em causa, que determina a afectação de situações constituídas com
base no quadro legal vigente. E os termos do pedido, retomados no ponto 1 do
acórdão, não deixam de conter indicações sobre o grau de afectação das referidas
expectativas.
Por tudo o que precede, concluímos assim que a aplicação conjugada dos artigos
19º, nº 1, 37º, números 2 a 7, 38º, números 1 e 2, e 66º, ao impor a aplicação
das novas regras sobre financiamento regional em termos imediatos, sem a mínima
dilação temporal, e quando se encontram aprovados orçamentos cuja elaboração se
baseou na lei actualmente em vigor, contraria o princípio da confiança, ínsito
no princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2º da
Constituição.
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido quanto ao artigo 66.º, conjugado com os artigos 19.º, n.º 1, 37.º,
n.ºs 2 a 7, e 38.º, n.ºs 2 e 3, e quanto aos artigos 35.º e 36.º do diploma em
causa, pelas razões que passo a expor sucintamente:
1. Diversamente do pedido, entendo que não viola o princípio da confiança a
alteração das regras das finanças das Regiões Autónomas durante o decurso do
mandato de um governo regional. Entendo, porém, que a previsão, no artigo 66.º,
da entrada em vigor em 1 de Janeiro de 2007, sem qualquer período de transição
(diversamente, por exemplo, do que ainda recentemente se previu na nova Lei das
Finanças Locais), num momento em que está já em execução um orçamento 2007
aprovado ainda no âmbito da anterior Lei das Finanças das Regiões Autónomas, de
um regime que restringe de modo relevante as receitas das Regiões (ou de uma
delas), viola o princípio da confiança. Com efeito, entendo que não pode
dizer-se que está em causa, nessas condições, tão-só uma actividade
“eminentemente política”, antes as posições que serão inevitavelmente afectadas
com a redução abrupta de receitas de várias dezenas de milhões de euros
adquiriram já uma consistência que tornava exigível, pelo menos, a previsão de
uma vacatio legis alargada ou de um período mínimo de adaptação às novas regras.
Apenas por esta razão, votei no sentido da existência de violação do princípio
da confiança, cuja protecção decorre do princípio do Estado de Direito
democrático.
2. Votei também no sentido da inconstitucionalidade dos artigos 35.º e 36.º do
diploma em causa, por violação do princípio da solidariedade nacional, tal como
resulta dos artigos 225.º, n.º 2, e 227.º, n.º 1, alínea j), e 229.º, n.º 1, da
Constituição. Com efeito, interpreto estas normas ido de consagrarem uma
proibição de concessão pelo Estado de garantias pessoais às Regiões Autónomas ou
de assunção das suas obrigações, com ressalva apenas das situações já legalmente
previstas (e não de qualquer diploma legal futuro pelo qual se autorize a
garantia ou se assuma a dívida). Que é este o seu sentido (e em particular do
início dos dois artigos) resulta, a meu ver, inequivocamente, do facto de não
fazer sentido que se tenha pretendido manter no artigo 35.º do diploma em
questão, com a redacção inversa (“Sem prejuízo das situações legalmente
previstas, os empréstimos a emitir pelas Regiões Autónomas não podem beneficiar
degarantia pessoal do Estado” – itálico aditado), um regime idêntico ao
consagrado actualmente no artigo 29.º da Lei das Finanças das Regiões Autónomas
(“Os empréstimos a emitir pelas Regiões Autónomas poderão beneficiar de garantia
pessoal do Estado, nos termos da respectiva lei” – itálicos aditado), como se
chega a admitir no Acórdão. Trata-se antes, a meu ver, de normas que dizem
justamente o contrário uma da outra. Ora, entendo que uma exclusão liminar e em
abstracto – mesmo tendo em conta as excepções admitidas – da possibilidade de
ponderar, perante cada situação, se a prestação de garantia pessoal a
empréstimos das Regiões Autónomas ou a assunção das suas obrigações é, ou não, a
actuação mais conforme ao interesse nacional – de todo o País – viola as
exigências da solidariedade nacional. Tal exclusão de importantes formas de
ajuda financeira (que afecta logo, só por si, a posição das Regiões no acesso ao
crédito) só existe, aliás, para as Regiões Autónomas, em relação às quais também
existe justamente uma previsão específica de solidariedade na Constituição (que
também vale no sentido inverso). E essa exclusão não pode ser justificada, a meu
ver, apenas por eventuais dificuldades de disciplina ou de auto-controlo
político do Estado na realização daqueles actos para com as Regiões.
3. Por último, pronunciei-me ainda, sobre a interpretação do pedido, no sentido
de que este se reportava igualmente a um alegado vício de inconstitucionalidade
(“directa”) dos artigos 3.º, 7.º, n.º 5, 35.º e 37.º, n.ºs 2 a 7, do diploma em
apreço por violação de uma “reserva de estatuto” político-administrativo, com
falta de competência da Assembleia da República para desencadear a respectiva
alteração, e não apenas a um vício de ilegalidade por violação do estatuto.
Teria, pois, tomado conhecimento do pedido nesta parte, embora não tivesse
julgado inconstitucionais as normas em apreço com o citado fundamento, já que
considero não decorrer da Constituição uma “reserva de estatuto” para as
matérias em causa (o que, por desnecessário, me posso dispensar agora de
fundamentar mais detidamente).
Paulo Mota Pinto